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JORNAL BIMEStrAL
3.a SÉRIE • 1€
N.0 38• NOV-dez 2022
responsabilidade social
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TL nov-dez 2022 3
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ÍNDICE
Entrevista: Manuel Lemos Viajando com livros Memórias de Júlio Isidro Viagem: Fallas de Valência Outros Mundos Ver | Ler Passatempos
6 9 12 16 20 22
Reportagem: Utopias A Casa na árvore Entrevista: Rui Nabeiro Notícias | Coluna do Teatro da Trindade Contos do Zambujal
comunitárias Provedor
capa Editorial
FRANCISCO MADELINO
Presidente da fundação inatel
Responsabilidade Social:
uma dimensão humana
O
ser humano foi-se desenvolvendo partindo das suas origens
N
naturais, entre as leis da sobrevivência, e nelas o papel crucial
asceu em Abrantes, em 1996. O
do egoísmo. À medida que o seu cérebro se foi formando e tor-
percurso artístico de Gabriela Pedro
nando mais complexo, com a Humanidade foi nascendo a cul-
começa com a sua mudança para a
tura e as regras morais, ou seja, as convenções e as normas que
capital, dezassete anos depois, na
regem os contratos sociais entre os homens, e a empatia, isto
procura de uma educação superior.
Encontra-a na Faculdade é, a capacidade de se pôr no papel do outro. O próprio pai do
de Belas-Artes, onde conclui a liberalismo económico, Adam Smith, na sua Teoria dos Sentimentos Morais,
Licenciatura em Desenho. através da qual complementava a sua obra-mãe A Riqueza das Nações do fu-
Não se sentindo pronta para abandonar o turo utilitarismo economicista, este assente no egoísmo e na maximização
ilustração do lucro. Estas duas obras partiam desta dupla dimensão, paradoxal, das
caminho da aprendizagem, decide explorar
Gabriela Pedro pulsões humanas fundamentais: o egoísmo e a simpatia ou a compaixão.
novos campos através de um Curso em
Ilustração Infantil, pela Nextart, e outro em O ser humano é um ser social. Vive e precisa de viver em grupo. Para que
Design Gráfico, pela ETIC. se consiga viver em sociedade, precisamos assim de entender e perceber
É durante este período que vai o outro e de ter convenções e princípios morais que regulem as relações
compreendendo, lentamente, o que a atrai entre os indivíduos, um contrato social alicerçado em princípios morais
verdadeiramente à área criativa – poder e culturais, que seja aceite e fomente as relações entre o grupo. Mesmo
contar histórias. que hajam pulsões individualistas e egoístas narcísicas, comportamentos
De momento encontra-se a trabalhar inerentes aos free riders, estes que só pensam em instrumentalizar o grupo
no jornal Público, onde continua a sua em seu benefício, sem nada em troca, as convenções e as regras sociais têm
aprendizagem. precisamente a função ou do excluir ou de punir pelo seu comportamento
egoísta.
As nossas sociedades ocidentais, liberais, herdadas das Revoluções Fran-
cesa e Americana, assentes nos seus princípios Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, resultam precisamente desses equilíbrios entre a dimensão
humana e inviolável (a Liberdade), a ideia de que todos os homens obe-
decem às mesmas leis e regras (a Igualdade perante a Lei) e a regra de que
essas convenções devem respeitar e ajudar os outros concidadãos, aqueles
que por vicissitudes das leis da Natureza e do infortúnio da incerteza da
vida têm de ter garantidos os dois princípios anteriores (ser Solidários e
Fraternos na garantia da dignidade humana e oportunidades de todos).
Este Tempo Livre dedica-se precisamente a dar exemplos e a refletir sobre
a dimensão da Responsabilidade Social, seja nas organizações, seja da vida
cívica. Não é por acaso que a Economia é uma Ciência Social. Partindo da
gestão de recursos escassos, as atividades económicas produzem riqueza,
distribuem rendimentos entre quem agiu na sua produção e emprega pes-
soas. Todas estas dimensões são sociais, desde a distribuição do rendimen-
to até às tarefas, o tempo e ao modo como é feita a produção. Por este TL
passam vários testemunhos dessa dimensão de Responsabilidade Social.
Esperamos assim que este número e tema vos possa agradar.
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omecemos pela etimologia As nossas instituições constituíram-se exige… Precisávamos, também, de mais
de ‘misericórdia’, palavra na comunidade para ajudar os outros enfermeiros…
de origem latina. Misere (ter – nos estatutos originais da Santa Casa Quando vemos um vídeo com uma
compaixão) e cordis (coração). da Misericórdia de Lisboa, a primeira idosa coberta de formigas a morrer aos
É preciso ir às origens para fundada em Portugal, diz-se que por 100 cuidados da misericórdia de Boliqueime,
se compreender o presente e homens bons, que não tinham precisão. que sinal de alerta é este para o
avançar para o futuro. Pensar Isto é, não precisavam eles – poderiam presidente da UMP e para a sociedade
e atuar, cuidar e amar, infinitos os verbos ajudar os outros. portuguesa?
que interpelam e levam à realização, Temos um país em mudança muito Eu tinha conhecido a provedora de
de forma consistente, de obras que acelerada. Vi a geração dos lavradores Boliqueime 15 dias antes. Ela falou-me, na
enriquecem as comunidades. É numa muito velhinhos nas misericórdias altura, que a mãe da Lídia Jorge morreu
sala de reuniões, na sede da UMP, que e hoje vejo o país dos telemóveis; os na misericórdia de Boliqueime, e achou as
Manuel Lemos nos recebe e diz, de idosos aderiram aos telemóveis. O que práticas tão bem feitas que publicou um
forma perentória, não existir em Portugal quero dizer com isto? É um Portugal livro que se chama Misericórdia.
sentido comunitário como noutros países. ainda pobre. As pessoas que estão nas [Quando soube da idosa que morreu,
Não é novidade mas “a perceção disso misericórdias, de uma maneira geral, têm cujo vídeo circulou na internet], fiquei em
é absolutamente fundamental”, para se reformas muito, muito baixas. Como têm estado de choque e, imediatamente, liguei
experimentarem outros caminhos. Chama reformas muito baixas não tiveram grande à provedora, que estava destroçada. O
a atenção para o valor que cada pessoa qualidade de vida. Muitas vezes, estarem que aconteceu? Ela recebeu uma pessoa
pode levar para os diferentes ambientes nas misericórdias foi o melhor que lhes transferida da Segurança Social (a SS
em que se move, “para que se faça aconteceu na vida. tem direito a umas vagas nos lares) que
qualquer coisa”, sobretudo pelos idosos. À Mesmo com todas as dificuldades das vinha diretamente do hospital; tinham- Há um padrão que é o cuidar dos pobres,
nossa frente está um quadro com árvores misericórdias. -lhe cortado um pé, era diabética, vinha cuidar dos que precisam. Quer as obras
antigas e frondosas e palavras que dão Sim, mas as misericórdias protegem com uma ferida aberta, estava cheia de corporais quer as obras espirituais têm a
o mote à conversa que se segue: “Tem muito a dignidade da pessoa, a qualidade escaras. Esta senhora nunca devia ter ido ver com a preocupação acerca dos mais
de haver mais coração, mais amor para de vida. [Os idosos] têm quem cuide para um lar. O grande erro da provedora frágeis. Os mais frágeis são naturalmente
aqueles que precisam de nós.” deles, quem lhes cozinhe, quem os limpe, foi ter aceitado que a SS pusesse lá aquela os mais pobres e os mais pobres são
Conhece há muitos anos, de forma quem os lave… Muitas vezes, das casas senhora. Ou ficava mais tempo no hospital naturalmente os mais frágeis – embora
empírica, o interior das instituições que onde vêm não têm isso ou têm uma ou ia para uma unidade de convalescença já não seja rigorosamente assim. A
acolhem idosos no nosso país, as práticas situação difícil. O país continua a ser de cuidados continuados… Aquilo está solidão bate à porta de toda a gente,
do apoio domiciliário, a educação das pobre. Por isso temos muitas dificuldades na Procuradoria-Geral da República para independentemente do dinheiro. Cuidar
crianças em creches e jardins de infância. com os idosos. Pagamos mal aos nossos se fazer uma investigação… A sociedade de um enfermo bate em toda a gente,
Há 387 misericórdias, com mais de 45 trabalhadores e temos essa consciência. portuguesa ficou legitimamente revoltada. independentemente do seu rendimento,
mil colaboradores diretos, que apoiam Pagamos mal porque não temos mais É verdade que houve um descuido… Mas da sua cor… É óbvio que os mais pobres,
cerca de 165 mil pessoas. O trabalho dinheiro para lhes pagar. Acresce a essa não houve ninguém daquela comunidade os mais frágeis precisam mais.
realizado pelas misericórdias em todo o situação que, nos últimos 10 anos, houve que retirasse dali o seu idoso. Cinco séculos depois o cuidado existe
país ajudam-no a pintar um quadro com uma mudança brutal do perfil do idoso Em 1498, a rainha D. Leonor fundou a porque as necessidades continuam…
pinceladas nítidas sobre a realidade. Que nos lares. primeira misericórdia em Portugal, a de O ideal expresso nas obras de
Portugal é o nosso visto pelos olhos da Qual é o perfil atual? Lisboa, para ajudar os mais pobres… misericórdia permanece vivo. Temos
União das Misericórdias Portuguesas São pessoas cada vez mais idosas, mais Já havia misericórdias em Itália. Temos carros, transportes, tecnologias, mas a
(UMP)? frágeis, com muitas doenças crónicas e um a ideia de que as misericórdias são uma necessidade está lá.
É um Portugal muito diverso para número crescente de demências – pouco construção portuguesa – não são. A Segundo os dados da Pordata, 18% da
a dimensão do nosso território. Há ou muito declaradas, mas elas estão lá. primeira misericórdia aparece em 1244, população está abaixo do limiar da
países que são muito maiores e mais Quando foi feita a legislação sobre lares em Florença. Expandiram-se muito pobreza (2020). Um em seis está em risco
homogéneos. Nós temos uma grande não se exigia médico – parte do princípio rapidamente em Itália – têm ainda hoje de pobreza. Todos os dias vos procuram,
diversidade. Talvez por sermos fruto de de que o Serviço Nacional de Saúde não uma natureza muito diferente da nossa. todos os dias batem à vossa porta…
diferentes civilizações, culturas, raças, para à porta do lar, que o SNS entra por ali Há cerca de 700 misericórdias em Itália, Eu diria a todas as horas…
povos – tudo isso nos transformou adentro e que os médicos e os enfermeiros funcionando um pouco como a nossa Quais são os problemas que antecipa que
ao longo dos séculos, e hoje somos o vão lá – mentira, não vão. E por isso todas Proteção Civil – só atuam em calamidade. se possam agravar nas instituições no
resultado dessa transformação. Portugal as misericórdias se viram obrigadas a Volvidos quase 525 anos após D. Leonor próximo ano?
