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Coleção O MEDITERRÂNEO

0SFUNDADORES DA USP,5

E O MUNDO MEDITERRÂNEO
NA EPOCA DEFILIPEll

VOLUME l
+

FERNAND BRAUDEL

Prefácio à edição brasileira


[:E:S;S:i] UNIVERSIDADE DE SÀO PAULO Lincoln Secco
Mansa Midori Deaecto
Reí/or Marco Antonio Zago
Hce-/'e{/or Vahan Agopyan

Tradução

p'lusP Gilson César Cardoso de Souza


-'= EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente Plinto Martins Filho

COMISSÃO EDITORIAL

Presidente Rubens Recupero

Vice-presidente Cardos Alberto Barbosa Dantas


Chester Luiz Galvão Casar
Mana Angela Faggin Pereira Leite
Mayana Zatz
Tânia Tomé Martins de Castro
Valeria De Marco

Carta Fernanda Fontana uéniarnêQue


Editora-assistente @ JWaison,del#àn,ce
Cristiane Silvestrin
Chefe Téc. Div. Editorial
SUMÁRIO

VOLUME l

17
PREFÁCIO A EDIÇÃO BRASILEIRA l,llzco/n Secco & Adarisa À/fdorí Deaec/o
59
PREFÁCIOS ÀS EDIçõES FRANCESAS
59
Prefácio à Primeira Edição
65
Prefácio à Segunda Edição
68
Prefácio à Terceira Edição
68
Prefácio à Quarta Edição .

PRIMEIRA PARTE:A PARTEDO MEIO

77
l AS PENÍNSULAS: MONTANHAS, PLANALTOS, PLANÍCIES
77
1. Em Primeiro Lugar, as Montanhas
]08
2. Planaltos,Encostase Colinas
11 6
3. As Planícies
147
4. Transumância ou Nomadismo: Dois Mediterrâneos . .

169
11. NO CORAÇÃO DO MEDITERRÂNEO: MARES E LITORAIS
169
1. As Planícies Líquidas
211
2. As Bordas Continentais .
225
3. As Ilhas .
SUMÁRIO
O MEDITERlúNEO E O MUNDO MEDITERitÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll;

247 V. ASSOCIEDADES 59
111 OS CONFINS OU O GRANDE MEDITERRÂNEO 250 1.1JmaReaçãoSenhorial 60
1. 0 Saara, SegundaFace do Mediterrâneo 2. A Traição da Burguesia 83
270
2. Europa e Mediterrâneo 3. Miséria e Banditismo 93
311
3. 0 Oceano Atlântico . . .

VI ASCIVILIZAÇOES 119
319
lv. A UNIDADE FÍSICA: 0 CLIMA E A HISTORIA. 320 1. Mobilidade e Estabilidade das Civilizações 120
1. A Unidade Climática 2. Recuperação de Civilizações . ]40
336
2. As Estações 3. 1.JmaCivilização contra Todas as Outras: O Destino dos Judeus 169
365
3. Terá Mudado o Clima depois do Século XVl?
i 375
4. As Irradiações Exteriores 194

V A UNIDADE HUMANA: ROTAS E CIDADES, CIDADES E ROTAS. VII.ASFORMASDAGUERRA 205


376
1. Rotas de Terra e Rotas do Mar 1. A Guerra das Esquadras e dasF'ronteiras Fortiâcadas 206
397
2. A Navegação: Tonelagense Conjunturas. 2. O Corso, Forma Supletiva da Grande Guena 239
421
3. As Funções Urbanas
436
4. As Cidades, Testemunhasdo Século VIII. A GIJISA DE CONCLUSÃO: CONJUNTIJRA E CONJUNTURAS 271

SEGUNDA PARTE: DESTINOS COLETIVOS E MOVIMENTOS DE CONJUNTO TERCEIRA PARTE:OS ACONTECIMENTOS, A POLITICA E OS HOMENS
475
1. AS ECONOMIAS: A MEDIDA DO SECULO l 1550-1559:RETOMADAE FIM DE UMA GUERRAMUNDIAL 289
475
1. 0 Espaço,Inimigo Número l 518 1. Nas Origens da Guerra. 289
2. O Número de Homens 2. A Guerra no Mediterrâneo e Fora Dele . 305
545
3. Pode-seConstruir o "Modelo" da Economia Mediterrânea?. 3. Retomo à Guerra. As Decisões ainda Vêm do Norte 328

4. A Espanha em Meados do Século 345


593
11 AS ECONOMIAS: METAIS PRECIOSOS MOEDAS E PREÇOS
595
1. 0 Mediterrâneo e o Ouro do Sudão ll. OS ULTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565 359
608
2. A Prata da América 1. A Guerra contra os Turcos: Uma Loucura Espanhola? 359
653
3. A Alta dos Preços. 2. A Recuperação Hispânica. . . 380

3. Malta, Prova de Força (18 de maio-8 de setembro de 1564) 410


685
111 AS ECONOMIAS: COMERCIO E TRANSPORTE
685
1. 0 Comércio da Pimenta. 111.NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1566-1570 425
715
2. Equilíbrios e Crises do Trigo Mediterrâneo 1. 0s PaísesBaixos ou o Mediterrâneo? 425
754
3. Comércio e Transporte: Os Veleiros do Atlântico 2. A Reviravolta da Guerra de Granada 456

IV.LEVANTO 495
VOLUME 2
1. A Batalha de 7 de Outubro de 1571 496
9
2. 1572, Ano Dramático 517
IV.OSIMPÉRIOS.. 13
3. A "Traição" de Veneza e as Duas Tomadas de Ténis: 1573-1574 537
1. Nas Origens dos Impérios 34
2. Meios e Fraquezas dos Estados
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll:

557
V. AS TREGUAS HISPANO-TURCAS:]577-1584
558
1. A Missão de Margliani, 1578-1581 582
2. A Guerra Abandona o Centro do Mediterrâneo

605
VI. O MEDITERRÂNEO FORA DA GRANDE HISTÓRIA
607
1. Problemas e Dificuldades dos Turcos PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
625
2. Das Guerras Civis Francesasà Guerra Aberta contra a Espanha: 1589-1598
645
3. A Guerra Não Acontecerá no Mar

661 Lincoln Secco


CONCLUSÃO .i.
Mansa Midori Deaecto
Universidadede SãoPaulo

ANEXOS

671
GEO-HISTORIA E DETERMINISMO: NOTAS SOBRE UM CAPITULO AUSENTE.
673
GEO-HISTÓRIA E DETERMINISMO
683
ASFONTES O Mediterrâneo e o Mundo Mediíerrârteo na Epoca de Filipe ll € uma obta-
761
ÍNO]CE ONOMÁSTICO -prima da pesquisa histórica composta de narrativas fragmentárias, reconstitui-
825 ção de eventos, pintura de paisagens, interpretação de dados económicos e belas
ÍNDICE TEMÁTICO . .
descrições geográficas. Sim, todos essespatamares constituem um belo livro de
história.
O historiador do século XXI não se espanta mais com um livro cujo perso-
nagem no centro do palco seja um maré Filipe ll foi abandonado a segundo plano
Mas, em contrapartida, o autor daquela tese acadêmica defendida na Sorbonne
em 1947teve que ouvir um arguidor Ihe admoestar por não ter escrito uma obra
de história'.
O percurso de um intelectual como Braudel torna-se de difícil apreensãoquan-
do pensamos nos termos de sua própria concepção histórica. É que não há nada mais
distante das proposiçõesdos fundadores da revista .4nna/es c/'/7/s/o/re Ecofzomíqz/e
ef Sacia/e do que uma narrativa factual. E, mais ainda, uma biografia que busca
ressaltaro valor do indivíduo.
E verdade que Lucien Febvre construiu uma bela biografia de Maninho Lutero,
delimitada a alguns anos decisivos de sua traUetória (1517 a 1525):. Para Febvre, "o
indivíduo é sempre o que sua época e seu meio social permitem". Deveríamos, então,

1. Agradecemosa generosaleitura crítica desteprefácio feita por FemandoNovais.


2. L. Febvre, .À4ar/in/zo.Lu/ero; Z,/m.Des/íno,trad. Dorothée de Bruchard, São Paulo, Três Estrelas, 2012

/7
a

O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FiLIPE ll

Fica claro e aqui esseé o progressomais considerável que a história do


clima é z/ma na escala do hemisfério norte. E que o caso do Mediterrâneo está liga-
do a um conjunto de problemas nessa mesma escala: o recuo atual das geleiras do V
Alasca, que restaura diante de nossos olhos velhas florestas sufocadaspor sua anti-
ga progressão, a sequênciadas datas precisas da floração das cerejeiras de Tóquio
(marcadas, todas elas, por festas rituais), as disposições concêntricas das árvores da
A UNIDADE HUMANA: ROTAS E CIDADES, CIDADES E ROTAS
Califórnia esses "acontecimentos", e muitos outros, acham-se ligados entre si pela
história unificadora do clima. Je/ S/roam ou não, a unidade existe, existe um regente
de orquestra. Em toda parte o "primeiro" século XVI foi favorecido pelo clima, em
toda parte o "segundo" sofreu perturbações atmosféricas.

Passardo Mediterrâneo propriamente dito, tal como é definido por seu clima,
ao Grande Mediterrâneo, sobre o qual o primeiro se propaga, é passar de uma uni-
dade física a uma unidade humana, orientação geral seguida por este livro. Essa
unidade não é apenas um dado da natureza, ou, mais especialmente, da água me-
diterrânea. A água é tudo o que dizem ser: união, transporte, troca, aproximação,
com a condição de o homem se esforçar para tanto e dispor-se a pagar o preço
Ao mesmotempo é, e foi por muito tempo, uma separação,um obstáculo a trans-
por. Talvez em épocas bem remotas a arte da navegação tenha nascido nas bacias
de águas calmas entre as ilhas egeias e a costa da Àsia, no vizinho mar Verme-
lho, porémnuncase saberáao certo. Em todo caso,a partir do início dos tempos
transcorrem eras intermináveis em que o homem ainda não domina o mar. Pouco
a pouco os barcos o venderão, tecendo laços, construindo por etapas o conjunto
coerente do Mediterrâneo, seushomens e sua história. Porém, esseconjunto, di-
gamo-lo alto e bom som, foi construído pela mão do homem. Ainda hoje, quando
o Mar Interior não passa, na escala de nossas atuais velocidades, de um rio acima
do qual se lançam pontesaéreas,um Mediterrâneo dos homens só existe na medi-
da em que o engenho,o trabalho, a faina desseshomens continuam a criar. Não é
a água que une as regiões do Mediterrâneo, mas os povos do mar. Verdade banal,

emlem
1. Não intitula este capítulo "As Rotas e as Cidades", mas "Rotas e Cidades, Cidades e Rotas'
brança de uma reflexão de Lucien Febvre na primeira leitura destas páginas

