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São Paulo, 2021

EXPEDIENTE
Coordenação editorial Carlos Costa
Edição Duanne Ribeiro, Fernanda Castello Branco
e Milena Buarque
Conselho editorial Amanda Lopes, Ana de Fátima Sousa,
Carlos Costa, Claudiney Ferreira, Kety Fernandes Nassar,
Letícia Santos, Mônica Abreu Silva e Thays Heleno
Projeto gráfico Guilherme Ferreira
Produção editorial Victória Pimentel
Supervisão de revisão Polyana Lima
Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)
Ilustrações Catarina Bessell (terceirizada)
“Toda leitura da palavra pressupõe
uma leitura anterior do mundo, e
toda leitura da palavra implica a vol-
ta sobre a leitura do mundo, de tal
maneira que ‘ler mundo’ e ‘ler
palavra’ se constituam um movimen-
to em que não há ruptura, em que
você vai e volta. E ‘ler mundo’ e ‘ler
palavra’, no fundo, para mim, impli-
cam ‘reescrever’ o mundo. Reescrever
com aspas, quer dizer, transformá-lo.
A leitura da palavra deve ser inserida
na compreensão da transformação
do mundo, que provoca a leitura dele
e deve remeter-nos, sempre, à leitura
de novo do mundo.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho


SUMÁRIO

8
Editorial ........................................................ 11

Paulo Freire: uma saudade, uma influência,


uma interferência sempre positiva na minha
vida Ana Mae Barbosa .................................. 17

Modos de usar a caixa de ferramentas de


Paulo Freire ................................................... 31
Saúde Eymard Vasconcelos ............................... 33
Educação Alice Akemi Yamasaki ...................... 46
Segurança Centro de Orientação ao Adolescente
de Campinas (Comec)........................................ 62
Música Estêvão Couto Teixeira ......................... 74
Teatro Abel Xavier ............................................ 83
Fotografia ImageMagica .................................. 89
Arquitetura Usina – Centro de Trabalhos para o
Ambiente Habitado (CTAH) ............................. 93
Inclusão Lana de Lima Teixeira D’Ávila ........... 98

Encontro com crianças e mulheres refugia-


das em Berlim Ilse Schimpf-Herken ........... 107

O “andarilho da utopia” em suas andanças


pelo mundo André Bernardo ...................... 115

Ficha técnica, legendas e serviço ............... 128


EDITORIAL

“Pensar certo significa procurar descobrir e en-


tender o que se acha mais escondido nas coisas e
nos fatos que nós observamos e analisamos.”
A importância do ato de ler: em três artigos que se completam

11
“Quero dizer que não sou mágico, que este método possui
fundamentos e a experiência já nos mostrou que é eficien-
te.” Esse é o início de um dos principais documentos da
primeira experiência de alfabetização em massa de jovens
e adultos da educação brasileira. No município de Angicos,
no Rio Grande do Norte, em 1963, Paulo Reglus Neves
Freire (1921-1997) capitaneou uma equipe de professores
e monitores que tinha um objetivo audacioso num país
submerso em míseros dados educacionais: alfabetizar a
população adulta em cerca de 40 horas e com baixos cus-
tos por aluno.
O método desenvolvido pelo filósofo, escritor e educador
pernambucano ensinou a leitura da palavra escrita – e, assim,
a possibilidade da leitura do mundo – a 300 pessoas, que
passaram a ter o direito ao voto e a consciência de seu papel
no universo rotineiro do trabalho. A vivência, iniciada com
um movimento porta a porta, terminou por inspirar o Plano
Nacional de Alfabetização – que ficou apenas no papel após
o golpe militar de 1964 –, além, é claro, de causar um grande
alvoroço na cidadezinha localizada no sertão do estado.
A célebre empreitada, hoje conhecida e reverenciada
mundialmente, só se tornou possível por certa combinação
de fatores em determinado contexto. E demarcar esse ce-
nário é crucial para iniciar-se na compreensão dos estudos
traçados por Paulo Freire. Deixando uma “cultura de biblio-
teca”, em definição própria, para “combater o analfabetis-
mo”, um resultado concreto, Paulo caminhou por conceitos
como pluralidade, transcendência, diálogo, humildade,
trabalho e amor, entre tantos outros, procurando “crescer e
permutar” com o humano. “A se relaciona com B, portanto

12
ambos se simpatizam na busca de algo. A humildade con-
siste em não hipertrofiar nada nesta busca.”
Assim, celebrar o centenário de um homem que percor-
reu mais de 30 países, coordenou projetos de alfabetização
longe de sua terra natal – mas sempre envolto em dada
“nordestinidade” –, escreveu mais de três dezenas de obras
e foi traduzido em mais de 20 idiomas é tarefa premente
e inesgotável. A cada ano, há notícias de Paulo Freire em
novas esquinas do mundo, ainda que, por outro lado, falte
tanto de sua filosofia em nossas salas de aula.
Ontologicamente criador, Paulo Freire pediu, corres-
pondendo à sua definição do humano, para nunca ser segui-
do, e sim reinventado. Portanto, buscando atestar – será que
ele valorizaria esse empenho? – a atualidade e a relevância
dos campos de estudo iniciados pelo autor, convidamos
dez representantes de diferentes áreas de conhecimento e
expressão para contar, nesta publicação, como têm relacio-
nado o seu trabalho aos saberes apreendidos de Paulo Frei-
re, numa prática que leve sempre à liberdade, marcando o
mundo e sendo marcados por ele.
Além desta publicação, que também reúne as reverbe-
rações do educador em outros países, a Ocupação Paulo
Freire, produzida integralmente durante a pandemia de
covid-19, apresenta uma série de conteúdos on-line, no de-
sejo de ampliar o mergulho na vida e na vasta obra de nosso
homenageado. O projeto Ocupação, criado há 12 anos, cele-
bra artistas essenciais que fazem parte da arte e da cultura
brasileiras. Saiba mais em itaucultural.org.br/ocupacao.

Itaú Cultural (IC)

13
“No momento em que você começa a
negar-se o direito de estar fazendo, a
qualquer momento, juízos de valor,
você começa a aprender a viver uma
virtude que acho politicamente tão
fundamental a este País: a virtude da
tolerância. Tolerância que nos ensina,
superando os preconceitos, a conviver
com o diferente para, no fundo, bri-
gar melhor com o antagônico. É isso a
tolerância.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho


PAULO FREIRE:
UMA SAUDADE,
UMA INFLUÊNCIA,
UMA INTERFERÊN-
CIA SEMPRE
POSITIVA NA
MINHA VIDA
Ana Mae Barbosa 17
Paulo Freire mudou a minha vida como mudou a de milha-
res de pessoas neste Brasil, possibilitando que compreen-
dêssemos as ordens sociais que nos oprimiam e nos aju-
dando a desenvolver a capacidade de organizar as ações
em direção à realização de nossos ideais.
Sou, hoje, uma das poucas pessoas que tiveram o pri-
vilégio de despertar para o mundo intelectual por meio
das aulas de Paulo, aprendendo noções de gramática para
passar num exame de ingresso na carreira de magistério
primário e também descobrindo a mim mesma e as mi-
nhas circunstâncias históricas.
Eu tinha 18 anos quando fui sua aluna não só de portu-
guês, mas de teoria da educação, em um curso intensivo
em 1955. Ao mesmo tempo, estudava para o vestibular de
direito, contra a vontade de minha avó. Ela foi quem me
criou – fiquei órfã muito cedo – e era contra mulheres na
universidade. Sou de uma família tradicional e conserva-
dora, já em decadência econômica quando nasci. Perde-
ram o dinheiro, mas não a pose e o conservadorismo.
Na primeira aula do Curso de Preparação para o Con-
curso de Professores de Quarta Instância, já iniciando suas
pesquisas sobre o ensino baseado no universo do aluno,
Paulo propôs uma redação sobre as razões que nos levavam a
querer ser professoras. Respondi explicitando que não queria
ser professora, mas que esse era o único trabalho que minha
família admitia como digno para uma mulher. Ele não me
devolveu a redação, pediu que eu chegasse mais cedo no dia
seguinte para conversarmos. Foi uma longa conversa, na qual
me convenceu de que educação não era repressão, mas um
processo de problematização, libertação e conscientização.

18
A partir daí, Paulo Freire influiu não só nas minhas
ideias e nas minhas escolhas, mas também na minha vida.
No curso organizado por ele e por sua primeira mulher,
Elza Freire, eu, que sempre odiei as aulas de desenho geo-
métrico, conheci as teorias modernistas do ensino da arte
com Noêmia Varela, uma das professoras, e mais uma vez
me surpreendi com a educação errada que eu tivera em um
colégio de freiras. Certa vez, uma delas rasgou um dese-
nho meu na frente de toda a classe, porque eu não havia
copiado exatamente o que ela desenhara na lousa.
Tendo passado no concurso para professora, alfabeti-
zei por dois anos com a orientação de Paulo e fiz estágio
na Escolinha de Arte do Recife, da qual ele era presidente,
passando logo depois a professora efetiva. Noêmia Varela
era a diretora e, frequentemente, ela e Paulo se falavam
por telefone sobre os projetos da escolinha. Seus filhos
foram alunos da instituição e, quando ele ia conversar com
Noêmia, com aquele jeito só dele, também conversava
com as professoras. A escolinha ainda existe e fez parte de
um grande movimento em prol da arte-educação no Brasil
iniciado em 1948. Tivemos 140 escolinhas no país, 1 no
Paraguai, 2 na Argentina e 1 em Portugal.
Cheguei a São Paulo quase ao mesmo tempo que Ma-
dalena, filha dele. Começamos a trabalhar juntas numa
escolinha dessa rede que eu organizei com a ajuda do in-
telectual e bibliófilo José Mindlin. Paulo nos auxiliava bas-
tante enviando livros e fazendo comentários sobre nosso
trabalho em cartas. Madalena e eu ficamos muito amigas.
Eu a admiro muitíssimo.
Minha relação com a família Freire era tão intensa que

19
não foi interrompida sequer pela diáspora promovida pela
ditadura militar, que a lançou a países estrangeiros e tam-
bém fez a minha sair do Recife para Brasília e, posterior-
mente, para São Paulo. Fui aluna de Paulo; Madalena foi
minha aluna informal; Ana Amália, minha filha, foi aluna
de Madalena e, depois, professora de Carolina, filha de
Madalena, na escola primária. Considero Madalena, Fáti-
ma e Cristina – filhas de Paulo – minhas irmãs em espírito.
Quando fiz livre-docência na USP, ele participou da
minha banca. Minha tese foi o livro A imagem no ensino da
arte, o primeiro no Brasil a defender a entrada da imagem
em geral e da arte em particular na sala de aula, de modo a
aperfeiçoar a leitura de imagens e a função crítica. Minha
postura escandalizou meio mundo da linha modernista
expressionista. Paulo então me lembrou de que, quando
eu estava no terceiro ano de direito, fui conversar com
ele sobre abandonar a faculdade, por causa do machismo
da época, e ele me aconselhou a persistir, dizendo que o
direito desenvolvia uma capacidade hermenêutica que eu
poderia aplicar em qualquer área na qual fosse trabalhar.
Pontuou que eu estava incluindo a hermenêutica nas aulas
de artes visuais. Nunca mais reclamei do tempo perdido
estudando direito.

Paulo Freire e as artes


O problema de quem pesquisa Paulo Freire no campo das
artes é que ele foi um grande defensor destas em todas as
instituições nas quais trabalhou, mas não escreveu sobre
arte na educação. Entretanto, suas ações foram um mani-

20
festo em favor das artes – e não se esqueçam de que ele foi
professor da Escola de Belas Artes do Recife [fechada nos
anos 1970; sua estrutura e seu acervo foram integrados ao
Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE)].
Ele e Elza Freire iniciaram, com a professora Miriam
Didier, um projeto de alfabetização por meio da arte com
crianças de uma escola pública no Recife da qual Elza
era diretora. E, com Raquel Crasto, grande educadora, ti-
veram uma escola que priorizava a arte e que o faz até hoje:
o Instituto Capibaribe.
Há um livro que liga Paulo Freire às artes pelo conceito
de diálogo. Trata-se de Dialogues in public art, de Tom
Finkelpearl, publicado há 21 anos pela MIT Press, no qual
o autor homenageia Paulo Freire com uma singela frase:
“Este livro é dedicado a Paulo Freire (1921-1997), teórico e
praticante do diálogo”.
No livro há uma entrevista do autor com Paulo Freire,
em que Finkelpearl compara suas ideias sobre a relação
entre professor e aluno com as de vários teóricos, alguns
da arte – Rosalind Krauss, Johanne Lamoureux, Mikhail
Bakhtin, bell hooks e Miwon Kwon defendem a arte como
comunicação. O autor usa os textos do educador para de-
monstrar que também a relação entre arte e público não é
uma comunicação de mão única. O aluno e o público não
são meros repositórios. O objetivo do diálogo na epistemo-
logia de Paulo Freire e nos depoimentos de outros 25 auto-
res de artigos e artistas entrevistados no livro – como Mel
Chin (um dos meus artistas preferidos), Maya Lin, Vito

21
Acconci, Douglas Crimp, Elisabeth Sisco e Krzysztof Wodi-
czko – não é convencer ninguém de alguma coisa ou ideia,
é desenvolver a capacidade crítica. Sem ela, ninguém
transforma informação em conhecimento nem estabelece
relações entre conhecimentos de diferentes áreas.
Paulo Freire pensou a educação dos oprimidos, mas
nunca foi um populista. No livro de Finkelpearl, ele diz
que, para trabalhar com comunidades, não era necessário
vê-las como proprietárias da verdade e da virtude, mas sim
respeitar os seus membros. O educador diz, ainda, que o
erro dos sectários que atuavam em programas nas comuni-
dades não era a crítica, a negação ou a rejeição de intelec-
tuais acadêmicos arrogantes, mas desconsiderar a teoria, a
necessidade de rigor e seriedade intelectual.

A conferência da Semana de arte e ensino


Fui duas vezes a Genebra, na Suíça, visitá-lo no exílio. Na
primeira, fui sozinha e fiquei hospedada com a família
Freire. Fátima me ajudou a explorar a cidade. Na segunda,
fui com a minha família, e os meus filhos nunca se esque-
ceram das noites em que jantávamos juntos saboreando
aquele tipo de conversa de que se lembra para sempre. A
tristeza de Paulo por não poder voltar era amenizada tanto
pela mágica de Elza – que conseguia ingredientes para
fazer comidas brasileiras, até tapioca – quanto pelo frio, do
qual ele gostava. Certa vez, era inverno e comecei a sentir
frio na sala. Perguntei se não tinha aquecimento. Ele res-
pondeu que sim, mas que mantinha pelo menos uma janela
aberta para usufruir do frio.
No ano em que chegou de volta do exílio, em 1980, eu

22
o convidei para abrir a Semana de arte e ensino na Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA/USP), um congresso que foi um dos primeiros mo-
vimentos de redemocratização do Brasil, talvez o maior
evento de arte-educação até agora no país. Sua palestra,
que ocorreu no auditório da Faculdade de Arquitetura
(FAU), por ser o maior da USP, foi ouvida por 3 mil arte-
-educadores. Foi necessário convocar o auxílio da TV Cul-
tura para filmar e transmitir em um telão fora do auditório,
no lugar que chamavam de Salão Caramelo.
O nome dele não fora divulgado como palestrante nem
no pré-programa nem na imprensa, para não parecer que o
estávamos usando como chamariz para o evento. Sua pri-
meira aparição em público havia sido uma apoteose, sendo
ovacionado por todos que lotavam o Teatro da Universida-
de Católica de São Paulo (Tuca) e suas vizinhanças.
No programa da Semana de arte e ensino, entregue aos
participantes no dia da abertura, assim justifiquei a ausên-
cia de seu nome:

Todas as decisões, inclusive o temário dos debates, foram


submetidas à aprovação em reuniões gerais abertas ao públi-
co e convocadas por jornais.
Decidiu quem quis e quem pôde participar.
Só uma coisa foi mantida em segredo: a participação de
Paulo Freire como conferencista.
Meu enorme respeito por ele e pelos arte-educadores
me fez temer que a divulgação de sua participação pudesse
parecer uma forma de atrair participantes para a Semana
de Arte e Ensino. Ele estará falando aos arte-educadores

23
não porque é o maior educador brasileiro, mas porque desde
os velhos tempos do Recife ele e d. Elza sempre mantiveram
estreita ligação e influência na arte-educação.
O tema de sua palestra é um mote que, à moda nordesti-
na, lancei para ele como desafio. Um dia depois de um intri-
gante bate-papo na Escola da Vila disse para ele:
“Você diz que os pais aprendem com os filhos e os professo-
res com os alunos. Então, você, que tem dois filhos arte-
-educadores e um estudante de arte (Joaquim), o que apren-
deu com eles sobre arte-educação?”.
Ele aceitou o desafio de responder à pergunta para todos
nós durante essa Semana e aceitou também que outra pes-
soa desse o título para este desafio. Foi Haroldo de Campos
quem, conversando comigo sobre o programa, batizou sua
conferência de “O retrato do pai pelos jovens artistas”.

Naquele dia, meio tonto em razão da labirintite, ele ficou


feliz por rever amigos e conterrâneos, como Noêmia Vare-
la e o designer gráfico Aloísio Magalhães, e por conhecer
gente nova, como os críticos de arte Mário Barata, Yan
Michalski e Walter Zanini, além do compositor Hans-
-Joachim Koellreutter, também convidados a falar e que
assistiram à sua conferência de abertura.1

1. Aloísio Magalhães já foi homenageado pelo programa Ocupação. Confira excer-


tos da exposição e outros materiais, como entrevistas, em itaucultural.org.br/
ocupacao. Quanto a Hans-Joachim Koellreutter, o Rumos Itaú Cultural apoiou um
projeto que ampliou os acessos físico e digital ao acervo do artista. Saiba mais em
bit.ly/ic-koellreutter.

24
Os originais dos anais da Semana de arte e ensino foram
perdidos na fase de revisão para publicação, um fato estranho.

Educador do mundo subdesenvolvido, propulsor da liberta-


ção no mundo desenvolvido
Testemunhei a influência que a pedagogia de Paulo Freire
transformada em teoria operou nas universidades ameri-
canas, africanas, inglesas e europeias em geral.
Suas obras estão na internet; leiam e julguem seu valor
por vocês mesmos. Se tiverem dúvidas sobre a sua impor-
tância no mundo, consultem Pedagogia da libertação em
Paulo Freire, organizado por Ana Maria Araújo Freire (Nita),
sua segunda esposa, que demonstrou ao Brasil que Paulo
é referência máxima no pensamento de grandes filósofos
e educadores, como Henry Giroux, Joachim Schroeder,
Joe Kincheloe, Maxine Greene, Shirley Steinberg, Arantxa
Ugartetxea, Donaldo Macedo, Joachim Dabisch e Arve
Brunvoll. Todos eles escrevem no livro publicado por Nita,
que tem bravamente defendido a memória de seu marido.
Quando ingressei, em 1977, no programa de doutorado
da Faculdade de Educação da Universidade de Boston, nos
Estados Unidos – com uma carta de apresentação de Paulo
–, um curso sobre Pedagogia do oprimido estava sendo mi-
nistrado. Foi inimaginável a minha aventura emocional e
cognitiva ao ter como objeto de estudo o próprio processo
libertador que me havia resgatado dos modelos bancários
de operação mental. Nunca fui tão bem tratada e ouvida
em uma universidade como na de Boston. Graças a esse
tratamento muito especial, consegui cumprir todas as exi-
gências do programa em um ano e voltei seis meses depois

25
para defender a tese, poupando-me de ter de ficar separada
da família.
Paulo Freire, Jonathan Kozol e Ivan Illich eram os gran-
des heróis da educação naquela época. Os outros foram es-
quecidos, mas Paulo continua, principalmente pelo fato de
que Pedagogia do oprimido é base para os dois movimentos
mais significantes na teoria da educação hoje: a pedagogia
crítica e a pedagogia cultural, inspiradas em seu conceito
de conscientização e no conceito de experiência de John
Dewey, parentes epistemológicos. Aliás, o primeiro livro
de Dewey que li, Meu credo pedagógico, me foi dado por
Paulo ainda no Recife.
Pedagogia do oprimido foi escrito num período de acer-
bada crítica educacional, por volta de 1968, e foi a resposta
convincente para os movimentos reivindicatórios dos
estudantes do mundo desenvolvido. Operou uma curiosa
contradição: o educador do mundo subdesenvolvido, com
suas teorias construídas na prática da pobreza do Terceiro
Mundo, sendo válvula propulsora da libertação do mundo
desenvolvido. Mas contradições sempre foram o alimento
do pensamento crítico de Paulo Freire.