é um país complexo; às vezes, difícil de contratar médicos com aumento de custos. fundar a primeira misericórdia no nosso É a sustentabilidade financeira
compreender e imprevisível. Isso está E com custos que não entram no cálculo país, que necessidades subsistem para lá das instituições, por um lado, e a
muito presente nas nossas instituições. da comparticipação, porque a lei não dos séculos no nosso país? sustentabilidade cultural, por outro. Temos
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Mário Abreu
tudo faz parte do mesmo processo de respetiva resposta solidária”, há que ter
envelhecimento. Não podemos dizer: esperança. Por exemplo, o Estado, neste
“Agora temos não sei quantos lugares”, momento, paga 26 ou 27% do custo de um
como se fossem estanques. Há uma centro de dia e 33 % do custo de um lar. Se
permanente dança de cadeiras nestes o Estado diz: “Nós vamos pagar os 50%”, é
sítios. Por exemplo, tem o avô em casa, até bom para ter esperança, não é? Queremos
quando consegue mantê-lo por lá? Vamos ter evidências disso. Como é que se faz a
fazer o possível para o manter mais tempo evidência? Transferindo o dinheiro. Não
em casa. Se conseguíssemos que ele ficasse há outra forma.
até ao fim, ótimo… Se vem trabalhar e “Todos somos responsáveis de tudo
o avô fica em casa deveria ter um chip perante todos”, é uma frase interpeladora
para a avisar dalguma queda ou dalgum de Fiódor Dostoiévski. Sendo presidente
sinal de demência. Temos de olhar para o da Confederação Portuguesa da
apoio domiciliário de outra maneira. Dei Economia Social (CPES ) tem um papel
exemplos tecnológicos – mas não é só isso. preponderante ligado à economia social.
Há o outro lado, o carinho, a ternura, o O que todos temos de fazer para cultivar
apoio. Qual seria o nosso objetivo? Manter um sentido social, com o objetivo de
o idoso em casa até onde for possível. solucionar, cada um com os seus dons, os
Que responsabilidade temos, cada um desafios que vão surgindo em cada época?
de nós, na promoção de um efetivo A capacidade do ser humano é
envelhecimento ativo, o nosso e o de inesgotável. Talvez o que precisemos todos
quem nos rodeia? é de sermos capazes de gastar, no mínimo,
Isso obriga a outra coisa que os portugueses cinco minutos por dia a refletir sobre
têm dificuldade: trabalharem uns com os essa matéria e como podemos ajudar. Se
outros. Os recursos são parcos, mas muitas formos capazes, durante uma semana, de
vezes comportamo-nos como um país rico. pensar cinco minutos por dia, na segunda
Eu faço e a autarquia ao lado tenta fazer semana já queremos fazer qualquer coisa.
a mesma coisa, com as mesmas pessoas, Pensar como agir na minha comunidade
quando podíamos fazer outras diferentes. é muito importante, e depois precisamos
Eu faço e a IPSS faz a mesma coisa, às vezes muito das instituições porque elas
procurando as mesmas pessoas. Somos enquadram.
muito individualistas e precisávamos de Há uns anos havia aí nos hospitais a
trabalhar mais em rede. Falamos tanto nas Liga dos Amigos dos Hospitais, que foram
redes sociais. Precisávamos de olhar para muito importantes. Quando se formaram
as redes como coisas positivas para nos nas misericórdias foram sempre motivo
alimentarmos de confiança, de esperança, de desestabilização. Às tantas, a liga
para darmos sugestões aos outros e começa a intervir na gestão e a constituir-
não estarmos à procura do lado menos -se como uma força alternativa… Eu
bom que tem cada um. As instituições estudei muito o voluntariado nos outros
também sofrem disso e por causa disso. países. Os anglo-saxónicos levam o idoso
As pessoas não ficam todas boas quando a passear, levam-no ao médico, e não vão
vão para provedoras ou para uma mesa para dentro do lar – apanham-no à porta.
administrativa, continuam com os seus Já o disse aos poderes públicos. Temos
estados de alma – e eu também. uma excelente lei do voluntariado, que
Quem o inspira no caminho para ser depois não valorizamos. Vi, no pátio de
socialmente responsável? uma universidade em Inglaterra, umas
Os valores que os meus pais me carrinhas com velhotes. [Os estudantes
ensinaram, os valores que eu cultivei universitários] levavam os idosos a uns
com os meus amigos, com os professores pubs – não os deixavam tomar bebidas
na escola, com pessoas de referência: o alcoólicas, serviam-lhes outras coisas – e a
papa Francisco é uma pessoa inspiradora, família ou os amigos de sempre [que não
o papa Bento XVI era também à sua estavam institucionalizados] sentavam-se
maneira, João Paulo II era completamente ali a conversar com eles. Os estudantes
inspirador e não é por acaso que é São eram os motoristas e, ao fim de algumas
João Paulo II. Há muita gente boa na horas, recolhiam-nos e ajudavam-nos a
“Temos de respeitar
uma identidade própria e a salvaguarda sociedade portuguesa e no mundo entrar em casa. As notas dos estudantes
dessa natureza tem de ser preservada. inteiro. Aqui há tempos, vi no infantário eram somadas às horas de voluntariado.
a nossa identidade
Não basta fazer – é necessário fazer bem. da Santa Casa da Misericórdia de Macau O voluntariado era valorizado.
É necessário cuidar das pessoas nos lares uma coisa escrita em chinês e, ao lado, Nós não temos sentido comunitário?
e a nossa natureza,
de outra maneira, já falei dos médicos, dos estava em português: “Quem entra por Não temos – e a perceção disso é
enfermeiros… toda a parte, por toda a parte aprende.” É absolutamente fundamental. Quando
e é aí que vamos
Os funcionários serem mais bem pagos… completamente inspirador e dá-nos uma estava na misericórdia de Lisboa com
Isso pressupõe pessoas mais bem tranquilidade fantástica. Maria José Nogueira Pinto, pedimos
buscar as forças
qualificadas e mais bem pagas. Precisamos Temos razões para ter esperança? ao professor Roque Ferreira que nos
de mais dinheiro. Não há outra forma Temos de respeitar a nossa identidade e a fizesse um estudo de como era o apoio
para ter
de fazer isso. Fazer uma cama para o nossa natureza, e é aí que vamos buscar as domiciliário por esse mundo para
idoso, falar com ele, segurar na mão – forças para ter esperança. As misericórdias percebermos o que podíamos importar. Fui
esperança”
é preciso formação. Fala-se muito de têm de ver o copo meio cheio. Se a Londres e a pequenas cidades ali à volta
cuidados paliativos e nós aqui falamos olharmos para o copo meio vazio, agimos com Roque Ferreira e entrevistámos muita
em necessidades paliativas. O cuidado mal, à bruta, descoordenadamente. gente. Uma das coisas interessantes que
é técnico, a necessidade é uma coisa Agimos de uma maneira que não é a que vimos é que todos os sistemas de apoio
“Somos muito
diferente – é carinho, ternura. Como disse mais convém ao espírito da misericórdia. domiciliário estavam muito apoiados no
uma vez alguém: “É tudo o que falta fazer Temos de ter esperança, ser resilientes, voluntariado. Isto é, tinham uma grande
individualistas
quando não há mais nada a fazer” para ser assertivos, saber planear. Às vezes, área de profissionalismo. Às sete da
a pessoa partir em paz ou quando está vejo alguns senhores provedores que manhã, [os profissionais] entravam na casa
e precisávamos
muito fraquinha e vem aquela empregada querem agarrar o mundo da comunidade dos idosos para tratar da higiene, pô-
que lhe faz um carinho – é necessária deles – não é possível. Nós não somos o -los de pé, mediam-lhes a tensão arterial,
de trabalhar
formação. Estado, nós cooperamos com o Estado. verificavam se havia alguma mudança
Que soluções seriam necessárias para O Estado tem duas posições, ou coopera de comportamento e registavam todos
mais em rede”
avançar com respostas adequadas e connosco ou não coopera. Quando o esses indicadores. À tarde entravam os
eficazes? Estado não paga a comparticipação justa, voluntários, que os levavam a passear, às
Temos de fazer um repensamento global pode dizer o que quiser, mas não está compras… Voluntariado suportado em
acerca do envelhecimento. Não há a a cooperar. O Estado está a derrapar algumas parcerias com as municipalidades,
resposta, há respostas. As respostas na cooperação. Mas quando o Estado que ajudavam a pagar os transportes, etc.
sucedem-se: o centro de dia, o lar, a assina connosco um Pacto de Cooperação A capacidade de o indivíduo perder umas
unidade de cuidados continuados, o para a Solidariedade Social e diz: “Nós horas por semana com os outros é muito
centro de noite, o apoio domiciliário, assumimos, no mínimo, 50% do custo da importante. Sílvia Júlio
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reportagem
Utopias “É
redutora a dicotomia pú- e na criação da ESDIME”. E acrescenta,
blico e privado, tem a ver já lançando o olhar para a atualidade:
com as lutas do século XX, “Desta diversidade de grupos e coletivos
com as oposições do sécu- ligados ao ambiente, a questões sociais e
lo XX, que reduzem tudo a culturais, podemos observar também uma
Comunitárias:
estas duas componentes: certa continuidade, talvez não do ponto
o Estado ou o mercado, de vista das referências, mas do ponto de
o público ou o privado, o socialismo ou o vista da criatividade.”
comunismo, e esquecendo que há um mo-
delo que é histórico, que sempre existiu, e Dos Grupos Comunitários
regresso
que persistiu, que é o da comunidade. E à Pluriversidade Comunitária
que pode haver um modelo de sociedade A ideia de Pluriversidade é associada
e de gestão comunitário, que nem é públi- de imediato como um contraponto à de
co nem privado”, diz-nos Rogério Roque Universidade, e sendo Roque Amaro um
Amaro, 70 anos, economista, académico, académico, é inevitável a ligação deste
professor e investigador, desde sempre conceito e desta prática com uma crítica à
ao futuro
ligado aos processos de desenvolvimento Academia: “A Pluriversidade Comunitária
comunitário, o grande impulsionador da surge de reflexões que alguns de nós na
Pluriversidade Comunitária. faculdade fazíamos das limitações com
Está dado o mote para, principalmen- que a Universidade produzia o seu pró-
te partindo da ideia da Pluriversidade prio conhecimento. É um trabalho muito
Comunitária, olharmos alguns projetos uniformizador, muito disciplinar, muito
e práticas que de alguma maneira são vi- setorial. De notar que nos anos 80 houve
sionários de uma forma mais participada uma certa abertura à interdisciplinarida-
de viver e pensar a cidade. Pesquisa acom- de mas depois deu-se um fechamento,
Da Pluriversidade Comunitária às hortas panhada pela conversa com o economista principalmente nos sistemas de avaliação
comunitárias, à coabitação, aos bairros saudáveis, Roque Amaro, já que ele nos pode ajudar
a perceber também as ligações destes no-
e incentivos, privilegiando as questões
mais formais. E então algumas pessoas,
há uma Lisboa que amanhece e acorda para a vos movimentos comunitários ao proces- nas quais me incluo, descontentes como
utopia so histórico do desenvolvimento comuni-
tário. Começado principalmente em abril
este tipo de Universidades que se foram
criando, foram tendo a sensação de uma
de 1974, que abrange a animação sociocul- certa inutilidade, por exemplo um artigo
tural, o desenvolvimento local e regional, publicado numa revista académica que
a criação das associações de desenvolvi- pode não ter influência nenhuma, é mais
mento local, a Animar e a Manifesta, num valorizado do que um trabalho feito numa
espaço de atuação que, ao longo do tem- comunidade com pessoas, e que influen-
po, se tem cruzado naturalmente com o cia diretamente a vida das mesmas.”