374 375
A UNIDADE HUMIÀNA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FILIPE ll

que é importante repetir em um tema no qual há tantas fórmulas e imagens que se das vezes essasparadas, essashospedarias sem as quais não haveria rotas viventes
extraviam como por brincadeira. são cidades, importantes paradas às quais todos acorrem e chegam jubilosos, alguns
até mesmo com a sensaçãode reconhecer a paisagem, como Guzmán de Alfarache
entrando em Zaragozas, maravilhado com os belos monumentos, com a boa polícia
}. Rotas de Terra e Rotas do Mar e talvez sobretudo com a abundância de víveres, "tan de buen premio todo", acres-
centa, "que casadaba de si um flor de ltália". Outra razão para se apressar é que em
A unidade do Mediterrâneo só se forma por causa do movimento dos homens, muitos casos a rota mediterrânea não passa por todas as aldeias, que muitas vezes
das conexõesque implica, das rotas que o conduzem.Lucien Febvre escrevia: "0 desejam permanecer afastadas,protegidas. Ainda hoje, na Bulgária ou na Anatólia,
Mediterrâneo, são rotas":, rotas em terra e rotas no mar, Jotas dos rios grandes e o vi4ante das grandes rotas atravessa regiões que Ihe parecem bem mais despovoa
não tão grandes, imensa rede de conexões regulares e ocasit)naif, produzindo inces- das do que na realidade são'. Podemos imaginar a grande rota mercantil do oriente
como uma autoestrada dos dias de hoje, grande via transversal que só excepcional-
sante propagação de vida, de circulação quase orgânica... Exibir seu lado pitoresco
não é o que realmente importa acompanhar Cervantes nos caminhos espanhóis mentetoca os povoadose se precipita de uma cidade à próxima.
de ven/a em venta, navegar lendo o diário de bordo dos navios mercantes ou dos A unidade humana no Mediterrâneo é, ao mesmo tempo, esse espaço de ro-

corsários, ou descer o Ádige a bordo das burc/zíer!, grandes barcos de carga depois tas e o espaçourbano,suaslinhas e seuscentrosde força. Cidades e rotas, rotas e
cidades Constituem um mesmo instrumento humano do espaço. Seja qual for sua
de Verona, ou em Fusina encontrar-se "sobre a água para se dirigir a Veneza", à
beira da laguna, em presençadas bagagensde Michel de Montaigne3. O importante forma, sua arquitetura, a civilização que Ihe dá luz, a cidade do Mediterrâneo é
é observar o que ta] rede implica de correspondências, de história coerente, em que geradorade rotas e, simultaneamente,é geradapor estas. É o que diz Vidal de La
ponto o movimento dos barcos,dos animais de carga, das viaturas e das próprias Blache a propósito da cidade americanas;ora, no século XVI o espaço mediterrâneo
pessoastorna o Mediterrâneouno e, de certo ponto de vista, uniforme, apesar de (em se tratando de cidades, é necessário toma-lo em toda sua amplitude) também é
eventuais resistênciaslocais. O conjunto do Mediterrâneo é esseespaço-movimento. imenso, desmedido. Nenhuma região do mundo possui então uma rede urbana tão
Aquilo que o aborda, guerras, sombras de guerras, modas, técnicas, epidemias, ma- poderosa. Parase Londres estão apenas no início de suas modernidades. As cidades
dos PaísesBaixos e da Alta Alemanha (estas bastante iluminadas pelos reflexos do
teriais leves ou pesados, preciosos ou toscos, tudo é metabolizado pelo fluxo de sua
corrente sanguínea e levado para bem longe, aqui ou ali esse fluxo se interrompe, Mediterrâneo, as primeiras vivificadas economicamente pelos mercadores e mari-
sedimenta-se para mais tarde ser de novo arrastado, perenemente propagado ou até nheiros meridionais), mais ao norte, as cidadeshanseáticas,laboriosas porém peque-
mesmo, quando fora de seus limites, rdeitado... nas, todas essas cidades, por mais belas e animadas que sejam, não geram conjuntos

Sem as rotas poderia ser assim? Elas não são, sem mais, apenas estreitas fai- tão deítsose complexosquanto as do Mar Interior, onde as aglomeraçõesurbanas
xas sobreo solo ou sulcos no mar. São as caravanasrumo a Alepo, longasfilas de se sucedem em intermináveis guirlandas, cujos centros são muito grandes: Veneza,

cavalos, de mulas, de camelos sobre o Stamboulyol (o caminho de lstambul pela Gênova, Florença, Milho, Barcelona, Sevilha, Argel, Nápoles, Constantinopla, Carro.

rota da Maritza), ou são aquelascarroças em movimento, que Busbec observava As três últimas são cidades superpovoadas: não se diz que à época Constantinopla
tem setecentos mil habitantes8? Ou sda, o dobro de Paria e o quádruplo de Veneza.
em 1555, conduzindo a Constantinopla os homens, mulheres e crianças capturados
E necessário acrescentar a essa lista o cortejo de cidades menores que também têm
pelos turcos na Hungria4. Não há caminhos sem os necessários pontos de parada:
um porto, um ancoradouro,um caravançaraiou um .17a/z
na Europaoriental. E na participação no jogo geral das trocas e desempenhamum papel maior do que aquele
Europa ocidental uma estalagem isolada que outrora era uma cidadela-. No mais
5. Guzmán de Alfarache, op. ci/., 11,3, 1, p. 331
6. A. Philippson, J.)as À41ffe/meergebler, p. 219
7. Vidas de La Blache, op. ci/., p. 295.
2. Lucien Febvre, .dnncz/esd Hls/. Soc., 11 jan. 1940, p. 70.
3. Joz/rna/de t)Vagaen /fa/fe(colação "Hier", 1932), p. 132. 8. G. Botero, op. ci/., 1, p. 106, e 11,p. 118,"quase duasvezesmaispovoada que Paras'',JacquesBongars
4. Busbec, op. cí/., 11, 1, p. 195. em Anquez, /lenri /P' e/ / 'H//emczg/ze, 1887, p. XXIV.

377
37Ó
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILiPE il A UNiDAs)E HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

36 -- Rede das rotas ibéricas em 1546


que sua densidade populacional permitiria supor. Talvez a animação e a atividade
das pequenascidadesdo Mediterrâneo possibilitem compreenderpor que o Extre-
mo Oriente, mesmo ostentando cidades com um número ainda maior de habitantes
Juan de Pie de Puerto
e mais abarrotadasde homensdo que as metrópoles do Mediterrâneo, não possui Medina de Pomar 'U'n

uma rede de vida urbana dotada do mesmo dinamismo. Com frequência elas nada Corri(
H 'AMPLONA bJP - / ' q '\

mais fazem do que juntar uma enorme massa de homens sem serem animadas pelo
H
movimento da cidade grande; podemos dizer que elas são mais a expressãoda su-
..
\..=#.-
!

H
perpopulação da Asia do que de sua organização econâmicaP. a
O Mediterrâneo, região de cidades, essa verdade ban41 mil vezes repetida, não
é uma novidade, mas é necessário fazer a relação do fato c(;in suas consequências. A
ordem humana do Mediterrâneo é a ordem das rotas e a ordem urbana. Ela comanda
tudo. A agricultura, ainda que modesta, acaba por chegar à cidade, é comandada por
ela; e, com maior razão, seusêxitos. Devido às cidades,a vida dos homensé mais
precipitada do que as condições naturais o exigiriam. Graças a elas, as atividades
de troca predominam sobre as outras... Toda história, toda civilização do mar é obra
das cidades. Ferdinand Lot'' tem razão contra Émile-Félix Gautier quando estabe-
lece a relação das cidades até mesmo com as próprias invasões muçulmanas. Tudo
chega até elas. As vezes, o destino do mar depende unicamente do triunfo de uma
rota ou de uma cidade em detrimento de outra rota ou de outra cidade, mesmono
século XVI, em que tudo parece pertencer, porém ainda não pertence plenamente,
aos grandes impérios e Estados territoriais.

As rotas-viveiros Segundo o livro de Gonzalo Menéndez Pedal, .[os Caninos en /a .His/aria de Espada, 1951. O mapa
representa as rotas com traços mais ou menos acentuados segundo a frequência de citações no guia do
Valenciano Juan Villuga (Medina, 1546). Resulta dessa "ponderação" que Toledo continua a ser o gran-
As rotas do mediterrâneo são antes de tudo as rotas do mar, estabelecidases- de centro das rotas, portanto a cidade mais mesclada da Península. Os grandes cruzamentos: Barcelo-
na, Valência, Zaragoàa, Medina del campo. A hora de Madre, capital a partir de 1556, ainda não soou.
sencialmente ao longo da costa, como já dissemos''. Em seguida vêm as incontáveis
estudas por terra: algumasacompanhandoa orla litorânea, correndo de porto em
porto como essainterminável sucessãode estudas, trilhas, caminhos estreitos e ruins como os caminhos das caravanasde Alepo ao Eufrates ou os da África Menor ao
que, sem interrupção, vai de Nápoles a Romã, Florença, Gênova, Marselha e em se- Sudão. Acrescentámos as numerosas "rotas dos istmos", retomando a formulação de
guida, através do Languedoc e do Roussillon, à estrada litorânea da Espanha Bar- Vitor Bérard: como a rota Sul--Norte, que parte da Síria, passandopelo Taurus atra-
celona, Valência, Málaga.- As outras são perpendiculares aos litorais, como as vias vés da porta da Cilícia, atravessa a Anatólia e alcança Constantinopla diretamente
naturais do Nulo ou as do vale do Ródano, como as estudas que vão ter aos Alpes, por Eskisehir, ou pelo desvio de Andara; ou as vias secundárias dos Bálcãs, orien-
tadas esquematicamente de leste para oeste, de Tessalânica a Durazzo, a Valona ou
a Cattaro, de Uskub a Ragusa, de Constantinopla a Spalato (mais adiante veremos
9. Konrad Olbricht, "Die VergrosstãdterungdesAbendlandeszu Beginn desDreissigjãhrigenKrieges' o repentino desenvolvimento económico desta última em fins do século XVI); ou
em Petermanns Mitteilungen, \939.
ainda a série de caminhos que, do Adriático ao Terreno, vão de uma margem a outra
10. F. Lot, Les /nvasions Baróares ef /e Peap/emenrde /'Ezlrope, 1937, 1, p. 110.
11. Cf. pp. 169 e ss. suprcz. do dique italiano: a estrada de Barletta a Nápoles e Benevento, a mais importante

378 379
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA EPOCA DE FiL}PE ll A UNIDADE HUM[ANA: ROTAS E C]])ODES, CIDADES E ROTAS

37 Rotas transversais através do Apenino toscano variados. Entre a Lombardia e a Romanha,em uma extremidade,e a Toscana,na
outra, os contemporâneos podem escolher entre oito diferentes caminhos difíceis,
pois devem atravessar os Apeninos: o mais cómodo, o único acessível à artilharia, o
mais meridional, vai de Rimini, pelo vale da Marecchia, até Arezzo e Sansepolcro';
Para completar a enumeração, basta acrescentar as rotas fluviais, que não raro
estão situadas na periferia do mundo mediterrâneo. Como os ativos caminhos flu-
viais da planície da ltália do Norte, o Ádige, o PÓe seus afluentes, o Adda, o Oglio,
o Mincio'', como os rios "russos"; como todos os rios portugueses; como o Guadal-
quivir até Sevilha e, para além de Sevilha, até Córdoba:'; ou o Nulo, mediterrâneo
pela metade, cuja enorme massa de água doce se espalha para fora de seu delta, "toda
turva e amarelenta"'ó,em pleno mar; ou ainda, dessafeita autenticamentemediter-
râneos,o abro com seusbarcosde fundo chato que conduzemos viajantese o trigo
aragonês até Tortosa e região inferior de alguns rios valencianos e granadinos''; e
na ltália o baixo Amo, o baixo Tibre, aberto aos barcosdo mar até Romã, sulcado
di Garf. por estranhosbarcos fluviais com leme lateral e as duas extremidades,soerguidas
como escadas, que permitem o desembarque nas margens escarpadas do rio''
Borgaa Mozzano
11
Todas essas rotas, que se pode desenhar num mapa a partir do guia das rotas de
Estienne'9, de Turquet:', de Herba2', expõe a trama da vida geral do mar. Esquemati-
Flor
camente;no século XVI elas não são muito diferentes das estudas que conduziram