Minha aventura cognitiva mais importante


Foram essas as bases fenomenológicas que vigoraram
no curso de pós-graduação Arte-educação e ação cultural que
Paulo Freire ministrou na ECA/USP em 1987, a meu convite.
Ele estava relutante em aceitar, mas Elza me ajudou a
convencê-lo. A verba que consegui do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
para pagá-lo era modestíssima. Tivemos 120 estudantes,

26
de todas as áreas da USP, do direito à engenharia. Muitos
eram só ouvintes, outros, alunos especiais, mas havia mui-
tos mestrandos e doutorandos regulares, o que resultou em
uma enorme quantidade de trabalhos para ler e dar nota,
atividade que assumi consultando-o frequentemente. Ele
deu nove aulas e eu apenas três, para substituí-lo quando
viajou. Foi a aventura cognitiva mais importante da minha
vida e hoje é um marco histórico, pois foi o único curso
regular que Paulo Freire ministrou na USP. O curso foi gra-
vado em áudio e transcrito pela professora Maria Helena
Rennó, mas perdido na editora da ECA, outra estranheza.
Seria preciso que a Faculdade de Educação se renovas-
se, com novos pesquisadores humanistas e com vocação
para o social, para que um de seus professores, Moacir
Gadotti, amigo fiel de nosso mestre, criasse o Instituto
Paulo Freire (IPF), que honra e dignifica a sua memória. Só
tenho ouvido elogios dos pesquisadores que procuram o
IPF, onde um dos filhos de Paulo, o Lute, trabalha.

A atuação na Secretaria de Educação de São Paulo


Logo depois que assumi a direção do Museu de Arte
Contemporânea (MAC) da USP, organizei um grupo de
estudos sobre museus no Instituto de Estudos Avançados
(IEA), também da USP. Paulo foi um dos convidados para
falar e nos deu um conselho valioso, que segui: consultar
os sindicatos de trabalhadores para saber o que suas famí-
lias entendiam como arte, os seus hábitos culturais e como
foram construídos, para planejarmos estender o museu até
a classe trabalhadora. Gravamos sua palestra, que deixei
nos arquivos do IEA.

27
Mais tarde, a pedido de Paulo, o MAC pôde colaborar
com seu trabalho na Secretaria de Educação do município
de São Paulo.
Quando foi secretário de Educação da Prefeitura de
São Paulo (por dois anos), colocou os estudos de arte no
mesmo nível de importância de todas as outras disciplinas.
Isso havia acontecido no Brasil somente em dois outros
projetos: o do jurista Rui Barbosa, em 1882-1883, nunca
implementado integralmente, e o do professor Fernando
de Azevedo, no Distrito Federal, em 1927-1930.
Coordenei o grupo de estudos de reestruturação cur-
ricular das artes com professores universitários e da rede
escolar por mais ou menos um ano. Por fim, minha orien-
tanda e arte-educadora do MAC nessa época, Maria Chris-
tina de Souza Lima Rizzi, assumiu a coordenação desse
grupo, que Paulo dizia ser o mais numeroso da secretaria,
pois enfocava todas as artes, inclusive o cinema. Ao fim do
mandato do educador Mario Sergio Cortella, que o suce-
deu brilhantemente como secretário, todos os professores
de arte haviam sido atualizados. Durante vários anos de-
pois disso, o melhor ensino de arte em uma rede pública no
Brasil foi o da Prefeitura de São Paulo.
Alguns de nós que trabalhamos com Paulo estamos
reunindo memórias do tempo da secretaria. Devemos rea-
vivar nossa memória em homenagem a ele, que tinha uma
aguçadíssima.

Meu preferido, Pedagogia do oprimido


Para terminar estas reminiscências, devo confessar que
meu livro preferido continua sendo Pedagogia do oprimido.

28
Essa obra é filosofia, sociologia, educação e, acima de tudo,
um tratado de epistemologia. É um livro nascido da luta
empreendida por seu autor para dar aos indivíduos de to-
das as classes sociais o direito de ser sujeito de seu próprio
processo de conhecimento e para despertar neles o interes-
se, a agudeza e a coragem necessários para participarem
do processo de transformação de suas sociedades. É peda-
gogia do “re + conhecimento” cultural e, principalmente, a
pedagogia do pensamento crítico contextualizado.
A consciência da prática gerou a teoria que permeia a
Pedagogia do oprimido. A preocupação era aliar a clareza do
conteúdo aos meios que possibilitavam aos alunos “dizer
suas próprias palavras para nomear o mundo”. Fui sujeito
da pedagogia em favor dos oprimidos de todas as classes
sociais, de todos os gêneros e de todas as origens praticada
por Paulo Freire.

Ana Mae Barbosa é educadora, pioneira da arte-educa-


ção no Brasil, tendo desenvolvido a chamada abordagem
triangular para o ensino de artes.

29
MODOS DE
USAR A CAIXA DE
FERRAMENTAS
DE PAULO
FREIRE
“A educação é comunicação, é diálogo, na medi-
da em que não é a transferência de saber, mas
um encontro de sujeitos interlocutores que bus-
cam a significação dos significados.”
Extensão ou comunicação?

31
Ensinar e aprender ao mesmo tempo, saber ouvir, enten-
der o mundo do outro, construir de forma conjunta. Para
além de seu objetivo inicial – a alfabetização de adultos –, o
método e a filosofia de Paulo Freire podem ser aplicados a
múltiplas áreas.
Nesta seção, trazemos experiências desses usos práti-
cos e teóricos das ideias de Freire. Em entrevistas, pesqui-
sadores, artistas e outros profissionais mostram como essa
referência se desdobra em realizações na saúde, na arqui-
tetura, na fotografia, no teatro, na música, na inclusão, na
segurança pública e no audiovisual. O panorama evidencia
que o método freiriano é vivo: sempre inspirador e em con-
tínua transformação.

32
SAÚDE

Eymard Vasconcelos
Pioneiro na pesquisa e na prática da educação popular na
saúde, Eymard Vasconcelos aponta a influência de Paulo
Freire em sua formação. Nesta fala, ele destaca o caráter
transformador do contato com as vivências do povo e de-
fende a atenção ao atendido e ao seu contexto social como
método. Professor aposentado da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), Eymard coordena o grupo de pesquisa
Educação Popular em Saúde e a Rede de Educação Popular
e Saúde.

33
Em que aspectos de sua atuação e pesquisa se vê a influência de
Paulo Freire? Como foi o seu contato com o autor e como utili-
zou seu método e/ou suas ideias?
Tenho 68 anos. O meu contato com Paulo Freire começou
no meu tempo de estudante, em 1974. O movimento estu-
dantil da área da saúde organizou um encontro nacional, a
primeira Sesac [Semana de estudos sobre saúde comunitária,
realizada pelo centro acadêmico do curso de medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)], que pro-
porcionava um estágio, no qual o nosso grupo foi para um
pequeno povoado do Vale do Jequitinhonha.
Usamos uma frase do Paulo Freire e nos espantamos:
“Diante dos problemas maiores, não procure dar respostas,
faça roda de escuta”. Quando fizemos isso, aquele po-
voadozinho bem simples se mostrou e tivemos acesso a
uma realidade da saúde que nunca imaginaríamos. Eu
estava em crise com o curso de medicina – não era o que
eu esperava, estava pensando até em largar – e, a partir daí,
peguei gosto. Esse jeito de fazer saúde deu sentido ao meu
trabalho profissional.
Desde então, tenho me aproximado cada vez mais de
Paulo Freire. Terminei o curso em 1975, fui fazer residência
e, logo depois, como vários colegas, fui para uma periferia
do Brasil, tentando trabalhar em tempo de resistência da
sociedade civil contra a ditadura militar. Vim aqui para o
Nordeste, na região do brejo paraibano, justamente porque
havia uma diocese que estava acolhendo muitas pessoas
que trabalhavam na perspectiva da educação popular e da
teologia da libertação.
Foi uma grande escola de educação popular, um mo-

34
mento muito fascinante, surpreendente, eu nunca esperei
ter um tipo de prática tão rico. Mas era tempo de ditadura
e acabei sendo expulso da região. Eu já era professor de
universidade e os políticos articularam a minha saída. Fui
fazer o mestrado em Minas Gerais, na área de educação,
em que valorizavam muito o Paulo Freire.
Aquilo era uma prática forte – participávamos de um
movimento de educação popular –, mas não tinha uma
conotação teórica muito grande. Nesse mestrado, eu me
aproximei um pouco da teoria e vi como ela estava presen-
te em práticas [que tinha observado em muitos] lugares
em que já havia surgido o Movimento Popular de Saúde
(Mops). Usávamos muito Paulo Freire, mas não sabíamos,
não tínhamos noção da força do seu pensamento.
A primeira publicação sobre a educação popular na área
da saúde foi minha, Educação popular no serviço de saúde, de
1986. Antes havia várias experiências, um caldo cultural
de educação popular, mas as pessoas não percebiam tão
claramente a força de Paulo Freire nisso tudo. Desde então,
comecei a produzir mais teoricamente, a participar de gru-
pos e de projetos de extensão. O meu papel como docente
me surpreendia. Ao usar a educação popular na relação
com os alunos, assisti a transformações muito grandes. Co-
meçamos a chamar aquilo de extensão popular e, depois,
de pedagogia universitária freiriana.

35
O momento da consulta, no seu trabalho, parece ecoar muitas
das ideias de Freire. Se ele coloca educando e educador no mes-
mo nível, a relação médico-paciente parece estar no mesmo
sentido, segundo o que li sobre suas ideias. Você concorda com
essa proximidade? Que papel pode ter a consulta e que troca
pode haver entre paciente e médico – diferentemente do que
vemos no campo da saúde em geral?
A educação popular chega à saúde por meio de movimentos
fora do aparelho do Estado, que ajudaram a formar muitas
das referências para o que seria o Sistema Único de Saúde
(SUS). O SUS é criado em 1988, mas já havia dezenas, cen-
tenas de experiências orientadas pela educação popular,
com participação de agentes comunitários, controle social.
Tudo isso veio muito marcado pela educação popular.
Quando o SUS é criado, grande parte dos militantes se
desloca para o aparelho do Estado, e parece que a educa-
ção popular perdeu o sentido, mas começamos a ver, no
começo dos anos 1990, que a educação popular podia ser
feita nos serviços oficiais de saúde também.
Nesses serviços havia educadores populares, e a sua
prática fortalecia a participação popular e reorientava a
globalidade do serviço. Mas eram coisas pontuais, aqui,
acolá, um serviço ou outro, então, o desafio era generalizar
essa participação, essa perspectiva da educação popular
para todo o serviço de saúde. Começamos a trabalhar a
educação popular não mais de maneira subversiva, mas
como algo dentro das políticas públicas de saúde.
Daí, começamos a ver que a educação popular não era
só para as atividades coletivas, as ações educativas na co-

36
munidade, nos grupos, mas entrava também nas consultas
– o que começamos a chamar de “construção compartilha-
da da solução sanitária necessária”. Tenho alguns artigos
sobre essa utilização da educação popular na consulta em
várias áreas – medicina em geral, fisioterapia, nutrição, psi-
cologia. A educação popular reorienta o modo tradicional
de atuar em cada uma dessas profissões.
Tudo isso é muito diferente do tradicional, como você
disse; o doutor sabe, se for um médico mais humano, vai
colher bem a informação, ouvir, mas a conduta quem defi-
ne é ele. O paciente pode até ser chamado a participar para
poder compreender, mas a sua conduta é definida [pelo
outro]. Só que nós, como educadores populares, percebe-
mos que nunca damos conta de compreender a totalidade
da vida do paciente e, na hora em que somos solicitados, o
chamamos – a pessoa de quem estamos cuidando – para
participar da construção do cuidado.
Construímos práticas de cuidado extremamente ino-
vadoras. E é isso que tem seduzido muitas pessoas para
a educação popular em saúde, essa criatividade. Muitas
vezes, as pessoas veem como um discurso ideológico, um
discurso crítico, mas, antes de tudo, o que encanta são
essas práticas extremamente inovadoras que estão dando
um ar novo de prática holística, um jeito de construir uma
prática de saúde mais integral.

37
No mesmo sentido, um articulista afirma que, segundo você,
“não podemos continuar a ver apenas as carências existentes na
população”. Ainda mais: “Eymard crê que precisamos aprender
também com as suas potências”. Isso soa muito freiriano. O que
os médicos podem aprender com aqueles que atendem? Como
podem estar mais abertos a esse aprendizado?
Sim. Não só soa, como é muito freiriano. Muitos dos traba-
lhadores da área da saúde que lidam com a educação po-
pular leem pouco Paulo Freire, porque ele tem uma lingua-
gem um pouco complexa. Mas eles participam de grupos
e movimentos nos quais aprendem no fazer. Sinto que a
educação popular está presente no cotidiano de muitos
serviços, não tanto por leituras de Paulo Freire, mas por
causa de uma perspectiva cultural que se espalhou muito
fortemente na área da saúde.
São todos muitos freirianos, apesar de nem todo mun-
do se dar conta disso. Tivemos aqui a expansão do Pro-
grama Saúde da Família – que talvez seja um dos maiores
mercados de trabalho para os profissionais da saúde –, a
Estratégia Saúde da Família e a Atenção Básica.
Foram contratadas pessoas que não tinham formação
apropriada, que não conheciam o mundo popular e as suas
diferentes culturas, e a educação popular virou um campo
de aprendizado. Porque posso não entender muito do
mundo popular ou de saúde coletiva, mas, se começo a
ouvir as pessoas, mergulho em sua realidade mesmo sem
ter lido Paulo Freire ou muita coisa teórica. A educação
popular – as práticas, o modo de fazer participativo – foi
um jeito de profissionais de universidades tradicionais
abrirem o seu olhar. Começaram a fazer, a se surpreender

38
e se encantar com essa construção compartilhada.
Vejo muito isso nos estudantes que vão para as comu-
nidades com a noção de que são pessoas privilegiadas e
que têm que dar uma retribuição à população. Vão lá como
provedores. E, quando o projeto se orienta nessa perspecti-
va freiriana, eles começam a sentir que estão aprendendo
muito mais do que ensinando. Mudam totalmente o olhar.
Isso que vivi em 1974 vejo se reproduzir cotidianamente
entre os estudantes hoje: a descoberta dessa potência de
agir, potência criativa, de viração, que tem a população; [a
descoberta de que] a vida deles tem aspectos inusitados
dos quais, por mais que eu estude antropologia ou sociolo-
gia, não dou conta – cada situação é diferente; [e o aprendi-
zado dessa] coisa de repararmos muito nas carências. Isso
é usual em todos os profissionais que se aproximam do
mundo popular. Mundo popular, classes de carentes.
Pena que o SUS vem se burocratizando, com muita
cobrança de eficácia pelos gestores, de metas quantitativas.
Então, essa dimensão do trabalho junto com a comunidade,
de aprendizado, fica um pouco abafada por essa cobrança
muito forte de produtividade numérica, mas de alguma
forma está presente. A pandemia que estamos vivendo,
com esse desafio do imponderável, está mostrando que
muita coisa está sendo feita a partir dessa herança cultural
freiriana que já está no serviço de saúde.

39
Mais uma comparação. Fala o mesmo articulista que, para você,
“o atendimento individual deve ser encarado como um espaço
essencial de atuação política”. Paulo Freire também ressaltava
que a educação é inseparável da política. Os médicos, em geral,
reconhecem esse papel político de seu trabalho? Como você
define essa relação entre saúde e política?
Sempre tivemos, na área da saúde, profissionais – antiga-
mente, mais médicos, porque tinham uma liderança maior
– muito críticos, progressistas, que, a partir desse lugar do
poder, tinham embates críticos quanto ao modo da organi-
zação social. Mas sinto que este é um modo tradicional de
fazer política: pessoas empoderadas – por serem doutoras
– enfrentando politicamente os outros poderes.
Acho que a educação popular traz um jeito de fazer polí-
tica um pouco diferente. Primeiramente, tira do centro esse
“eu, doutor, enfrentando os poderes danosos da sociedade”.
Não. Eu fortaleço as pessoas que hoje são silenciadas para
que elas também possam fazer esse enfrentamento.
Sempre existiu a suspeição de que o marxismo e a edu-
cação popular estivessem muito próximos, mas, ao mesmo
tempo, sempre houve uma tensão muito grande, porque
o pessoal marxista, mais da tradição comunista, se impa-
cientava muito com a educação popular, que prioriza uma
ação mais no longo prazo, cultural. No tempo da ditadura,
uma liderança comunista ficou ironizando: “Vocês acham
que vão mudar a ditadura fazendo reuniõezinhas para lá e
discutindo para cá? Nós temos de enfrentar o poder militar
organizado”. O que transformou mesmo a ditadura foi a
mudança da cultura da sociedade civil por esse trabalho,
que, em grande parte, a Igreja tomou para si naquela época.

40
Lembro que muitas lideranças do movimento estudantil
tinham uma irritação grande com os nossos projetos de
extensão, porque aí se caminha no ritmo da relação entre os
estudantes e a população, a partir das demandas da popula-
ção, e, muitas vezes, a questão dos grandes enfrentamentos
não está colocada – embora esteja colocado o protagonismo
das pessoas no enfrentamento do mandonismo, do marido,
das violências locais, e na relação entre crianças e pais.
Muitas vezes, vemos pessoas sem essa perspectiva
freiriana chegar a grupos organizados já querendo algo,
querendo discutir. Enfrentam e calam quem apresenta
divergências, colocando-se como “o intelectual”, repro-
duzindo, assim, a dominação do doutor sobre pessoas que
estão em processo de aprendizado – e essas são ambíguas,
contraditórias. É preciso acolher todas essas diferenças
com paciência, criando espaços de conversa. Se chegarmos
com um discurso panfletário, silenciamos essas pessoas.
Agora, uma coisa mais de longo prazo, mais profunda,
é um pouco o jeito de fazer política de educação popular.
É valorizar muito o fortalecimento de protagonismos que
hoje estão silenciados, e isso são processos de formação
que demoram anos e anos. Acho que é um deslocamento
da política para o cotidiano, e isso tem uma eficácia política
muito grande.