espaço de intervenção da Fundação Inatel. O ponto de partida da Pluriversidade
Roque Amaro começa por dizer que em Comunitária não é apenas o do desencanto
relação a esse trajeto da dinamização so- com a forma das Universidades tratarem a
ciocultural até ao desenvolvimento local, produção do conhecimento. Ela é uma uto-
“há alguns protagonistas que são os mes- pia que nasce também de um fascínio, de
mos, como por exemplo, Alberto Melo, um encanto, pelo conhecimento que iam
muito ligado à Educação de Adultos e que encontrando nos grupos comunitários.
esteve na origem da IN LOCO, ou de Ca- “Nós, entretanto, também estamos liga-
milo Mortágua, que está nos processos de dos a grupos comunitários, estamos com
animação comunitária e até revolucioná- as pessoas, aprendemos com elas, em co-
ria, lembro-me da Torrebela, e que depois mum, e percebemos que há ali um con-
vai ter um papel muito ativo no desenvol- junto de conhecimentos que têm de ser
vimento local no Alentejo, em Messejana valorizados.” – Diz Roque Amaro e acres-
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com Roque Amaro a arrancar uma folha em 2019 que tem como objetivo a conceção
do caderno para nela o vereador António e construção de eco-bairros em meio urba-
Abreu assinar uma declaração de com- no, criando um novo padrão de sustenta-
promisso em relação à construção da es- bilidade, habitabilidade e acessibilidade.
cola. E refere outro também em Marvila, Ou a Aldrava, coletivo que surge no fi-
onde o grupo comunitário, na presença nal de 2020, através de um grupo de ami-
de Fernando Medina, conseguiu levar a gos, de diferentes proveniências, idades e
que fosse travado um projeto imobiliário interesses, do setor social, da investigação,
que para além de não ter um parque para da cultura. Preocupados com a situação
as crianças brincar, tapava a vista do Tejo. da habitação na cidade de Lisboa uniram-
O mesmo aconteceu no Bairro do Padre -se para pensarem formas de enfrentar a
Cruz onde um outro projeto imobiliário precariedade habitacional e também de
ameaçava a zona das hortas humanas. O realizarem a vontade de habitar em cole-
grupo organizou uma camioneta para ir à tivo sem ficarem à mercê da especulação
Assembleia Municipal e, diz Roque Ama- do mercado imobiliário e começaram, de
ro, “as hortas ainda hoje estão lá”. uma forma horizontal, colaborativa e con-
Neste momento estão a organizar o sensual, a trabalhar no projeto.
2.º Encontro de Grupos Comunitários. É E embora tenham percebido que a le-
um processo demorado, primeiro organi- gislação sobre o direito de superfície e o
zam-se por zonas, talvez lá para janeiro, direito de uso, em propriedade coletiva,
diz-nos ele. A dinâmica dos grupos não já permite um projeto como aqueles que
se esgota nas reuniões, que são mensais, vêm construindo, falta uma componente
com dias certos, a maioria ao fim da tarde. muito importante, para a qual não encon-
Há várias atividades, algumas festivas. A tram ainda vontade política, que é a legis-
filosofia é a mesma da pluriversidade, ou lação sobre as parcerias público-coopera-
não fosse a esta prática que ela foi beber tivas bem como a existência daquilo a que
inspiração: um trabalho agregador, contra chamam uma Banca Ética.
a setorialidade, horizontal, participativo. As maiores dificuldades são por isso
o diálogo com as instituições, nomea-
Novas formas de governar: damente as Câmaras. Dizem-nos que
valorizar a comunidade quando se lhes dirigem para propor uma
Este maior peso da comunidade nas de- parceria público-cooperativa encontram
cisões pode surgir em contramão com os silêncio, pouca clareza e até insuficiente
interesses oficiais. Por exemplo em 2019 identificação dos espaços devolutos. O fi-
um movimento de cidadãos opôs-se ao nanciamento é outro problema grave com
Rogério Roque Amaro projeto municipal para a requalificação do que se deparam já que como são uma coo-
Martim Moniz e conseguiu pará-lo. Mas perativa de habitação onde a propriedade
centa – “E é assim que surge essa plata- outras vezes é o próprio governo da cida- não é privada mas coletiva (o modelo de
forma de conhecimento, plural, diverso, a “É redutora a de que o começa a promover. É o caso dos cohousing) têm dificuldade em encontrar
um banco privado que avance para a con-
dicotomia público
pluriversidade, um conhecimento expres- GABIPs, estrutura de iniciativa municipal,
so de forma horizontal, não vertical, não de gestão e coordenação local, para de- cessão de um empréstimo. Uma possível
e privado, e
hierarquizada. É um espaço de construção senvolver processos de cogovernação em solução, sugerem, seria as autarquias pro-
coletiva.” bairros e zonas de intervenção prioritária porem-se como fiadoras junto da banca,
esquecendo que há
Funcionam em assembleia, onde todas de Lisboa. É o abc da intervenção comu- ou a criação de uma Banca Ética que possa
as pessoas estão de forma igual, onde to- nitária, uma forma de promover a coesão financiar este tipo de projetos. Dizem “é
dos podem falar. Não há um diretor, nem
um presidente da assembleia. No funcio- um modelo que é territorial, a implicação da comunidade na
resolução dos seus próprios problemas. Só
preciso discutir novamente e seriamente
o financiamento público para este tipo de
namento da Pluriversidade, explica Roque
Amaro, “há um comité, com 22 pessoas, 11 histórico, que é o da que desta feita ainda é uma comunidade
institucionalizada, o modelo do GABIP
projetos”. Outro grande problema, que
dificulta a logística do trabalho, é a ine-
homens e 11 mulheres, com um grupo a
que chamamos os sistematizadores e outro, comunidade” define que estes podem estabelecer par-
cerias, para além dos vários serviços mu-
xistência de uma rede forte de economia
social que pudesse apoiar o projeto no
a que chamamos, os indutores, mas mesmo nicipais, com entidades do setor público e campo da assessoria técnica, jurídica ou
isso é uma classificação para fora, para o ex- privado, mas só se elas estiverem formal- contabilística.
terior, porque internamente há fluidez, es-
sas funções não são restritivas. Sobre o fun-
“A Aldrava surge mente constituídas.
Nesta realidade em movimento, há um
Há também possibilidades que se abrem.
A existência de outros coletivos com pro-
cionamento, de salientar que neste espaço
não haverá aulas, professores ou alunos. A
no final de 2020 dado novo. O programa Bairros Saudá-
veis, criado pelo Governo em 2020, que
jetos de habitação colaborativa. Criaram a
Rede Co-habitar que integra várias coope-
nossa ação centra-se em tertúlias e sessões
de conhecimentos partilhados, onde todas
através de um apoia projetos apresentados por parcerias
locais, formadas por associações, coleti-
rativas de habitação similares nas áreas de
Lisboa e Mafra, e com as quais esperam ter
e todos somos participantes aprendentes,
refletindo, aprendendo e construindo o co-
grupo de amigos, vidades, organizações não governamen-
tais, inclui também a possibilidade de
força para uma maior pressão política.
nhecimento em conjunto”. Preocupados apoio a grupos informais ou voluntários Uma espécie de parceria pública-comum
com a situação
A ideia da Pluriversidade Comunitária individuais. É nesse contexto que surgiu A ideia desta dificuldade de enquadra-
nasce na primeira assembleia dos grupos o projeto Urbe Hortis, no território do mento das parcerias público-comunidade,
da habitação na
comunitários da área metropolitana de Parque das Nações. Promovido pela Re- leva-nos a regressar à conversa com Roque
Lisboa em 2019. Roque Amaro que conhe- -food 4Good, teve como parceiros várias Amado, que nos explicou que, dada a ne-
cidade de Lisboa
ce todos eles, diz-nos que na sua génese entidades, como o Secretariado Diocesano cessidade dos grupos comunitários terem o
estes grupos têm promotores diferentes. de Lisboa, a Rede L&M – Grupo Comu- seu espaço, a antiga vereadora Paula Mar-
Os primeiros foram iniciativa da Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa, mas de- uniram-se para nitário dos Bairros da Quinta das Laran-
jeiras e do Casal dos Machados e escolas
ques propôs a atribuição de um espaço ân-
cora a cada grupo, um espaço que continua
pois também a Fundação Aga Khan Por-
tugal, a Gebalis, e outras vezes iniciativas pensarem formas da zona, e quer promover a requalificação
de espaços urbanos subaproveitados ou
a ser da Câmara já que o grupo é informal.
O espaço é gerido pelo grupo comunitário,
mais particulares como o da Fonsecas e
Calçada, que resulta da proposta de umas de enfrentar a abandonados, através de práticas agríco-
las e jardinagem orientadas sobre princí-
que não paga renda, água e luz.
“Portanto nasceu aqui uma espécie de
religiosas que trabalhavam no bairro, ou o
de Campo de Ourique, criado a partir de precariedade pios ecológicos. parceria público-comum. Não é público-
-privada, é público-comum. E isso é muito
uma comissão de moradores com pessoas
que tinham estado ligadas ao desenvolvi-
habitacional Procura de novas soluções
interessante porque é a aplicação da lei
dos baldios aos grupos comunitários e
mento local. Ainda segundo Roque Ama-
ro, mesmo quando são as instituições que
e também de para a coabitação: a Aldrava
O problema da habitação, tentando que as
que é a criação de uma figura jurídica fu-
tura que é a da parceria público-comum.
começam, depois a comunidade torna-se
protagonista, tendo alguns dos grupos es-
realizarem a respostas se enquadrem nas questões mais
atuais do ambiente, e também na procura
E pode ser uma excelente parceria com o
público para os problemas do século XXI.
tado ligados a conquistas importantes.