13 Amaldo Segarizzi, Re/czziozzí


cíeg/í .dmZ)ascia/orígene/!, Firenze, 111,parte 1, 1927, pp. 10-13.
14 G. Botero, op. ci/., 1, p. 50
15 /dem, P. 9.
A grande estrada de Rimini a Milão, a antiga via Emí/ia, dá os limites do relevo dos Apeninos a leste.
16 Conde de Breves, }t)yages..., op. ci/., p. 229.
As numerosas estudas que Ihe sãoperpendiculares em direção a Florença e a Lucra, no setor estreito da
17. /dem, p. 5
península, já dão uma ideia da multiplicidade dos caminhos transversais ao longo de toda a península. 18. Belon du Mans,op. cí/., p. 103.
A estrada de Bolinha a Florença por La Futa corresponde à maravilhosa estrada de hoje. 19 Charles Estienne, .Le Gz/ídedes c/zem/n.sde France, 2. ed., 1552; .Les J'?)yczge.s
de .p/usíez/rsendroi/s
O documento utilizado limita-se à enumeração das rotas transapeninas que partem de Florença ou de de Fl"alce et encore de ta Torre Saincte, d'Espaigne, d'ltatie et autres paus, \SS'2. Nadas ed\iões,
Lucca
U
com variantes: Paria, 1553, 1554, 1555, 1556, 1558, 1560, 1570, 1583, 1586, 1588, 1599, 1600; Lyon,
1566, 1580, 1583, 1610; Rouen, 1553, 1600, 1658; Troyes, 1612, 1622, 1623. Para detalhes, cf. Sir
Herbert George Fordham, .[es Rou/es de Frcznce. Ca/a/ogue des guiões /"oz/íiers, 1929, e .[es Cuide.s
das estudas secundárias do Sul (pelo desfiladeiro de Ariano':); mais ao norte, o que rou/íers, í/ínéraires e/ ccz/"re.s
rou//êles de / 'Europe, Lille, 1926.
poderíamos chamar de o eixo comercial toscano de Ancona a Florença e a Livor- 20 'Théodore Mayeme de 'Turquet, Sommaire description de !a France, .AiZemagne,Ifalie, Espagne, aves
/e gz/ide des c/zemins,Génêve, 1591-1592, 1618, 1653; Lyon, 1596, 1627; Rouen, 1604, 1606, 1615,
no e o eixo genovês,de Ferraraa Gênova;por flm, mais a oeste,as transversais 1624. 1629. 1640. 1642
espanholas de Barcelona ao golfo da Gasconha, de Valência a Portugal, de Alican- 21 Giovanni de L'Herba, .//inerario de//e Pos/e .per .Diversa Parfí de/ JWondo,Venezia, 1561 . Outros guias
da mesma época: Guilhelmus Gratarolus, .De .Regam!/ze//er .Xgenríum ve/ .ZI'quí/um, -ve/ Pedi/um, ve/
te a Sevilha. Ê claro que essasrotas de istmos designam muitas vezes caminhos .À4ari, -ve/ Czzrrz/sez/.R/leda, Basileia, 156 1; Cherubinis de Stella, Pos/e .per .Diversa Par/í de/ .À4ondo,
Lyon, 1572; Anânímo, /fflzerarlzlm Orais C;zrisflan1, 1579; Richard Rowlands, The Post off;ze mor/d,
London, 1576; Anónimo, Kronlz ulzd.4z/sbzzndí a//er megweiser-, Kõln, 1597; Matthias Quadt, Z)e/icíae
12. Gino Luzzato, S/aria .Economicczdí Heneziade//:X7 a/ XZ7 Seco/o, Venezia, 1961, p. 42. Sobre essa Ga///ae ii e //ínerczrio.per C/niversam Ga//iam..., Frankfürt, 1603; Ottavio Codogno, .Nüovo ./}inerar'io
rota, indicação de transportes, de Barletta a Nápoles, de couros de búfalo, Nápoles, 22 maio 1558, A. de//e Poste .pe/"Zu//o í/ JUondo..., Milano, 1608; Paulus Hentznerus, //inerczríum Germaníae, Ga///ae,
de Ragusa,D. de Foris, Vll, f' 245. .dng/icze,e/c. Nüremberg, 1612

38/
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE il A UNIDADE HUM[AN.A: ROTAS E CID.ODES, CIDÀ])ES E ROTAS

a disseminação de Romã ou a do Mediterrâneo medieval. Mas, qualquer que seja a cidades, por inabitual mansuetude,tenham deixado as pequenascidades sobrevive-
rede a que pertençam, quer varie ou não a longo prazo, elas desenham intermina- rem para cumprir seu destino, e sim porque elas se defenderam e sobretudo porque as
velmente, para além das costas, o império das economias e das civilizações do Mar grandes não podiam dispensa-las, como não se pode, ao longo da estrada, dispensar
Interior, Guiodestino dominam. os postos de muda de cavalos ou deixar de recorrer às estalagens.-
A vida da estrada declina? Prospera? Os comércios, as cidades, os Estados se A vida dessespontos de parada está ligada à aritmética das distâncias,à ve
expandem ou se deterioram. Com razão as grandes explicações históricas em conjun- locidade média da estrada, aos prazos de navegação,realidades essasque não mu-
to invocam catástrofesou transtornos nas rotas. Para Arthur Philippson:z, as navega- daram no decorrer de um século mal equipado do ponto de vista técnico, que ainda
ções diretas, a partir do século 111a.C., na bacia oriental arruínam as regiões gregas utiliza caminhos muito antigos (Romã ainda vive, em pleno século XVI, das estu-
privadas dos lucros das escalas.Romã, no final de sua grandeza,também declina das de sua antiga grandeza:') e barcos de pequena tonelagem (os gigantes do mar
devido a violentos deslocamentosem benefício das rotas db Oriente Próximo, pelas mal ultrapassam mil toneladas); que com mais frequência recorre aos serviços do
quais se esvaem os metais preciosos comojá se dizia ontem ou em consequência animal de carga do que aos da viaturaz5. Esta última, no século de Filipe 11,não é
da intensa atividade do eixo comercial Danúbio--Reno, como se sustentou recente- uma desconhecida, mas seu desenvolvimento, de 1550 a 1600, continua sendo lento
mente, e que se desenvolveem detrimento do movimento geral do mar23.Basta que ou mesmoinsignificante, se é que desenvolvimentoexiste. Pensemosque em 1881
esse mesmo movimento geral esteja, nos séculos Vlll e IX, a serviço do lslã para ela é desconhecida no Marrocos2ó.Que só aparece no Peloponeso no século XX.
que o conjunto do campo de forças do Mediterrâneo, ao ser subitamentedesloca- Que sua chegada sempre implica revisão, criação de estudas, quase uma revolução,
do, subtraía o Ocidente cristão à rede provedora das rotas do mar. Finalmente, para como diz J. L. Cvilié a respeito da Turquia do século XIXz'
ficarmos no período deste livro, as Grandes Descobertas, abrindo os caminhos do Não antecipemos,pois; no século XVI, a Espanhaainda não é o país das di-
Atlântico e do mundo, ligando o Atlântico ao Índico por meio de um caminho ma- ligências puxadas por mulas, ao som de suas sinetas; assim como a ltália não é o
rítimo contínuo, viraram pelo avessotodas as rotas operantes do Mediterrâneo e, no país dos venfz/r/nnf, dos célebres voífurlns da época romântica. Aqui e ali se podem
longo prazo, empobreceram todo o mar. A importância dessasligações, das rotas, perceber viaturas, algumas mais aperfeiçoadas, outras mais primitivas, puxadas por
impõe-se cada vez mais a meu espírito. Mais que antes, quando da redação de sua cavalos, mulas, bois ou búfalos. Viaturas correm pelo Stamboulyol, nos campos de
primeira edição. Elas são a infraestrutura de toda história coerente. Mas precisar Brousse:*, no Constantinês (Leão, o Africano2P, as observa), na estrada do Brenne?o:
seu papel exato suscita difíceis problemas. em quase toda a ltália. Os tonéis de vinho são transportados sobre rodas ao redor
de Florença:'; Cervantescaçoados condutoresde viaturas de Valladolíd;:, e quan-
Arcaísmo dos meios de transporte do o duque de Alba invade Portugal3', em 1580, ele garante a seu exército o servi-
ço de numerososcarros. Em 1606,de Valladolid a Madri, o transporte da Corte de
De 1550a 1600,à primeira vista, não se nota nenhuma grande revolução nos Filipe 111se faz em carros de boi34
transportes marítimos ou terrestres; são os mesmos barcos de antes, os mesmos com-
boios de animais de carga,as mesmasviaturas imperfeitas, os mesmositinerários, 24. meanDelumeau, He économfgz/e
ef sacia/e de nome, 1, 1957, pp. 81 e ss.
as mesmas mercadorias transportadas. Houve melhoras nos caminhos e na arte da 2S. Jules Sion, "Problêmes de transports dans I'antiquité"(ç.r. da obra de Lefebvre desNoêttes, Z,'Hrfe/age.
Le Chevatde Selleà travers desAges), in A tn. d' Hist. ÊcoK. et Soc., \93S, pp- 628 e ss
navegação, na velocidade e regularidade dos correios, o transporte baixou de preço, 26. JuresLec]ercq, .De]Wogadorà -Bis#ra.'7Maroce/ .d/géríe, 1881,p. 21
porém nunca em proporções desmedidas. Prova disso é a sobrevivência das pequenas 27. .La Pénínsu/e ,Ba/kaniqz/e,1918, p. 195
28. Barão de Busbec, op. cí/., 1, p. 103, à fé de um pormenor anca(ifico, base evidentemente âágil
cidades, paradas secundárias, as numerosas transformações políticas e económicas
29. Deicrz»fíon de / 'HI/?lgz/e,
Z:arcaPar/le..., ed. 1830, 11,pp. 16-17.
do século. Se elas permanecem, não é, como pensava Stendhal, porque as grandes 30. E. von Ranke, ar/. cif., em r7. .8r Saz. z/nd }K Gesc;z., 1924, p. 79.
31. B. N. Florença, Capponi, 239, 26 jan. 1569.
32. .AÃove/asE#e/np/ares, "Licenciado Vidriera
22. Das Ã41f/e/meergeõíer,
4. ed., pp. 222 223. 33. Codoi/z,XIXXIV. I' maio 1580,p. 442; 4 maio 1580,p. 453.
23. André Piganio1, 771s/oirode .Rama,1939, p. 522. 34. Franceschi ao doge de Gênova, Valladolid, 31 maio 1606, A.d.S., Gênova, Spagna 15

382 383
.A UNIDADE HUMANA: ROTAS E CIDADES, CIDADES E ROTAS
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÁ ÉPOCADE FILiPE ll

As viaturas certamentesãoúteis nas imediaçõesdas grandescidadese na re- CarlosV, Alongo de Herrera'', considerao fato uma horrível calamidade;na ltália,
taguarda dos exércitos, que exigem transportes intensivos. Mas e em outros lugares? em Nápoles particularmente, é preciso, para salvaguardar a criação de cavalos, proi-

Em Nápoles chega-se a pensar, em 1560, em fazer o trigo da Pugna chegar por terra bir aos ricos, sob penas bastante graves, aparelhar suas carroças com mulas"; em

e não mais por mar, como era costume, com a finalidade de evitar a longa circuna- Chipre, a partir de 1550, a criação de mulas acarreta uma catastrófica diminuição
vegação da ltália meridional; mas é necessário estabelecerligações de carros entre de cavalos43;na Andaluzia, são necessárias medidas draconianas para proteger estes
a cidade e a região produtorae, para tanto,procz/rar, diz a missiva de Filipe ll ao últimos"; nos Bálcãs, por ocasião da guerra turco-imperial de 1593-]606, os cristãos,

duque de Alcalá, vice-rei de Nápoles, "adereçar los caminos que vienen de Pulga entre outras presas de guerra, se apoderam de mulas4s. Haedo menciona também um
cerca de Asculi", empenhar-se em colocar em bom estado os caminhos que proce- mouro que vai de Argel a Cherchell em dorso de mula'ó. Em 1592enviam-se mulas
dem da Apúlia na proximidade de Ascoli35, e eis aonde qlÍeríamos chegar, "de ma- da Sicília para as obras de La Goulette47
A vitória da mula no século XVI é incontestável, apesar de severamente com-
nera que pudiendose carretear como se hace em Alemaniã y otras partes, se trayga
el trigo por ellas a Nápoles", a fim de que, podendo servir às carroças como é hábito batida pelos governos em nome das necessidadesde guerra. Ela parece revestir a
na Alemanha e em outros países, se possa, por essescaminhos, transportar o trigo mesma importância que a multiplicação dos cavalos (cavalos de trabalho e animais de

até Nápolessó."Como se hace en Alemania". ainda falta muito para que a viatura transporte) na Inglaterra elisabetana48.A mula não é apenas um instrumento agrícola,

conquiste o sul da ltália, que reine à moda da Alemanha, ainda que ela pareça ter-se como Herrera explica minuciosamente para o caso espanhol. Ela é um maravilhoso
apropriado, no final do século, da estrada transversal de Barletta a Nápoless7,que animal de carga,sóbrio, resistente.Rabelais,a quem tudo interessa,nota o fato no
os relatórios oficiais de 1598e 1603 mostram em imperfeito estado de conservação Livro [V: "[.-] mu]as, bestas mais poderosas", escreve ele, "mais resistentes ao tra-

e inacabada apesar dos projetos, ou talvez por causa dos proUetos,da cidade ponti- balho que as outras". Na Espanha, para seiscentasmil mulas de trabalho, Herrera
ficamde Benevento, que almela o controle dessa rotas8.Na própria França, no final estima que quatrocentas mil delas são utilizadas para a "cavalaria"49 entenda-se,
do século, as estudas carroçáveis ainda não são numerosas39.A primazia da besta para os transportes. Forçando os termos, pode-se imaginar essa conquista das mulas

de carga permanece ao longo de imensas extensões de terra. Nos séculos XVll e nos moldes do que irá acontecer no século XVlll na América hispano-portuguesa,
XVlll a rede de rotas terrestres do Império Otomano, objeto de admiração da Eu- onde o espaço desumano foi conquistado para o homem pelas inumeráveis quanti-
dades de caravanas de mulas.
ropa, apresenta estreitas pistas calçadas de um metro de largura para os cavaleiros,
enquanto sendas para os rebanhos e os pedestres de ambos os lados multiplicam essa Outra pergunta: seriam as mulas as responsáveispejo aumento dos tráfegos
terrestres em detrimento dos tráfegos marítimos?
largura por dez". Nessa paisagem, não se vê nenhuma ou quase nenhuma viatura...
Erbalunga, grande aldeia marítima do cabo Corso, metade da qual construída
Vantagensem benefício das rotas terrestres por volta de 1600? sobrea água, quasechegoua ser uma pequenacidade no tempo em que, com al-
guns veleiros de carga, seu papel era assegurar a circunavegação do cabo. No século

