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educador-nas-escolas-publicas-brasileiras
Homenagem
No próximo 19 de setembro, Paulo Freire completaria 100 anos. O educador faleceu em São
Paulo no dia 02 de maio de 1997. Crédito: Divulgação/Acervo pessoal Nita Freire
Às 9 horas da manhã do dia 19 de setembro de 1921, no Recife (PE), Joaquim Themístocles Freire e
Edeltrudes Neves Freire recebiam seu filho Paulo Reglus Neves Freire, que entraria para a história da
Educação como Paulo Freire. Cem anos depois, celebramos seu legado.
Paulo Freire ficou conhecido pelos seus estudos em prol da construção de uma Educação que fosse
conscientizadora e libertadora, pautada nos sonhos, na esperança e na amorosidade. Em mais de 15
livros publicados escreveu sobre política, prática pedagógica, alfabetização, Educação Popular e tantos
outros temas que permeiam seu pensamento. Reconhecido internacionalmente, foi nomeado patrono
da Educação Brasileira em 2012. “Paulo tinha uma capacidade de pensar o ser humano. Hoje ele é um
dos homens mais lidos [no mundo]”, afirma Ana Maria Araújo Freire, conhecida como Nita Freire,
educadora e viúva do educador.
É provável que você já tenha visto, estudado ou trabalhado em uma escola que carrega o nome do
educador. Seja no nome da escola, na prática pedagógica ou na concepção de Educação, o legado de
Paulo Freire segue vivo no cotidiano de professores e gestores escolares.
Na entrada da cidade de Angicos, vê-se uma foto de quando Paulo Freire retornou à cidade
em 1993 e disse: “Em nenhum lugar do mundo onde estive, fiquei mais tocado do que aqui e
agora”, quando foi homenageado na Escola Estadual José Rufino, onde aconteceu a jornada
das 40 horas. Crédito: Reprodução/Prefeitura Municipal de Angicos
“As pessoas lembram de forma saudosista, mas as 40 horas precisam ser vivenciadas todos os dias”,
afirma Ana Íris, professora de Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede pública de Angicos. Ao se
mudar para a cidade, a docente sentiu a necessidade de conhecer mais Paulo Freire. “Eu precisava
entender quem era a pessoa que está na entrada da cidade e qual sua importância. Depois me senti
inspirada e me apaixonei”, conta.
“Apesar da nossa cidade ser mundialmente conhecida, muitas pessoas daqui desconhecem [o
educador]”, afirma Simária Cruz, diretora da Escola Municipal Espedito Alves. Por isso, no ano do
centenário do educador, todo o município se mobilizou para relembrar a história da cidade e
homenageá-lo. “É como se ele vivesse pela sua filosofia de ensino que continua atual", diz a gestora.
Para Ana, conhecer a obra de Freire marcou sua trajetória como professora e se manifesta desde a
maneira de enxergar o estudante até a forma de acolhê-lo. “Eu trabalho na perspectiva [de Freire]. Meu
aluno tem voz e é ouvido. Penso em uma Educação para que se sintam pertencentes e acolhidos. Fazer
com que os sujeitos se sintam capazes de transformar [suas realidades]. Essa é a boniteza da Educação
de Paulo Freire”, aponta a educadora. Hoje, além de dar aula na Escola Municipal Espedito Alves, ela
também tem uma turma na Escola Estadual José Rufino — inclusive, ela dá aula na mesma sala onde
aconteceram as 40 horas.
Na sua prática pedagógica, Ana destaca um projeto com literatura de cordel que desenvolve com suas
turmas de 5º ano. "Uso a linguagem poética para que eles se expressem e se sintam valorizados". Este
ano, dentro do projeto da rede municipal, a professora está utilizando o cordel para apresentar aos
estudantes quem foi Paulo Freire e mostrar sua importância. Mas ela ressalta que isso é algo que
realizava antes — até como forma de explicar quem é o autor da frase que está na placa de entrada da
cidade. “Faço sempre esse trabalho, os alunos ficam encantados”.
A gestora Simária relaciona a experiência das 40 horas a um momento de inovação na Educação, como
o que vivemos hoje devido à pandemia. "A primeira vez que as pessoas do município viram um
retroprojetor foi em 1963. Era o que tinha de mais moderno na época", explica. "Foi um cuidado com a
metodologia de ensino e de inovar mesmo que com humildade. O mesmo aconteceu agora, durante a
pandemia, em que os professores se reinventaram. Tivemos que ter amorosidade e cuidado com o
outro. Tudo isso é Paulo Freire", afirma.