Ele lembra por exemplo uma reunião do
vontade de habitar de condições não especulativas, tem levado
ao aparecimento de vários coletivos inspira-
De certa forma os grupos comunitários
são uma espécie de regresso ao futuro.
grupo comunitário da Horta Nova onde
a comunidade reivindicou uma escola em
em coletivo” dos em experiências internacionais em vá-
rios países europeus. É o caso por exemplo
Precisamos de recuperar esse terceiro ele-
mento que foi muito esquecido.” Joaquim
condições e que acabou à uma da manhã da Associação Eco-bairros de Futuro, criada Paulo Nogueira
8 TL NOV-DEZ 2022
Os três Natais
de Fernando Pessoa
Cada poema de Fernando Pessoa constitui uma viagem entre os símbolos e os mitos,
perante as vidas das suas vidas e das nossas vidas e as vidas dos outros, para interrogar
o movimento dos astros, o desafio das estrelas e o pequeno grande mundo das tradições
ancestrais Por António Valdemar
A
noitece mais cedo. Já começa- Também Alberto Caeiro, no
ram as manhãs, as tardes e as VIII poema d’O Guardador de
noites com a chuva, o vento, Rebanhos – e do qual transcre-
o frio e a neve a cair sobre a vemos, apenas alguns frag-
neve. Em novembro e dezem- mentos – concebeu a aparição
bro os dias sucedem- se com de um Menino Jesus para nos
rapidez. Aproxima-se o Natal comunicar os prodígios da in-
e a guerra não acaba. O que será o Natal fância e da adolescência: «Tive
até nas aldeias mais remotas, longe dos um sonho como uma fotografia. /
conflitos que nos deixam repletos de an- Vi Jesus Cristo descer à terra. / Veio
gústia e de incerteza? pela encosta de um monte/tornado
Em circunstâncias tão diversas Fernan- outra vez menino, / a correr e a ro-
do Pessoa escreveu sobre os cenários do lar-se pela erva/ e a arrancar flores
Natal – para os que o celebram, para os para as deitar fora/ e a rir de modo
que o não celebram e para os que ima- a ouvir-se de longe. (…) Hoje vive
ginam como deveria ser o Natal. Umas na minha aldeia comigo. / É uma
vezes, alheio ao que o rodeava; outras, criança bonita de riso natural. /
à procura de si próprio e da sua relação Limpa o nariz ao braço direito, /
com os outros. Debatia-se com as rotinas chapinha nas poças de água, / colhe
que o sufocavam e os traumas inevitáveis as flores e gosta delas e esquece-as.
ao confrontar-se com «as secretárias velhas / Atira pedras aos burros, / Rouba a
do escritório» e «as paredes reles dos quartos fruta dos pomares / E foge a chorar
de aluguer». Os lugares e os trajetos obri- e a gritar dos cães. (…) Corre atrás
gatórios causavam-lhe desassossego. Não das raparigas / que vão em ranchos
tolerava, «a pobreza das ruas intermédias da pelas estradas / com as bilhas à
Baixa usual» e, muito menos, «a náusea da cabeça/e levanta-lhes as saias. / A
quotidianidade enxovalhante da vida». mim ensinou-me tudo. /Ensinou-
Fernando Pessoa reflete, com frequên- -me a olhar para as coisas. /Apon-
cia, a instabilidade do hóspede que tran- ta-me todas as coisas que há nas
sita de bairro em bairro, do Carmo para flores. /Mostra-me como as pedras
a Estefânia, de São Bento para Benfica. são engraçadas/quando a gente as
Morou em Campo de Ourique, no segun- tem na mão / e olha devagar para
do andar do número 16 da rua Coelho da elas. (…) O Menino Jesus adorme-
Rocha. Foi a última casa de onde saiu para ce nos meus braços / E eu levo-o ao
morrer no Hospital de São Luís. Mesmo a Ilustração de Álvaro Carrilho colo para casa.»
residir com a família reconhece que está Surpreende-nos, em cada leitura, este
só e incapaz de constituir um lar. «Coração Menino Jesus de Alberto Caeiro. Está en-
oposto ao mundo», envolvido, por dentro e tudo é oculto.» Mais uma vez, percorria as raizado na lezíria, sem recorrer às narra-
por fora, na mais espessa solidão. vias iniciáticas para tentar encontrar-se Este ano, as ruas, tivas da Bíblia, à doutrina dos Concílios,
Lisboa era uma cidade revolucionária.
Repetiam-se as conspirações monárqui-
com ele próprio.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, as praças, os à especulação dos teólogos, ao ritual da
composição dos Presépios e à presença
cas e republicanas. Dificilmente se podia
esquecer o terror da camionete fantasma, a
no largo de São Carlos, em pleno Chia-
do. Passou a infância e a adolescência na monumentos não nostálgica das árvores do Natal.
Este ano, as ruas, as praças, os monu-
ferocidade da noite sangrenta, o assassina-
to sumário em plena rua ou à entrada do
África do Sul e uns meses, nos Açores, na
Ilha Terceira de onde a mãe era natural.
têm as decorações mentos não têm as decorações ilumina-
das em tempo inteiro. A crise nacional
Arsenal de figuras notáveis do Exército, da De resto, deslocou-se a Cascais, a Sintra iluminadas em e internacional exige medidas de con-
Marinha e da política. Foram implacavel-
mente arrancadas de casa e abatidas a tiro.
e a Portalegre para comprar uma tipogra-
fia. Nunca foi a Coimbra, nem ao Porto. tempo inteiro. A tenção. Mas a luz irradia dos olhos das
crianças e do imaginário dos pastores.
Entre eles destacava-se o fundador da Re-
pública, Machado Santos, o herói da Ro-
Mas a exuberância da imaginação leva-
va-o a toda a parte. À mesa do café, no crise nacional Tão simples, tão natural como o retrato
concebido por Alberto Caeiro. O Guar-
tunda. Fernando Pessoa não se manteve
indiferente à convulsão que decorria em
intervalo do trabalho, ou nos quartos que
habitava escreveu outro poema, e com o
e internacional dador de Rebanhos nasceu em Lisboa, mas
preferiu radicar-se na amplitude do Riba-
Lisboa e se espalhava através do País. mesmo título, em redor da sua profunda exige medidas de tejo, a interrogar o movimento dos astros
Publicou, em 1922, na revista Contem-
porânea e com o título lacónico Natal, o
solidão, recorrendo ao conforto das tradi-
ções ancestrais: «Natal. Na província neva. contenção. Mas e o percurso das estrelas, a diversidade
dos céus, a energia dos campos e das
seguinte poema: «Nasce um Deus. Outros
morrem. / A Verdade nem veio nem se foi: o
/ Nos lares aconchegados/um sentimento
conserva/os sentimentos passados. / Coração a luz irradia dos águas dos rios. O contacto direto com a
natureza tornou-o expansivo e transbor-
Erro mudou. / Temos agora uma outra Eter-
nidade, / e era sempre melhor o que passou. /
oposto ao mundo, / como a família é verdade!
/ Meu pensamento é profundo:/por isso tenho
olhos das crianças dante de alegria. A irreprimível força da
terra incutiu n’O Guardador de Rebanhos a
Cega a Ciência, a inútil gleba lavra. / Louca, a saudade. / E como é branca de graça / a paisa- e do imaginário dos frontalidade da palavra. Para a viagem às
Fé vive o sonho do seu culto. / Um novo Deus
é só uma palavra. / Não procures nem creias:
gem que não sei, / vista de trás da vidraça / do
lar que nunca terei!» pastores suas vidas, às nossas vidas e às outras vi-
das imaginadas.
TL nov-dez 2022 9
A Casa na árvore
temente não impediria os religiosos fran-
ciscanos estabelecidos próximo de Taxco
del Alarcon de, cativados pela cor e beleza
da planta, a utilizarem como ornamen-
to das suas celebrações natalícias, desde
logo na procissão La Fiesta del Santo Pesebre
(Festa do Santo Presépio). Costume que se
julga estar na origem da transformação da
planta sagrada mexicana numa planta or-
namental cristã.
Em suma, no século XVI a cuetlaxóchitl
já perdera boa parte da sua identidade pri-
mitiva, tornara-se, tal como se defende no
documentário acima referido, na «flor da
conversão», constituindo um «dos muitos
instrumentos de conversão da população
indígena à religião cristã», mas ainda não
tinha ‘perdido’ o território. O México con-
tinuava a ser o local onde a planta era mais
plantada e apreciada (julga-se que não teria
ainda sido aclimatada na Europa), persistin-
do ao longo dos séculos XVII e XVIII como
uma raridade praticamente desconhecida
do mercado internacional da floricultura.
Uma cuetlaxóchitl em flor no Jardim Botânico da Ajuda No início do século XIX, porém, a cuetlaxó-
chitl, por iniciativa de Joel Roberts Poinsett,
sempre verde
tânicos e dinâmicos viveiristas norte-ameri-
canos, de tal forma que em pouco tempo se
torna uma novidade botânica cobiçada por
todos. Alguns destes vendedores e divul-
gadores, desconhecendo o nome indígena
e até o nome científico (em 1834, fora bap-
Quanto mais se esconde a identidade da cuetlaxóchitl, mais ela se afirma como tizada de Euphorbia pulcherrima, ou seja, ‘a
mais bela eufórbia’), identificam-na a Poin-
planta índia de leite e de fogo Por Susana Neves sett, chamando-lhe atrevidamente Euphor-
N
bia poinsettia ou simplesmente poinsétia.
os últimos anos tornou-se co- do os mexicas da sua mítica terra natal até nos rituais de culto dos princípios feminino Para muitos historiadores mexicanos esta
mum, durante a época natalícia, ao local onde se localiza a cidade do Mé- e masculino, adornando simultaneamen- associação a Joel Roberts Poinsett é uma
encontrar à venda, nas floristas xico), e isto porque a cuetlaxóchitl florescia te os altares dedicados a Tonantzin (título afronta por reconhecerem nele posições
e até nos supermercados, uma durante o equinócio do Inverno, coincidin- equivalente a Nossa Senhora) como os de- políticas que punham em causa os interes-
planta comercializada com o do com o nascimento deste deus fratricida. dicados ao deus Huitzilopochtli, sendo que ses nacionais do México, nomeadamente a
nome de flor-de-Natal. Atraídos Huitzilopochtli arrancara o coração da sua se pensava que os guerreiros mortos em nível da definição de fronteiras com os Es-
pela cor vermelha das suas brác- meia-irmã com uma serpente azul e matara combate, tal como o vibrante colibri (símbo- tados Unidos, de tal forma que até hoje o
teas (folhas transformadas), bem como pelo os 400 irmãos, os deuses das estrelas do Sul, lo da sexualidade masculino e do guerrei- termo ‘poinsetismo’ (cunhado pelo escritor
simbolismo natalício que lhe foi atribuído, a impedindo-os de assassinar a deusa Coatli- ro), regressariam para beber o néctar pro- mexicano José Vasconcelos Calderón, em
maioria dos compradores julga levar para cue, sua mãe, que o concebera por ter co- duzido por uma glândula que aparece num 1937), por referência a Poinsett, designa
casa uma planta herbácea que de alguma locado junto à barriga uma bola de penas! dos lados da flor da cuetlaxóchitl, glândula de forma pejorativa qualquer interferência
forma estará associada ao nascimento de A cuetlaxóchitl — a que actualmente no essa facilmente identificável por a sua mor- cultural ou política dos Estados Unidos na
Cristo. No entanto, esta planta lenhosa, de México, e apesar de alguma contestação fologia lembrar um par de minúsculos lá- América Latina.