No entanto, e apesar de tudo, os transportes nessaspequenas estudas continuam XVll, a partir da própria base do cabo foi aberta uma estrada, e a via terrestre, mais
e até mesmo aumentam no final do século XVI. Como causa e consequência desse
incremento, observa-se um crescimento bastante generalizado do rebanho de mulas,
pelo menos nas penínsulas europeias: na Espanha, um agrónomo contemporâneo de 41. Z.lóro de .4p'icu/rz/ra, 1539, pp. 368 e ss. da edição de 1598 (1'. 1513)
42. .H. Sf. ./}a/., IX, p. 255, 2 maio 1602.
43. V. Lamansk:y,Score/sd'É/a/ de Henise,p. 616, 7 dez. 1550.
44. Sobre as razões da decadência da criação de gado, cf. Crh de /os (luva//os, Granada, Simancas, E' 137
35. Cf. notaseguinte.
36. Filipe ll ao vice-rei de Nápoles, Toledo, 13 out. 1560, B. Com. de Pa]ermo, 3 Qq. E 34 f"' 8-] 1 45. GiuseppeMecatti, Sfo/"íaCro?zo/ogivade//a Ci//à dí .Fírenze,11,pp. 802-803, em 1595.
46. D. de Haedo, 72)pograp/zia...,
p. 180
37. 22 maio 1588,A. de Ragusa,D. de Fores,f' 245.
47. O duque de Terranovaao rei, Palermo, 22 abr. 1572,Simancas,E' 1137.
38. .d/"c&.Sf. ./}cz/.,IX, pp. 460 e 460, nota 1; 468 e 468, nota l
39. Albert Babeau,Zes }t)yageursen France, 1885,pp. 68-69(viagem de Paul Hentzner, 1598). 48. G. Trevelyan, Hísfory oÜEng/and,p. 287
40. Victor Bérard, .Pézzé/ope..., op. cí/., p. 307; Chateaubriand,//ínéraire..., op. ci/., P. 7. 49. A. de Herrera, op. cf/., p. 368.

384
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE ll A UNIDADE HUMIANA: ROTASE Cli)AGES, CIDADES E ROTAS

curta, logo sobrepujouo longo caminho por água. Erbalungadeclinou rapidamen- Esse mesmo movimento explica a aventura de Spalato, observada de perto por
tes'. Se necessário fosse, esse minúsculo exemplo já poderia alertar contra a crença alguns eruditos venezianos por estar diretamente ligada a certos incidentes com a
bastantedifundida de que a rota por terra é, por antecipação, derrotada em sua luta Turquiass.Venezapossuía sobre /'a/fra sponda, em terra balcânica, uma série de
contra o caminho por água. postosde vigia f cidades,além de duasúteis ligaçõescomerciais:a primeira em
Em todo caso, isso não é verdade para as cartas e notícias, que são transpor- direção a Cattaro, atravésda qual, no inverno, se organizavao serviço de correio
tadas principalmente por correio terrestre. Nesse caso, o caminho por água só é uti- com Constantinopla e a Síria; e a segunda em direção ao estuário da Narenta, já fora
lizado em caráter excepcional. E também não é verdade em relação às mercadorias das possessõesda Senhoria, de onde uma profusão de pequenos navios transportava
preciosas, pois o transporte por terra (transporte de luxo, certamente) não está acima para Veneza tudo o que as caravanas traziam ao estuário: lãs, couros, gado em pé da
de suas possibilidades. Assim, no final do século XVI as sedas brutas de Nápoles península dos Bálcãs. O fato de o comércio entre Narenta e Veneza haver sido pre-
chegam por /erra até Livorno e dali, de novo por /erra, avançam a Alemanhas', ou judicado pelo corso dos Uscocos, e depois pela concorrência de Ragusa e Ancona,
mesmo os Países Baixoss2. E também por terra, no sentido oposto, que as sarjas de substituindo regularmente a Senhoria apesar do monopólio reivindicado por Veneza
Hondschoote chegam a Nápoles, onde mais de sessentacasas especializadas cuidam em favor da linha Narenta Veneza, incitou, a partir de ] 577, e ainda mais depois de
da sua redistribuição entre 1540 e 1580s3. 1580, a levar em consideração os projetos de um judeu instalado em Veneza, Michel
Finalmente, no final do século, no Mediterrâneo oriental, acontece uma retoma- Rodríguez, que diziam ser pessoade notável inteligência. Essesprojetos visavam a
da decisiva da rota terrestre. Ragusa, que vivera de uma centena de trá6egos diversos, equipar a escala de Spalato cidade então decadente, mas possuidora de um porto
alguns próximos, outros mais longínquos (entre essestrá6egosde longa distância fi- excelente e ligada ao interior balcânico e organizar comboios protegidos de Spa-
gurou durante muito tempo o do mar Negro), renuncia a essestráfegos nos últimos lato a Veneza.Os projetos só foram levados avanteem 1591,devido à oposiçãode
anos do século e retorna ao mar Adriático. Não porque os couros ou as lãs dos Bálcãs um importante senador,Leonardo Donato, hostil a empreendimentos arriscados; é o
cessem de chegar, porém agora eles vêm, depois do grande cruzamento de Nova-Ba- que diz Nicolà Contarini, e é possível que assim tenha sido. Deve-se também levar
zar, pejos caminhos terrestres, que substituíram as vias aquáticas. Do mesmo modo, em conta que antes de 1591Veneza não teve necessidade premente desse expediente.
no século XVlll a esplendorosaboa fortuna de Esmirnas', na extremidade terrestre Mas, uma vez adotadas,essassoluções tiveram rapidamente importantes con-
da Àsia Menor, deve ser interpretada em parte como uma vitória das rotas terres- sequências. Os venezianos construíram uma nova cidade em Spalato: alfândegas,
tres. Pois Esmirna captou uma parcela do tráfego de víveres de Alepo (notadamente comércios, hospitais para a purificação das mercadorias e quarentena das pessoas,
o que se origina na Pérsia), talvez por haver deslocado para um pouco mais longe, "pois as epidemias são muito frequentes em país turco". Reabilitaram-se os muros e
na direção oeste, o ponto de partida dos intercâmbios marítimos com o Ocidente. as fortificações da cidade. Os turcos, por seu lado, repararam as estudas para Spalato
e determinaram datas fixas para as viagens, tanto assim que numerosos mercadores

50. "Notizie'', em .drc/zívioSforlco dí Cora/ca, 1932, pp. 296-297. puderam ganhar a estrada e empreender a viagem juntos, "o que chamam de cara-
51. ,4rcÀ. ,SÍ.//cz/., IX, p. 219; mercadorias de valor de Nápoles a Florença por via terrestre. Ligação vanas", acrescenta Contarini. De pronto, há abundância e riqueza na escala dálmata:
Nápoles.Alemanha
por Florençaa partir de 1592,G. Vivoli, op. cí/., 111,pp. 198 e 350. Sobreos
o corso, ao ampliar suas devastaçõesTIOmar, faz com que a recém-iílaugurada rota
transportes, cf. as negaçõesde J. Perret, Si/"is, 1941, e a resposta de André Aymard, em .R..E...4.,
1943,
PP.321-322 terrestre traga para si as mercadorias provenientes de longe. Chegam a Spalato, da
52. Wílítid Brulez, .De .F'irmã de//a /'aí//e, p. 578.
S3 . Ent\\e Coar, aeú, Un centre indusRiel d'aukefois. La draperie-sayetterie d'Hondschoote {Xyr-Xyllj'
siêc/es), 1930, pp. 252-253, nota 3. 55. O que se segueé tirado de uma história inédita de Nicolõ Contarini, V. Lamansky,op. cl/., pp- 5 13-5 15. O
54. Esmima, centro importantejá a partir de 1550,Belon du Mans, op. c//., p. 89; ali os ragusanosvão fato é assinaladotambém, incidentalmente, por H. Kretschmayr e F. C. Lane. Abundante documentação
carregar algodão; Paul Masson, Hfsfofre d# commerce.»ançals dali /e J.evan/az{M7r slêc/e, 1896, p. inédita em A.d.S., Venezia, Papadopoli, Codice 12, f' 23; em 1585, dezesseismil co//í de mercadorias
125;J. B. Tavemier, op. ci/., 1,p. 68; GuillaumedeVaumas,Z 'E-veí/missionnczire
de/a France, 1942, variadas de Narenta para Veneza,prova de que essegrande desvio prepara, antecipadamente,a fortuna
p. \Q2\P. Xleml FoxlqüexaU,Histoüe de ta Compagniede Jésus en France des originemà ta supptession, de Spalato. Outras referências: Cinque Saví!, 138, f' 77 v' a 79 v', de 16 jun. 1589; idem, lidem, f'
1925, IV. pp. 342 e ss.; Gérard Tangas, Les Re/af/ons de /a France aves / 'Elnpire Of/amamd ran//a 182. 24 set. 1596; Musgo Correr, D. delle Rosé, 42, f' 35 v', 7 set. 1596; idem, 21, 1598, 1602, 1608;
premiàte ntoitié du XVIF siêcle et I'ambassade de Phiílippe de Harlay, comte de Césy, 16}9-1640, Cinque Savíi, 12, f' 112, 2 set. 1610. Sobre a fabricação do /azzare//o de Spalato, cf. A.d.S., Venezia,
1942,p. 208; barão de Tou, ]ldlémoires,op. cíf., IV. pp. 85-86. Senato Zecca, 17, 22 abr. 1617.

38Ó 387
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILiPE ll A UNIDADE HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADESE ROTAS

Síria, da Pérsiae das Índias, ao cabo de desmedidasnavegaçõescontinentais, merca- 1634a 1645ó'.Evidentemente, os co//íf, essesenormes pacotes,não constituem uma
dorias que até então transitavam pelo mar. Isso já é, por si só, uma revolução viária. unidadede medida regular; evidentemente,o tráfego próprio de Spalato não foi con-
"Assim", observa Contarini, "de Spalato a Veneza começam a chegar [...] sedas, per- tado separadamente(como teria sido conveniente) do conjunto dos tráfegos dálmatas
fumes de vários tipos, tapetes, ceras, lãs, peles, quinquilharias (cíamZ)e//orfã),tecidos ern direçãoa Veneza(no entanto,os Cínqz/eSavíí falam, emjulho de 1607,de doze
de algodão e tudo quanto os paísesdo Oriente produzem ou fabricam para uso dos mil bolas [ba//a - co//o] de mercadorias, somente para a escala de Spalato, "além do
homens"só.Pelo mesmo caminho, em sentido inverso, Veneza envia seus brocados dinheiro líquido" (o//re /l con/adí í/z borga szíma':). Os documentos enumeram às cente-

de ouro ou de prata. Grandes galeras para mercadorias (mais curtas, mais baixas nas os cavalos das caravanas e logo um enxame de mercadores chega a Veneza, vindo