41
A pergunta anterior fala de “atendimento individual”, o que
nos leva de volta à consulta, mas você fala sobre expandir o tra-
tamento à família e ao grupo social. Em Paulo Freire, também é
preciso ter a visão do social para compreender melhor o indiví-
duo. Tem motivo semelhante a sua proposta?
Sim. Quando começamos a conversar com as pessoas
que estamos atendendo, ficam muito claras as relações
familiares e das vizinhanças [implicadas no problema sen-
do tratado]. Se nos dispomos a ir atrás desse problema e
compreender mais, isso vai se expandindo.
Nem precisamos ler muito Paulo Freire, não, a realida-
de mostra isso de forma gritante. Vejo isso nos estudantes
de agora: podem até não gostar de ler Paulo Freire nem
nada mais social, mas, quando mergulham nessa realidade
– pelo humanismo que têm e que os faz ir atrás disso –, de
repente, estão discutindo organização comunitária, vizi-
nhança, religiões. É tão gritante o quanto isso marca a vida
das pessoas, a vida do Pedrinho que tem asma; da mãe
que tem dificuldade, mora sozinha e tem de pedir ajuda à
vizinhança; do pessoal da igreja que dá apoio... Todos esses
nós, essa rede de relações, ficam evidentes e, às vezes, é
essa realidade que faz com que estudantes que eram ou ti-
nham posturas teóricas reacionárias comecem a ler outras
coisas. A realidade pede isso.
O compromisso que temos com a solução do problema
nos leva a ampliar a sua abordagem. Claro que uma visão
teórica facilita isso, mas muitas vezes o compromisso téc-
nico de uma forma mais ampla e disponível nos leva a fazer
essa viagem do individual para o social.

42
Outro conceito que me parece decisivo no seu ideário é o de cui-
dado. Queria que você falasse um pouco sobre o que entende por
isso. Leio que o papel do afeto, da amorosidade, é fundamental,
para além do método e da exatidão da cura – o que também lem-
bra Paulo Freire.
Muitas coisas vão lembrar Paulo Freire porque o tenho
como uma inspiração de origem – e mesmo quando o lia
muito pouco, porque as suas ideias já estavam espalhadas,
principalmente dentro das igrejas orientadas pela teologia
da libertação. Aprendíamos com os companheiros. Na edu-
cação popular, Paulo Freire é um sistematizador principal,
mas participa de um movimento que é muito maior do que
ele próprio.
E essa questão do cuidado, da atenção em saúde, é uma
das coisas que marcam quem se aproxima da população
não como um provedor, um grande sábio, detentor das
técnicas necessárias, mas de um jeito mais compreensivo.
No contato que vamos tendo com as pessoas, essas técnicas
ajudam, mas são muito limitadas – e vamos percebendo que
o que nos demandam de técnica é algo que nem imagináva-
mos, é a conversa...
Gosto muito de usar a metáfora da mochila. Você tem
uma mochila com os conhecimentos acadêmicos, mas,
quando chega a uma comunidade, não sabe o que dela
vai servir. Muitas vezes, você vem arrotando uma solução
e as pessoas nem ligam, porque aquilo não as toca. Mas,
de repente, você fala alguma coisa e: “Isso é interessan-
te, doutor”. Daí, você vai vendo que são outros tipos de
conhecimento que pode trazer. Nós nos surpreendemos
com o que do conhecimento técnico é necessário para cada

43
situação particular. Acho que essa é uma grande inovação
de educação popular.
Lembro que, quando eu estudava, [para lidar com os
problemas se ensinava a] enxugar as lágrimas e ser frio,
porque a emoção turva a sua objetividade científica. Essa
visão, de alguma forma, ainda está presente, apesar de ter
se desgastado um pouco. Quando nos aproximamos do
mundo popular, começamos a perceber a força do afeto.
O mundo popular latino-americano é extremamente
emocionado, afetuoso, e isso nos transforma. Você fala
coisas que nunca imaginaria falar – e isso é que transforma.
Não é só porque o afeto é importante para as pessoas se
sentirem acolhidas; eu diria que essa emoção gera outra
epistemologia. Você vai sendo educado em um tipo de
conhecimento molhado de afeto, de emoção. Isso é fun-
damental e acaba até nos fazendo ver com um pouco de
ironia a objetividade, porque percebemos que tem uma
exatidão que passa pelas coisas do coração.

Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus pro-


cessos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gostaria
que você definisse quais são as palavras-chave do seu trabalho.
Paulo Freire trabalhou muito a palavra geradora nos pro-
cessos de alfabetização. A educação popular começa no
processo de alfabetização de adultos, o escrever, o lidar
com as palavras tem um sentido diferente da área da saúde.
Nós falamos mais de problemas geradores, de situações
geradoras.
Quais as palavras-chave? Acho que, na verdade, são
palavras-chave da educação popular, como o diálogo. É

44
muito fácil falar de diálogo, mas ele pressupõe uma con-
fiança do outro, algo mais profundo. Posso chegar a uma
comunidade e as pessoas falarem muito, mas os véus só vão
cair à medida que perceberem o seu compromisso com elas.
[É preciso perceber no] mundo popular uma vontade
de ser mais, essa vontade de ser mais que está em todas as
pessoas e que é o que gera saber e prática.
Vontade de ser mais é um conceito importante, e a par-
tir daí você vai dialogando e tem a questão do compromis-
so. Se não tem compromisso, as pessoas não se abrem.

45
EDUCAÇÃO

Alice Akemi Yamasaki


Doutora e mestra em educação pela Universidade de São
Paulo (USP), Alice Akemi Yamasaki é professora da Facul-
dade de Educação da Universidade Federal Fluminense
(Feuff ), em Niterói, no Rio de Janeiro. Exerce atividades
no Departamento Sociedade, Educação e Conhecimento
(SSE) e é docente do mestrado profissional em diversidade
e inclusão (CMPDI), ambos da mesma instituição. Atua
nos seguintes temas: diversidade e inclusão; formação de
professores; educação e infância popular; cultura popular
e violências no contexto escolar. Desenvolve projetos de
pesquisa e extensão nos campos da educação popular e de
cinema e educação.

46
Alice, antes de mais nada, como Paulo Freire surge em sua tra-
jetória pessoal e profissional? Como se deu o seu contato com o
autor e como você utilizou seu método e/ou suas ideias?
Sou uma educadora freiriana que se formou por meio do
diálogo crítico e profundo com vários educadores e edu-
candos, participando de diversos processos formativos nas
últimas décadas. Minha formação foi e continua sendo
realizada no enfrentamento que a vida nos trouxe. Entre
os episódios que forjaram a minha formação social estão a
participação e a presença nos movimentos de professores
das escolas públicas em que estudei, nos anos 1980. Mar-
cante em minha formação como docente foi o testemunho
vivo dos meus professores da universidade com suas lutas
em plena Assembleia Nacional Constituinte. Foram mo-
mentos importantes, como afirma Paulo Freire (1999), que
mostraram que “não é na resignação, mas na rebeldia, em
face das injustiças, que nos afirmaremos”.
Quando comecei a exercer a docência, primeiramente
na escola de educação básica paulistana e, em seguida, na
educação superior privada, nossos debates tematizavam
o desafio de reconhecer a educação como direito social e
um processo permanente de formação para o exercício da
cidadania. Todos esses eventos impulsionaram minha ca-
minhada profissional em direção ao desafio de superar as
limitações cotidianas, em busca de um “ser mais” que apri-
morasse, pacientemente, a prática da reflexão-ação-reflexão.
Nos últimos 20 anos, como professora de universida-
des públicas, em cursos de pedagogia e em licenciaturas,
pudemos desenvolver um trabalho de formação de profes-
sores que exigia cada vez mais estudos sobre a obra de Pau-

47
lo Freire e uma compreensão mais aprofundada dos seus
elementos teórico-metodológicos. No campo da relação
entre universidade e sociedade, no início dos anos 2000,
desenvolvemos um trabalho de formação, que se desdo-
brou com a criação de cartilhas de alfabetização de jovens
e adultos. Entretanto, o aprofundamento teórico chegou
com a pesquisa de doutorado, que buscou refletir sobre as
violências na escola e o pensamento freiriano.
Alguns projetos que desenvolvemos sob a óptica de
Paulo Freire foram: Cultura de paz nas escolas (extensão e
especialização, 2007-2011); inclusão digital de jovens do
campo; Infância popular (2011 e 2014); formação de educa-
dores infantis populares (2014-2019); e Ensino de ciências
da natureza e direitos humanos (de 2016 até o presente mo-
mento). As disciplinas curriculares que temos ministrado
com a presença dos referenciais teóricos de Paulo Freire
estão na graduação (obrigatórias e optativas), na especiali-
zação/pós-graduação lato sensu e no mestrado profissional.
Desse modo, por diferentes veredas, temos instigado e
desafiado os jovens e os futuros educadores a assimilar as
contribuições teóricas e a elaborar projetos e vivências que
reinventam os conceitos e as metodologias desenvolvidos
pelo autor. Vale ressaltar que, nos últimos cinco anos, te-
mos nos dedicado a aprofundar as possibilidades de um
ensino problematizador com alunos com comportamento
superdotado, como parte de um projeto que vem sendo
desenvolvido há quase uma década na universidade, con-
tribuindo para práticas educativas que visem ao reconhe-
cimento da dignidade humana e à inclusão de estudantes,
com a oferta de oficinas interativas.

48
À semelhança de nosso processo de amadurecimento
intelectual, promovemos atividades práticas, como
oficinas, que buscam dialogar com as experiências
acumuladas pelas pessoas: por um lado, ao inaugurar a
prática educativa dialógica, a escuta atenta do formador
acolhe relatos que contribuem para conhecermos uma
leitura de mundo instalada nas histórias de vida; por ou-
tro, os relatos das vivências fazem cada educador e futuro
professor participante recuperar as próprias reflexões e
questões envolvidas na atividade em sala de aula. Com
isso, buscamos promover círculos de cultura em diferentes
espaços educativos, escolares ou não, que reconheçam os
participantes como sujeitos ativos, críticos e reflexivos da
aprendizagem e da troca de experiências vividas. O pro-
cesso é tenso, marcado por conflitos internos e coletivos,
pois provoca uma fissura e uma ruptura com as práticas
bancárias de educação e de ensino, que colocam o estu-
dante como sujeito passivo e acrítico no desenvolvimento
temático das situações de aula. A conversa reflexiva sobre a
percepção de si mesmo e do outro, no e com o mundo, per-
corre o círculo de cultura e permite a vivência de um dos
conceitos fundamentais para conhecer e reinventar Paulo
Freire: a prática educativa dialógica. Tivemos ricas oportu-
nidades de vivenciar o diálogo fundante entre educadores
que iniciavam as práticas libertadoras de educação com
comunidades tradicionais e grupos sociais, promovendo
uma educação popular sobre Paulo Freire. Em alguns casos,
a prática dialógica permitiu estabelecer os currículos de
formação com os grupos populares, que assumiram prota-
gonismo e voz no processo do seu aprender.

49
Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como você
pensa tê-lo reinventado, que mudanças foram necessárias? O
que a prática, o contato com os alunos e as diferentes realidades
trazem de adaptações?
Um dos primeiros trabalhos que adotaram a concepção teó-
rico-metodológica freiriana em nossa trajetória profissional
foi a formação de educadores-educandos em assentamen-
tos da reforma agrária do Bico de Papagaio, na região do
extremo norte do estado do Tocantins, promovida no cam-
pus de Tocantinópolis da então Universidade do Tocantins
(Unitins), atual Universidade Federal do Norte do Tocantins
(UFNT). Naquela ocasião, o círculo de cultura envolveu es-
tudantes universitários do curso de pedagogia, agricultores
assentados em diferentes municípios daquele território e as
docentes e pesquisadoras da universidade estadual.
Como fruto desse esforço de troca de saberes populares
e conhecimentos acadêmicos, elaboramos a Cartilha de
alfabetização dos assentamentos, e a palavra geradora que
se destacou foi “lama”. A força dessa palavra estava no
conjunto de fenômenos e vivências típicos da região ama-
zônica, como a temporada de chuvas que é conhecida como
“inverno”, geralmente entre os primeiros meses do ano. A
lama também dizia respeito às dificuldades de acesso e
deslocamento entre os assentamentos e os centros urbanos,
uma vez que a maioria das estradas era de terra, recortada
pelas chuvas torrenciais do período, o que costumava isolar
os moradores locais. Com essa vivência, a discussão de
uma “leitura de mundo sobre a lama” permitia uma rica e
impressionante denúncia sobre aspectos da vida real nos
assentamentos, com detalhes desconhecidos da comunida-

50
de universitária. A partir disso, a introdução da “leitura da
palavra”, com os processos de alfabetização e letramento
na língua e na matemática e com as várias dimensões de
estudos históricos sobre os assentamentos, tornou muito
mais significativo o aprendizado entre todos. Ao final do
processo e do projeto, pudemos reinventar a ideia de que
“ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa a si
mesmo, os homens se educam em comunhão, mediatiza-
dos pelo mundo”.
Outro momento rico da reinvenção de Paulo Freire foi
o trabalho de alfabetização de crianças caiçaras no mu-
nicípio de Paraty (RJ), com a comunidade de Martim de
Sá. Nessa experiência, pudemos exercitar a valorização da
cultura tradicional caiçara adotando diversos materiais e
recursos didáticos que buscaram valorizar os saberes dos
educandos e dos familiares. Se, por um lado, a comuni-
dade caiçara não era letrada, por outro, cultivava diversas
práticas importantes e conhecidas entre eles para viver na
costa brasileira. Entre outros conhecimentos, destacamos
a construção de canoas e o seu manejo em mar aberto,
bem como o domínio de técnicas de pesca artesanal, como
o uso da isca de zangareio para lula e de cerco para peixes e
outras espécies marinhas. Intitulamos o projeto de Cerco de
saberes, a partir de um círculo de cultura que reuniu caiça-
ras e universitários.
Como membro do grupo de pesquisa Desenvolvimento
e Inovação em Ensino de Ciências da UFF (Dieci), tenho
colaborado, em projeto mais recente, com oficinas inte-
rativas para alunos com comportamento superdotado. A
parceria envolve mais três pesquisadoras e futuros profes-

51
sores das áreas de ciências da natureza (física, química e
biologia), além de contar com a presença de graduados das
áreas de letras, matemática e cinema e de estudantes da
educação básica de 9 a 16 anos. O planejamento e a exe-
cução das oficinas interativas têm sido fundamentados na
perspectiva da educação problematizadora freiriana, com
um desenvolvimento interativo que contribui com a transi-
ção de uma curiosidade ingênua para outra epistemológica,
inclusive nestes tempos de pandemia e ensino remoto.

Na sua visão, como a pedagogia freiriana pode se associar à


linguagem cinematográfica? O que você e as outras duas auto-
ras do artigo Reflexões entre e estética audiovisual, o cinema e
a educação libertadora: diálogos com a formação na pedagogia
social vivenciaram durante o curso de especialização em peda-
gogia social da UFF?
Na UFF, temos colaborado ativamente com a afirmação
do curso de licenciatura em cinema e audiovisual, apoian-
do-nos em pressupostos freirianos para fomentar e apro-
fundar o diálogo e as práticas educativas. A formação que
temos promovido aos educadores audiovisuais tem sido
norteada por aspectos muito convergentes ao pensamento
de Paulo Freire, o que permite afirmar que é possível a
interação da pedagogia libertadora com os estudos da lin-
guagem cinematográfica. Ao assumir o cinema como arte
e como política, o curso da UFF indica dimensões também
presentes em uma educação libertadora: ao criar e produ-
zir cinema e audiovisual em escolas e outros espaços edu-
cativos não formais, os educadores em formação promo-
vem práticas que ampliam as possibilidades de expressão,

52
de denúncia da realidade e de transformação do mundo.
Nesse sentido, a interação entre linguagem (audiovisual) e
pensamento freiriano revela uma complementaridade na
prática educativa audiovisual. É um encontro com o po-
tencial de revelar olhares sobre a realidade, com narrativas
que provocam rupturas do estabelecido ou do lugar comum
e massificado por meio da expressão audiovisual de pers-
pectivas muitas vezes oprimidas e silenciadas.
Diversos níveis de diálogo estiveram presentes nesse
processo muito rico de trocas de saberes entre educador
e educando, no qual diferentes conhecimentos das áreas
específicas da pedagogia social e do cinema foram mobili-
zados para a construção de uma vivência inédita em nossas
trajetórias individuais. A oficina proposta foi intitulada
Audiovisual e Paulo Freire: contribuições para uma leitura de
mundo. Inicialmente, houve uma troca prévia de saberes
para que se promovesse a formação estética de educadores
sociais, inserindo conhecimentos da linguagem cinema-
tográfica entre os conteúdos típicos do campo profissiona-
lizante do pedagogo social. A prática da oficina deu-se em
duas partes: na primeira, uma exposição sobre a linguagem
audiovisual, com destaque para uma brevíssima história do
cinema, passando pelos elementos que compõem os estu-
dos sobre o audiovisual e por uma atividade prática com
cores e texturas, sensibilizando a turma para a dimensão
estética e para uma reflexão sobre a boniteza presente no
ofício assumido pelo pedagogo social. Para dialogar com
os saberes dos educandos presentes, foram apresentadas
imagens e vídeos que ilustravam os conceitos necessários,
permitindo-se que os participantes compartilhassem suas

53
vivências em torno de uma educação do olhar. Na segunda
parte, propusemos mais um exercício audiovisual, que bus-
cou romper com o olhar exclusivamente mercadológico e
passivo do cinema por meio da atividade Fotografia narrada,
um dispositivo do projeto Inventar com a diferença, coor-
denado por Cezar Migliorin. Os exercícios de linguagem
foram sendo problematizados e dialogados com os educa-
dores sociais, que trouxeram suas leituras sobre a imagem e
o som em suas vivências no campo da pedagogia social.

Como nasceu a mencionada oficina e quais foram os maiores


aprendizados originados dela? Replicando uma pergunta le-
vantada no resumo do artigo: quais foram os diálogos estabe-
lecidos por vocês entre o conhecimento audiovisual, o pensa-
mento freiriano e a pedagogia social?
Sou uma das docentes da Faculdade de Educação que vem
se surpreendendo e se encantando com a potência formati-
va do curso de licenciatura em cinema. Desde as primeiras
participações em disciplinas obrigatórias da formação de
professores do curso, temos sido provocados e temos pro-
vocado as práticas da educação audiovisual, buscando ali-
mentar uma docência dialógica, crítica e criativa. A oficina
reuniu pedagogas e licenciandas em cinema, apostando
na provável fertilidade dessa interação dialógica. A expe-
riência reuniu trajetórias muito potentes e comprometidas
com seus respectivos campos de estudo. Cada uma trouxe
bagagens de origem pessoal muito ricas, e foi importante
a disponibilização de todas para a descoberta de novo co-
nhecimento, aprofundando significativamente os saberes
de experiências acumuladas por todas.

54
Entre os aprendizados, afirmamos que a reinvenção do
pensamento de Freire, e não a reprodução mecânica de
suas ideias e orientações, implica refletirmos profunda-
mente sobre a relação entre o que vivemos e a realidade
que queremos alcançar com o projeto educativo, no caso
de interface entre cinema, linguagem audiovisual e pe-
dagogia social. A realização da oficina Audiovisual e Paulo
Freire: contribuições para uma leitura de mundo permitiu-
-nos a criação e a vivência de uma situação-limite, na qual
não tínhamos acúmulo anterior, era um processo de elabo-
ração coletiva de um momento “inédito viável” de nossa
vida acadêmica. As situações-limite que vivíamos antes de
nos lançarmos ao projeto da oficina eram de existências
mergulhadas em nossas áreas, em educação e pedagogia e
em cinema, na educação formal e não formal. O encontro
dessas três autoras, que encarnaram a relação de comu-
nhão entre educador e educando, disponibilizando-se à
aventura de viver a experiência de ler o mundo freiriana-
mente, com recursos e conhecimentos da linguagem au-
diovisual, desafiou-nos a ir além de quem éramos até então.
Nesse sentido, concordamos com Freire (1999) que “[...] a
educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem.
Não pode temer o debate. A análise da realidade não pode
fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”. Daí,
outro grande aprendizado foi o aprofundamento de todos,
pedagogos sociais e educadora audiovisual, nos campos
da estética, da educação libertadora e da ética: a oficina
trouxe muitos aspectos para refletirmos sobre os valores
humanos e a boniteza da vida, assim como sobre a insepa-
rabilidade entre decência e estética.