origem mexicana, que pode alcançar quatro nativa, também se chama flor de nochebuena bios carnudos, sensuais, embora amarelos. Apesar desta posição crítica face à apro-
metros de altura, conhecida no México por (flor da noite de Natal), tal a eficiência deste Segundo um belíssimo documentário priação da planta mexicana — primeiro pe-
cuetlaxóchitl (flor que murcha ou flor de pé- processo de colonização — aparecia assim mexicano dedicado a esta planta Cuetlaxó- los colonizadores espanhóis, e depois pelos
talas de couro) — em língua nauatle, o mes- chitl, la flor ritual prehispánica que se convirtió viveiristas norte-americanos que a produzi-
mo termo utilizado para designar a genitá- en símbolo universal de la Navidad, realizado ram e comercializaram massivamente (Paul
lia feminina — não só não tem nada a ver pela investigadora Jana Çerná (e produzi- Ecke Jr., nos anos 60, do século XX, como
com o nascimento de Cristo (embora a plan- do pelo Centro de Investigaciones Interdis- estratégia de marketing, no Natal, oferecia
ta floresça em Dezembro) como evoca um ciplinarias en Ciencias y Humanidades de plantas à Casa Branca, às televisões locais e
dos processos menos óbvios de colonização la Universidad Autónoma de México, em aos principais programas televisivos norte-
de um povo: a utilização das plantas autóc- 2020), no México antigo existia ainda um -americanos) — actualmente, o México con-
tones como instrumentos de subjugação. conjunto de superstições relacionadas com tribui para a exportação da cuetlaxóchitl, com
Durante o período pré-hispânico, antes o poder mágico da cuetlaxóchitl: a possibi- uma produção anual de mais 16 milhões de
da invasão imperialista espanhola, iniciada lidade de causar enfermidades aos órgãos plantas (dados de 2021), uma parte da qual
no início do século XVI, os astecas viam a Pormenor das brácteas vermelhas (folhas genitais femininos, devendo as mulheres destinada aos Estados Unidos, continuando
cuetlaxóchitl (que já plantavam nos jardins transformadas) evitar cheirar a planta, sentar-se em cima a designá-la por flor de nochebuena, ou seja,
do imperador Montezuma) como símbolo dela ou até mesmo passear perto dela, tal flor da noite de Natal. Além disso, a 8 de De-
de pureza e como paño de grana, ou seja, como os homens deveriam evitar aproxi- zembro os mexicanos celebram simultanea-
planta tintureira (das brácteas se fazia ver- mar-se das flores da omixochitl (entre nós, mente o dia nacional da flor de nochebuena e
melho) e medicinal: era utilizada no trata- conhecida por nardo, ou angélica). o dia da Imaculada Conceição da Santíssima
mento da febre (aproveitamento do látex Estas superstições antigas tinham sido Virgem Maria.
leitoso), para provocar a menstruação, e registadas, no século XVI, por um frade Resta-me desejar ao leitor que, uma vez
aumentar a produção de leite materno franciscano espanhol, Bernardino de Sah- sentado à mesa na consoada, não se deixe
(pela ingestão de chá e folhas de brácteas). agún, com o apoio de indígenas, na obra perturbar por estas disputas humanas que
Associavam-na também a Xochiquetzal, excepcional Historia general de las cosas de la envolvem a cuetlaxóchitl, e saiba retirar da
deusa da beleza, do amor, do prazer sexual Nueva España (História geral das coisas da história desta grande vencedora mexicana,
e das plantas, e a um dos deuses mais im- Nova Espanha), confirmando-se que da uma lição sobre a força invencível da ver-
portantes do seu panteão: Huitzilopochtli Pormenor das inflorescências (ciátio), parte dos colonizadores espanhóis havia dade, mesmo quando ela se apresenta sob
(‘o colibri do Sul’), deus da guerra, do sol e sendo visível a glândula de néctar amarela um conhecimento do contexto cultural a a forma de uma simples folha.
da renovação (que se pensava ter conduzi- (nectário), em forma de lábios que a cuetlaxóchitl pertencia, o que eviden- [A autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
10 TL NOV-DEZ 2022
%
é
50 30
%
20
%
At
Estas campanhas não acumulam com outros descontos em vigor / descontos / cupões em vigor
(1)
oferta da consulta de avaliação clínica, 1 sessão experimental do tratamento prescritos pelos nossos clínicos (exceto Pershape/Pershape Power + Depilação permanente)
e até 30% na aquisição de produtos Persona (Cosmética Persona + Dietética Persona) Válido de 12 a 24 dezembro.
(2)
exceto livros sujeitos à Lei do Preço Fixo
(3)
excluídos “Caixa 9 Chocolates - Boas Festas” e “Magia Natalícia de Chocolate - Caixa Especial de Natal”
O
comendador Rui Nabeiro é “tranquilidade de espírito”. pais tinham esperança. A vida tinha pequena, conhecemos as famílias e a
um “bom otimista”. Acredita A sua experiência de vida é uma sido ruim a certo momento – falta de forma de estar uns dos outros. Temos
na família, na educação e no inspiração para muitos empreendedores rentabilidade, falta de trabalho, o campo sempre muita facilidade em fazer uma
futuro. É um homem simples. portugueses. Qual foi a circunstância dava muito pouco… Dentro de mim, filtragem. Comecei nos meus 16, 17 anos a
De sorriso fácil. E trato que o levou a entender, com clareza, pensava sempre como viveríamos. Claro caminhar numa fábrica que era de um de
afável. Conquista facilmente que todos somos responsáveis por que havia quem vivesse pior. Pensava: tio. Nós tínhamos um tipo de sociedade
pessoas. Reconhece que são todos e que este adágio também se pode quando for mais idoso, como é que vai irregular – não havia contabilidade nem
armas para chegar ao outro. Um homem aplicar no mundo empresarial? ser? Ao meu pai não consegui fazer algo nada, juntava-se muita responsabilidade
de negócios de outros tempos com a Os meus pais, pobres, eram um casal ligado a programas de saúde, porque que ia além das nossas responsabilidades
mentalidade de um empreendedor que muito arrumadinho, certo, e conseguiam faleceu por uma razão médica – eu era para pagar aos credores. Começámos a ter
quer continuar a transformar o mundo. que os filhos acompanhassem essa bastante novo. O meu pai precisava que alguns meios para essa grande faculdade
Sorrindo, sendo próximo e tendo atitude. Nos filhos aparece sempre lhe fosse infiltrado sangue e no hospital de poder ir sempre ajudando. E depois
disponibilidade para escutar os que o uma liderança. E eu, sendo o quarto, fizeram sangria – não se aguentou e vai crescendo… Eu ajudei os meus pais
procuram. fui sempre aquela pessoa em que os foi embora. Quando eu vinha de uma em tudo, o meu pai faleceu cedo e não
À entrada, na sede da empresa, em outra fábrica, que ainda hoje existe, já o gozou a vida. Isso para mim era uma
Campo Maior, distrito de Portalegre, meu pai dizia para a minha mãe – ele coisa… Ele tinha um sonho de ter carro
onde tudo começou, em conversa com estava a descansar numa varandazinha próprio. Naquela altura já havia alguns
este e aquele funcionário, pergunto, e a gente, sem querer, põe sempre os carrinhos por aí. E ele não conseguiu. Eu
em jeito de brincadeira, com alguma
provocação, se é mesmo verdade que “Fui sempre ouvidos a escutar os nossos mais velhos:
“Maria, Maria, vai ver o que precisa o
consegui logo ao fim de pouco tempo – o
primeiro foi dedicado à alma e à ambição
o Sr. Rui Nabeiro – é assim tratado –
sabe o nome de todos os trabalhadores. confrontado nosso filho, ele trabalhou muito hoje,
de certeza, como nos outros dias. Ele é
que o pai tinha. Fui sempre confrontado
com situações que me puxavam para
com situações
Respondem que não sabe só o nome um trabalhador.” Isso dava-me um gozo, aquilo que eu pensava fazer: ajudar
dos colaboradores, como também o dos uma emoção, uma coisa séria… Estas são quem precisa, distribuir com quem está
que me puxavam
familiares de quem ali presta funções. as memórias mais vincadas em relação carente, criar o posto de trabalho. Era um
Entretanto, logo a seguir ao almoço, ao meu pai, porque ele trabalhava, sonho arranjar trabalho para quem não
eu pensava fazer:
eu não souber é porque sou burro.” A só uma pessoa com muito rigor é que Quantas pessoas emprega em Campo
simplicidade das palavras inteligentes aguentava. O meu pai fez esse trabalho Maior?
ajudar quem
arrancam mais sorrisos. e melhorou um pouco a nossa vida Em Campo Maior, 60, 70% da população
O seu escritório, na vila raiana que lhe social, porque dormia lá e, durante o dia, trabalha connosco.
precisa, distribuir
deu horizontes para saltar fronteiras e também estava ao serviço do médico, Cria condições de vida para que as
expandir as ambições, é cheio de luz. Salta que era lavrador e médico. pessoas não saiam de Campo Maior?
carente, criar o
meia dúzia de “santinhos que estavam a vida é feita uns com os outros e preocupação.
no oratório do quarto dos pais”. Revela, para os outros, e que ser socialmente Porquê?
posto de trabalho.
com alguma emoção: “Sempre que entro responsável é um imperativo de Porque naquela altura as pessoas não
e saio daqui, olho para a minha mãe. Era consciência? saíam, hoje as pessoas saem. Se os
Era um sonho
uma pessoa extraordinária! Sem saber Consigo, porque sempre sonhei para empresários não souberem segurar, as
uma letra era uma pessoa inteligente.” nós. Foi o sonho para nós que tinha pessoas saem. Há sempre quem saia,
arranjar trabalho
É dali que vem a inspiração para ser melhorado um bocadinho [a vida]. Via seja aventureiro, e isso pode acontecer…
um homem de fé. No Alto e nas coisas as outras pessoas com carências, e isso aí Sente que devolve a Campo Maior
tinha trabalho,
sonhar a ajuda que pode dar a quem lhe mais-valia para nós. Quando precisava dado?
pede a mão: “Amor ao próximo e trabalho de pessoas para o trabalho, procurava Campo Maior deu-me muito porque
muito pouco”
quando se compromete tem de dar “uma fazes? O que é que tu precisas?” Cada não pedi nada. O calor das pessoas,
resposta à pessoa”. E isto também lhe dá um punha o seu tema. Como a terra é das crianças… Vim ali do nosso centro
TL nov-dez 2022 13
vando campos
Educativo Alice Nabeiro, com o
objetivo de responder às necessidades
extraescolares das crianças de Campo
Maior. Tem a antiga quarta classe, que
é “um curso”, como já afirmou. Tem
três doutoramentos Honoris Causa
atribuídos pela Universidade de Évora,
Universidade Lusófona e Universidade
de Coimbra. O conhecimento é um
tesouro. Quem tem educação tem um
tesouro. Mas esse tesouro não pode
ficar escondido na terra, senão não é
rentável…
Sou da mesma opinião que não pode.
Tenho uma quarta classe vivida, sentida
e confrontada. Mas a maioria das outras
pessoas que tem só a quarta classe vai
trabalhar e não aparecem mais situações.