sob a linha de água do que as que faziam outrora a viagem de Veneza a Southamp- até mesmo de Brousseõ;, armênios, judeus, gregos, persas, valáquios, gente de "Bog-
ton'', porém bem protegidas contra os barcos dos uscocos0garantem aos homens e diana" e da Bósnias'. O cuidado que Veneza demonstra em defender essasligações
às mercadorias uma rápida jornada entre Spalato e Venezá.- próximas, como por ocasiãoda peste que assola Spalato durante o verão de 1607ós,e
Os concorrentes e adversários de Veneza não demoram a tomar consciência o reforço do comércio em direção à Moreia tudo indica que a estabilização da liga-
de que, para golpear Veneza, era necessário golpear Spalato. A partir do verão de ção com os Bálcãs não é apenas mais um expediente, porém uma solução permanente.
1593, os ragusanos, pressionados pela nova ligação que concorre com seus tráfegos, Quanto às causas precisas dessa conquista, certamente grande parte da res-
iniciam uma campanha de difamação junto aos turcos. Recomendam ao embaixador ponsabilidade cabe ao corso uscoco, cristão ou muçulmano. Nicolõ Contarini, em
destacadojunto ao paxá da Bósnia, em maio de 1593,censurar o empreendimento, sua Hísfoíre, diz em termos próprios que a expansãodo corso determinou a pros-
d/ b/cismar/a e explicar que "todos os objetivos e proyetos dos venezianos nada mais peridade do porto". Porém, os corsários não são os únicos responsáveis. A eleição
são do que atrair para este porto os turcos e outros vassalos do Grão-senhor com o crescente e insólita, "cosa non piü usata", diz o mesmo Contarini, da rota terrestre
objetivo de se apoderarem deles em alguma oportunidade de guerra [...]". Em 1596s8, pode e deve ter outras razões. Ela suscita a questão dos preços de custo, de conjun-
quando dos negócios turcos de Clissa (pequena praça turca tomada traiçoeiramen- tura, numa época que o aumento de preços tudo transtorna, talvez pela intensifica-
te pelos uscocos e que o turco recuperou rapidamente,ao custo da imobilização ção dos tráfegos. Preço de custo? A segurança tem aqui seu papel, vê-lo-emos no
de importantes recursos necessáriosà guerra da Hungria), no momento em que os final do século pela incidência dos prêmios dos seguros marítimos, fato que implica
Imperiais e o papa tentavam arrastar Veneza para a guerra contra o turco ocasião grande desvantagem para os navios venezianos, apesar de suas tripulações mal pa-
em que ocorriam múltiplas perturbações nos domínios venezianos da Dalmácia por gas e de seus fretamentos baratos". Seria necessário levar em consideração o even-
causa da guerra de Clissa --, o duque de Olivares, vice-rei de Nápoles, curiosamen- tual baixo preço dos transportes caravaneiros nas regiões turcas, essasregiões que
te tentou sublevar Spalato, ou pelo menos fomentar algumas intrigas... Esse ano em só são alcançadas pelo aumento dos preços no século com muito atraso em relação
que ocorreu o caso Clissa causou uma série de ansiedadesa Veneza e mil dificulda- ao Ocidenteó8? E o que deixam entrever nossos colegas, os historiadores turcos"
Em todo caso não faltam provas, no final desseséculo e início do seguinte, de
des a Spalato.Nada demonstra melhor a importância que esse domínio terrestre do
um aumento das atividades viárias nos Bálcãs. No que respeita a Ragusa, documentos
comércio do Levante adquirira para Venezas9.
Trata-se,nessecaso,de uma ligação que perdurou,e não de um êxito fugaz.
Spalato tornou-se o principal local das relações entre a Dalmácia e Veneza, sobre as
6\ . Idem. ibidem.
quais dispomos de algumas informações estatísticas: em média onze mil co//fí de 62. CíngueSaPíj,Riposta 141, f's 28 e 29, 19jul. 1607.
mercadorias de 1586 a 1591; 16460 de 1592a 1596ó'; 14700 de 1614a 1616; 15300 de 63. Cíngue Savli, 4, f" 1083, 19 set. 1626.
64. /dem 19, f"s 103 e 104, 20 maio 1636.
65. Cf. sup/"a,nota 62.
56.V. Lamansk:y,
op. ci/., p. 514. 66. V Lamansky,op. cí/., p. 514.
57. F. C. Lane, op. ci/., p. 2. 67. Cf. pp. 355-356e Domenico Sella,op. cí/., pp. 41 e ss.
58. V. Lamansky,op. ci/., pp. 504 e ss. 68. Cf. segunda parte, âgura à p. 655.
59. idem, p. 514. 69. Utilizo, segundominhas notas,observaçõesdo professorLütfi Guéer no Colóquio dejunho de 1957
60. Domenico della, op. cl/., pp. 2 e 55. na Fundação Giorgio Cini.

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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE ll À UNIDADE HUMANA: ROTASE CID.ODES, Cll)ODES E ROTAS

de mercadores de 1590-1591" (às vésperas da boa fortuna de Spalato) revelam a Doehaerd chega a sustentar's que a boa fortuna "terrestre" de Antuérpia, em fins do
atividade dos tráfegos em direção ao interior; isso também pode ser verificado pela século XV e começos do XVI, é produto de uma verdadeira tomada de poder por
construção, perto da cidade, de um novo bazar para os mercadores turcos. Notar-se-á parte das viaturas, amalgamando Antuérpia à vida precipitada da Ajemanha e tam-
também a construção na extremidade do porto, em 1628, de um local de quarentena bém da ltália ou, um pouco mais longe, da Polânia.- Essa boa fortuna de Antuérpia
mais espaçoso't.O fato, em si medíocre,sugere,acrescentadoa alguns outros, que opõe-se à fortuna "marítima" de Bruges nos séculos anteriores, simples etapa em di-
essescontatos por via terrestre suprimiram, ou ao menos reduziram, as paradas na reção ao Norte da pujante navegação dos mediterrâneos. Aliás, do Norte europeu ao
Síria ou no Egito e os longos transportes marítimos entre o Oriente e a ltália, acen- Mar interior a concorrência, a coexistêTlciadas rotas marítimas e terrestres é patente,
tuando o avanço para leste dos mercadores e mercadorias do Levante. Em Veneza, fazendo-se a separação sempre entre o pesado e barato, de um lado, e o leve e pre-
o /'on/fco deí Zarcbí, em SanGiovanni Decollato, data de 1621'z.Ragusatambém cioso, do outro7ó.Isso ocorre em um imenso tabuleiro que, aos nossos olhos, é maior
recebe a afluência dos mercadores judeus e turcos73.Então.lse o século XVll conhece e mais claro que o dos Bálcãs.Contra a opinião primeira que eu sustentava,já não
uma recrudescênciada peste, especialmente na ltália, também nos Bálcãs, segundo acredito que a rota oceânica e a "descida" dos nórdicos, da qual tornaremos a falar,
Jorjo Tadié74,há talvez uma relação de causa e efeito entre essa recrudescência e a tenham superado imediatamente e de uma vez por todas as grandes rotas alemãs ou
reabilitação dos transportes terrestres. francesas que se dirigem ao Mediterrâneo. Em seu livro a respeito da companhia da
família della Faille em Antuérpia, Wilfrid Brulez'7 nos oferece essa demonstração.
A rota terrestre; o problema em si Comerciando com a ltália de 1574 a 1594, a companhia dos della Faille quase sempre
teve de escolher entre o mar e as rotas alpinas. Não é indiferente que tenha optado por
Em si mesmos, os transportes viários nos Bálcãs levantam problemas que estas últimas em detrimento da primeira. É o resultado de um cálculo muito preciso
transcendem prontamente seu próprio exemplo. Problemas de estrutura e de conjun- que determina seu mais estrito interesse. A rota terrestre não é isenta de desvanta-
tura simultaneamente. Se se delineiam melhor e são mais visíveis no final do século gens, mas é relativamente segura, e os lucros médios que gera (16,7%) sobrepuyam
XVI, na verdade eles começam a ocorrer bem mais cedo e tornaremos a encontrá- os do longo curso do mar (12,5%) com enormes diferenças que vão de 0 (ou melhor,
-los bem mais tarde. A concorrência dos meios de transporte é de todas as épocas. um saldo negativo) a 200%. A rota terrestre é bem mais comportada (máximo: 30%).
Nós, porém, os historiadores da primeira modernidade, costumamos cometer o erro Trata-se evidentemente, nesse caso preciso, de mercadorias de luxo. Nada
de acreditar que o mar ou o rio vencem, que normalmente devem vencer; uma via garante, se ponderarmos conjuntamente o Oceano e os caminhos transversais nor-
terrestre, tomada pela retaguarda por uma rota de água, está irremediavelmente con- te sul da Europa, que observaríamos (ou não) aquele transportar mais mercadorias
denada a desaparecer ou a fenecer. Na realidade, as viaturas e os animais de carga do que estes (em peso com certeza; em valor é discutível). Em qualquer caso, nos
têm vida resistente, e não se pode oblitere-los tão facilmente. itinerários de lstambul a Spalato, como de Hamburgo a Veneza ou de Lyon a Mar-
Assim, é inegávelque a prosperidadedo istmo alemãoa partir do séculoXV selha, as rotas terrestres mantêm sua atividade. Talvez seja somente no século XVll
se deve, entre outras causas, a uma aceleração e modernização das carroças. Renée que assistiremos ao triunfo do mar. Isso em consequência da investida dos barcos
do Norte, da propagaçãodos segurosmarítimos e da constituição, sempreno Nor-
te, de poderosas companhias comerciais. Essas considerações gerais conservam sua
importância. Elas esclarecemnossosproblemasno Mediterrâneo, se é que não os
70. Os reitores em O. de Cerva, Ragusa,20 maio 1593,A. de Ragusa,Z,e/feredí Z,evanfe,38, f" 113.
Animação crescente, sem dúvida, dos transportes terrestres, em redor de Orã, Diego Suárez,op. c//.
resolvem antecipadamente.
pp. 36, 47, 50, 86, 275 e 314.
71. Dr. M. D. Gmlek, "Quarantaineà Dubrovnik", Spmpos/zzm
Giba, abr. 1959,pp. 30-33.
75. RenéeDoehaerd,Etudesanversoises..Documen/ssur /e commercein/erma/lona/à .,4nvers,1488-1514:
72. Giuseppe Tassini, Cz/rios//à Heneziane,1887, pp. 277-278. Desde antes dessadata os mercadoresturcos
em Veneza foram reagrupadoi, Senato Terra 67(15 maio 1575). Sobre mercadores turcos e armênios, 1, 1963,''Introduction'',p. 66.
informações numerosas em Clnqzfe Savíí, 3, 4, 13, 15, 17, 18, 19 (de 1622 a 1640). 76.JacquesHeers,''ll Commercionel Mediterrâneoalia Fine del SecoloXIV e nei PrimaAnni del XV'':
73. Cf. também A. de Ragusa, Diversa c# Canga//aria, 192 a 196. Archivio Storico ltati,ano, \9SS

74. Em sua cartajá citada de 7 nov. 1963. 77. Wilâid Brulez, op. cí/., p. 578.

39/
390
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll A UNIDADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