55
Destacamos alguns aspectos dessa aprendizagem du-
rante a caminhada coletiva:

1. A linguagem audiovisual potencializa e enriquece a prática


educativa dialógica dos pedagogos sociais. Algumas das ativi-
dades com a linguagem audiovisual sugeriram oficinas a ser
desenvolvidas também com os grupos sociais atendidos pelos
pedagogos nas comunidades socialmente vulneráveis.

2. Os círculos de cultura freirianos com educadores audiovi-


suais enriquecem a formação artística, criativa e estética de
educadores e educandos, revelando dimensões inéditas da prá-
tica pedagógica. Em projetos da pedagogia social, a utilização
de fotografias, de filmes profissionais e da criação audiovisual
pode potencializar as diferentes práticas dos pedagogos sociais
com seus públicos. Tivemos a oportunidade de acompanhar a
experiência de uma ONG que atende vítimas de violência do-
méstica com as oficinas de audiovisual, centradas na explora-
ção de dispositivos propostos e recriados pelo projeto Inventar
com a diferença, do Laboratório Kumã. Isso mostrou-se mui-
to formativo e criativo para os participantes, sendo inédita a
experiência vivida pelos jovens atendidos.

3. O conhecimento sobre a linguagem audiovisual contribui


com processos educativos emancipatórios na medida em
que rompe com a condição passiva daquele que exclusiva-
mente “consome” a produção cinematográfica existente.
Com a apreensão desses saberes, torna-se possível dar às
comunidades e aos grupos sociais marginalizados pela
sociedade de classes a possibilidade de narrar suas próprias

56
histórias, assumindo a voz na denúncia das mazelas e no
anúncio das alternativas do bem viver, dentro de outro mun-
do possível.

Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus


processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gos-
taria que você definisse quais são as palavras fundamentais
para o seu trabalho e que sentidos você tira delas.
As palavras (“ideias-força”) que considero fundamentais
para o meu trabalho na docência são: compromisso com
a vida e contra práticas necrófilas e necropolíticas; ética
e boniteza são inseparáveis; prática dialógica, círculos de
cultura e respeito aos saberes dos educandos na escola e em
espaços educativos; e estímulo a projetos críticos e criativos
de ensino que se propõem a enfrentar a violação dos direi-
tos humanos. Para comentar os sentidos que essas ideias e
palavras fundamentais trazem ao meu trabalho como do-
cente, vou destacar cada uma.

Compromisso com a vida. Ao assumirmos um compro-


misso ético com a vida, consideramos necessário combater
as práticas de opressão, violências e necropolíticas. Para
cultivar a biopolítica, enfrentamos cotidianamente dife-
rentes formas e conteúdos de silenciamento e de negação
do outro. Tal enfrentamento é coletivo, exigindo firmeza
e amorosidade para que possamos alimentar nossa capa-
cidade de ser mais, rompendo com as limitações historica-
mente impostas à classe trabalhadora e oprimida da socie-
dade contemporânea.

57
Ética e boniteza são inseparáveis. É fundamental que
os educadores e os futuros educadores sejam desafiados a
exercitar a ética e os valores necessários para a conquista
da dignidade humana. Em um país que vivenciou 400 anos
de escravidão e que vivencia diversas violações de direitos
humanos, como o extermínio de povos indígenas, os temas
da dignidade humana e do respeito à vida precisam receber
destaque em nossas salas de aula. Sem a ética, que valoriza
a diversidade das culturas das pessoas, não é possível en-
contrar e reconhecer a boniteza do humano entre nós, pois,
conforme já nos alertava Paulo Freire em sua obra Pedago-
gia da autonomia, “a necessária promoção da ingenuidade
à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de
uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética.
Decência e boniteza [andam] de mãos dadas”.

Prática dialógica, círculos de cultura e respeito aos sa-


beres dos educandos na escola e em espaços educativos.
Na formação de educadores, é necessário desafiarmo-nos
insistentemente a reinventar Paulo Freire nas escolas e
nos espaços educativos não formais. Nas licenciaturas e no
mestrado profissional, temos encontrado terrenos férteis
para uma formação crítica e humanista, como já pudemos
destacar em cursos como enfermagem e cinema, além do
programa de pós-graduação em diversidade e inclusão. Os
futuros educadores contribuem com suas indagações e
suas histórias de vida, trazendo para o círculo de cultura de
nossas aulas ricas perspectivas que aprofundam a proble-
matização sobre o ensino e a aprendizagem. As leituras de
mundo trazidas pelos futuros educadores são importantes

58
ingredientes para alimentarmos o diálogo que toma como
ponto de partida os saberes que cada pessoa traz consigo,
provocando-nos radicalmente a buscar o respeito aos sabe-
res dos educandos. A interação questionadora faz com que
cada participante abale sua zona de conforto, ampliando as
linguagens academicistas mais especializadas e inserindo
o ser humano e a sua dignidade como conteúdo de forma-
ção e educação.

Projetos de ensino que se propõem a problematizar


a violação de direitos humanos. Em todas as áreas de
conhecimento, inclusive naquelas que se dedicam a fór-
mulas e algoritmos, é necessário oportunizar aos futuros
educadores situações de formação que exercitem o “ser
mais”. Um exercício acadêmico que tem se mostrado bas-
tante rico e desafiador é a criação de projetos de ensino que
promovam o diálogo entre a área de saber específica e a
temática da violação dos direitos humanos, com passagem
pelas várias gerações de lutas e conquistas alcançadas pela
humanidade. Tem sido importante que os educadores em
formação possam ser convocados a exercitar a sua própria
pedagogia da autonomia, mobilizando a criatividade e
formulando propostas exequíveis que denunciem as viola-
ções e promovam a educação de sujeitos de direito. Assim,
finalizamos com mais um pouco dos saberes necessários
com que Paulo Freire (1999) nos brinda: “Se trabalho com
crianças, devo estar atento à responsabilidade de minha
presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar
perturbadora da busca inquieta dos educandos; se trabalho
com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com

59
relação a que o meu trabalho possa significar como estímu-
lo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente
assentado e à espera de superação”.

Referências
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

NOGUEIRA, S. R. A.; CARDOSO, F. S.; YAMASAKI, A. A.;


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n. 3, p. 147-170, set./dez. 2020.

NOGUEIRA, S. R. A.; CARDOSO, F. S.; YAMASAKI, A. A.


Contribuições à formação de professores das ciências da na-
tureza e matemática na educação em direitos humanos. Tra-
balho apresentado ao IV Congresso Nacional de Formação
de Professores e XIV Congresso Estadual Paulista sobre
Formação de Educadores, Águas de Lindoia, 2018.

NOGUEIRA, S. R. A.; YAMASAKI, A. A.; CARDOSO, F. S.;


RANGEL, A. C. N.; SILVEIRA, G. V. C. Reflexões sobre
ensino de ciências com jovens atingidos por barragens na
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Inovação, Tocantins, v. 7, n. 12, p. 261-274, 2020.

PEREIRA, F. A.; YAMASAKI, A. A. A prática pedagógica


dos monitores-alfabetizadores do Pronera no assentamen-
to Santa Cruz II/Tocantins: tentativas, acertos, conquistas.

60
In: QUILLICI NETO, A.; SOUZA, V. A.; BUIATTI, V. (org.).
Formação docente: história, políticas e práxis educacional.
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SOUZA, V. M.; MONGE, R. P. M.; YAMASAKI, A. A. Paulo


Freire e a cultura caiçara: a amorosidade no “cerco de sabe-
res”. In: IX Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire. Re-
vista UniFreire. Turim: Instituto Paulo Freire, 2014. p. 16-22.

YAMASAKI, A. A. Fertilizar e semear educação popular


com Paulo Freire: desafios à universidade, à formação de
educadores e educadoras do campo e à educação audio-
visual. In: GADOTTI, Moacir; CARNOY, Martin (org.).
Reinventando Freire: a práxis do Instituto Paulo Freire. São
Paulo: Instituto Paulo Freire; Lemann Center/Stanford
Graduate School of Education, 2018. p. 201-230.

61
SEGURANÇA

Centro de Orientação ao
Adolescente de Campinas (Comec)
Voltado para a educação de “adolescentes e jovens em con-
flito com a lei”, o Centro de Orientação ao Adolescente de
Campinas (Comec) foi criado na década de 1980. Sua prá-
tica se inspira nas ideias de Paulo Freire: tem “a palavra
como instrumento de transformação do homem e da so-
ciedade” e ensina os alunos “a ler o mundo e nele intervir
positivamente”, baseado “nos princípios da ética, do res-
peito à dignidade e do estímulo à autonomia”. Participam
desta entrevista a terapeuta ocupacional e coordenadora
Larissa Mazzotti Santamaria e as psicólogas
Ana Flávia Silva Luz e Natasha Contro de Souza.

62
Como é a estrutura e a rotina de trabalho do Comec? Com que
força de trabalho vocês contam e quais públicos impactam?
Atuamos há 40 anos no atendimento a adolescentes e jo-
vens (de 12 a 21 anos) e aos seus familiares. A peculiaridade
do nosso trabalho está em efetivar ações socioeducativas
com adolescentes e jovens em conflito com a lei, antece-
dendo as normativas sobre esse serviço e incorporando as
legislações que se sucederam, sendo basilares o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), o Sistema Único
de Assistência Social (Suas, 2005) e o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (Sinase, 2006).
A estrutura, composta desse cenário legal, executa as
medidas socioeducativas (MSEs) de liberdade assistida
(LA) e de prestação de serviços à comunidade (PSC), sendo
o espaço físico caracterizado pelo cuidado e pelo acolhi-
mento dos atendidos. Nossas intervenções dão enfoque às
atividades grupais, embora não excluam o atendimento
individualizado. Para a execução das ações, o Comec conta
com um quadro de diretores e 35 funcionários, entre equipe
de apoio e equipe técnica, sendo essa última composta de
profissionais das áreas de psicologia, serviço social, peda-
gogia, terapia ocupacional e ciências sociais, entre outras. 
Nossa rotina atual abarca o acompanhamento mensal
de 240 adolescentes e jovens no cumprimento de MSEs de
liberdade assistida (160) e prestação de serviços à comuni-
dade (80). O tempo de atendimento de cada caso é deter-
minado pela Vara da Infância e da Juventude, variando de
um a seis meses no programa de PSC e de seis meses a três
anos na LA.
Para a realização dos programas, o Comec faz um ter-

63
mo de colaboração com a prefeitura municipal, sendo que
cada um possui especificidades distintas diante das deter-
minações judiciais que recaem sobre [esses jovens]. Em
linhas gerais, cada caso conta com uma equipe interdisci-
plinar (psicólogo, assistente social, educador social
e/ou orientador de medida) que, pautada em seus conhe-
cimentos específicos, soma esforços com o conhecimento
institucional e realiza a construção de um Plano Individual
de Atendimento (PIA) para cada atendido, alinhado às
decisões da Vara da Infância e da Juventude. 
O cumprimento das medidas socioeducativas está
intrinsecamente relacionado à execução do PIA, que con-
templa diferentes eixos pertinentes ao desenvolvimento
desses adolescentes e jovens, tais como cidadania (garantia
de direitos, orientação jurídica e organização da documen-
tação pessoal), escolaridade (inserção e acompanhamento),
trabalho (formação e inserção profissional), saúde (orienta-
ções, avaliação e encaminhamentos), moradia e convivên-
cia familiar (intervenções e encaminhamentos pertinentes). 
As intervenções do Comec não se limitam aos aten-
dimentos semanais dos adolescentes e jovens e de seus
familiares. É também realizado o acompanhamento dos
atendidos nos serviços necessários, havendo articulação
em diferentes áreas por meio de discussões dos casos e
envios periódicos de relatórios para a rede socioassistencial
do município e a Vara da Infância e da Juventude de Campi-
nas, além de serem efetivadas visitas domiciliares e demais
ações pertinentes à execução do PIA.
A força de trabalho é constituída pelo empenho dos
profissionais contratados e da diretoria voluntária que

64
compõem a instituição. As ações desse coletivo impactam
diretamente a vida dos 240 adolescentes e jovens atendidos
mensalmente, bem como a de seus familiares. Considera-
mos também que há repercussão no cotidiano dos profissio-
nais que aqui trabalham, pessoal e profissionalmente.

Vocês afirmam   que têm como um dos referenciais a pedagogia


freiriana. Como as ideias de Paulo Freire transparecem nas
suas atividades?
 
Nossa ação central está na elaboração conjunta entre
adolescente, família, equipe técnica do Comec, Vara da
Infância e da Juventude e demais serviços envolvidos ou
necessários na intervenção de cada caso para a construção
e a execução do PIA. Partindo dessas questões iniciais e
normativas, adotamos como fundantes preceitos da filoso-
fia freiriana no que tange à interação dos profissionais com
os adolescentes e jovens e suas famílias. 
Constitui, portanto, a socioeducação a capacidade dos
educadores de estabelecer laços afetivos com os adoles-
centes e suas famílias, de criar sentimentos de empatia,
entendimento, valoração de ideias, apreço e compreensão
da diversidade, sendo esses aspectos essenciais para o for-
talecimento de valores humanos de solidariedade, alteri-
dade e respeito. Para tanto, é necessária uma comunicação
sincera entre envolvidos, capaz de produzir amor humano,
desenvolvido paulatina e progressivamente, o que requer
vivência. Em suma, nossa proposta de socioeducação con-
tém uma série de fatos, atitudes, vivências, valores, ideias
e ações com perspectivas de humanização individual e so-
cial, que buscamos incansavelmente observando as ideias

65
de Paulo Freire referentes à pedagogia do amor, dadas por
meio de ações concretas inspiradas nas dimensões social,
ética e crítico-reflexiva.
Nossas atividades envolvem o empenho para a efeti-
vação de uma comunicação verdadeira com os atendidos,
sendo a construção das ações realizada de forma conjunta,
em consonância com a concepção freiriana. Nós, profissio-
nais, possuímos um papel diretivo e informativo, levando os
adolescentes e jovens a conhecer conteúdos, mas não como
verdades absolutas. Esse processo possibilita que o apren-
dizado seja mútuo. Para tal, é necessário que as relações
sejam afetivas e democráticas, garantindo a todos a possibi-
lidade de se expressar.
Essa relação se torna o diferencial no atendimento so-
cioeducativo realizado no Comec. A elaboração do PIA con-
sidera as características subjetivas e objetivas do atendido,
da família e da comunidade, de modo a compreender o seu
contexto social e propor ações que façam sentido para a sua
vida e o seu cotidiano. Buscamos, no espaço de socioedu-
cação, propiciar trocas entre o adolescente e seu orientador,
e, para que exista comunicação verdadeira, há necessidade
do encontro, que não pode ser algo superficial, teórico ou
externo. Ele tem que ser experimentado, vivido, formando
uma unidade relacional com o ser encontrado naquele
momento. O encontro exige, por parte do orientador de
medida, mansidão, aceitação, compreensão, conhecimento,
serviço, amor e a crença no bem que há no outro pelo sim-
ples fato de ele existir como pessoa humana.
 

66
Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como vo-
cês pensam tê-lo reinventado, que mudanças foram necessá-
rias? O que a prática, o contato com os atendidos e as diferentes
realidades encontradas
  trouxeram de adaptações?
A filosofia freiriana parte do processo educacional esco-
lar, esse é um diferencial, visto que o Comec não realiza
a alfabetização dos atendidos, e sim o acompanhamento
de seu desenvolvimento escolar. Realizamos a educação
não formal por meio de ações socioeducativas e, assim,
reinventamos as práticas propostas por Paulo Freire. Nossa
ação abrange a educação como política, de forma não par-
tidária, mas como processo emancipador e de formação
para cidadãos mais cientes de seus direitos e capazes de
realizar uma leitura crítica de mundo. Isso é, sem dúvidas,
pedagogia freiriana. 
Na socioeducação que realizamos, feita com base
na vivência real de pessoas reais, é preciso reconhecer a
trajetória dos atendidos, protegendo-os de estigmas que
criminalizam sua existência, sobretudo por terem come-
tido alguma infração. Esse olhar macro que nossos pro-
fissionais realizam e buscam construir com os atendidos
possui pilares na obra de Paulo Freire, redigidos nas obras
Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do
oprimido (1968), Pedagogia da esperança (1992) e Pedagogia
da autonomia (1996).
Em todas as nossas ações, consideramos a palavra
como instrumento de transformação do homem e da so-
ciedade, sendo parte da nossa responsabilidade ensiná-los
a ler o mundo e nele intervir positivamente, pautados nos
princípios da ética, do respeito à dignidade e do estímulo à

67
autonomia como base para uma educação emancipadora.
A principal adaptação é realizada na construção conjunta
e coletiva daquilo que o plano individual de atendimento
deve possuir como estratégias e metas, pois precisa haver
sentido para que o adolescente e sua família se apropriem
dessa construção. 

No que essa fundamentação “não só em Paulo Freire, como em


um  pensamento elaborado sobre a pedagogia”, como vocês es-
crevem, diferencia o Comec de outras instituições voltadas para
menores infratores? Posto de outra forma, qual é o contexto de
atuação da Comec em comparação com outros órgãos, como a
Fundação
  Casa?
Acreditamos que o diferencial do atendimento do Comec
em relação às demais executoras de medidas socioeduca-
tivas em meio aberto está na metodologia utilizada, pela
rigorosidade metódica e pela pesquisa permanente. A alian-
ça indissolúvel entre a ética e a estética, o compromisso
incessante com a competência profissional, o respeito pelos
saberes do educando e o reconhecimento da identidade
cultural, além da rejeição de toda e qualquer forma de dis-
criminação, visando à reflexão crítica da prática pedagógica,
à corporificação do exemplo, saber dialogar e escutar, que-
rer bem aos educandos, ter alegria e esperança, liberdade e
autoridade e a consciência do inacabado. Esses são elemen-
tos que incorporam os fundamentos de nossa prática.
Ressalta-se que o contexto de atuação do Comec se di-
fere daquele da Fundação Casa, uma vez que as unidades
de internação são caracterizadas pela privação da liberda-
de, sendo denominadas instituições totais. Seu fechamen-

68
to ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação
social com o mundo externo. Por outro lado, as medidas
em meio aberto, como a liberdade assistida e a prestação
de serviços à comunidade, contam com a garantia de liber-
dade, ou seja, o direito de ir e vir dos adolescentes e jovens.
Isso faz com que lidemos com a imprevisibilidade cotidia-
na; logo, o vínculo do adolescente e jovem com a equipe
técnica se torna fundamental para o seu desenvolvimento.
Nesse sentido, as relações sociais estabelecidas pelos aten-
didos com os familiares, os amigos, o território de moradia,
os serviços de saúde, a educação, a assistência social etc.,
bem como com sua equipe de referência na medida socioe-
ducativa, são valorizadas de modo que venham a auxiliá-lo
em novas escolhas e no seu projeto de vida.
Para nós, é indiscutível a importância de olhar para a
realidade dos adolescentes e jovens em conflito com a lei
na perspectiva da pedagogia freiriana, tendo em vista o
caráter histórico-contextual em que toda realidade oprimi-
da se situa. Portanto, os adolescentes em cumprimento de
medida socioeducativa, como grupo social, participam da
vivência em sociedade, ainda que excluídos, prejudicados
em sua forma de pensar, sentir, criar e transformar. A rele-
vância das medidas socioeducativas se destaca ainda mais
pela objetivação da humanização do adolescente que prati-
cou um ato infracional, sendo esse um aspecto importante
na análise e na crítica do ato realizado.
   