Hoje já conheço muitas pessoas, filhas
de gente pobre, que tinham a quarta
classe e têm a sua formatura. Ainda há
dias casou aqui um rapaz que tinha a
quarta classe e conseguiu ter um curso.
Como fazer o curso? É a capacidade ou
a felicidade de lhe darem as condições
para a pessoa fazer o curso. Porque
ainda há muita gente a tapar buracos
uns aos outros. É pôr as pessoas a
responderem num paralelismo que
possa beneficiar uma grande parte do
mundo.
Voltamos ao princípio, todos somos
responsáveis por todos.
Eu acho-me responsável. Eu fiz;
possivelmente poderia ter feito mais –
das crianças e elas levam a mensagem Quais são os valores que mais preza Ouvi hoje, durante o almoço, uma mas fiz o suficiente para estar feliz. Sou
para os pais: “O Sr. Rui esteve lá, o enquanto empreendedor? campomaiorense comentar: “O Sr. Rui ganhador e, por isso, tenho dado umas
Sr. Rui deu-me me um beijo, o Sr. Rui A pessoa que sonha e vê que tem uma Nabeiro é uma pessoa maravilhosa! opiniões, mas sempre cuidadosas porque
fez-me uma festa, o Sr. Rui tirou uma casa boa e pode fazer melhor, que Deus queira que ainda viva muitos não devemos apontar dedos a quem quer
fotografia connosco” – dizem isso com consiga chegar a uma doutrina de bem anos”… que seja – pelo contrário. O país precisa
a linguagem delas. Tudo isso os pais servir o seu fornecedor, o seu cliente… Chega-me um de cada vez [risos]. de quem fale, de quem resolva, de quem
também o fizeram por onde passaram. Com base equilibrada e sensata, porque Onde assenta a sua esperança em sabe o que está a fazer e, como tal, não
As pessoas que já trabalharam cá e estão quando estou a comprar também é para Portugal? Como gostaria de ver o país pode falar de qualquer forma.
em muitos lados dizem que fiz aqui e até comprar bem, mas não quero explorar daqui a 10 anos? Tem granjeado vários prémios.
mais acima. Uma pessoa vai cultivando, de qualquer maneira, não quero A minha esperança é: ou se tem Recentemente foi homenageado na
a semente vai rendendo e progredindo. endividar-me de forma nenhuma. As otimismo ou não se tem otimismo. Foz do Arelho, na série “Diálogos de
Tenho isso a todos os níveis. Campo funções mais críticas, mais apaixonadas Jamais trocarei o não otimismo pelo Sustentabilidade” que a Global Media
Maior não falhou. Campo Maior é amigo destas circunstâncias é saber como tratar ser ou ter bom otimismo. Eu sou um Group organiza com a Fundação Inatel.
e eu sou amigo. e saber como respeitar. A ligação ente homem de bom otimismo. Portugal tem O que representam os prémios?
Do alto dos seus 91 anos, que palavras o ser humano é muito importante. A de vencer, mas tem de estar preparado. Representam muito. É a consideração
poderia deixar à nova geração ligação entre o casal é muito importante Temos de nos preparar todos muito bem. que têm projetado para cima de
de empresários, tendo na mira a nessas coisas todas. Nós vamos fazer 69 Prepararmos o quê e como? mim. Estas pessoas todas também me
responsabilidade social? anos de casados [Rui é casado com Alice Prepararmos a nossa capacidade, ajudaram – mesmo os prémios mais
Nós vivemos épocas terríveis. Eu nasci Nabeiro] e isso dá-me uma felicidade porque, no fundo, a nossa escola já deu acessíveis, logo desde o início há muitos
em 1931. A minha família também enorme. Já são muitos anos, mas não muita coisa boa. Hoje temos muitos anos, apanhei-os com o coração. E foi
tinha carências – mas foram superadas. tenho medo da idade. Preciso é de viver alunos que se vão formando nas terras isso também o meu crescimento, a forma
Nos anos 1930 e mais à frente com mais, mas se não viver mais, outros pequenas – também ajudamos aí e como sou visto na sociedade, no país, na
a guerra, desgraças e tudo o mais, viverão por mim. recuperamos pessoas meio perdidas vizinha Espanha e em todos os outros
consegui sempre condições de poder O valor da família é crucial para si e nesse campo. países onde temos mercado.
ajudar alguém. Quem não fizer hoje o importante para os negócios… Não tirámos ainda partido do 25 de Quem o foi inspirando ao longo do
que tem ao seu alcance, amanhã será Muito importante. Um homem ligado Abril. O 25 de Abril podia ter dado uma percurso?
tarde. O meu conselho é pensarmos nos à família, se não sentir a família ligada volta, uma abertura maior. Passou- Muita gente, conforme as circunstâncias
outros, distribuirmos o que pudermos, a si… Eu viajei muito, muitas vezes -se a viver de uma maneira diferente, – mas mesmo muita gente. Realmente,
sem atropelarmos a nossa casa, sem sozinho, muitas vezes acompanhado. mas não há dúvida nenhuma que se a pessoa criou, fez nascer, fez sonhar,
atropelarmos a nossa empresa, sem Nos dias em que ficava em casa, porque podia fazer melhor. Agora também fez com que as pessoas acreditassem em
atropelarmos os nossos homens que ia a Angola, Moçambique, Timor, etc., a se pode fazer melhor porque há si próprias e na família. Todos os dias
trabalham connosco. minha mulher estava atenta à própria dinheiro. Temos esperança de que os aqui chego e olho para a minha mãe já
Quem faz publicidade da minha vida fábrica. Ela passava e olhava – era nossos políticos atuais possam fazer falecida há muitos anos. A minha mãe é
são as pessoas que eu possa ter ajudado. respeitadíssima. Havia os nossos filhos um trabalho para nos darem essa uma inspiração. Todos os dias, em vários
Eu não ajudo em Campo Maior, ajudo e os nossos mais velhotes, os meus esperança e nos porem no caminho momentos, conforme o caminho que
muitas terras com carências diversas. avós, os avós da minha mulher, etc. Eu certo… As crianças acabarem de nascer percorra, os olhos vão sempre lá e vai
Tenho 22 departamentos comerciais valorizo a família. Para mim é tudo. e serem ajudadas, não andarmos à sempre o reconhecimento por ser uma
em Portugal e pessoas já preparadas Onde há valores de família sérios, certos, procura de maternidades nem coisas grande mãe.
com o meu estilo. Poucas vezes saudáveis, só temos caminho aberto. parecidas, é termos um médico de Observo que junto ao seu coração tem
temos encontrado pessoas ou quase Referiu que 60, 70% da população família a funcionar bem... Podermos o símbolo da Delta. Neste momento, o
nenhumas que tivessem a pedir por de Campo Maior trabalha no Grupo fazer ligações. Isso é o que eu sonho seu coração palpita por quem?
quererem ludibriar uma circunstância. Nabeiro. Falamos de quantas pessoas? sempre. Vender eu nunca vendia, mas Coração Delta é serviço da comunidade,
Sinceramente, nesse caso, o que posso Mais de 1000, em Campo Maior [1300 e associar-me, eu associava-me, enquanto e essa comunidade mete família, mete
dizer é: quem trabalha tem de saber poucos, completa a assistente presente trouxesse mais-valia para a pessoa e para toda a gente e mete-me a mim próprio.
conduzir bem os seus meios e as suas durante a entrevista]. E temos cerca de nós… O ensino que tenha um professor É algo que me dá felicidade. Dá-me
circunstâncias, porque o mundo a 4000, a nível geral. em linha, começa na primária mas chega felicidade ter um coração que se abre.
que está ligado é de progresso, de Que objetivos, que ambições ainda tem? à universidade – e alguém pagará. Os E para se fechar é um bocado difícil.
transformação. Aquele que não se Que os meus netos tirem a papel que têm dinheiro pagam, os que não Também já tenho tido alguns prejuízos
transformar vai muito atrasado. químico aquilo que o avô tem sido. têm pagam menos ou não pagam. Há nessas circunstâncias, mas quem possa
Transformação, essa, alicerçada em Serem disponíveis, investirem, sorrirem, muita coisa para se fazer num país ter traído um pouquinho não fez por
valores sólidos. conquistarem as pessoas. Estas são as pequeno e num país grande. mal – fez por carências. Por isso o
Sem dúvida nenhuma. minhas armas essenciais. Em 2007, inaugurou o Centro coração responde sempre. Sílvia Júlio
Viseu - 10 . 11 . 12 NOV
Porto - 24 . 25 . 26 NOV
Lisboa - 7 . 8 . 9 . 10 DEZ
RINO LUP O | BUSTER K E ATON | DZIG A V ERTOV
ROBERT FL A HERT Y | F.W. MURN AU
Acompanhados por
BICHO CA RPIN T EIRO | INÊ S VA Z | S T EREO S S AURO
CA BRITA | NUNO CO S TA . Ó S CA R GR AÇA | K A § PA R
BRUNO MON T EIRO . K E V IN PIRE S . RICA RDO S OA RE S
Entrada Livre
+ Informações/Reservas: 210 027 148 | inatel.pt
Apoio
TL nov-dez 2022 15
VIAGEm
dr
Fallas de Valência
Festejar a primavera numa cidade onde esta estação do ano é recebida
com grande estrondo, alegria e criatividade
S
ão quatro dias para conhecer uma forma de exorcismo, já que ao quei- através da pirotecnia, da música e do fogo, de pedra lhe dão, tem semelhanças com
um pouco melhor esta cidade má-los se eliminam simbolicamente os transporta o espectador para o ambiente os antigos castelos medievais. Tem qua-
espanhola fundada em 138 a.C., problemas. das festas populares valencianas. tro partes: a Torre, a Sala do Consulado
situada na costa mediterrânica, Na noite de 19 para 20, numa cerimó- do Mar, o Pátio de Los Naranjos e o Salão
num programa que dá o desta- nia a que se dá o nome de cremá, os ninots Outros pontos de destaque em Valência das Colunas.
que a uma das suas grandes tra- ardem no meio de um fascinante espe- Durante o programa “Tradição Espanho- Também momento muito importante do
dições populares, as Fallas, festa táculo de luz, música e fogos de artifício. la: Fallas de Valência”, há outros pontos de programa é a Cidade das Artes e das Ciên-
que desde 2016 foi declarada Património Há apenas um ninot que, escolhido por destaque como a visita à Lonja de la Seda cias, que se estende ao longo de quase dois
Imaterial da Humanidade. votação popular, é salvo das chamas e vai de Valencia, (Bolsa ou Mercado da Seda quilómetros no antigo leito do rio Túria.
As Fallas de Valência, ou Fallas de São fazer parte da coleção do Museu Fallero. de Valência), uma obra-prima do gótico, Um dos maiores complexos de divulgação
José, são a festa mais internacional de Va- Outro momento emocionante das Fallas classificada como Património da Huma- científica e cultural da Europa, com visita
lência e trazem para a rua gigantescos mo- é a oferenda floral à Virgem, quando as nidade pela Unesco. Situada no centro ao Hemisfèric e ao Oceanogràfic, surpreen-
numentos de papelão, que podem atin- comissões falleras desfilam nos dias 17 e histórico da cidade, construído entre dentes construções de arquitetura van-
gir os 30 metros de altura, os ninots, que 18 de março e, em homenagem à padroei- 1482 e 1533, foi usada originalmente no guardista, obra dos reconhecidos arquite-
irão ser queimados durante os festejos. ra, formam uma montanha de flores de comércio de seda e sempre foi um cen- tos: Santiago Calatrava e Félix Candela.