O duplo testemunho de Veneza difíceis não se modificam*', ou pelo menosnão antes de 1607 no que diz respeito
aos armadores venezianos8'. Então das duas uma: ou esses astutos manipulado-
Do que precede podemos seguramente concluir que durante a segunda metade res de dinheiro, genovesese florentinos que controlam os seguros em Veneza e
do século XVI ocorre um incremento dos tráfegos terrestres, ou mesmo a reabilita- formam verdadeiros /obZ)ys,não enxergam seus interesses próprios e asseguram
ção de alguns caminhos abandonados. Resta saber o que acontece na mesma época mercadorias, navios e fretes por mera íijantropia, ou estamos cometendo erros em
aos tráfegosmarítimos. Ora, dir-se-ia que de modo algum os registros indicam um nossos cálculos. Suponhamos, e a hipótese é quase razoável, que a taxa de seguro
decréscimo que seria a compensaçãodo incremento terrestre. Pelo contrário, parece média seja de 5%. Para que o segurador compense perdas e ganhos são necessá-
que se mantém certo equilíbrio devido ao desenvolvimento generalizado. rias vinte viagens sem incidentes para remediar um desastre total. Nesse cálculo
E o que se pode perceber no caso de Veneza. Ao ípesmo tempo que ocorre a demasiadorápido, os navios são consideradosequivalentes entre si, e o desastre,
aventura de Spalato, mais cedo até, torna-se evidente uma grande diminuição da frota com o vigésimo primeiro, total. Já é simplificar demais: para começar, nunca há
veneziana. Esse é com certeza um dos elementos que permitiram falar da decadência desastre completo do lado do segurador, pois ele faz um resseguro, primeiro pon-
de Veneza. Domenico Sella a fixa por volta de 16097'.Alberto Tenenteobserva os to; ele é o proprietário das mercadorias que são recuperadas,segundo ponto; se
sinais precursores já em 1592. Esse pessimismo é talvez exagerado, pois na verdade ele reembolsa a vítima, terceiro ponto, geralmente obtém uma redução sobre o
o tráfego do porto permanece o mesmo em volume pelo menos até 1625, segundo os montante do seguro; finalmente, quarto ponto, se existe igualdade entre perdas e
números do próprio dom Sella: 1607-1610,94973 co//i em média (quinze mil prove- ganhos, ele terá obtido pelo menos o benefício dos juros das somas recebidas en-
nientes dos portos dálmatas e das rotas balcânicas); 1625, 99361; 1675, 68 019; 1680, quanto o seguro era vigente. Esses dados complicam o problema, mas talvez não
83 590; 1725,109497. Seria necessário que navios estrangeiros tivessem suprido às o tornem insolúvel... EÚ suma, é aonde queríamos chegar: não é absurdo pensar
deficiências da frota veneziana. Foi precisamente assim que as coisas aconteceram, que os naufrágios são compensados por numerosas viagens afortunadas... por um
como estabeleceo estudo de Alberto Tenenti7P.Essapesquisa incide sobre o registro lado 37 barcosperdidos; por outro, todo ano 740 (?) viagens':. No final das contas,
dos sinistros marítimos frente a dois tabeliões de Veneza: Andrea Spinelli e Giovan o porto de Venezaseria mais ativo do que se costuma supor, e a navegaçãonesse
Andrea Catti, ambos especialistas em transportes marítimos que congregam à sua final de séculoXVI, que dizem calamitosa,não dá sinal algum de anemia.Em
volta a quase totalidade dos possíveis clientes. A partir do instante em que um sinistro 1605,Veneza possui apenas27 barcos grandes83,é verdade; se a proporção entre
é conhecido em Veneza, os interessados vêm registrar seus seguros para em seguida barcos grandes e pequenos for a mesma de outros lugares, ela deve possuir mais
poderem exigir o que lhes é devido. Nos dezoito anos cruciais (1592-1609), na articu- de duzentos navios pequenos (dez por um). De qualquer modo, na lista do amcor-
lação de dois séculos,a série negra correspondea mais de um milhar de casos, dos razzo (I' setembrode 1598 1' setembrode 1599):'eu conto 46 marca/gane,
pro'
quais 660 aproximadamente (ou seja, quase 37 por ano) correspondem a naufrágios vavelmente venezianas, e há barcos menores que elas. Certamente essealzcorrazzo
ou capturas por corsários e o restante a "acidentes" ou avarias mais ou menos graves. de 1598-1599 fornece apenas a lista dos duzentos pagamentos efetuados, porém
Essasondagem,de rara amplitude, estabelecetanto a decadênciada mari- cada um dessespagamentosnão significa uma só viagem e os barcos são isentos.
nha veíleziana,já de nosso conhecimento, quanto o aumento das chegadasdos A respeito desseponto, um estudo bem-sucedido, mesmo que fosse em detalhe,
barcos nórdicos que tocam Veneza, vindos do Atlântico e para ali se dirigindo poderia encerrar a questão.A pergunta que se faz é a seguinte: quantas viagens
ou já ocupados com o tráfego do Levante. Pode-se certamente falar do declínio
maré/imo de Veneza, mas não do declínio geral do tráfego de seu porto, que por 80. /dem, pp. 59 e 60, taxa fixa dos seguros de Ragusa, lorjo Tadié, carta de 7 nov. 1963, já citada
ora é nossotema. Um pormenor insólito: as taxas dos segurosdurante essesanos 81. Cinqz/e Savii, 141, f' 32 a 33 v', 24 set. 1607. A taxa dos seguros para a Síria seria de 8%, 9%, 10%
tanto para a ida quanto para a volta. As taxas (ida simples ou regressosimples) são, em 1593 e 1594,
regularmente de 5%. A.d.S., Venezia, .Aüsce//anca,Carte Private 46. Os C/ngz/eSavíi exageram para
conseguir autorização de exportar prata para a Síria?
82. Hipótese evidentemente otimista.
78. Domenico della, op. cí/., p. 72 83.idem,P. 567
79. Alberto Tenenti, A/azlP'ages,carsalres e/ asszrrancesmaríílmes à Heníser/SPZ-/ó09, 1959. 84.idem,pp. 563e ss.

392 393
bu b..a

O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FiLIPE il A UNIDA])E HUMAN.A: ROTASE C]])ODES, C]])AGES E ROTAS

para um pagamentoregistrado?Desdejá, porém, ante a ampliação da atividade da complexidade dos fatores presentes. Mas é possível adivinhar uma permanência
das grandesrotas dos Bálcãs, talvez não seja lícito imaginar um Adriático e um estrutural das relações que pode ser mantida como hipótese de trabalho.
Mediterrâneo inertes, ou preguiçosos, ou vazios. Creio, ao contrário, que o tráfego
no Mediterrâneo atingiu, no anal do século, um volume considerável. Senão,como Circulação e estatística: o caso da Espanha
é que o corso, que dizem próspero, poderia florescer? Em Ragusa, o número de
barcos ragusanos seguramente diminuiu, mais eis que, ao acaso dos registros da Outro exemplo, mais extenso: Castelã rodeada por uma série de alfândegas con-
chancelaria da pequena cidade, encontramos um inglês, um marselhês e até um ca- tinentais e marítimas, umas e outras espalhadas ao longo das costas ou das fronteiras
talão, este último certamente dono do navio8s. Como se vê, criaram-se sucessores. terrestres, e neste último caso mais ou menos no interior das regiões castelhanas. Os
Não concluamos o debate decidindo entre as duas circulações, ao menos no pz/e/"roi secos, portos secos (terrestres), são 39 postos de alfândega nos confins de Na-
século XVl: a prosperidade provoca o aumento simultânéb de todos os preços. É varra, Aragão e Valência que comandam o acesso às rotas principais e secundárias de
igualmente necessário acreditar na firmeza das posições alcançadas, pelo menos Castelã; os quer/os a//os, portos de cima, estão na orla de Navarra e Aragão; os pz/er/os
seus respectivos valores. óayos,portos de baixo, controlam os tráüegosem direção a Valência. Os puerfos de
Veneza oferece-nos, a respeito da rivalidade dos tráfegos terrestres e marítimos, Portuga/, que são 46, alguns de mediana importância, controlam os acessosterrestres
outro pequeno controle. O acaso conservou-nos, de 1588 a 1606*', a lista das bolas a Portugal. Ao longo das duas fronteiras marítimas, no golfo da Gasconha e da costa
de lã que lá chegam "do poente" entenda-se: da Espanha. Faz-se distinção entre de Valência até Portugal, percebem-se, de uma parte, os díezmos de/ mar, dos quais a
as bolas vindas diretamente por mar e as que vieram pelas estudas transversais da autoridade real se apoderou em 1559**(antes pertencentes ao condestável de Castelã);
ltália. O que precipitou o primeiro movimento foi a quase franquia concedida para a e, de outra, os múltiplos direitos que são da alçada do vasto complexo fiscal que é o
entrada, em 1598, das lãs vindas por mar. Os navios holandeses encarregam-se des- d/mq/areÉazgoÀíayor de Sevilha, instituição já existente ao tempo dos reis mouros
ses transportes diretos. E, no entanto, apesar dessas vantagens e desses excelentes e que controla todas as entradas marítimas, às vezes por meio de postos um pouco
navios, a rota por terra, por Gênovae ainda mais por Livorno se mantém e vence afastadosno interior das terras, porém mais frequentemente em uma série de portos
a rota rival. Por quê? Pode-se adivinhar aproximadamente. Primeiro, há o peso do (Sevilha, Cádiz, San Lugar de Barrameda, Puerto de Santa María, Málaga...). A es-
hábito, das posições conquistadas. Sabemos que genoveses e os florentinos são os ses direitos antigos acrescentou-se o .4/moyareÉazgode /maias, que só é exercido sobre
senhores das compras na Espanha; que existe uma linha de pagamentos (na verdade as mercadorias provenientesdas Índias, isto é, da América, ou para lá se dirigindo.
um crédito teleguiado) desdeMedina del Campo até Florença (e volta), como faz fé a Assim, Castelã está rodeada de postos alfaíldegários, representados, em Siman-
correspondência de Simón Ruiz87; que os mercadores venezianos compram mediante cas, por uma massaenorme de papéis e números que acabam de receber destaque
depósitos (entenda-se:a crédito) contra Florença e que a primeira escolha da lã é de devido aos recentes trabalhos de Ramón Carande8çe Modesto Ulloa90. Teremos aí

Florença, com Veneza reservando para si a segunda escolha. O papel de transmissão uma balança na qual pesar as duas circulações, a marítima e a terrestre? Sim e não.
de Florença explica a utilização frequente do caminho por terra e /a/vez até mesmo Sim, dada sua continuidade relativa e sua extensão; quando se trabalha em escalas
o número de chegadas totais em Veneza no final do século XVI, correspondendo à muito amplas, os erros tendem a se compensar. Não porque a âscalização castelhana
precoce queda da indústria florentina, que libera a matéria-prima. embaralha os números, diminuindo seu valor e principalmente porque Castelã, nosso
Eis aí um bom exemplo, claro que insuficiente setomado sozinho, para decidir exemplo, trata prioritariamente do Oceano, para onde corre toda sua vida em rela-
o debate da não elasticidade das concorrências entre as duas categorias de rotas e ção ao Mar Interior, ao qual volta as costas.De qualquer modo, exigiremos desses
documentos apenas algumas ordens de grandeza e uma comparação.

85. A. de Ragusa, Z)lversa dl dance//aria, 192 a 196, e notadamente 192 (í' 139, 30 maio 1604, f" 176
v', 1604,o Catalão); 194 (f' 44 v', 2 maio 1605).
86. Musgo Correr, Proa. Div. C 989(Mercatura e traíhchi lll). 88. Modesto Ul]oa, .[íz JZacienda ./?ea/de Cczs/í//a en e/ .Re//lado de .F'e/ipe ]7, Romã, 1963, p. 187
87. Felipe Ruiz Martín, .Le//res mare/landes éc/zczngéese/z/re .F/o/"ente e/ -À4ed/ncz
de/ Ca/npo, 1965, 89. Ramón Carande, Cbr/os P'.y sz/s.tanque/"os.Za 7acienda -Rea/de Cas/i//a, 1949, pp. 292 e ss
P.cxVI. 90. .La /íacienda .Rea/..., pp. 137-200.

394
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll A UNIDADE HUMIANA: ROT.ASE CID.AGES,CIDADES E ROT.AS

A primeira conclusãoé que os tráfegos e os direitos aumentaramconsi- hipótese de Hermann van der Wee9: resume bem o que está em jogo no debate. Du-
deravelmente. 1) Se 100 representar a receita do .4/mo/areÁazgode /nd/as, em 1544 rante o século XV, a Europa e o Mediterrâneo teriam conhecido um desenvolvimento
ele atinge, numa média anual entre 1595 e 1604,666: e mais do que se sextuplicou apenasmarítimo, de Veneza a Bruges; somente no século XVI é que esse impulso
em cinquentaanos, multiplicação que é confirmada pelaspesquisasde Huguette e para o exterior teria vivificado uma economia "transcontinental", rotas de terra e
Pierre Chaunu. 2) Para o .4/mo/areÁazgo.l#:apor, ou sqa, cem em 1525, ele atingiria mar sendo então arrastadas por esse impulso. No século XVll, a economia viva, ou
quase trezentos em 1559, 1000 em 1586-1592 e (valor inchado) talvez 1 100 em 1602- que permaneceuviva, mais uma vez se limitará às franjas marítimas, e só no século
1604''. 3) Para os díezmos de /a n ar. cem em 1561; mais de trezentos em 1571; 250 seguinte é que tudo terra e mar recomeçará ao mesmo tempo.