Apesar de ser muito conhecido pela experiência de Angicos — até hoje muitos professores usam
palavras do vocabulário e cotidiano dos alunos para a alfabetização—, Paulo Freire não buscava
criar uma estratégia para ser replicada em todas as realidades de forma mecânica. Ele propõe uma
Educação que vá na contramão da lógica da Educação Bancária (a transmissão de conhecimentos
sem levar em consideração os saberes dos estudantes), que seja significativa, libertária e
conscientizadora. Ele coloca a prática pedagógica centrada no estudante e na sua realidade, e
baseada no diálogo e na troca entre educando e educador, como ele explica no livro Pedagogia do
Oprimido (Editora Paz&Terra).
Na biografia do autor, escrita por Nita Freire, ela explica que o educador não pretendia criar um
passo a passo. “Devo dizer que o ‘Método de Alfabetização Paulo Freire’ foi entendido não como
passos a seguir, diretrizes a persistir, caminhos rígidos a trilhar. Ao contrário, a natureza mesma do
‘Método’ é em si uma compreensão de como ensinar-aprender” (Paulo Freire: uma história de vida,
página 282).
Em seguida, ela complementa: “O que Paulo propõe com o seu ‘Método de Alfabetização’ é, pois,
muito mais do que fazem os métodos tradicionais de alfabetização [...] o sonho de Paulo foi,
indubitavelmente, o de que todos os seres humanos, independentemente de cor, religião, raça,
etnia ou gênero, pudessem ser gente. [...] Gente que possa sonhar os seus sonhos e trazer consigo
os de sua família e sociedade para transformá-la. Gente que possa entender que ‘mudar é difícil
mas é possível’”. (pág. 284).
Seja método, teoria ou uma ação cultural, como ele mesmo chegou a nomear em algumas
ocasiões e no seu livro Ação cultural: Para a liberdade e outros escritos (Editora Paz&Terra), sua
experiência e estudos ainda inspiram muitos educadores.
Nas aulas para o Ensino Médio, ela conta que sempre busca incentivar a leitura e a escrita
considerando a realidade dos alunos. “Ser um leitor de si e do mundo. Criar esse olhar crítico e
sonhador para o mundo desde criança. A literatura pode ser esse instrumento para gerar reflexão”.
Ela explora as diferentes linguagens e gêneros literários enquanto faz também um trabalho de ampliar
o repertório cultural das turmas com referências da arte, da música, do teatro e do cinema. “Desde
que comecei, sempre quis minha aula mais dinâmica, prazerosa, que fosse um diálogo. Paulo Freire
traz muito isso do aluno não ser passivo”, salienta.
Márcia pensa em atividades que vão desde o estudo da estrutura de texto, passando pela vida e obra
dos autores até chegar na discussão sobre os trechos preferidos ou que os estudantes mais se
identificam. “Depois pergunto o que eles gostariam de dizer. Todo mundo tem um sentimento e uma
ideia, então [quero saber] quais são as deles", conta a educadora. Na etapa seguinte, os alunos fazem
uma produção textual. “Eles falam de suas realidades, suas histórias de vida, vão se descobrindo
[enquanto sujeitos]”, afirma a professora.
Já Alessandra Rodrigues, professora de 5º ano na Escola Estadual Cacilda Becker, em São Paulo (SP),
conheceu a obra de Paulo Freire quando trabalhava com a formação de professores para a Educação
de Jovens e Adultos (EJA). “Fui estudando cada vez mais. Depois trabalhei no Instituto Paulo Freire de
2007 a 2016 [onde chegou a coordenar a área de EJA]. Desde 2016, estou na escola pública. Meu
grande desafio hoje é levar a concepção do educador para a minha prática. É um dos meus princípios
que vai me guiando", relata.
Ela explica que costuma fazer um trabalho de aproximação com a turma. “Meu ponto de partida é
olhar para o aluno”. Por isso, no início e durante o ano letivo, ela propõe uma dinâmica que chama de
leitura de mundo. Nesse momento, ela verifica não só o domínio da Língua Portuguesa como também
procura entender se as crianças têm irmãos ou animais de estimação, o que gostam de fazer, o que
assistem, se gostam de jogos, se leem e com quem moram, entre outros aspectos. Com esses dados,
ela pensa nas atividades que irá propor e até em um projeto que atenda as demandas.
Esse trabalho não se perdeu durante a pandemia e, para a educadora, essa proximidade será
fundamental para superar os impactos deixados por esse período. “Das 31 crianças que atendo, eu
consigo nomear cada uma delas, dizer a situação e contexto em que vivem. É uma relação de parceria
muito grande, um diálogo constante com as famílias”, conta.
Segundo Márcia, os aprendizados de Freire se dão no cotidiano da sala de aula. “Temos que trabalhar
sem nunca deixar de acreditar na Educação para gerar mudanças. O futuro está nesses estudantes.