69
Vocês pensam que as instituições voltadas para adolescentes
em conflito com a lei, de forma geral, poderiam se aperfeiçoar
com uma abordagem freiriana? Se sim, em que sentido? Com
que possíveis benefícios?
Sim, consideramos de extrema relevância o conhecimento
da pedagogia freiriana para instituições que atuam com
adolescentes em qualquer situação. No âmbito dos adoles-
centes em conflito com a lei, vivenciamos a possibilidade
de estabelecer uma relação autêntica, reconhecendo que,
por diversas vezes, são estigmatizados e desacreditados
em muitas de suas relações sociais. A relação empática e a
construção conjunta de um plano de atendimento são ele-
mentos, em nosso ponto de vista, essenciais para a cons-
trução de um vínculo entre o adolescente em cumprimento
de medida e a sua equipe de referência. A partir disso, é
possível ocorrer uma circulação verdadeira da palavra, ou
seja, abre-se um espaço de fala a fim de que ele se sinta
livre para verbalizar suas histórias, experiências, angústias
e riscos, entre outros aspectos. 
Acreditamos que essa forma de comunicação empática
apresenta potencial de transformação dos contextos de
exclusão, pois a partir dela é possível alocar o atendido
para um papel de protagonista de ações de mudança de si
e da comunidade à qual pertence. Desse modo, a proposta
metodológica que se desenvolve em consonância com os
pressupostos da educação popular descrita por Paulo Frei-
re se compromete com a construção de conhecimentos que
promovam condições para a superação de situações de ex-
clusão e opressão social, sendo esse um benefício primor-
dial para a execução das medidas. Essa parceria possibilita

70
que o adolescente crie um novo caminho para percorrer,
ressignificando seus atos. E, ao se libertar de chavões alie-
nantes, seguiria e criaria o rumo do seu aprendizado e de
uma formação da consciência política.
 
Na sociedade brasileira atual, diversos grupos pressionam
por punições mais pesadas aos adolescentes infratores, assim
como pela diminuição da maioridade penal. Como vocês veem
esses movimentos? Que políticas públicas vocês defendem
para a área?
Em um crescente, [transparecem] as questões sobre vio-
lência e criminalidade cotidianas, o que inclui o segmento
populacional adolescente. Com diferentes posicionamentos
acerca das realidades, noticiários, reportagens e outras for-
mas de divulgação midiáticas ressaltam os adolescentes nas
ocorrências de atos considerados violentos, potencializando
os discursos sobre punições mais coercitivas, como é o caso
da redução da maioridade penal. No Comec, as infrações
consideradas graves não representam esse binômio cons-
truído em torno da adolescência e da violência; o que ob-
servamos é um número expressivo de adolescentes e jovens
sendo assediados para o trabalho do narcotráfico, questão
que o Brasil deveria colocar em pauta nas políticas públicas
(exploração do trabalho infantil) no lugar dessa redução.
Nós, do Comec, nos colocamos em definitivo contrários
a tais ações. Vemos tal movimento como uma maneira de
culpar o adolescente, separando-o dos contextos social, cul-
tural, político, econômico e familiar, entre outros diversos
aspectos. Ou seja, consideramos que tais argumentos crimi-
nalizam a pobreza sem considerar as vivências, o cotidiano

71
e as violações de direitos atrelados aos atos de adolescentes
em conflito com a lei.
Defendemos a reflexão acerca do fenômeno da ado-
lescência e juventude, especialmente desses adolescentes
reconhecidos como “em conflito com a lei”, como parte de
uma proposta de trabalho pedagógico e socioeducativo. 
Além das divulgações de seu trabalho e de pesquisas na
área, o Comec compõe o comitê gestor do Sistema Munici-
pal de Atendimento Socioeducativo de Campinas, que tem
como premissa a garantia de direitos a adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas, sendo contrá-
rio à diminuição da maioridade penal.
Observamos desconhecimento da população em geral
do processo socioeducativo existente e, por vezes, a não
aplicação correta e completa do que é preconizado pelo
ECA e pelo Sinase. As legislações, quanto ao atendimento
dos adolescentes e jovens em conflito com a lei, necessi-
tam ser devidamente efetivadas e implementadas em sua
totalidade, para que assim viabilizem o funcionamento dos
ideais nelas prescritos e possam ser discutidas reestrutura-
ções plausíveis.

Paulo
  Freire usava as palavras geradoras para disparar seus
processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gos-
taria que definissem quais são as palavras fundamentais para o
seu trabalho e que sentidos extraem delas.
Para nós, do Comec, algumas palavras fundamentais nesse
trabalho podem ser encontradas nos valores institucionais
que os profissionais que aqui trabalham compartilham.
Tais valores mantêm a coerência no grupo do trabalho,

72
alinhados à missão e à visão dessa instituição. Sendo assim,
destacamos:

— ética: atuação profissional qualificada, pautada nas nor-


mativas e nas diretrizes dos conselhos de classe, comprometi-
da com a escuta, a acolhida, a orientação dos atendidos e a
transparência de suas ações;

— respeito: promoção da socioeducação dos adolescentes e


jovens e do atendimento de seus responsáveis/familiares,
contribuindo para a eliminação de quaisquer formas de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão;

— diversidade humana e cultural: respeito às semelhan-


ças e às diferenças entre pessoas e culturas e defesa dos direi-
tos humanos;

— responsabilidade social: promoção da liberdade, da


dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano,
apoiada nos valores que embasam a Declaração Universal
dos Direitos Humanos e analisando crítica e historicamente
as realidades política, econômica, social e cultural;

— formação continuada: sucessivo aprimoramento profis-


sional, contribuindo para o desenvolvimento da área como
campo científico de conhecimento e de prática. 

73
MÚSICA

Estêvão Couto Teixeira


Mestre em educação pelo Centro de Ensino Superior
de Juiz de Fora (CES/JF) e bacharel em música (flauta)
pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Estêvão Couto Teixeira é autor da
pesquisa Alfabetização musical – o legado de Paulo Freire e a
aprendizagem da música.

74
Estêvão, professor de percepção, música de câmara, piano
e flauta transversal do Conservatório Estadual de Música
Haidée França Americano, em Juiz de Fora (MG), é inventor
do teclado didático para o ensino da música (Tedem), uma
inovadora metodologia de ensino e aprendizagem baseada
na visualização das formas musicais no teclado. O método
Tedem é lei municipal em Juiz de Fora (nº 10.861/2004),
com o propósito de reinserir o ensino da música nas escolas
públicas da rede municipal de ensino fundamental. A Lei foi
regulamentada pelo Decreto nº 8.587, de 7 de julho de 2005.
A convite do Instituto Paulo Freire de Portugal, Estêvão
realizou shows e oficinas de música com o método para
cerca de 800 crianças de escolas públicas e privadas do
país em dezembro de 2005 e em maio de 2007.

Como Paulo Freire surge em sua trajetória pessoal e profissio-


nal? Como se deu o seu contato com o autor?
O meu primeiro contato com Paulo Freire foi na escola,
ainda adolescente, nas aulas de formação humana e cristã
num colégio em que estudei em Juiz de Fora. No 3º ano –
antigo 3º ano científico –, eu me mudei para outro colégio,
a Academia de Comércio, na mesma cidade, e lá participei
de grupos de estudo, nos quais também tivemos contato
com textos dele.
No entanto, a minha verdadeira imersão na obra frei-
riana foi depois, com o mestrado, com a pesquisa que fiz
sobre uma alfabetização musical com o Tedem, em que
precisei estudar como relacionaria o referencial teórico de
Paulo Freire na minha prática musical.
Foi um processo que se deu aos poucos, cada vez fui

75
descobrindo uma nova maneira de utilizar as ideias de
Freire no meu dia a dia com a música. Valorizando o re-
pertório dos alunos e o que eles tinham para me mostrar,
porque Freire disse que você ensina aprendendo e aprende
ensinando. Então, [fui descobrindo] como poderia aprovei-
tar ao máximo as experiências musicais que cada um dos
alunos traz consigo.

Na sua visão, como a pedagogia freiriana pode se associar ao


campo da música?
A pedagogia freiriana sempre dá oportunidade aos que
estão excluídos da nossa sociedade, a valorização daqueles
que nunca tiveram voz para se expressar, o direito à alfabe-
tização. É por isso que o autor trabalhou tanto a alfabetiza-
ção de jovens e adultos, porque o nosso país, o Brasil, tinha
um índice muito alto de pessoas que não estavam – que não
eram – alfabetizadas.
Transferindo isso para a música, digo que a música po-
pular brasileira teve muito pouco espaço nas universidades,
nos conservatórios e nas academias, começando a conquis-
tá-lo recentemente. Digamos que, no início do século XX, a
música popular era totalmente excluída das escolas, sendo
inclusive considerada de categoria inferior.
O ensino musical esteve muito pautado em conceitos
e obras de autores europeus. Foi somente com a Semana
de arte moderna de 1922 que começou uma valorização da
música popular brasileira.
Então, a perspectiva freiriana se associa ao campo da
música justamente nessa valorização da expressão genuína
brasileira, da expressão popular dos músicos populares,

76
que é tão rica e diversificada, e em como ela poderia ser
levada para o meio acadêmico.

E o que é alfabetização musical? Na sua opinião, como ela deve


estar inserida nas escolas?
Alfabetização musical é o ato de ensinar música, de ensinar
a ler e a escrever, mas a ouvir também. E, dentro de uma
visão freiriana, isso se amplia para uma questão de leitura
de mundo, de formação de uma visão crítica.
Nesse sentido, a alfabetização musical deve estar in-
serida num contexto em que a criança primeiramente vai
aprender a lidar com sons, com uma música, a perceber
quais são os sons graves e quais são os agudos. Posterior-
mente, ela deve ter contato com o papel, com a partitura.
Agora, as escolas, as universidades e os conservatórios
estão se preocupando mais com esse aspecto de valoriza-
ção da percepção da audição, mas é muito comum vermos,
nessas instituições, a valorização da música escrita, da
música no papel. Isso, de certa forma, escraviza e pode difi-
cultar, depois, o entendimento da música de uma maneira
mais lúdica, mais criativa, que trabalhe o lado da improvi-
sação, por exemplo.
E digo isso porque, observando a própria criança, ela
não aprende a escrever primeiro. Aprende a falar e depois
vai passar pelo processo de alfabetização escrita, logica-
mente. Aliás, antes de tudo ela canta, e depois é que come-
ça a desenvolver a linguagem verbal falada.
Então, é essa valorização que trago para o campo da
música. Com base nos conceitos freirianos – e o Tedem
trabalha exatamente isso –, antes de introduzir a música no

77
papel, é necessário trabalhar a ideia de sons mais graves
e mais agudos, de visualização dessas geografias no tecla-
do. E isso vai proporcionar outro tipo de concepção e de
formulação de conhecimento da estrutura musical, para
depois entendê-la no papel.
O fazer musical também é um ato político, pois a cultura
musical popular deve ser aceita, deve ser inserida nos proces-
sos de educação das escolas tradicionais e das universidades.
Cada um tem as suas maneiras, as suas formas de ex-
pressão musical. Como é que pode um músico que, a prin-
cípio, não tem nenhuma teoria musical pegar a sua viola, a
sua sanfona e tocar a noite inteira, sem parar, uma música
atrás da outra, sem saber ler e escrever música? Você vai
dizer que ele é um analfabeto musical?
Esse novo conceito de alfabetização musical é também
um princípio freiriano de valorização dessas novas formas,
de expressões populares musicais. A academia, os conser-
vatórios e as universidades deveriam aprender e estudar
essa forma de apreensão da linguagem musical pelos músi-
cos populares, valorizar todo esse conteúdo.

Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como


você pensa tê-lo reinventado com o seu trabalho no campo
da música?
No caso da música, creio que fiz uma reinvenção por meio
do instrumento Tedem. É um protótipo de um teclado
que não tem som e, a princípio, isso é uma incongruência,
porque a música é a arte dos sons, mas justamente aí está
o processo de reinvenção dentro da música na perspectiva
freiriana.

78
Os alunos primeiramente vão exercitar e trabalhar o
lado da percepção musical, o lado da audição, sem enten-
der a música no papel. O processo de escrita musical deve
ser posterior a esse de assimilação da linguagem sonora,
isso é muito importante. É o trabalho desse lado lúdico,
mais solto, mais alegre e mais prazeroso da música.
E cada aluno traz sempre uma novidade para o profes-
sor, por isso é interessante e importante a noção que Paulo
Freire destaca de que se ensina aprendendo.

Falando sobre o Tedem, poderia nos contar um pouco mais


sobre ele e como se assemelha aos princípios freirianos de al-
fabetização – no caso, a alfabetização musical?
É um teclado que uso para ensinar música de uma maneira
diferente. É um instrumento que não possui som, serve
apenas de painel de visualização das formas musicais, se-
jam elas escalas, acordes ou intervalos. O Tedem surgiu de
uma forma inesperada, eu não pensei que estivesse crian-
do um teclado, um método e muito menos um protótipo de
algo que não existia: imaginei que outras pessoas já haviam
pensado nessa maneira de ensinar música, com as teclas se
levantando do plano do teclado.
Depois, quando fui trabalhar o texto da patente, fiquei
surpreso com muitas invenções tecnológicas com chips,
questões eletrônicas, mas nenhuma tão simples assim, de
um teclado didático em que as teclas se levantam. Ainda
não havia nada desse tipo patenteado.
O Tedem surgiu em 1987, quando comecei a dar aula
no Centro Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical, no Rio
de Janeiro. Já estava dando aula de harmonia aplicada ao

79
teclado e sempre tinha de chamar os alunos para ver as
ocorrências harmônicas que eu tocava no piano. Todos se
levantavam das suas cadeiras para poder me ver tocando
os acordes e, depois, sentavam-se novamente.
Com base nessa necessidade, bolei um teclado que era,
a princípio, realmente as teclas de um piano fixadas num
painel. As teclas se movimentavam e, quando ficavam le-
vantadas, era possível mostrar aos alunos qual era a forma-
ção daquele acorde.
Foi assim que ele surgiu e, a partir daí, foram sendo
descobertas novas formas de sua aplicação. E também de
que maneira ele teria trabalhado dentro de um conceito
freiriano, exatamente da valorização da formação musical
que cada aluno traz consigo para a sala de aula, de cada um
desses conteúdos que devem ser inseridos e absorvidos no
processo de educação musical.

Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus


processos educacionais. Gostaria que definisse quais são as
palavras fundamentais para o seu trabalho e que sentidos
você tira delas.
As minhas palavras geradoras no campo da música seriam
o trabalho primeiramente sobre as notas musicais, as quais
todos conhecem. Quais são as notas musicais que todos
nós conhecemos? Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, si, lá, sol, fá,
mi, ré, dó – na verdade, são sete notas musicais.
Como é que eu trabalho, qual é o início do meu trabalho
no processo de alfabetização musical com o Tedem? Tra-
balho inicialmente com um grupo gerador de apenas duas
palavras, que no caso seriam duas notas: sol e lá. E por quê?

80
Primeiramente, porque essas duas notas estão numa região
vocal facilmente cantada; segundo, porque a alfabetização
musical nas escolas está muito associada ao instrumento
da flauta doce, no qual essas duas notas são fáceis de ser
executadas. Trabalho também com o berimbau, que é um
instrumento que toca apenas duas notas basicamente.
São duas notas, uma nota mais aguda e outra mais
grave. Então, essas seriam – comparando com a metodo-
logia freiriana – as palavras geradoras. A partir delas, vou
criando os ritmos diferentes, mudando inclusive os sons,
mantendo esse mesmo intervalo, mas trabalhando com ou-
tros sons para que o aluno tenha consciência de que pode
executar esse mesmo intervalo em outras tonalidades.
A partir daí, depois que o aluno está seguro, começo
a trabalhar três notas musicais – sol, lá e si –, e assim por
diante, até a escala completa, a escala diatônica de dó com
as sete notas.

Você é autor de uma música sobre Paulo Freire, não?


Essa música foi criada para ser tocada em um encontro
internacional sobre Paulo Freire que houve em São Paulo.
Para esse evento, falei que iria compor uma música em
homenagem ao educador.
[A data] foi chegando perto e eu não tinha inspiração
nenhuma para compor a música. Um mês antes, ainda não
tinha escrito nada. Daí, eu me lembrei de que Paulo Freire
aprendeu a escrever à sombra dos galhos de uma manguei-
ra, rabiscando com gravetos no chão.
Fui para debaixo de uma das árvores do condomínio
onde moro e falei: “Paulo Freire, por favor, me dê uma

81
inspiração aqui, tenho de assumir o compromisso de tocar
a música no encontro internacional”. Por incrível que pa-
reça, a melodia da música veio por inteiro e eu a coloquei
logo no papel. Assim surgiu “Alegria de Paulo Freire”, que
foi tocada no evento.
Foi em sua abertura, com auditório cheio, lotado. Eu
com a flauta. Entreguei a partitura original que escrevi a
Lutgardes Freire. Está arquivada no Instituto Paulo Freire.
Foi um momento muito emocionante para todos que esta-
vam presentes ali.

82
TEATRO

Abel Xavier
Doutorando pela Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (Feusp) e profissional da área de artes e edu-
cação, Abel Xavier pesquisa o pensamento de Paulo Freire
na prática da pedagogia do teatro desde 2015. Anterior-
mente, concluiu mestrado em artes da cena pela Escola Su-
perior de Artes Célia Helena (ESCH) e especialização em
gestão de projetos culturais pela Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), produzin-
do um artigo no qual estuda o currículo do curso de artes
cênicas do Departamento de Artes Cênicas (CAC) da USP.

83
Como surgiu o seu interesse por Paulo Freire como objeto de
pesquisa e qual era sua relação anterior com a obra dele?
A primeira vez que ouvi falar em Paulo Freire foi em 2005,
época em que fiz a minha primeira graduação, em artes
cênicas, pela Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp). Mas ele era apenas um nome que eu ouvia de cole-
gas que eram mais próximos à pedagogia. Quase dez anos
depois, quando já era professor de teatro e havia lido al-
guns de seus livros, percebi que um processo artístico-pe-
dagógico poderia muito facilmente se relacionar com as
práticas e as proposições de Paulo Freire. Havia, nas suas
reflexões, um modo de pensar a formação das pessoas que
muito se assemelhava às metodologias do ensino do teatro
às quais eu tinha acesso até aquele momento.

Na sua pesquisa, o pensamento de Paulo Freire entra para va-


lorizar a realidade e o contexto social da pessoa em estágio de
aprendizagem. Você chegou a ver isso aplicado na prática, no
aprendizado de um educando no curso de artes cênicas?
Como o campo da minha pesquisa na época da especialização
foi estritamente documental, eu não cheguei a acompanhar
como, na prática, os estudantes e os professores do CAC/USP
lidavam com as formas freirianas de ensino e aprendizagem.
Mas na mesma época, em outro contexto, eu conduzia uma
turma no extinto Centro Livre de Artes Cênicas (Clac) de
São Bernardo do Campo, em São Paulo. Ali, sim, pudemos
experimentar o pensamento de Paulo Freire na prática da
pedagogia do teatro. Por meio da linguagem teatral, os es-
tudantes iam se dando conta da sua posição social e buscá-
vamos, juntos, possibilidades de atuação artística e política.