A origem da celebração remonta-se aos 14 metros de altura. Arraiais, cavalgadas, tro comercial. É uma obra que evidencia O Parque Natural de Albufera, situado
parot dos carpinteiros: um lustre de ma- corridas de touros, concursos ou outros o poder e riqueza da cidade de Valência a 10 quilómetros da capital valenciana,
deira com o qual iluminavam as oficinas atos lúdicos completam o programa os nos séculos XV e XVI. E foi considerada também fará parte do percurso turístico,
no inverno e que queimavam na rua na festejos. um dos edifícios mais bonitos da arqui- criando assim oportunidade de conhecer
véspera do dia de São José. No princípio, E se as festas trazem uma agitação contí- tetura gótica civil europeia. O férreo as- um ecossistema rico em fauna e flora, e
davam-lhes um aspeto humano enfeitan- nua às ruas de Valência de 15 a 19 de mar- peto de fortaleza que seus sólidos muros com espécies de aves únicas. A sua gran-
do-os com trapos velhos, mas em meados ço, desde o princípio do mês que a ruidosa de lagoa de água salgada permite passear
do século XIX, começaram a aumentar seu mascletàs, pontualmente às duas da tarde, nos barcos tradicionais, conhecidos como
volume e altura e a melhorar suas formas, se impõe na cidade. Espetáculo de petar- Tradição Espanhola: Fallas de Valência “albuferencs”, conhecendo os campos de
convertendo-as em bonecos decorativos dos e fogos artificiais, no qual se obtêm arroz. Há também as praias selvagens,
monumentais. composições musicais através do ruído 17/MAR/2023 A 20/MAR/2023 selvagens, com dunas, como as do Saler.
Os ninots são caricaturas e representa- dos canhões de pólvora acontece em cada PARTIDA DE LISBOA | PORTO E, claro, não poderia faltar a referência
ções satíricas que, com grande senso de bairro, sendo a maior a da Praça da Pre- gastronómica já que os vários restauran-
humor, criticam políticos, personagens feitura. Estes elementos espetaculares são, Informações: Tel. 210027000 | tes deste parque são o melhor lugar para
famosos e os acontecimentos mais rele- aliás, tratados pelo grupo valenciano Xar- turismo@inatel.pt | www.inatel.pt saborear a famosa paella à valenciana, cujo
vantes da atualidade. Esta representação xa Teatre, um dos mais importantes coleti- arroz, consta, é o cultivado nos seus vários
crítica e picaresca da realidade é também vos de teatro de rua, em “Nit Mágica”, que arrozais. JPN
16 TL NOV-DEZ 2022
Coluna
Imaterial, um festival para celebrar DO provedor
o património cultural
N
asceu em 2021 e surge, natural- parceria com a Fundação Inatel. Passaram
mente, na senda do reconheci- por esta edição do Imaterial, entre muitos
mento que a Unesco tem vindo a outros, Helder Moutinho, os Cantores do
fazer de várias práticas culturais Desassossego de Beja, Barrut, a iraniana
elevando-as a Património Imaterial Farnaz Modarresifar, e o músico arménio Manuel Camacho
da Humanidade. Organizado pela Câma- Haïg Sarikouyoumdjian. O Prémio Imate- provedor.inatel@inatel.pt
ra Municipal de Évora, cidade candidata a rial foi atribuído à etnomusicóloga britâni-
Capital Europeia da Cultura em 2027, em ca Lucy Durán. JPN
F
oi em meados do século
XX, mais precisamente
F
Turismo Social OLIA é o programa que, no FOLIO,
a Fundação Inatel levou ao Palco
grandes guerras mundiais.
Ninguém podia, nem queria
Inatel, dando voz à diversidade e voltar a passar pelas atrocidades,
A
escolha de Ponta Delgada como cultural e artística que caracteriza a privações e humilhações por
anfitriã do 28.º Congresso Mundial sua identidade. Fado, rap, música po- que passaram milhões de seres
da ISTO (Organização Interna- pular portuguesa, folk, jazz. Na foto o saxo- humanos.
cional de Turismo Social), por ser fonista João Cabrita que, depois de trinta É assim que, por iniciativa
os Açores, o primeiro arquipélago anos de carreira, surge agora a solo. JPN de 50 países e após várias
do mundo a ser formalmente certificado conferências pela paz, é assinada,
como “Destino turístico Sustentável”, de- inicialmente, a Carta das Nações
nota logo a importância que o debate so- Unidas, que daria mais tarde
bre o futuro do turismo social dá às ques-
tões sobre a sustentabilidade. Organizado Diálogos de Sustentabilidade: origem à ONU tal como hoje a
conhecemos.
pela Fundação Inatel em parceria com a
ISTO, e com o apoio do Governo dos Aço- O trabalho digno Os principais objetivos da
Organização eram a defesa dos
res e do Turismo de Portugal, recebeu de direitos humanos, a garantia das
A
12 a 15 de outubro mais de duas centenas relação que as questões do traba- liberdades fundamentais para
de especialistas e agentes de Turismo dos lho têm com a Sustentabilidade e a todos sem exceção e a promoção
cinco continentes. JPN Agenda 2030 da ONU levaram no da paz, procurando soluções
dia 7 de outubro ao Inatel Foz do para todo e qualquer conflito
Arelho, Miguel Fontes, secretário através da justiça e do direito
de Estado do Trabalho, e Manuel Carva- internacionais.
lho da Silva, coordenador do CoLABOR Hoje são membros da ONU
A
gastronomia é o ponto de partida ro Vivo. JPN conflitos, a Europa e o Mundo
das Tertúlias Gastronómicas que sofrem, neste momento, as
a Fundação Inatel realiza divul- consequências de uma invasão
gando, em ambiente de partilha e incompreensível da Ucrânia pela
convívio, a cultura e o património Rússia, com todos os problemas
local. Em setembro, em Castelo de Vide,
as tradições da comunidade judaica e da Sindicatos da CGTP e UGT assinam inerentes a uma guerra sem
sentido.
gastronomia local foram o tema, e em
outubro, a Tertúlia Gastronómica subiu Acordo de Empresa da Fundação Inatel Se depois de todo este esforço
conjunto vos disser que desde
a Vila Nova da Cerveira, focando-se no 1945 até hoje, houve no Planeta
vinho e mel como elementos da gastro- mais de sete dezenas de conflitos
C
nomia mediterrânica. JPN om este acordo, que inclui uma tor de Serviços e o SINTAP – Sindicato dos armados, espalhados pelos mais
vontade negocial futura para várias Trabalhadores da Administração Pública diversos pontos do globo, custa
questões laborais e salariais, desta- e de Entidades com Fins Públicos, assina- a crer mas obriga-nos a refletir
cam-se: aumento salarial mensal, fei- ram, respetivamente Carlos Manuel Dias sobre a verdadeira essência do
to retroativamente a partir de junho Pereira, Ana Rita Andrade Costa Dinis Pi- ser humano.
“A
deus, Capitão”, de Tatiana Al- Pelos sindicatos filiados na FESAHT pode trazer.
meida e Vincent Carelli, ven- (CGTP), assinaram, no dia 25 de outubro, Festas Felizes e um Bom Ano
ceu o Prémio Fundação Inatel, Fernando Carlos Cerqueira Pinto e Maria 2023 para Todas e Todos.
destinado a distinguir obras das Dores Gomes. No dia 2 de novembro,
cinematográficas que ajudam a pelos dois sindicatos ligados à UGT, o SI-
valorizar o nosso património imaterial. JPN TESE – Sindicato dos Trabalhadores do Se-
18 TL NOV-DEZ 2022
Outros Mundos
E
Fotos: jacob crawfurd
ste ano, estiveram presentes mais
de 3000 “delegados”, o que repre-
senta um acréscimo de inscrições
em cerca de 40% relativamente à
edição anterior, de retoma pós-co-
vid 19, que ocorreu na cidade do
Porto em Outubro de 2021.
A WOMEX é um ponto de paragem
obrigatória para músicos nacionais que
procuram uma oportunidade de dese-
nhar digressões internacionais de uma
forma sólida, tal como aconteceu com Ma-
riza, António Zambujo ou Omiri de Vasco
Ribeiro Casais. Ou, quem sabe, de actuar
num remoto festival como o Rainforest
World Music da Malásia, como já aconte-
ceu com os mirandeses Galandum Galun-
daina.
É durante estes quatro dias de feira e
de mostra de novas e frescas propostas
musicais em formato de “showcases”, que
os produtores dos principais eventos de
música de raiz, como FMM de Sines, o
Imaterial de Évora, ou o Med de Loulé,
desenham o cartaz do ano seguinte.
Num certame desta natureza, com pal-
cos a funcionar e com alguma distância
Ana Lua Caiano entre si (entre o Coliseu e Tivoli ou São
Jorge gastam-se 10 preciosos minutos a
caminhar), há que fazer opções: ou ver 10
a 15 minutos de cada “showcase” e ir sal-
tando de palco em palco, ou ficar naquele
espectáculo sobre o qual tínhamos enor-
me expectativa e perder a oportunidade
de assistir durante esse tempo a pelo me-
nos duas propostas que estão a ocorrer em
simultâneo nas outras salas.
O mundo em
ousadia e sensualidade. Quando estamos
num ambiente de proto-muñeiras e outras
sonoridades da folk galega, somos arreba-
tados pelo tom burlesco de uma arrepian-
te interpretação à guitarra do clássico me-
xicano “La llorona”. Uma das figuras que
Lisboa com a
marcou esta edição da WOMEX.
3 - Ana Lua Caiano. Outro objecto voa-
dor não identificado pairou nos céus do
Cinema São Jorge. A jovem portuguesa
que constrói canções orelhudas com ele-
mentos e instrumentos da música popu-
lar portuguesa, ritmos processados, loops
WOMEX da retoma
gravados em tempo real e sintetizadores,
ofereceu-nos outro espectáculo de grande
coragem e de pêlo na venta. À semelhan-
ça de Vasco Casais com Omiri, é notável
o à-vontade como canta, toca e controla
toda a maquinaria em simultâneo.
4 - Kalàscima. O transe taranta do sul
de Itália muito bem representado por uma
banda enérgica e explosiva que não des-
Lisboa recebeu, pela primeira vez, na terceira semana de Outubro, a 28.ª edição da cura a versatilidade e os cruzamentos da
WOMEX (Worldwide Music Expo). Aquela que é a maior feira de músicas do mundo pizzica salentina com outras tradições e
de cariz itinerante dirigida a profissionais do sector: músicos, agências de “booking”, géneros musicais acústicos e electrónicos.