Paulo Freire está no dia a dia sempre que trazemos o aluno como sujeito, como agente participativo”,
explica.
“O olhar para o sujeito, o diálogo com os conhecimentos do aluno e ele estar no centro [do processo de
ensino e aprendizagem] são grandes legados do educador”, completa Alessandra. “Para ele, nenhum
estudante era visto como uma vítima, mas como uma potencialidade. As pessoas precisam conhecer
mais a sua obra”.
O gestor vê os ensinamentos de Paulo Freire na transformação que a escola vivenciou nos últimos
anos. O diretor conta que a instituição era considerada a pior da região. "Era descredibilizada, era um
castigo estudar aqui”, lembra. No entanto, um projeto de leitura e escrita aproximou os alunos e as
famílias da escola. "Entendemos que a leitura seria a maneira de gerar mudança", conta. O sucesso foi
tanto que o projeto foi expandido para atender toda a escola e deu origem a um festival que acontece
anualmente, há 20 anos, o Poemar. “Eles trazem textos sobre a vida deles, as dificuldades sociais, o
amor [e outros assuntos pessoais]”, relata Wilson. “Isso deu uma identidade para a escola e a
transformou em uma referência no bairro”.
Ele reconhece que nessa transformação está o legado de Paulo Freire. “Trabalhamos com a
humanização do processo de aprendizagem. Nos aproximamos da família para conhecer sua realidade
e levamos isso para a sala de aula”, afirma. Esse compromisso está formalizado no projeto político-
pedagógico (PPP) da escola. “Incentivamos muito o protagonismo dos alunos, fazendo com que eles se
percebam importantes”, diz o diretor.
Com a retomada gradual das aulas presenciais, Wilson avalia que esse trabalho será responsável por
atrair os jovens para o ambiente escolar, pois eles veem a importância da escola e se sentem
valorizados para continuar estudando. “Paulo Freire fala de partir da nossa realidade para conseguir
produzir uma Educação libertadora. Eu vivencio muito isso no dia a dia”, resume o educador.
Integrante da equipe gestora da Escola Estadual Capitão Horácio Antônio do Nascimento, em Tabapuã
(SP), Aureli Sartori busca trabalhar dentro da perspectiva da gestão democrática. “Eu trago muito a
questão de desenvolver a autonomia e ter a escuta e a participação de toda a comunidade escolar”,
explica Aureli. “As tomadas de decisão acontecem pelo diálogo. Se eu fizesse esse trabalho sozinha,
sem ouvir a comunidade, seria muito mais difícil”.
Essa postura de uma gestão mais horizontal também foi importante para ela se consolidar no cargo,
que ocupa há quatro meses. Apesar de ser recente sua chegada, a relação com a escola é muito
anterior. Ela foi aluna da instituição e também foi lá onde deu sua primeira aula. “Em vez de chegar
colocando regras ou impondo coisas com base no que eu sabia da escola, eu preferi ouvir os
problemas e pensar em soluções em conjunto. Ser a gestora que está ali para fazer junto”, aponta.
Crédito: Reprodução/Acervo pessoal Nita Freire
1. Pedagogia do Oprimido: "É a mais importante para os aspectos políticos do seu pensamento".
2. Pedagogia da Autonomia: "Fala com os professores, explica seu pensamento partindo dos
temas que ele desenvolveu. Está tudo lá".
Apesar de ser muito conhecido pela sua experiência em Angicos com a alfabetização de adultos, para
Sérgio, o legado de Freire vai muito além. "Foi uma pessoa contrária à ideia da transmissão de
conhecimento sem reconhecer os saberes do outro. Alguém que pensou o ensino-aprendizado de
forma horizontal, como um processo mais democrático", afirma.
Ele explica que Freire entendia a Educação como algo que está na vida das pessoas e não apenas na
escola. Por isso, para mudar um desses âmbitos, o outro também precisa de transformação. "Ele era
uma pessoa muito movida pela esperança e [acreditava] nos sonhos como parte da natureza humana.
Ele coloca muito a distinção entre esperança como substantivo e “esperançar” como um desejo ativo,
eu sonho e vou atrás. Construir a autonomia dos estudantes para que eles construam sua própria
história", explica.
Nesse processo, Sérgio reforça que Freire destaca a importância do diálogo no processo de ensino e
aprendizagem. “Se um professor sai da sala aula do mesmo jeito, perdeu uma oportunidade de
aprender com os seus alunos. O educador aprende com o educando, e o educando com o educador”.
Para falar sobre o legado de Paulo Freire, Nita resume: “Quem é adepto do amor, de uma vida mais
unida e inteira, que tem a utopia de um mundo melhor está ao lado dele. É um pensamento que ainda
vai perdurar por muitos anos”.