84
Quando define o aluno que ingressa no curso de artes cênicas,
você relata que, em geral, ele já possui “uma capacidade crítica
bastante apurada”. Fica mais fácil, por esse motivo, aplicar a
filosofia de Paulo Freire nessa prática de aprendizagem?
Quem busca o teatro como atividade profissional, ou seja,
como prática de participação social no mundo, de alguma
maneira já reconhece que a arte tem uma vocação trans-
formadora. Geralmente, porque a própria pessoa é teste-
munha dessa transformação. Ela própria, ao experimentar
o teatro, seja na infância ou na adolescência, viveu alguma
transformação no âmbito da sua própria identidade. Por-
tanto, o fazer teatral começa a ser uma condição de exis-
tência, um traço da identidade. Aos poucos, o aprendiz de
teatro vai se dando conta de que a sua arte, ao transformar
pessoas, pode transformar estruturas sociais também. É aí
que, para mim, Paulo Freire entra, para nos fazer entender
que um conhecimento historicamente construído (no nos-
so caso, a linguagem teatral) é algo vivo, mutável, manipu-
lável, determinado pelo tempo histórico e determinante
dele também. O aprendiz vai percebendo que sua ação na
cena tem poder. Poder de leitura e escrita de novos mun-
dos. Alfabetizar-se teatralmente é uma maneira de com-
preender que a sua presença e a sua ação têm força e fazem
a diferença no tempo e no espaço social.
 

85
Uma contradição apontada na sua pesquisa é que, apesar de a
formação do licenciando em artes cênicas pelo CAC/USP estar
apta a propiciar “o desenvolvimento de metodologias capazes
de gerar espírito crítico e consciência histórica”, Paulo Freire
não faz parte da bibliografia. Você saberia explicar essa ausên-
cia? Sabe dizer se, de lá para cá, isso mudou?
Não acompanhei a transformação bibliográfica do curso de
2015 para cá. É provável que tenha havido mudanças. O que
posso dizer hoje é que, em muitos casos, a prática do profes-
sor de teatro é freiriana, mas ou ele não se dá conta disso ou
não nomeia sua prática dessa forma. Tem algo entre o fazer
e o pensar a prática pedagógica que exclui a referência de
Paulo Freire. Mas isso tem uma explicação razoavelmente
simples: não o consideramos como um pensador da arte.
Ele é compreendido como um pensador da educação. Arte
e educação, apesar de se tangenciarem, guardam suas
especificidades, evidentemente. Mas o que acontece é que
Paulo Freire é tão universal e fundante que suas ideias va-
zam do campo da educação. O que ele propõe é da ordem
da cultura, das relações sociais, da política, é maior que a
escola e a educação escolar. O que eu propunha na pesquisa
da época (e que continuo pensando hoje) é que podemos ler
Paulo Freire à luz do campo teatral. Tudo o que é dito em
Pedagogia da autonomia (1996), por exemplo, deveria ser
lido por todos que trabalham com teatro (atores, diretores,
professores, críticos etc.). Quando lemos essa obra, nós nos
tornamos pessoas melhores, artistas melhores.
 

86
Em um curso de teatro, como se dá a conciliação do pensamen-
to crítico e individual de cada aluno com o ensino das técnicas?
Um complementa o outro, sem possibilidade de ruído?
Como diz Paulo Freire, o conhecimento é histórico, ligado a
determinado contexto e elaborado por determinados atores
sociais. Nesse sentido, a técnica, como conhecimento, tam-
bém é. Ela representa um ponto de vista, uma necessidade
do tempo, uma saída para problemas criados no e pelo tem-
po histórico. É dessa forma que podemos ler as técnicas da
linguagem teatral. Em um curso de formação de atores ou
de professores de teatro, ensinar técnicas é também ensinar
a se relacionar com elas de maneira crítica e viva. A técnica
é uma trilha. É como se eu mostrasse uma trilha (uma téc-
nica) para chegar a um objetivo, mas que ficasse bem claro
que há outros caminhos inexplorados e que o terreno atual
pede novos exploradores e criadores de trilhas. Assim, a
relação com a técnica deixa de ser submissa e passa a ser
crítica, porque entende-se que ela é uma construção históri-
ca, passível de questionamento, releitura, subversão, supe-
ração ou assimilação. Se for assim, não tem ruído.
 
Como foi a evolução da sua pesquisa da especialização para o
doutorado e como Paulo Freire continua nessa investigação?
Depois da especialização, fui fazer o mestrado na ESCH.
De maneira transversa, Paulo Freire me ajudou a pensar a
prática pedagógica da Casa do Teatro, escola de arte para
crianças e jovens que foi o campo dessa pesquisa. Ali pude
me aprofundar um pouco mais na aplicabilidade da educa-
ção freiriana no ensino do teatro.

87
Para o doutorado, na Feusp, fiz um recorte em torno da
presença cênica, que é uma condição da prática teatral, um
estado corpóreo do aqui e agora, típico da cena. O traba-
lho é pensar quais relações podemos estabelecer entre o
estado de presença cênica e o estado de presença histórica.
Por presença histórica, entendo essa tomada de posição
no mundo, a compreensão de ser agente e resultado de
certo contexto. Como estar presente na própria história se
relaciona com o estar presente em cena, e vice-versa? Pau-
lo Freire, é claro, faz parte do escopo teórico, justamente
por apontar para essa educação que coloca os dois pés do
aprendiz no seu tempo, no aqui e agora social. E o que se
vê quando os dois pés estão no presente? O que fazer com
essa presença, com sua capacidade de ação?

 Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus pro-


cessos educacionais. Quais são as palavras fundamentais para o
seu trabalho de pesquisa e que sentidos você extrai delas?
A palavra presença é a que mais tem me movido atualmente.
Não só porque é uma palavra (e uma competência)
importante para o teatro, mas também porque me parece
necessário discutir o que é estar presente na vida atual-
mente. Na vida comum mesmo, no cotidiano, na prática do
dia a dia. Tenho a impressão de que nosso tempo histórico
tem nos tirado a sensação de presença. E me preocupam as
consequências disso.

88
FOTOGRAFIA

ImageMagica
Atuante desde 1995, a ImageMagica é uma organização
da sociedade civil de interesse público (Oscip) que pensa e
pratica a fotografia como expressão e educação, atingindo
cerca de 400 mil pessoas com suas ações. Desde os pri-
meiros anos, desenvolve uma atividade com viés freiriano,
ainda que sem conhecê-lo – após entrar em contato com a
obra do educador, puderam aprofundar suas ideias. Con-
versa conosco nesta entrevista André François, fotógrafo
e fundador da ImageMagica.

89
Como é a estrutura e a rotina de trabalho da ImageMagica? Com
que força de trabalho vocês contam e quais públicos impactam?
Hoje, contamos com 12 pessoas que trabalham fixamente
na organização. Para a execução dos projetos em campo,
chamamos e capacitamos outros educadores. O principal
público que impactamos são alunos de escolas públicas,
que multiplicam o aprendizado para os seus professores e
até mesmo para os seus familiares.

Fundada em 1995, a organização foi desenvolvendo a sua meto-


dologia educacional e, em 1999, quando entrou em contato com o
pensamento de Paulo Freire, descobriu uma filiação. Gostaria de
saber mais sobre como foi esse desenvolvimento e, nesse segun-
do momento, quais foram os pontos de contato com Paulo Freire.
Sim, quando iniciei o trabalho da ImageMagica, ainda
não tinha me relacionado com a filosofia de Paulo Freire.
Quando me disseram que a nossa metodologia tinha muito
a ver, pesquisei e vi que realmente se conectavam. O pro-
cesso que aplicamos sempre foi no sentido de que o apren-
dizado se constrói no fazer, de que não há somente um
caminho de mão única (professor repassando conteúdo ao
aluno), mas sim algo mais horizontal.

No mesmo sentido, a pedagogia de Paulo Freire ajudou a aper-


feiçoar o que vocês já faziam?
Sim. Começamos a lapidar um pouco mais as nossas ati-
vidades e nos apropriar da pedagogia freiriana. Dessa ma-
neira, pudemos mergulhar nessa filosofia e absorver ainda
mais conhecimento, trazendo a metodologia de uma forma
mais consciente para nossos projetos.

90
Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como
vocês pensam tê-lo reinventado, que mudanças foram neces-
sárias? O que a prática, o contato com os alunos e as diferentes
realidades encontradas trouxeram de adaptações?
Muito do que usamos da pedagogia de Paulo Freire está
relacionado com o fazer. O educar pelo fazer, pela ação.
Pensando nisso, e atuando com os projetos de fotografia, o
que mais acontece em nossos campos é esse dinamismo na
hora de aprender. Às vezes, os alunos trazem temas especí-
ficos que querem trabalhar ou propõem lidar com um tema
de uma maneira diferente. Então, é um processo muito
dinâmico e muito diferente a cada momento.
Por exemplo, quando trazemos o tema do meio am-
biente, todos podem fotografar uma árvore, mas a maneira
como vão fazer isso traz perspectivas e ângulos diferentes,
e a vida é assim. Às vezes, a vida é interpretação – e essa
interpretação é aberta nesse processo de aprendizado.

Vocês estão no campo da imagem, da arte e da tecnologia.


Como é fazer a transposição da pedagogia de Paulo Freire – que
atuou com alfabetização, leitura e linguagem – para esses ou-
tros âmbitos?
Considero que a nossa intersecção com Paulo Freire é o
aprender pelo fazer. Isso pode ser em qualquer coisa, tec-
nologia, fotografia... E levamos a fotografia para a escola
de uma maneira na qual todos, alunos e professores de
diferentes idades, vão buscar juntos o aprendizado em
imagens. Acho interessante porque, com isso, nivelamos o
aprendizado das pessoas, o que é um diferencial.

91
Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus
processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gos-
taria de saber quais são as palavras fundamentais para o seu
trabalho e que sentidos extrai delas.
Geralmente, fazemos três perguntas básicas para todos os
participantes de nossos projetos: “Como você vê o seu mun-
do?”; “Como você gostaria que esse mundo fosse?”; “O que
você pode fazer para alcançar esse mundo ideal que criou?”.
E sempre provocamos os participantes para que essas
respostas tragam empoderamento. Às vezes, algumas
respostas são: “Eu gostaria de um mundo melhor, mas a
política, o meu bairro...”, enxergando que o problema está
fora. E perguntamos de volta: “Mas o que você, como in-
divíduo, pode fazer para mudar o seu mundo?”. Acredito
que, usando o método baseado na experiência de vida e na
realidade da pessoa, somos capazes de extrair reflexões e
aprendizados únicos.

92
ARQUITETURA

Usina – Centro de Trabalhos


para o Ambiente Habitado (CTAH)
A Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado
(CTAH) assessora movimentos sociais na luta pela terra
e pela moradia. Na sua atividade, entremeiam-se conceitos
de Paulo Freire: “Buscamos trabalhar a partir de problemas
geradores, de forma a abordar o projeto de arquitetura
com base nas necessidades mais diretas e concretas das
famílias”. Nesta entrevista, conversamos com o arquiteto e
urbanista Flávio Higuchi Hirao.
Ele também falou sobre a Usina em uma edição do
Brechas urbanas, ciclo de debates do Itaú Cultural sobre
a vida nas cidades. Para assistir ao vídeo, acesse: bit.ly/
brechas_construirjuntos.

93
Como é a estrutura e a rotina de trabalho da Usina? Com que
força de trabalho conta e quais públicos impacta?
A Usina é uma entidade sem fins lucrativos cujo objetivo é
prestar assessoria técnica a grupos organizados que lutam
por moradia. Conta com uma estrutura definida em esta-
tuto, com coordenadores eleitos em assembleia (coorde-
nadores geral, financeiro e operacional). No cotidiano, nós
nos organizamos de forma autogestionária, com divisão
por equipes de trabalho e reuniões gerais semanais – oca-
sião em que reunimos todo o coletivo para as principais de-
cisões. O tamanho da equipe tem se alterado ao longo dos
30 anos de existência da Usina; é composta de profissionais,
em sua maioria, da área de arquitetura, mas também da
sociologia, da história, das artes e do cinema, por exemplo.
 
Na atuação da Usina, onde vocês apontam a influência de Paulo
Freire? Na sua origem, na relação com os moradores e os alu-
nos? Há uso e/ou desdobramento do método ou das ideias éti-
cas e pedagógicas do autor?
As concepções de Paulo Freire são importantes em diver-
sos momentos, mas principalmente no próprio canteiro de
obras (na relação com os trabalhadores) e no momento do
projeto participativo. Buscamos trabalhar a partir de pro-
blemas geradores, de forma a abordar o projeto de arqui-
tetura com base nas necessidades mais diretas e concretas
das famílias, e não em formas e representações que são
comuns ao campo disciplinar, mas que pouco contribuem
na participação direta dessas famílias. 

94
O trabalho da Usina se baseia na “capacidade de planejar, pro-
jetar e construir pelos próprios trabalhadores”, diz o descritivo
no site. Como é esse contato com os trabalhadores, que aprendi-
zados vocês tiveram nessa relação?
O trabalho de arquitetura, para nós, se coloca num campo
maior, que é o da construção. Portanto, insere-se numa es-
fera produtiva, na qual os trabalhadores da construção civil
são os principais protagonistas. Assim, há o permanente
desafio de praticar a arquitetura em relação direta com os
saberes dos construtores, entendendo-a desde o momento
da concepção (projeto e planejamento) até a própria produ-
ção. Ao mesmo tempo, nosso lugar como assessoria técnica
se articula com a auto-organização das famílias envolvi-
das, que realizam diretamente a gestão da produção do
espaço. Além disso, como trabalhadores, entendemos não
apenas os próprios operários da construção, mas também
as famílias que lutam por terra e casa. Essas famílias, ao
se organizarem coletivamente, ocupando terras e reivindi-
cando fundos públicos para construção, colocam-se como
agentes ativos, impondo uma atitude de protagonista, de
baixo para cima, e rompendo com os padrões dominantes
na política habitacional estatal, segundo os quais essas pes-
soas são apenas números de déficit habitacional. Ademais,
enfoca-se o valor de uso da casa, em contraposição ao valor
de troca (objetivo principal das casas construídas pelo mer-
cado – ainda que contratadas pelo Estado). Esse destaque
do valor de uso se manifesta no campo produtivo, ao redu-
zir o protagonismo do modo empresarial e a sua respectiva
extração de mais-valia e aumentar a presença das próprias
famílias na gestão direta da produção. 

95
 Em Paulo Freire, lemos como os educandos se empoderam gra-
dativamente, como vão ganhando consciência de suas poten-
 cialidades de fazer o mundo. Isso se assemelha às experiências
que vocês tiveram com a Usina? De que modo?
Sim. A percepção de que as próprias famílias podem deci-
dir como serão suas casas, como será a construção, assim
como a consciência de que a organização e a mobilização
coletivas levam a essa realização, tem grande potencial de
ampliação da luta para outras esferas. 

No site, também é dito que a sua atividade acontece “no con-


texto de luta pelas reformas urbana e agrária”. Paulo Freire já
ressaltou que a educação não se separa da política. Arquitetura
e urbanismo também não?
Não há separação, uma vez que a arquitetura é parte da
produção do mundo. A arquitetura que se diz separada
da política é, na verdade, uma que a dissimula. 

Mario Sergio Cortella comenta que “mutirão” descende de 


 potiron, que em tupi quer dizer “mãos juntas”. E diz: “Paulo
Freire é o grande inspirador desse mutirão. Homens e mulhe-
res que se juntam no dia a dia e na história para construir uma
outra realidade. Para fazer o inédito possível”. Como vocês
veem essas ideias e o papel do mutirão como recurso na cons-
trução popular?
O mutirão é uma prática popular baseada na ajuda mútua,
tão comum nas tradições camponesas, mas que permanece
na autoconstrução das moradias urbanas. Sendo assim, a
ajuda mútua sempre foi uma das formas elementares para
a viabilização das casas nas periferias das grandes cidades

96
brasileiras. O que os movimentos de moradia, em conjunto
com assessorias técnicas como a Usina, realizam é a am-
pliação e a qualificação dessa lógica, reunindo uma maior
quantidade de famílias, aumentando a mobilização e a
organização coletivas e incidindo diretamente na luta por
terra e por recursos públicos. 

97
INCLUSÃO

Lana de Lima Teixeira D’Ávila


Professora da rede municipal de ensino de Fortaleza (CE),
Lana D’Ávila leciona para os alunos do 1º ano. Já atuou
também no Instituto Hélio Góes e na escola da Sociedade
de Assistência aos Cegos (SAC) de Fortaleza, onde aplicou
ideias de Paulo Freire na educação de jovens e adultos
(EJA): “Foi um momento muito importante que me trouxe
mais aprendizado do que ensino”.

98
Primeiramente, queria que você falasse sobre a sua relação
com Paulo Freire. De que forma o trabalho do autor contribui
na sua atuação?
Paulo Freire é o mestre para quem trabalha na alfabetiza-
ção de jovens e adultos. Então, é quase natural o uso de
sua metodologia nessa modalidade, até porque, na minha
formação no 2º grau [equivalente ao atual Ensino Médio],
quando também fazia o curso técnico em pedagogia, boa
parte da orientação para a alfabetização já era alicerçada
nos fundamentos desse autor. Do mesmo modo, a minha
graduação em pedagogia também foi fundamentada e con-
solidada em Paulo Freire. Assim, quando tive oportunidade
de trabalhar com alunos no processo de alfabetização do
Instituto Hélio Góes, o método dele embasou boa parte da
minha prática pedagógica.

Gostaria que comentasse o seu trabalho com a EJA da SAC. Pau-


lo Freire é citado no seu artigo sobre essa experiência. De que
forma as ideias dele fizeram parte desse trabalho? Você utilizou
algo do método de alfabetização do autor?
O contexto foi favorável para que o método de Paulo Freire
fosse aplicado naquela experiência. As turmas eram peque-
nas, tinham entre 6 e 12 alunos, alguns com cegueira total
desde o nascimento, outros acometidos pela perda visual
quando crianças, jovens ou adultos. Todos, porém, tinham
em comum o problema de não terem sido alfabetizados,
por motivos diversos. Desse modo, a partir da visão de
mundo que esses alunos possuíam, usando o seu conhe-
cimento de mundo e os exemplos que tinham e traziam,
iniciei o letramento. Desenvolvi gradualmente o processo

99
de aprendizagem na escrita e na leitura do sistema braile,
tendo como principal recurso os ciclos de conversas, nos
quais discutíamos sobre relacionamento familiar e amoro-
so, sexualidade, dificuldades de orientação e locomoção,
as comédias da vida deles... E isso faz parte da metodologia
de Paulo Freire.

Quais são as dificuldades específicas da alfabetização de cegos


ou de pessoas com deficiência de modo geral? Como Paulo Frei-
re pode ajudar nesse tipo de atividade pedagógica?
A principal dificuldade em trabalhar com alunos com defi-
ciência visual ou qualquer outra está na limitação do conhe-
cimento de mundo letrado, pois, se já existem dificuldades
de aprendizagem com os alunos que não têm deficiências,
essas são bastante ampliadas com crianças, jovens e adul-
tos que nunca tiveram visão ou que a perderam muito cedo.
Isso vai exigir uma maior utilização de recursos de áudio
(usava-se o sistema Dosvox na época) e táteis.

Outra condição particular desses alunos é estarem na EJA, já


fora do ensino regular, e poderem ser muito mais velhos. Quais
são os desafios no ensino de estudantes com esse perfil? Esse foi
mais ou menos o campo em que se desenvolveu o método Paulo
Freire, com adultos.
O que afirmo neste momento tem como principal referência
a minha prática como pedagoga e professora; sendo assim,
o que verdadeiramente penso é que dar aulas na EJA não
é um desafio, mas um privilégio. Isso porque acredito que
um pedagogo que se dispõe a dar aulas na EJA já tem uma
percepção diferenciada do trato com alunos que precisam

100
dessa modalidade de ensino. Mas, para não dizer que tudo
são flores, o que posso afirmar é que o aluno com deficiên-
cia que não aprendeu o sistema braile no momento adequa-
do terá uma dificuldade muito maior. Além de conhecer as
células braile, terá que desenvolver a percepção tátil, o uso
correto da reglete [instrumento para escrever em braile] e
a coordenação para a escrita no papel 40 quilos. O maior
desafio é desenvolver o sentido tátil, pois a leitura tátil é
três vezes mais fatigante que a leitura visual, e é o principal
recurso de que o aluno irá precisar para sua alfabetização, o
que exige maior diversificação de recursos táteis.