em 1581; duzentos em 1585; pouco mais de duzentos em 1598. Claramente, foi no Creio que essesgrandes ritmos são possíveis. Em todo caso, eles podem ser
Sul da Espanhaque se manifestou, como já era sabido, q grande impulso maríti- úteis como quadro de problematização. Nosso século o XVI reparte suas chan-
mo do século. 4) Os puerfos secos: cem em 1556-1566;277 em 1598.5) Os pz/erros ces em dois tabuleiros simultaneamente. A regra a pr/ori seria supor que, de ma-
de Porfz/ga/ mostram um progresso mais fraco: cem em 1562; 234 em 1598; estes, neira geral, a todo progressoviário verificado deve corresponder,grosso modo, a
contudo, encontram-se por excelência nos caminhos em que ocorrem mais fraudes. um progresso da navegação e vice-versa. SÓobservaremos a atividade unilateral
Todavia, se quisermos observar a evolução comparada das alfândegas de terra do mar no século XV. com os italianos, e, no XVll, com os holandeses. Evidente-

e mar, devido às diferentes extensões das séries será preciso dispor o índice cem por mente, se a hipótese é carreta, os estudos localizados deveriam confirma-la. Porém,

volta de 1560.Nessa data isso perfaz o total de 38 milhões de maravedis em impos- essesritmos certamente não ocorrem com a mesma nitidez em lugares diferentes e
tos sobreo tráfego viário e 115milhões para todo o tráfego marítimo, ou seja,uma em momentos diferentes. A fase holandesa, evidentemente, não suprime a vida ou
proporção de um para três. Se efetuarmos uma nova contagem por volta de 1598,os mesmo o progresso de algumas rotas terrestres. Pode-se ler no registro dos Cínqtíe
resultados serão 282 milhões de maravedis contra 97: a proporção de um para três Sav/i':, em 8 de maio de 1636,"che more mercancieche venivano per via di mare
se manteve. Não ocorreram mudanças estruturais entre as circulações castelhanas habbino preso il camino di terra da Gênova o Livorno". Nada, em 1636, ainda está
no decorrer da segunda metade do século XVI. O progresso teria favorecido ambas definido. SÓse pode crer nas grandes imagens simplificadoras com provas em mãos.
ao mesmo ritmo, seguindo uma mesma curva, para utilizar os termos de nossos grá-
ficos. Eis algo que sugere,com mais nitidez do que nossosexemplosprecedentes,
certo equilíbrio das circulações uma em relação à outra: o conjunto se mantém em 2. A Navegação: Tonelagens e Conjunturas
relações que pouco variam.
Conhecemos por seus nomes, tonelageTls aproximadas, cargas e itinerários milha-

O duplo problema no longo prazo res de navios no Mediterrâneo. Mas não é fácil dominar essesmúltiplos testemunhos ou
dar-lhes um sentido. O leitor deverá perdoar alguns procedimentos, em primeiro lugar
A partir de exemplos especíâcos no espaço e no tempo, não se pode tirar con- o abrir muito o campo cronológico da observação, passandocom frequência do século
clusões e muito menos generalizar. Toda solução nesse campo onde a pesquisa XV ao XVlll; e também, segunda precaução, agregar o Atlântico ao Mediterrâneo.
se obstina em conhecer não tanto o volume exato de cada uma dessascirculações Essesprocedimentos surpreendentes encontrarão a seguir sua justificativa, e mais três

quanto o modo como evoluem ou parecem evoluir uma em relação à outra seria ou quatro regras prévias que comporão o debate impõem-se desde o princípio:
ao preço de uma pesquisa que se estendesseamplamente não sobre os cinquenta \ A navegação no Mediterrâneo não diferefuridamentatmente da navegação

anos deste livro, porém sobre vários séculos, ao menos do XV ao XVll ou XVlJI, e no ocea/?o. As práticas, os prémios dos seguros, os prazos de rotação das viagens são

não limitada apenas ao Mediterrâneo, apesar de tão vasto e tão diverso. A sedutora diferentes, porém o instrumento utilizado, o barco de madeira movido pelo vento,

92. fhe Growf# of/;ze 4nfwe/p Ã4arkeía/zd f/zeEzíropean Economy, 1963, 11,pp. 311 e ss
91. Simancas,EscrivaniaMayor de Rentas, 1603-1604. 93. A.d.S., Venezia, Cinge/e Savíi, 4 Z)ü, f' 44, 8 maio 1636.

397
39Ó
A UNIDADE HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILiPE ll

tem os mesmos limites técnicos. Não pode ultrapassar determinadas dimensões, 3 -- Devemos resignar-nos de uma vezpor todas a conhecer mal as tonelagens

determinada tripulação, superfície de velame, velocidade. Não aparece no oceano do sécz//oXr7 -- mais que isso, a ignorar as tonelagens médias, o que permitiria, uma
nenhum novo tipo de navio do qual em curto prazo não soam vistos alguns exem- vez conhecido o número de navios que entram em um porto ou dele saem, calcular
plares no Mediterrâneo, o que é mais um fator de uniformidade. Em Veneza,que a tonelagem do conjunto. Propus a média numérica de 75 toneladas:'', segundo as
possui seu tipo próprio de barcos e não se dispõe a muda-lo, encontramos,no en- estatísticas dos portos andaluzes. Esse número provavelmente é demasiado elevado.
tanto, caravelasjá na juventude de Marin canudo, no anal do século XV. e galeões Em todo caso, as tonelagens indicadas nunca são precisas: os especialistas faziam
e ber/oní antesdo final do séculoXVI. Até mesmoo turco dessaépocaserve-sedo a estimativa de acordo com as medidas da embarcação (altura, largura, profundida-
galeão de tipo oceânico94,nav/s graves, naves oneraría, os maiores dentre os navios de-.). Quando se tratava de alugar um barco a um Estado qualquer, o número era au-
mentado, o que era francamente admitido no caso do aluguel espanhol. Suponhamos,
de carga, explica Schweigger, um viajante alemão que osiviu em lstambul e em ou-
tros [ugares em ]581's. contudo, que todas as sinceridades estejam reunidas: é necessário ainda transformar
2. Semprese observa, no Atlântico como no Mar Interior, o papel preponde- sa/me, s/ara, boffe, ca/arara, Garra, em nossas unidades de medida. Aqui, algumas
armadilhasnos espreitam: a conversãodos preços nominais em gramasde prata é
rante, esmagador, dos barcos de peqlfena fome/agem. Carregam com presteza, dei-
xam o porto com o primeiro vento; proletários do mar, muitas vezesvendem seus menos aleatórias As tonelagens "nominais" do século XVI chegaram a diminuir de

serviços a baixo preço. Dois frades Capuchinhos regressamde Lisboa à Inglaterra repente em Sevilha. O que não deixou de criar vários problemas a Huguette e Pierre
em junho de 1633: o capitão de uma /zavigue/a de Honfleur (35 toneladas), carrega- Chaunul Trabalhei por um instante sobre os documentos dos consulados franceses

da de sal e de limão, oferece-separa conduzi-los a Calais9'medianteoito libras por (A. N., série B 111),que fornecem para uma série de portos estrangeiros, no século
XVlll, os relatórios das chegadas de navios e suas cargas. Por diversas vezes, para
passageiro. Em abril de 1616, dirigindo-se à Espanha, o embaixador veneziano Piero
um mesmo barco mesmo nome, mesmo patrão, indicações concordes quanto ao
Gritti prefere embarcar em Gêílova numa malucaprovençal, simples barco de dois
mastros; seu objetivo é partir rapidamente, e ele reserva lugares para sua família em itinerário e carga , a tonelagem indicada nessespapéis variava de um porto e de um
consulado a outro... O resultado é que nos obriga a permanecer em aproximações,
uma grande nau cujo destino é Alicante97.A maluca,escreve R.P. Binet em 1632,"é
o menor navio dentretodas as naves a remos"". com todos os inconvenientes que isso implica.
4 0s testemunhos mais numerosos com certeza tratam dos navios grandes
Essa maioria de barcos de pequena tonelagem ostenta nomes genéricos que
e mz///ograndes. Estes últimos já estão, não no ponto de transição entre tone
podem variar de acordo com o porto, as regiões ou a época:grippí ou mare/zíou
marca/fama,do Adriático, falucas ou tartanas da Provença, barcos como dizem por lagens medianas e grandes, na vizinhança da centena de toneladas porém, no
vezes, sem mais, as estatísticas dos portos-. Os pequenos, bem abaixo de cem tone- limite superior,por volta de mil e até duas mil toneladas.Na verdade,habitu-
ladas ou mesmo cinquenta, animam tanto o oceano quanto o Mediterrâneo. Os gran- almenteosproveedorei espanhóisnão irão embargarum barco bretão de cerca
de trinta toneladas, ou numa caravela na qual estará alojada no máximo uma de
des cargueiros estão na proporção de l para 10, segundo as estatísticas de Valência
zena de cavalos, como em 1541'02,por ocasião da expedição contra Argel. Eles
de 1598a 1618P9.
Quando se toma conhecimento de que em Veneza, em 1599'oo,há
trarão de olho os grandes barcos, que aliás transportam mais do que declaram,
31 navios (isto é, navios grandes),convém imaginar a seu lado várias centenasde
barcos de pequena tonelagem.
pois o Estadoespanhol lhes concedeprêmios, fretes substanciaise generoso
reabastecimento.

94. R. Mantran, op. ci/., p. 489.


101. Segundo Simancas E' 160. Cf. p. 372. A título de curiosidade, de grande interesse para a história
95. S. Schweigger,op. cí/., p. 241
das técnicas, A. Delatte, "L'amlement d'une caravelle grecque du XVI' siêcle, d'aprês un manuscrit
96. B. M. Sloane 1572, f'' 50 v' e 51, 2 jul. 1633.
de Vienne'', J16sce//ancaÀáercanfí.t. 111,1946, pp. 490-508. É o estudo das proporções das diversas
97. A.d.S., Venezia,Dispacci Spagna,P' Gritti ao doge,Gênova,30 abr. 1616.
98. R. P. Binet, Essas des merveí//es de na/ure e/ desp/ s nab/es arfz@ces(ed.de 1657, p. 97). partes do navio em filnção da tonelagem. Devo a Hélêne Bibicou a tradução dessetexto di:Hcil.
102. Simancas,GuerraAntigua, XX, f" 15, 15 set. 1541. Para um cavalo transportado, é preciso ao menos
99. Segundo o trabalho ainda inédito de Àlvaro Castillo Pintado.
umas vinte toneladas
100. Museo Correr,D. delle Robe,217.

399
398
A UNll)ADE HUM.ANA: ROTASE CIDADES, CID.ODESE ROTAS
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE il

Um barco de mil toneladas é, na época, um monstro e uma raridades Em 13 de constituam, para isso foram construídos, em "spavento a tutti", um espantalho para
fevereiro de 1597,Thomas Platterl03,médico de Basileia, numa viagem para concluir qualquer corsário'"
seus estudos em Montpellier, encontra-se em Marselha. No porto ele só tem olhos e9 finalmente, as grandes tonelagens não eliminam a concorrência, apesar da
para um navio genovês que os marselheses acabam de apreender. preferência dos ricos e das cidades mercantis, apesar da atração que sentem pelos
governos esbanjadores(no Havre, em ]532, o rei da França manda construir uma
Uma das maiores embarcaçõesjá lançadas no Mediterrâneo. Parecia uma imensa casa de cinco nau de "smisurata grandezza tal che si suma dever essere innavigabile"'");
andares surdindo no meio do mar. Minha estimativa é que o carregamento pesava pelo menos dezesseis
.0 pode acontecer que o grande navio acumule todos os transportes- São as épocas
mil quintais (oitocentas toneladas atuais). Ostentava oito ou dez velas amarradasem dois grandes mastros
de monopólio de fato ou de direito que conheceu o século XV, e que o XVI reconsti-
de altura prodigiosa, no topo do qual subi por meio de escadasde corda. Desde essaaltura, a vista se
tuirá na América espanhola e nas Índias portuguesas. Basta, porém, que o monopólio
estendia ao longe e sobre o castelo d'lf. perto do qual girava um mointp de vento semelhante aos do
interior da cidade. se abra, por uma razão ou por outra, para que um enxame de navios médios ou media-
nos taça a 'EesXa.
Essas revartches das pequenas tonelagens dão a impressão de estar
Esse exemplo, colhido entre centenas de outros, deve bastar. se/npre sob o szgpzode Ifm morava/ az/mentodas fracas. Grandes navios solitários, con-
5. Se desejamos estabelecer médias ou tender para elas a$m de compreender juntura cinzenta; grandes navios rodeados de múltiplos pequenos veleiros, conjuntura
os conjllntos, o problema é precisamerltesituar e determinar os Havias de grande seguramentefavorável. Essecritério apresentatodos os indícios de estar correto, mas
voltaremos a ele: peço ao leitor que o aceite provisoriamente, à guisa de inventário.
fo/ze/agem. Desde logo devemos notar que:
aOas tonelageTlsrecorde não seguiram uma progressão contínua, ou então os
Grandes tonelagens e pequenos veleiros no século XV
números impressionantes fornecidos pelo século XV, que estão à altura das proezas
do século XVlll, seriam falsos, coisa em que absolutamente não acreditamos'";
óOos grandes barcos estão ligados às longas distâncias; durante muito tempo A partir do século XV observamos a prosperidade das grandes tonelagens.
eles monopolizam essas intermináveis viagens. Acrescentemos que por trás desses A navegação mediterrânea de então atravessa toda a extensão do mar, chegando a