Há gaita de foles irlandesa, flautas (lau-
programadores de festivais e de salas de espectáculos, jornalistas, etc. Uma espécie de neddas) da Sardenha, percussões árabes.
Web Summit das músicas de raiz Quem é ouvinte de Canzonieri Grecanico
TL nov-dez 2022 19
Salentico ficará certamente encantado com kont (voz e tuba) é uma das figuras mais
Kalàscima. interessantes da folk local da actualidade.
5 - Windborne. É pouco comum na WO- 11 - Oratnitza. É curioso que boa parte
MEX vermos um grupo essencialmente do interesse pelas músicas locais começou
vocal da folk norte-americana. Profunda- com a descoberta do mistério das vozes
mente harmónicos e afinados, este quarte- búlgaras. Os Oratnitza, mais um outro
to a capella, que parece ter saído de um re- grupo de folktronica devolve-nos essa bele-
gisto etnográfico do etnomusicólogo Alan za escondida (que vamos descobrindo em
Lomax, ofereceu-nos uma visita guiada às grupos corais como Angelite), servidos
muitas tradições norte-americanas e não com uma fortíssima base rítmica eletróni-
só. Das canções de protesto que unem ca e sopros aborígenes de didgeridoo.
americanos e britânicos (Song Of The Lower
Classes), a espirituais negros e ao canto po- O encantamento e a extravagância
lifónico da Córsega. Arrebatadores. de Ivo Papasov
6 - Mécanos. Mais uma proposta de Na cerimónia de encerramento, foi atri-
canto polifónico, mas da região occitana buído o Prémio de Excelência Artística ao
do sul de França. Para além da força vocal virtuoso clarinetista búlgaro Ivo Papasov.
inebriante que evoca Lo Cór de La Plana, Uma distinção justa que premeia a resi-
realce a parafernália de percussões que liência de um dos mais veteranos músi-
vão desde chaves inglesas, a jantes e tubos cos que ajudou a construir entre os anos
de escape de automóveis. Um espetáculo 80 e 90 o conceito de “world music”. Aos
cénico muito atrativo que inclui um qua- 70 anos, com uma “orquestra” madura e
dro elétrico com antigos disjuntores, que que reflecte o saudável envelhecimento
nos transporta para o universo fabril da de boa parte dos agentes (músicos, pro-
primeira metade do Sec. XX, em que todos dutores, programadores) deste sector, Ivo
os Mécanos se apresentam vestidos com Ivo Papasov Papasov deu um concerto memorável,
fato de macaco. puxando dos galões do epíteto de Zappa
7 - Rangamatir Baul. A beleza multico- dos Balcãs (ou de John Zorn do Danúbio).
lorida, a espiritualidade trovadoresca e o g-gwa-ri, Jang-gu, Un-la, Yang-geum) e 10 - Tegie Chłopy. O som não foi o me- Música irrequieta, sempre em constante
amor celestial, dos Bauls da Bengala do es- infinitos padrões rítmicos. lhor. A sala (Coliseu dos Recreios) dema- movimento numa caravana multicolori-
tado indiano de Bangala Ocidental lidera- 9 - Al Bilali Soudan. O Mali mais puro, siado grande e afastada do epicentro de da. Há música rapidíssima de casamentos,
dos por Rina Das Baul. Voz e tocadora de mais rústico cujo nome evoca a ancestral “showcases” nocturnos (eixo Tivoli – São prog jazz à anos 70 com guitarra eléctrica
ektara (cítara-percussão de uma corda). designação da cidade de Tombuctu. Blues Jorge – Capitólio). Apesar disso, esta for- bem vincada, muito humor na integra-
8 - groove&. Um trio sul-coreano de do deserto tuaregue, mais acústico e etno- mação polaca ofereceu-nos riquíssimas ção de um cordofone regional como a ga-
exímias percussionistas todo-o-terreno gráfico, mas igualmente intenso e hipnóti- tradições de música de dança chłop (espé- dulka. Um final apoteótico a fazer jus ao
que apresentaram um intenso e virtuoso co tocado com o cordofone de uma corda cie de mazurka) de casamentos da região espírito da WOMEX. Luís Rei
espectáculo com múltiplos tipos de ins- Tehardent (também conhecido por Ngoni de Kielce (situada no centro-sul da Poló-
trumentos tradicionais locais (Ggwaen- entre os Bambaras). nia) com cariz etnográfico. Maniucha Bi- [O autor escreve de acordo com a antiga ortogragrafia]
Museu do
Holocausto
Porto
20 TL NOV-DEZ 2022
teatro da Trindade
Mistério e suspense
na Sala Estúdio
Nuvem, texto vencedor da 4.ª edição do Prémio Miguel Rovisco – Textos Teatrais
é a aposta da Sala Estúdio para novembro e dezembro
H
©Pedro Macedo_Framed Photos
VER Ler
Os contos do zambujal
Às voltas no parque
Mário
Zambujal
D
oem-me as pernas. Percorri todo De súbito, espera, vem a ideia de recorrer – Arranca deixando-me de rastos nos sen-
o espaço imenso do piso menos à moderna tecnologia. Ora aí está, basta tidos físico e psíquico das palavras. Ainda
um no Centro Comercial, con- premir entre dois dedos a chave da igni- bem que a Braulia não me vê. Com o es-
tinuam a sair e a entrar carros ção para abrir à distância a porta do carro e pírito sarcástico dela, não me pouparia a
mudando o panorama mas nada não apenas abrir a porta como a dar sinais piadas cruéis.
altera o essencial: ignoro qual o de vida com luzes e som da buzina. Como Inesperadamente, o telemóvel apitou
lugar onde estacionei. Estendo é que não me lembrei há mais tempo? Mas e pede atenção no bolso do casaco. Vá lá
o olhar por todas as zonas, é um mar de vamos a isso. Como? Rebusco nos bolsos e que me encontro no piso menos um, no
latas pintado de múltiplas cores, lamento chave nenhuma. Rebusco que a distração menos dois talvez ficasse fora de rede.
não ter comprado um carro como aquele se iniciou no momento em que desliguei e Quem terei agora? Coloco o aparelho jun-
além, roxo e com tecto amarelo, dá nas vis- lá terá ficado a chave da ignição. to do ouvido e correspondo:
tas, o meu, cinzento, não. Não posso desanimar mais do que já – Estou.
O problema, uma vez mais, nasceu da estou desanimado. Todavia, continuo a Há uma voz do outro lado mas quase
distração. Parei, saí, andei, devia ter fixa- olhar e, alto!, aqui de longe vejo o carro. imperceptível, afinal encontro-me numa
do uma cor e um número da localização, Aproximo-me quase a correr e, surpresa, gigantesca cave. Ando um pouco em bus-
desconheço até se abandonei o carrinho vejo alguém abrir a porta e sentar-se lá ca de melhor posição e repito:
no piso número um, pode ter sido no nú- dentro. Era o que me faltava, roubar-me – Estou.
mero dois, lá irei, mas de certeza será o a viatura no exacto momento em que a Parece que a ligação funciona, escuto
mesmo, bosque de automóveis no subsolo reencontrava, agarra que é ladrão, apete- uma voz masculina:
do Centro Comercial e o meu escondido ce-me berrar mas a voz não sai, já tenho as – É o senhor Ervelindo? Daqui fala o
no meio. mãos assentes no tejadilho e grito para o Neca da oficina, é para lhe dizer que o seu
Tento, em vão, forçar a memória, mas a ocupante, um sujeito cabeçudo que acaba carro está pronto.
memória não pode dizer o que nela não de rodar a minha chave de ignição: – O meu carro?
gravei em pensamento e foi rigorosamen- – Onde é que julga que vai? – Exactamente. Só o deixou cá há três
te nada, nem mesmo as cores e os tipos de Ele sai do carro, é um sujeito enorme e dias, concluímos a reparação.
carros próximos do rectângulo onde parei interpela-me com cara feia e torcida: – Quer dizer… eu hoje não saí no meu
e saí distraído. – Quer alguma coisa? carro?
Tão distraído como na tarde em que dei Sobressalto-me. Através dos vidros de- Há uma risada e a confirmação:
o braço a uma senhora de casaco comprido vasso o interior, noto que os estofos são di- – Claro, está aqui à sua espera. Lavadi-
e azul, convencido de que o braço era da ferentes da recordação que deles guardo e nho.
minha mulher, Braulia, que seguia à fren- é já num tom de desânimo que digo: Não há melhor sensação que o alívio.
te naquela passagem de peões e também – Julgava que este carro era o meu. Não Mas é breve, nova preocupação me assal-
vestia casaco comprido e azul. E também é? ta: se não vim no meu carro como cheguei
a estranha a quem dei o braço devia ser O homem deve ter mau feitio, reage aqui? Tenho o cérebro cansado. Procuro
distraída, não reclamou, assim avançámos com indelicadeza: reanimá-lo esfregando a testa com as pal-
oito ou dez passos, até que Braulia se vi- – E eu julgo que você é parvo. Não é? mas das mãos. Deu resultado. Lembro-
rou e me dirigiu uma interrogação azeda: -me – como poderia ter esquecido? – foi
– Quem é essa mulher, Ervelindo? a Braulia que me trouxe no seu carrinho.
Percebi então que não era a minha, de Mas onde estão o carrinho e ela? Assento o
comum tinham apenas casacos compri-
dos e azuis, iguaizinhos vistos de costas. Inesperadamente, olhar nas pessoas que vão chegando com
compras, onde estás tu, Braulia? Ou onde
E também o provável marido da senhora,
vindo de trás, gritou: o telemóvel apitou está o automóvel com que me trouxeste
para este martírio? Recuso-me a continuar
– Quem é esse cavalheiro com que vais
de braço, Mirovilia? e pede atenção às voltas no parque e, entretanto, vem a
ideia salvadora: o telemóvel, claro! Se não
Percebi então que não era a Braulia, mas
sim uma Mirovilia, largámo-nos, pedi ex- no bolso do está no carro, a Braulia estará numa das
lojas, entra em muitas, ela corre o Centro
plicáveis desculpas pela confusão baseada
na semelhança dos casacos mas todos me casaco. Comercial. Por sorte tenho rede e ligo para
encontrar a solução final junto da minha
olhavam com desconfiança.
Vá lá que me mulher. Finalmente tudo resolvido? Zero!
Uma gravação diz-me que Braulia tem o
Agora o problema é que continuo deso-
rientado no parque do Centro Comercial. encontro no piso telefone desligado. Devo continuar às vol-
tas pelo parque.
Passatempos
Palavras cruzadas POR josé lattas HORIZONTAIS VERTICAIS
9
Soluções:
10 MACAU; E. 10-ADORARA; SUL. 11-LESAR; BEATA.
5-ÓSMIO; BORO. 6-I; EXILAR; RH. 7-DITARA; ODES. 8-EDIS; GASES. 9-AC;
11 1-TRAVESSIA; O. 2-AAR; M; MALAR. 3-BRISAS; IRC. 4-LOTE; RAMADA.
22 NOVEMBRO 22
TEATRO DA TRINDADE INATEL
21H00
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