Paulo Freire destaca que educador e educando aprendem um


com o outro. No seu artigo, você fala sobre o professor conhe-
cer o aluno, o seu contexto social e as suas necessidades. Como
você vê essa relação de aprendizado mútuo e o que aprendeu no
contato com os alunos cegos?
O trabalho desenvolvido na alfabetização de jovens e
adultos no Instituto Hélio Góes, a bem da verdade, foi um
momento profissional muito importante, porque me trouxe
mais aprendizado do que ensino. Pode parecer clichê, mas
as individualidades desses alunos me fizeram refletir ainda
mais sobre o respeito que devemos ter às diferenças e ao
contexto social de cada um. As dificuldades e as trajetórias
desses alunos me fizeram enxergar aspectos simples da
vida que não aprendemos na universidade.

101
Para além do contado no artigo, que outras experiências da sua
atividade como professora têm um diálogo com Paulo Freire?
Que histórias você poderia contar nesse sentido?
As outras experiências que tive com a EJA foram nas tur-
mas noturnas da rede municipal de Fortaleza, o meu pri-
meiro contato com essa modalidade de ensino, no início
dos anos 2000. Foi uma experiência em outro contexto,
pois essas turmas eram de alunos que trabalhavam na
construção civil, recicladores, mães solteiras, mulheres
que trabalhavam em serviços gerais e com relatos de
violência familiar, desempregados e até jovens usuários
de drogas. São tantas histórias vividas que não há uma
específica, mas o que realmente ficou foi o sentimento de
trabalho realizado, pois, mesmo nas condições em que as
aulas aconteciam, foi possível conduzir uma relação entre
professora e alunos em que mantivemos a amizade e o
respeito ao longo dos anos.

Como você vê a situação atual da alfabetização para pessoas ce-


gas e/ou com deficiências em geral no seu estado? Quais déficits
existem e o que é preciso fazer, tendo em vista alunos, professo-
res, estrutura educacional etc.?
Na alfabetização do sistema braile em si, não houve
mudanças significativas, mas, quanto ao uso de recursos
tecnológicos, houve uma melhoria, pois surgiram plata-
formas e aplicativos que passaram a ajudar os alunos com
deficiência visual. No que se refere ao sistema de ensino
estadual, mesmo com o Centro de Referência em Educação
e Atendimento Especializado do Ceará (Creaece), órgão da
Secretaria de Educação que oferece apoio à educação inclu-

102
siva, os serviços deixam muito a desejar, e até hoje não há
um planejamento adequado para o atendimento de qualida-
de das pessoas com deficiência visual. Os déficits são vários,
e um deles é que não existe o desenvolvimento de profissio-
nais da educação qualificados para atendê-los. O mais agra-
vante é que também não existe uma política ampla e efetiva
para tratar desses déficits, inclusive dos estruturais.

Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus


processos educacionais. Imitando um pouco essa prática,
gostaria que você dissesse quais são as palavras-chave do seu
trabalho. Por exemplo, quais palavras mais fizeram sentido no
ensino de alunos cegos e que significados elas trazem?
Entre tantas palavras que foram trabalhadas e que me vêm
à memória: preconceito, aceitação, discriminação, amor,
mundo para todos, amizade, namoro, família, casa, esco-
la (como segunda casa, lugar onde eles eram acolhidos),
música (gostavam muito de cantar e tocar forró) e cartas
de amor. Essas palavras tinham muito significado, porque
era um momento de trabalhar o emocional, as discussões
trabalhavam os sentimentos vividos ali e auxiliavam no dia
a dia de cada um de nós.

103
“Assim como não acredito numa pe-
dagogia feita para o estudante e mui-
to menos sobre ele, não acredito em
nenhuma transformação revolucio-
nária feita para as massas populares,
mas com elas. O que vale dizer: de
uma ação que parta da compreensão
crítica do seu dia-a-dia, da sua coti-
dianidade [...]”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho


ENCONTRO
COM
CRIANÇAS
E MULHERES
REFUGIADAS
EM BERLIM

Ilse Schimpf-Herken 107


Em 4 de setembro de 2015, quando Angela Merkel, chance-
ler da República Federal da Alemanha, anunciou que abriria
as fronteiras aos refugiados de zonas de guerra como o Afe-
ganistão, o Iraque e a Síria, o país enfrentou um grande de-
safio. Durante meses, membros da Sociedade Paulo Freire1
de Berlim manifestaram-se nas ruas – ao lado de centenas
de milhares de cidadãos comprometidos na Alemanha e em
muitos países da Europa – contra a política desumana de
não dar refúgio a pessoas vítimas de atos de guerra, opres-
são ditatorial e deslocamento em seus países. Na imprensa,
no geral, os refugiados e seus sofrimentos foram tornados
invisíveis, como se não existissem, como se os eventos nos
seus países não fossem a consequência no longo prazo de
uma política colonial europeia e norte-americana, das suas
geopolíticas em torno do petróleo.
Sendo um instituto relativamente pequeno, de início, fi-
zemos a nossa contribuição ativa para uma escola primária
no bairro de Moabit, em Berlim, onde realizamos uma aula
de boas-vindas2 para refugiados com 12 crianças e 1 profes-

1. A Sociedade Paulo Freire de Berlim (pfg-berlin.org/) trabalha em conjunto com


o Instituto Paulo Freire de Berlim (paulofreireberlin.org), dirigido por Ilse.

2. A instauração de aulas de boas-vindas foi a primeira tentativa do Senado de Ber-


lim de escolarização de crianças refugiadas, em pequenos grupos e perto de suas
casas recém-estabelecidas. Infelizmente, a integração das crianças refugiadas à
vida escolar regular ficou no nível do desejo, pois poucas delas foram convidadas a
passar tempo com alunos da mesma idade, e poucas também foram as oportunida-
des de encontros organizadas pela escola. Em vez disso, a autoridade educacional
forneceu material didático intercultural e recursos para o trabalho com os pais. Não
havia conceito para a convivência cotidiana.

108
sor egípcio uma vez por semana. Por um lado, tratava-se de
conhecer e obter prática no multilinguismo do grupo – as
crianças eram vindas de lugares como Afeganistão, Síria,
Iraque, Bósnia, Sérvia e Albânia. Por outro, queríamos dar
a elas uma introdução feliz à escola alemã, por meio de
canto, jogos e teatro, com leituras em voz alta na biblioteca
do distrito e realização de excursões.
Acompanhando o professor, a nossa tarefa era motivar
as crianças a trocar ideias umas com as outras por meio de
conversas sobre a sua vida cotidiana. Fizemos experiências,
percebemos que o canto rítmico, por exemplo, as deliciava,
e, dessa maneira, elas aprendiam facilmente as primeiras
palavras na língua alemã. Jogos em círculos e improvisa-
ções teatrais sobre cenas do dia a dia também eram muito
populares, pois permitiam às crianças mover-se livremen-
te, representar e se expressar. Essas foram maneiras de
superar o esforço das condições extremas vividas pelos
refugiados, que tiveram de atravessar florestas densas na
escuridão total ou que foram expostos por horas à violência
maciça da polícia de fronteira ou dos soldados.
Outro tipo de abordagem foi o trabalho com os pais.
Nisso tivemos boas experiências com reuniões mensais:
as mães mostraram um grande interesse em comer e be-
ber, trocar receitas e, ao mesmo tempo, aprender sobre o
sistema educacional alemão. No entanto, observamos que
apenas algumas delas compareceram às reuniões e não
recebemos respostas claras dos pais sobre os motivos pelos
quais as mães não estavam presentes. As explicações dadas
eram, em geral, “Elas têm consulta médica” ou “Criança
doente em casa”, mas não pudemos confirmá-las durante

109
discussões de avaliação aprofundadas.
Com essa base, uma equipe do instituto desenvolveu a
nossa segunda ideia de projeto: trabalhar exclusivamente
com mulheres refugiadas. Foi um projeto realizado com
mulheres na proximidade de dois lares de refugiados em
Moabit. Eu e uma colega, Pia Langeheine, organizamos
reuniões para explorar o interesse por um possível curso de
alemão e tentamos averiguar a possibilidade de as mulhe-
res frequentarem as aulas regularmente. Descobrimos que
havia muito interesse, especialmente entre as mulheres
jovens. No entanto, grande parte delas estava ocupada com
tarefas domésticas e tinha muitos compromissos com as
autoridades. Tendo isso em vista, desenvolvemos um cur-
rículo flexível, com horários fixos, mas com conteúdos que
deveriam ser determinados pelas próprias mulheres.
Antes de iniciarmos as “lições”, contudo, parecia es-
sencial desenvolver uma relação com essas mulheres por
meio de um processo biográfico, ou seja, encontrá-las em
pequenos grupos num ambiente protegido e acolhedor,
tomando café e comendo bolo, pedindo que falassem sobre
suas vidas. Primeiramente, conversamos com todo o grupo,
para que elas pudessem se conhecer melhor e ganhar con-
fiança umas nas outras; depois, pedimos sempre a uma ou
duas mulheres que relatassem aspectos da vida na família,
na escola e em um contexto social mais amplo. Logo ficou
claro que havia grandes diferenças entre elas. Embora a
maioria das mulheres da Síria e do Iraque tenha frequen-
tado a escola por vários anos, quase todas as mulheres do
Afeganistão não tinham conhecimento de leitura e escrita
e viveram experiências como refugiadas por muitos anos.

110
Elas moravam no Irã com as suas famílias, eram discrimi-
nadas e não podiam frequentar uma escola na sua língua
materna, apenas as escolas do Alcorão, que eram minis-
tradas em árabe e em cujo currículo não havia disciplinas
científicas. Isso limitou de forma significativa sua educa-
ção em geral. Depois da saída dos soviéticos, as mulheres
retornaram ao Afeganistão e foram novamente ameaçadas
pelos talibãs. Assim, na Alemanha, em 2015, elas tentavam
recomeçar suas vidas.
Em nossos grupos, havia também muitas mulheres
palestinas que tinham vivido em campos de refugiados
do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(Acnur), no Iraque e na Síria, e que possuíam uma educa-
ção superior. Entretanto, por causa de um desenraizamen-
to sociocultural, juntavam-se a grupos religiosos que deter-
minavam as suas vidas em grande parte.
Para a nossa equipe, essa grande heterogeneidade nas
experiências de vida das mulheres era um desafio per-
manente. Além disso, elas pareciam estar intimamente
dependentes de seus maridos, ainda que dentro da família
fossem as mais responsáveis pelas questões importantes da
vida cotidiana. Esses aspectos tiveram um impacto em sua
liberdade para participar de nossos cursos e encontros.
Após a transcrição de 32 entrevistas com as biografias
dessas mulheres, iniciamos o curso de alemão com duração
de cerca de seis meses, a fim de dar a elas a oportunidade de
aprender a língua e saber como lidar com a sociedade
alemã. O nosso conhecimento da experiência anterior das
mulheres, da sua fuga pelo Mediterrâneo, ajudou muito.
Ficou óbvio que elas estavam menos preocupadas com

111
grandes problemas do que com as trocas sobre vida fami-
liar, gravidez e problemas de saúde. Assim, desenvolvemos
um vocabulário sobre o corpo feminino, sobre o trabalho
doméstico e sobre a autoimagem da mulher em guerra,
responsável pela família e, sobretudo, pela educação dos
filhos. Aprendemos muito com elas sobre a compreensão
dos papéis na família e também compartilhamos o nosso
conhecimento. Tivemos diálogos muito íntimos, que gera-
ram uma profunda reflexão sobre outras culturas. Foram
encontros que só eram possíveis em um ambiente privado
e em pequenos grupos, um quadro não sustentável para or-
ganizações maiores envolvidas no trabalho com refugiados.
Nós, da equipe do Instituto Paulo Freire, ficamos muito
gratos por esses encontros especiais.
Numa terceira fase do projeto, além dos grupos de diá-
logos, testamos uma nova abordagem, desenvolvida por
Pia Langeheine e pela brasileira Cibele Kojima de Paula,
intitulada “Pedagogia e o espaço”. O objetivo era tornar as
mulheres emocionalmente relacionadas ao seu ambiente
imediato e pensar com elas a importância dos lugares, do-
cumentando-os em mapas. Passeamos com elas por seu
bairro e pedimos que expressassem os seus sentimentos
sobre as lojas, as ruas e as árvores, e que também manifes-
tassem essas observações em imagens, para que fosse cria-
do, nessa etapa, um mapa dos arredores de seus lares de
refugiadas. Numa segunda tarefa, elas deveriam nomear
o seu lugar favorito, levando o grupo até o local para expli-
car o seu significado a todos. Depois, esses espaços foram
novamente desenhados em um mapa: cada mulher podia
descrever, pintar ou tirar fotos do “seu” lugar. Essa realida-

112
de tridimensional a ser integrada à superfície de um mapa
bidimensional foi uma sobrecarga para muitas delas.
Durante a apresentação do projeto, em uma festa com
as famílias, com os celulares nas mãos, as crianças conse-
guiram realizar essas tarefas com muito mais facilidade, o
que resultou em um maravilhoso diálogo entre gerações.
As muitas outras festas – para as quais sempre havia novas
ocasiões – foram fornecendo também uma estrutura fértil
para a expressão das formas culturais e da força de impro-
visação dessas mulheres. Por exemplo, uma mãe de quatro
filhos pequenos que estava constantemente sobrecarrega-
da com todo o trabalho revelou-se uma cantora e tocadora
de tambor muito expressiva; outras mulheres orgulhosa-
mente tocavam as suas danças tradicionais, riam juntas
ou dançavam com suas próprias canções. Eram momentos
de felicidade especialmente apreciados, tendo em vista as
suas experiências terríveis nos percursos de fuga até chega-
rem à Alemanha.
O trabalho de alfabetização freiriana sempre envolve
encontro, abertura, ajustar-se aos outros, e é sempre uma
grande felicidade. Como equipe, preparamos os quartos,
cuidamos da beleza do ambiente com flores, toalhas e ve-
las, mas o que importava era sempre a curiosidade, a ale-
gria de experimentar e aprender em conjunto. As experiên-
cias com as mulheres refugiadas fazem parte das nossas
muitas vivências em projetos interculturais em Berlim.

Ilse Schimpf-Herken é fundadora e diretora do Instituto Paulo Freire


em Berlim, na Alemanha.

113
O “ANDARILHO
DA UTOPIA”
EM SUAS
ANDANÇAS
PELO MUNDO
“Cultura é o tambor que soa pela noite adentro.
Cultura é o ritmo do tambor. Cultura é o gingar
dos corpos do Povo ao ritmo dos tambores.”
A importância do ato de ler: em três artigos que se completam

André Bernardo 115


No centenário de Paulo Freire, especialistas de diferentes
países falam da importância do educador brasileiro para
a educação mundial

Se um dia o gênio da lâmpada aparecesse e perguntasse a


Paulo Freire quais eram seus três desejos, o educador per-
nambucano não teria dúvidas em responder: ganhar uma
bola, andar de bicicleta e dirigir um carro. Bem, o primeiro
deles, sua viúva, Ana Maria Araújo Freire, a Nita, tratou de
realizar no Natal de 1995. “Paulo havia recebido 36 douto-
rados honoris causa, mas nunca na vida alguém o havia pre-
senteado com uma bola de futebol”, afirmou o jornalista e
escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015). Quanto
aos outros dois, torná-los realidade, admite Nita, seria um
pouco mais complicado. “Paulo tinha uma grande dificul-
dade de equilibrar-se sobre as duas rodas e de nortear-se
nas cidades. Dizia: ‘Nasci sem bússola’”, explica a doutora
em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP) na biografia Paulo Freire – uma história de
vida (2017). 
Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) não precisou
de carro ou de bicicleta para desbravar o planeta. Em sua
“andarilhagem pelo mundo”, como ele gostava de dizer,
conheceu, sozinho ou acompanhado da mulher, 56 países:
de Botsuana ao Japão, do Haiti à Alemanha, das ilhas Fiji
ao Canadá. Não por acaso, ganhou, entre outros, o apelido
de “o andarilho da utopia”. “Nessa peregrinação andarilha,
por mais de meio século, semeou a esperança e a utopia”,
orgulha-se Nita. Incansável, Paulo “andarilhava” muito
e descansava pouco, quatro ou cinco horas por noite. “A

116
partir do exílio, Paulo não vive para viajar, mas viaja para
viver: não busca viagens na vida, mas encontra vida nas
viagens”, afirma Walter Kohan, professor de filosofia da
educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) e autor de Paulo Freire mais do que nunca: uma biogra-
fia filosófica (2019).
Em Pedagogia da solidariedade (2009), Nita relata que,
certa vez, alguém perguntou a Paulo: “O que podemos fazer
para seguir suas ideias?”. Surpreso, o educador teria respon-
dido: “Se me seguir, você me destrói. O melhor caminho
para você me seguir é me reinventar”. “Paulo Freire não
queria adeptos ou seguidores. Queria reinventores”, expli-
ca o educador alemão Heinz-Peter Gerhardt, doutor em
educação pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e
professor da Universidade de São José, em Macau, na Chi-
na. “Queria que os educadores adaptassem sua pedagogia à
realidade de cada país. Na Alemanha, por exemplo, há ini-
ciativas voltadas para a alfabetização de refugiados.”
Um dos 56 países visitados pelo andarilho da utopia foi
Guiné-Bissau. O país africano inspirou, inclusive, um de
seus primeiros livros: Cartas à Guiné-Bissau – registros de
uma experiência em processo (1977). Nele, Paulo descreve
seu primeiro ano de trabalho na construção de um modelo
de alfabetização de adultos naquele país, que teve sua in-
dependência de Portugal declarada em 1973 e reconhecida
um ano depois. “Paulo não se limitou a reconstruir o siste-
ma educacional de países como a Guiné-Bissau. Desenvol-
veu campanhas de alfabetização, aconselhou movimentos
sindicais, inspirou comunidades católicas... Se eu tivesse
que enumerar todas as suas realizações, precisaria escre-

117
ver um livro...”, brinca o acadêmico estadunidense Peter
McLaren, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
E completa: “Não seria exagero afirmar que Paulo foi um
homem de grande coragem que nos ensinou a transpor
obstáculos intransponíveis. Qualquer outro, em seu lugar,
teria desistido”. 

Uma estrela de brilho duradouro


Foi inspirada na pedagogia de Paulo Freire que, em 2018,
a professora Ramatulai Djalo retirou nove crianças que
tinham aulas na rua e as levou para a varanda de uma casa.
Um ano depois, quando o número de alunos começou a
aumentar, ela se viu obrigada a sair à procura de uma casa
maior. Com pouco dinheiro, o jeito foi reformar uma casa
de quatro quartos e transformá-la em jardim de infância.
Na hora de dar um nome à escola, não pensou duas vezes:
Jardim Infantil Paulo Freire. “Ele não é apenas o patrono
da educação brasileira. É o patrono da educação mundial”,
derrete-se a professora, por WhatsApp, de Bissau, a capital
da Guiné-Bissau. 
Encontrar uma casa para alugar foi apenas uma das di-
ficuldades enfrentadas pela educadora de 40 anos. Outros
desafios foram conseguir mesas, carteiras, quadro-negro e
até giz para dar início às aulas e convencer os pais a deixar
seus filhos frequentarem a escola. Hoje, o Jardim Infantil
Paulo Freire conta com três professoras e atende 63 crian-
ças, de 3 a 6 anos. “Infelizmente, não sobra dinheiro para
comprar a merenda dos alunos. O pouco que consigo com
dois amigos paga o salário das professoras e o aluguel da
casa”, explica a docente. 

118
O título de patrono da educação brasileira, concedido
pela então presidente Dilma Rousseff em 2012, é apenas
um dos muitos de Paulo Freire. O maior educador brasi-
leiro é também o que detém o maior número de títulos de
doutor honoris causa outorgados por instituições no Brasil e
no exterior. São, ao todo, 41 títulos de doutor honoris causa
e mais 5 honoríficos, à frente de Dom Hélder Câmara (32),
Fernando Henrique Cardoso (29) e Luiz Inácio Lula da
Silva (28). “Paulo Freire não buscava reconhecimento. Pelo
contrário. Ele se incomodava com olhares de adoração.
Mesmo assim, muitos desejaram sua coragem, enquanto
outros tantos foram inspirados por suas ideias”, afirma
Ronald David Glass, professor de filosofia da educação da
Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, nos Estados
Unidos. “Paulo é como uma estrela no céu. Embora já te-
nha se apagado há muitos anos, continua a iluminar nossa
vida. Seu brilho é duradouro, tanto quanto a luz do Sol, que
nasce toda manhã.” 

Protagonistas do próprio aprendizado


O jardim de infância fundado por Ramatulai Djalo no bair-
ro de Antula, na capital da Guiné-Bissau, não é o único a ter
sido batizado com o nome de Paulo Freire. Há, espalhada
pelo mundo, uma quantidade incalculável de escolas, bi-
bliotecas e centros de pesquisa com seu nome em países
como Peru, México, Argentina, Espanha e Cabo Verde.
Lourenço Garcia nasceu em Cabo Verde, mas, desde 2010,
dirige a Revere High School, nos arredores de Boston, em
Massachusetts, nos Estados Unidos. Em 2014, a instituição
foi eleita, pelo National Center for Urban School Transfor-

119
mation (Centro Nacional pela Transformação do Ensino
Urbano, em tradução livre), entidade ligada à Universidade
de San Diego, no Texas, a melhor escola de Ensino Mé-
dio da rede pública dos Estados Unidos. Em 2016, outra
premiação: a medalha de ouro na categoria Schools of
Opportunity (Escolas de Oportunidade), concedida pelo
National Education Policy Center (Centro Nacional de
Educação Política), que tem sede na Universidade do Co-
lorado em Boulder, também estadunidense. Entre os seus
2 mil alunos, 34% vêm de famílias de baixa renda e 12% são
imigrantes que têm pouca ou nenhuma familiaridade com
a língua inglesa. 
Mas o que Paulo tem a ver com isso? Tudo. Garcia é um
autêntico freiriano. Muito do que deu certo na Revere, ad-
mite o gestor cabo-verdiano, foi inspirado em sua pedago-
gia de ensino. “No formato tradicional, o protagonista é o
professor. Não à toa, todas as mesas e carteiras estão volta-
das em sua direção”, explica Garcia, de Boston, por Zoom.
“Na concepção freiriana, o aluno deixou de ser mero espec-
tador ou coadjuvante para assumir o protagonismo de seu
aprendizado. Hoje, as salas são formadas por grupos de
estudos, em que uns aprendem com os outros.” 
Na Universidade de Massachusetts, onde concluiu seu
doutorado, Garcia leu muitos livros de Paulo Freire. Seu
favorito é Pedagogia do oprimido. Escrito durante o exílio
no Chile, foi publicado nos Estados Unidos em 1970 e no
Brasil em 1974. Estima-se que já tenha sido traduzido para
mais de 30 idiomas e vendido algo em torno de 1 milhão de
exemplares. No livro, Paulo critica o que chama de “educa-
ção bancária”. Ou seja, o educador é sempre o que educa e

120
o educando sempre aquele que é educado. E propõe uma
educação mais humanista, revolucionária e libertadora.
Uma educação na qual o educador ensina e aprende, e o
educando se educa ensinando. “O aluno não é uma conta
bancária na qual o educando deposita conhecimento du-
rante as aulas e, posteriormente, saca por meio de provas
e exames. O aluno detém seu próprio conhecimento”, ex-
plica o historiador Erick Morris, doutorando em pós-colo-
nialismo e cidadania global pela Universidade de Coimbra,
em Portugal. “O que Paulo Freire faz – desde a experiência
em Angicos, no Rio Grande do Norte, quando, em 1963, al-
fabetizou uma turma de pedreiros – é partir do contexto em
que o aluno vive. Assim, ele criou uma metodologia muito
mais consistente e duradoura.”

Conjugando o verbo “esperançar”


Pedagogia do oprimido é considerado, por muitos teóricos
da educação, a obra-prima de Paulo Freire. E não é por
acaso. Segundo levantamento do Syllabus Explorer, que
monitora os livros mais solicitados por professores de qua-
tro países de língua inglesa – Estados Unidos, Inglaterra,
Austrália e Nova Zelândia –, sua versão em inglês é o 99º li-
vro mais citado em trabalhos acadêmicos. Se levarmos em
consideração apenas os livros sobre educação, Pedagogy of
the oppressed salta para o segundo lugar, atrás somente de
Teaching for quality learning in university: what the student
does (1992), do psicólogo australiano John Biggs. 
Segundo a mesma pesquisa, o livro registrou 1.021 ci-
tações. “Não é pouca coisa”, ressalta Nita. “Ficou à frente
de clássicos como Rei Lear, de William Shakespeare, Moby

121
Dick, de Herman Melville, e O banquete, de Platão.” Uma
curiosidade: dos cem autores mais solicitados para leitura
em universidades de língua inglesa, Freire é o único brasi-
leiro. O Syllabus Explorer é um projeto da Fundação Sloan,
organização sem fins lucrativos que reúne pesquisadores de
universidades dos Estados Unidos, como Harvard e Colum-
bia. “São muitas as contribuições dadas por Paulo Freire
para a educação. A principal delas é a que estabelece uma
estreita relação entre educação e liberdade. A educação só
faz sentido se for libertadora”, salienta o educador colom-
biano Ramon Moncada. “Outra lição: ‘O mundo não é. Está
sendo’. Por isso é tão importante aprender a lê-lo. A leitura
do mundo, dizia Paulo, precede a leitura da palavra. Ler o
mundo significa compreendê-lo, interpretá-lo e, sobretudo,
transformá-lo.” 
Do outro lado do Atlântico, o professor Elliott Green, da
London School of Economics, analisou as obras mais cita-
das em trabalhos de língua inglesa no Google Scholar, ferra-
menta de pesquisa dedicada à literatura acadêmica criada
em 2004. A pesquisa revelou que Pedagogia do oprimido é
o terceiro livro mais citado na área de ciências sociais. Se-
gundo o autor do estudo, Pedagogy of the oppressed é mencio-
nado 72,3 mil vezes, atrás apenas do filósofo Thomas Kuhn
(1922-1996) e do sociólogo Everett Rogers (1931-2004), am-
bos estadunidenses. Kuhn foi mencionado 81,3 mil vezes e
Rogers 72,7 mil. Mais uma vez, Paulo Freire ficou à frente de
pesos-pesados da literatura universal, como o francês Mi-
chel Foucault (1926-1984) e o alemão Karl Marx (1818-1883).
“Seu maior legado foi ter nos ensinado a conjugar o verbo
‘esperançar’. Em vez de esperar passiva e resignadamente

122
que as coisas mudem, temos que agir de forma ativa
para que a mudança desejada se torne realidade. O futuro
não se constrói sozinho. Somos nós que o construímos”,
filosofa o educador e sociólogo peruano Oscar Jara Holliday,
presidente do Conselho de Educação Popular da América
Latina e do Caribe (Ceaal). “Paulo Freire não morreu. Ele
vive no coração e na mente de educadores e educadoras
que buscam alcançar suas utopias no seu cotidiano.” 
Na Europa, a obra de Paulo Freire é tão respeitada
quanto na África ou nas Américas. Prova disso é a Escola
da Ponte, criada em 1976 pelo educador português José
Pacheco, na cidade do Porto, em Portugal. Diferentemente
das demais instituições, a Escola da Ponte não tem turmas,
disciplinas, salas ou provas. Lá, alunos de diferentes idades
se reúnem a partir de interesses comuns, como línguas,
artes ou ciências, para desenvolver projetos de pesquisa
individuais ou em grupos. Cada estudante escolhe para si
um tutor, que pode ser qualquer indivíduo da comunidade
escolar: pais, funcionários ou professores. Juntos, aluno
e tutor vão avaliar como foi o processo de aprendizagem,
se as dúvidas foram esclarecidas e os conteúdos assimila-
dos. “Paulo Freire ensinou que escolas são pessoas, e não
edifícios. Mais do que nunca, precisamos humanizar a
educação”, afirma José Pacheco por Zoom. “Não podemos
continuar a dar aulas do século XIX com professores do
século XX para alunos do século XXI.” 

O poder por meio da educação


Além de títulos de doutor honoris causa, Paulo Freire co-
lecionou convites para lecionar em universidades como

123
Harvard, nos Estados Unidos, Hamburgo, na Alemanha, e
British Columbia, no Canadá. O curioso é que Paulo até
que lia bem em inglês, mas falava e entendia pouco. Por
insistência de Elza Maia Costa de Oliveira (1916-1986), sua
primeira mulher, procurou aprender o idioma. “[Paulo]
costumava brincar que era um inglês tão nordestino que
até Elza, que não dominava o idioma, conseguia entender”,
explica Sérgio Haddad, doutor em história e filosofia da
educação pela Universidade de São Paulo (USP), em
O educador: um perfil de Paulo Freire (2019). 
Um dos muitos convites para lecionar no exterior partiu
de Martin Carnoy, professor de educação e economia da
Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Até hoje, o
economista não se esquece do dia em que assistiu a uma de
suas famosas aulas de alfabetização de adultos na Nicará-
gua, em 1983. Um velho camponês, descreve Carnoy, esta-
va de pé, diante do quadro-negro, escrevendo uma palavra
com um pedaço de giz. Ao mesmo tempo que rabiscava as
letras, tentava, com enorme dificuldade, soletrá-las. Ao fim
de alguns minutos, que mais pareceram horas, conseguiu
realizar sua façanha. “Para nós, o que aquele homem fez
era algo simples, corriqueiro. Mas, para ele, aprender a
ler e a escrever mudou sua vida”, explica um dos organi-
zadores do livro Reinventando Freire (2018). “É por essas e
outras que as ideias de Paulo são vistas, por alguns, como
uma ameaça. Nos Estados Unidos, é um intelectual. Mas,
no Brasil, é um revolucionário que quer empoderar os mais
pobres por meio da educação.” 
Quem também teve a oportunidade de conhecer Pau-
lo Freire foi o sociólogo argentino Carlos Alberto Torres.

124
Professor da Faculdade de Educação da Universidade da
Califórnia, em Los Angeles, ele é, nas palavras do próprio
Freire, “a pessoa que mais o entrevistou na vida”. Foram
tantas vezes que nem Torres se lembra mais quantas. De
uma, porém, ele não se esquece. Ela se passou no dia em
que seu pai morreu, em 1984. Na época, Torres morava
no México e, por coincidência, Paulo estava lá a trabalho.
Quando soube da morte do pai do amigo, o educador pediu
para visitá-lo. Torres hesitou. Diante da insistência, convi-
dou-o para jantar. Quando abriu a porta, Paulo o abraçou
e disse: “Se você precisa de um pai, pode contar comigo!”.
“Mais do que um simples pedagogo, Paulo Freire foi um
grande filósofo. Mais do que alfabetizar estudantes, ele
queria formar cidadãos.” 

125
“Não é possível, porém, conciliar a
substantividade democrática com as
atitudes e as práticas elitistamente au-
toritárias de quem, julgando-se dono
da verdade revolucionária, trans-
forma as classes populares em mera
incidência de suas palavras de ordem.
A substantividade democrática, pelo
contrário, exige de nós a comunhão
com as massas populares, com quem
aprendemos e a quem ensinamos na
prática comum de libertação.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho


FICHA
TÉCNICA,
LEGENDAS
E
SERVIÇO

128
128
ITAÚ CULTURAL
Presidente Alfredo Setubal
Diretor Eduardo Saron

OCUPAÇÃO PAULO FREIRE

Pesquisa, concepção, curadoria e realização


Itaú Cultural
Projeto expográfico Thereza Faria
Pesquisa audiovisual Ilka Hempfing (terceirizada)
Projeto de acessibilidade Itaú Cultural

NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA


Gerência Claudiney Ferreira
Coordenação Kety Fernandes Nassar
Produção audiovisual Amanda Lopes, Camila Fink
e Letícia Santos
Edição Karina Fogaça

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO


Gerência Valéria Toloi
Coordenação de atendimento ao público
e projetos especiais Tayná Menezes
Equipe de atendimento Amanda Freitas, Caroline Faro,
Matheus Paz, Natasha Bernardo Marcondes,
Victor Soriano e Vinícius Magnun
Equipe de projetos especiais Thays Heleno
Coordenação de formação Samara Ferreira
Equipe Alessandra Silva Constantini (estagiária), Edinho
dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá, Joelson Oliveira,

129
Lucas Batista, Mayra Reis Rocha, Mônica Abreu Silva,
Silas Barbosa (estagiário), Tonne de Andrade, Victória de
Oliveira, Vítor Luz e Vitor Narumi

NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO
E RELACIONAMENTO
Gerência Ana de Fátima Sousa
Coordenação Carlos Costa
Edição e produção de conteúdo Duanne Ribeiro,
Fernanda Castello Branco e Milena Buarque
Supervisão de revisão Polyana Lima
Revisão de texto Karina Hambra
e Rachel Reis (terceirizadas)
Projeto gráfico Guilherme Ferreira
Comunicação visual Girafa Não Fala (terceirizada),
Guilherme Ferreira e Liane Tiemi (terceirizada)
Produção editorial Victória Pimentel
Produção gráfica Lilia Góes (terceirizada)
Edição de fotografia André Seiti
e Matheus Castro (estagiário)
Redes sociais Helen Souza Couto (estagiária),
Jullyanna Salles e Renato Corch

NÚCLEO DE INFRAESTRUTURA E PRODUÇÃO


Gerência Gilberto Labor
Coordenação de exposições Vinícius Ramos
Produção Carmen Fajardo, Erica Pedrosa, Fabio Marotta,
Priscila Tavares e Wanderley Bispo
Coordenação de eventos Januário Santis
Produção Eduardo Maffeis, Isadora Disero,

130
Marcelo Rocha, Rafael Desimone e Wanderley Bispo
Coordenação de infraestrutura Roseane Arbex Castro
Produção Agenor Silva Neto, Cintia Surianie, Fernanda Jesus,
Matheus Feitosa (menor aprendiz) e Wellington Rodrigues

CONSULTORIA JURÍDICA
Gerência Anna Paula Montini
Coordenação Daniel Lourenço
Equipe Rafael Del Piero Fernandes

AGRADECIMENTOS
Adriana Palú, Ana Mae Barbosa, Ana Maria Araújo Freire,
Angela Antunes, Beá Meira, Célia Gambini, Cristina
Freire, Escola Municipal de Saúde de São Paulo, Fátima
Freire, Frei Betto, Gleyce Kelly Heitor, Helena Leal David,
Instituto Francisco Brennand, Joaquim Freire, Lícia Morais,
Lilian Contreiras, Lutgardes Freire, Madalena Freire,
Marcos Guerra, Mario Sergio Cortella, Moacir Gadotti,
Museu da Pessoa, Paulo Santiago de Augustinis, Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo, Sérgio Haddad, Sônia
Madi, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
Universidade Presbiteriana Mackenzie e Walter Kohan

O Itaú Cultural (IC) realizou todos os esforços para


encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes
sobre as imagens/obras aqui expostas e publicadas, além
das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou
identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o
contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.

131
O Itaú Cultural, em 2019, passou a integrar a Fundação Itaú
para Educação e Cultura, com o objetivo de garantir ainda
mais perenidade às suas ações e o seu legado no mundo
da cultura, ampliando e fortalecendo o seu propósito de
inspirar o poder criativo para a transformação das pessoas.

LEGENDAS E CRÉDITOS
As imagens da publicação que você tem em mãos são de auto-
ria da ilustradora Catarina Bessell. As colagens foram feitas a
partir de fotografias de Paulo Freire e de seus familiares.

Capa
Imagem 1: Homem usando chapéu | autor desconhecido
Imagem 2: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi

Página 6
Imagem 3: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi

Página 10
Imagem 4: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi

Página 15
Imagem 5: Paulo Freire | Serviço Social da Indústria de Per-
nambuco (Sesi/PE)

Página 16
Imagem 6: Casa onde nasceu Paulo Freire, em 19 de setembro
de 1921. Estrada do Encanamento, 724, Casa Amarela, Recife
(PE) | autor desconhecido Imagem 7: Criança em bicicleta.

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Imagem do “livro do bebê” escrito pela mãe de Paulo Freire
para o filho em sua infância | acervo Ana Maria Araújo Freire

Página 30
Imagem 8: Reunião de coordenação, Angicos (RN) | Secretaria
de Educação e Cultura RN/Secern/acervo Marcos Guerra e
Moema Barreto Imagem 9: Paulo Freire | Serviço Social da
Indústria de Pernambuco (Sesi/PE)

Página 104
Imagem 10: Elza Freire e Paulo Freire | autor desconhecido
Imagem 11: Paulo Freire acompanhado de um cachorro | autor
desconhecido

Página 106
Imagem 12: Paulo Freire sentado em poltrona, com o queixo
apoiado em uma das mãos | foto: Amancio Chiodi

Página 114
Imagem 13: Paulo Freire e o filho Lutgardes Freire | autor desco-
nhecido Imagem 14: Paulo Freire em 1947 | autor desconhecido

Página 127
Imagem 15: Edeltrudes Neves Freire, mãe do educador |
acervo Lutgardes Freire

Página 136
Imagem 16: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi

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OCUPAÇÃO PAULO FREIRE
Abertura
sábado 18 de setembro de 2021
às 11h

Visitação
até domingo 5 de dezembro de 2021
terça a domingo 11h às 19h
piso Multiúso

Entrada gratuita

Itaú Cultural
Avenida Paulista, 149, São Paulo, SP
[próximo à estação Brigadeiro do metrô]
Memória e Pesquisa | Itaú Cultural

Ocupação Paulo Freire / organização Itaú Cultural. - São


Paulo : Itaú Cultural, 2021.
8,5 Mb ; PDF

Exposição realizada de 18 de setembro a 5 de dezembro de


2021, no Itaú Cultural.
ISBN 978-65-88878-21-7
DOI: https://doi.org/10.53343/9786588878217

1. FREIRE, Paulo, 1921-1997. 2. Educação. 3. Pedagogia. 4.


Alfabetização. 5. Filosofia. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título.

CDD 370.1

Bibliotecário Jonathan de Brito Faria - CRB-8/8697

Famílias tipográficas Giorgio Sans e Lyon Text


Publicação digital em formato PDF
São Paulo, em setembro de 2021
“[...] para mim, é impossível existir
sem sonho. A questão que se coloca é,
em primeiro lugar, saber se o sonho é
historicamente viável. Segundo, se a
viabilidade do sonho demanda um pe-
daço de tempo e de espaço a caminhar.
Terceiro, se demanda um espaço ain-
da longo para caminhar e viabilizar, é
o caso de se aprender como caminhar
e, em caminhando, reaprender in-
clusive a realizar o sonho, quer dizer,
buscar os caminhos do sonho.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho

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