navios existem Estados com suas exigências e seus meios, cidades e, como sempre, Londres e a Bruges, e os percursos mais longos são geralmente obra de Gênova. O
ricos armadores; fato Ihe concedea primazia na corrida pelas grandestonelagens''', tanto mais que
c9 esses grandes cargueiros estão, com igual frequência, ligados a mercado- ela quase que se especializa no transporte de cargas pesadas, notadamente o alume
rias pesadas, volumosas, de baixo preço unitário, que se destinam logicamente à via da Foceia, na Asia Menor, e os vinhos das ilhas do Levante que ela entrega em
aquática, possibilitando assim fretes baratos; Bruges e na Inglaterra diretamente pela via marítima. A carraça genovesa,que se
ap antes das revoluções que se manifestarão na artilharia naval, tardiamen- aproxima das mil toneladas e muitas vezes as ultrapassa, foi durante muito tempo a
te aliás, esses enormes corpos flutuantes estão sob o signo da segurança. Tão ex- soluçãoracional para um problema técnico difícil.
postos quanto a mais leve das embarcaçõesaos acasosdo mau tempo, pelo menos Veneza segueesse movimento com grande atraso. Primeiramente, ela está
podem fazer frente aos encontros desagradáveis. Como se opor às tripulações nu- mais perto que Gênova do Levante, que continua sendo o centro de suas atividades
merosas, aos soldados, aos fundeiros e arqueiros que estão a bordo? O grande na- essenciais; em seguida, seu sistema das ga/ere da mercado'", intensamente organi-

vio é o policial ideal a serviço dos ricos. Os dois grandesbarcos que a senhoria de
Veneza equipa lentamente em junho de 1460, a preço de ouro, é imperativo que se
105. A.d.S., Venezia, Senato Mar, 6, í'' 185, 30 jun. 1460.
106. B. N. Paris, leal. 1714, f' 109, J. A. Vencerao doge,Rouen,22 fev. 1532, cópia.
103. Thomas Platter, em Félix et Thomas Platter à Montpellier, 1892, p. 303. 107. Jacques Heers, Games az/ X}'' síêc/e. ..4c/iví/é économigz/e e/.praz)/êles .social/x, 1961, p. 278.
108. Nosso texto utiliza os primeiros capítulos do trabalho inédito de Alberto Tenenti e Corrado Vivanti
104. SegundoLouis Dermigny,.LaC/zi/zee/ / 'Decidem/..[e commerceà Can/onczuX}77r siêc/e,/ 7/9-/833,
sobre o sistema veneziano das ga/ere da merca/o, que serviu de base para o artigo "Le film d'un
1964, a tonelagem dos grandes /ndfamen continua a ser inferior a duas mil toneladas; o H/ndozzsran,
em 1758,pesaoâcialmente1248 toneladase desloca efetivamente1 890, t. 1, pp. 202 e ss., pp. 212 grand systême de navigation: Les galêres marchandesvénitiennes XV-lXVI' siêcles'', publicado por
e 213 essesdois autoresem .Ànncz/es
.E.S. C., IXVI, 1961, n. 1, pp. 83-86.
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FiLIPE ll A UNIDADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDAI)ES E ROTAS

zado pelo Estado, fraciona os tráfegos em viagens particulares: galeras da Tana, de Outra vantagem dos grandes navios: eles sabem defender-se dos corsários. Em
Trebizonda, da România, de Beirute, de Alexandria, de Aiguesmortes, de Flandres.
da Barbária, do rr({Áego(ao mesmo tempo Berbéria e Egito). Com isso as dificulda-
dese os riscos sãodivididos e as viagensdiretas do Levante a Bruges estãoproibi-
das, à moda genovesa, obrigando as mercadorias a passar por Veneza e a pagar os
direitos de que vive a Senhoria.Finalmente,a utilização das rotas do istmo da Eu- nele indicações a respeito das tonelagens dos navios venezianos que irão juntar-se
ropa mediana é talvez mais exigente para Veneza do que para Gênova. Em resumo. à frota francesa.Para trinta navios (dos quais sete estrangeiros),a média unitária
se essesistema complicado, incessantementerenovado, pede sobreviver, é porque, alcança 675 bo/re, cerca de 338 toneladas, média anormalmente alta aos olhos de
nascido por volta de 1339em decorrênciadas dificuldades impostaspelo retroces- qualquer historiador do século XVI. A título de comparação, em julho de 1541''s
so do século XIV, implica rapidamente prêmios mais elevados para os seguros das os 52 navios recenseados em Cádiz e Sevilha, às vésperas da expedição de Cartas
viagens mais aleatórias. De qualquer modo, as ga/ere da merca/o do final do século V contra Argel, perfazem juntos um pouco mais de dez mil toneladas, ou seja, du-
alcançam somente duzentas a 250 toneladas'09. Aliás, elas só transportam mercado- zentastoneladas em média por navio. Consequentemente, é necessário admitir que
rias caras:pimenta, especiarias,tecidos de luxo, sedas,vinhos de Malvásia...Nessas o século XV conheceu as altas tonelagens, tão altas quanto as do século XVlll: al-
condições, há uma vantagem em repartir os riscos entre as diversas cargas. Apenas guns /ndiamen' '' que então se dedicam ao comércio "à China" avizinham-se apenas
as galeras de Flandres, quando retornam do Norte, transportam além de tecidos das duas mil toneladas.
e âmbar bolas de lã, chumbo e estanho na Inglaterra, pois de outra forma regres-
sariam vazias. Todavia, foi a prática das viagens mais longas, ao mar Negro de um Primeiros êxitos das pequenastonelagens
lado, à Inglaterra do outro, que gerou o aumento da tonelagem das galés (no sécu-
lo XIV, elas deslocavam cerca de cem toneladas) e, em seguida, sua multiplicação. Entre os séculos XV e XVI, pouco antes ou pouco depois, ocorre a retração dos
Além disso, ao lado das ga/ere da merca/o existe em Veneza uma navegação grandes veleiros e um grande desenvolvimento de embarcações de menor tonelagem.
livre ou semicontrolada. São grandes naus, os "cascos", que garantem notada- em meados do século XV o movimento torna-se visível na própria Veneza, onde, em
mente o transporte das volumosas bolas de algodão provenientes de Chipre ou da 1451. uma deliberação senatorial'i' aponta para a voga dos pequenos barcos nas via-
Síria'''. A partir do século X]]] o a]godão torna-se um materia] têxtil importante, gens da Síria e da Catalunha: ef ad viagla s rfe ef caf/za//arie omnes maxis desíderanf
compensando a insuficiente produção de lã e triunfando com o desenvolvimento naves parvas. Logo depois, TIOMediterrâneo, sobrevém a multiplicação dos peque-
do fustão (urdidura de linho e trama de algodão). Há duas mz/dede algodão: uma, nos navios vindos do oceano Atlântico, aqueles intrusos biscainhos, portugueses e
importante, em fevereiro (meia dúzia de barcos) e outra em setembro, que se reduz espanhóis "che prima non solevano passar il streto di Zibilterra", diz uma curiosa
com frequência a dois navios. As volumosas bolas exigem meios de transporte de deliberação do Senado datada de 21 de outubro de 1502'''. Texto bem curioso e ines-
grandes dimensões. Um documento do .Nora/aria di Co//egío''', com data de I' perado para essadata. Veneza, como diz o texto, está então diante de um desastre
de dezembro de 1449, fornece o nome e as tonelagens de cinco barcos redondos inominável: seus grandes navios, que eram trezentos antes (pretensamente) da/ /420
que farão parte da mz/dado mês de fevereiro entrante: 1100, 762, 732, 566 e 495 sino a/ /450, agora são apenasdezesseis,deslocando cada qual quatrocentos boffe
Z)o/re,ou seja, entre 250 e 550 toneladas. Dimensõesassaz respeitáveis, mesmo
para o século XV. 112. A.d.S., Mantova, A' Gonzaga, Série E, Venezia 1433, G. Brognolo ao marquês de Mântua, Venezia:
7 ago. 1490.

109. Gino Luzzatto, op. c//., pp. 41 e ss.


110. idem, p. 76.
111. A.d.S., Notatorio di Collegio, 355, f'' 104 v', I' dez. 1449.Do mesmomodo nestasérie: 372. f' 108 116. Louis Dermigny, op. cí/., t. 1, pp. 202 e ss
v', 12abr. ]450 (915, ] 150, 1 100 óof/e): 97, f' 29 v', 11jun. 1461(2500 óo/re); 343, f" 87. 18 fev. 117. A.d.S.. Venezia, SenatoMar, 4, í"' 28 v', 16jan. 1451.
]471; 368, f' 96, 8 jun. 1471 (uma 17avenova de mais de mil óoffe). 118. Museo Correr, D. delle Rosé, 2 509, 21 out. 1502, j/z rogczfís.

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O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FILIPE li A UNIDADEHUMANA:ROTASE CIDADES,CIDADESE ROTAS

ou mais, a maioria, aliás, boa para demolição; abaixo dessasgrandes naus há uns uma tripulação de pelo menos 32 homens. Uma decisão de Filipe ll em ll de março
poucos navios pequenos, mesmo incluindo as caravelas da Dalmácia e os malta/z/. de ]587 aumentaria essemínimo para trezentas toneladas'". Mas eram poucos, no
Não faltam razõespara essacrise: os impostos que assolama navegação;os Hna] do século XVI, os navios das Índias ocidentais que alcançavam quinhentas tone-
fretes demasiado baratos, irrisórios; a proibição de carregar o sal do Languedoc i# ladas, tanto mais quanto os veleiros de quatrocentas toneladas já tinham diHculdades
mar de Z,íon; a autorização concedida aos navios estrangeiros para carregar vinhos em cruzar a barra de San Lugar de Barrameda, no Guadalquivir, ajusante de Sevilha.
diretamente em Cândia. Além do mais, aparecem aqueles recém-chegadosque cru- Somente na segunda metade do século XVll os galeões de setecentos a mil toneladas
zaramo estreito de Gibraltar e "se enriquecemem detrimento não só dos cí//adia/ se tornarão frequentesj:', e emergira de forma aguda o problema da transferência da
mas também do Estado, que colocam em risco, das mz/de de galés e de nossas naus' Casade la Contratación para Cádiz':: e do monopólio de Sevilha, onde os navios já
Recém-chegados: entenda-se, os navios pequenos. não podem aportar, sobre o comércio com as Índias.
A evolução no oceano é a mesma, no canal da Manch; e no mar do Norte. Aloys Em Lisboa, onde a entrada do porto está livre de obstáculos, navios de grande
Schulte observa essefato em seu maravilhoso livro a respeito da Crosse Ravefzsóz/roer tonelagem não são raros no sécu]o XV]. Em ]558, a nau Garça, que transporta de
pese//sc;zqóf, onde podemos encontrar de tudo, desde que saibamos procurará 19.Contra Portugal para as Índias o vice-rei Constantino de Bragança, desloca mil toneladas;
as grandes naves ou naz/s dos genoveses e outros mediterrâneos, são as finas e ligeiras é. então, o maior navio jamais visto na rota das Índias'23. Em 1579, segundo o tes-
carave//es que triunfam. Nessa época elas são a juventude e a esperança do mundo. temunho de um embaixador veneziano em Lisboa, as nave grandíssima têm 2200
Andréa Satjer escreve de Bruges em 1478: "Die kleinen haben die grosse Schiffe ganz óof/e (mais de 1 100toneladasy:'. No ílnal do século essatonelagem é ultrapassada.
vertrieben'l Ora, a diferença entre as duas categorias é enorme; em 1498, quatro naus A carraça Madre de Deus é arrebatada por Clifford em 1592'25,quando ele a leva de
carregam em Anvers nove mi] quintais de mercadorias; 28 caravelas levam apenas 1 150. volta para Darmouth; diz-se que não pôde subir até Londres por causa de seu calado.
Essa vitória da fina caravela contra os grandes barcos do Mar Interior, do mais Ela ultrapassa 1 800 toneladas, carrega novecentastoneladas de mercadorias e mais
rápido e mais barato sobre o mastodonte de carregamento lento e que trabalha com de 32 moldes de ferro fundido, podendo conduzir setecentospassageiros. Em sua
as vantagensque traz o monopólio, é o início de uma enorme transformação no maior extensãoconta 55 m; a maior largura na segundadas três pontesé de 15 m;
oceano e no Mediterrâneo. Ela prossegue até os anos 1530, cessa por volta de 1550 o calado é de 9 m, a quilha mede 3 m de comprimento, o grande mastro 36 m de
(pelo menos no Mediterrâneo), ressurgecom toda a força depois dos anos 1570e irá altura e três de circunf'erêílcia. A admiração dos ingleses não esmorece quando, em
continuar para além do final do século XVI. 15 de setembro, é publicada a extensa lista das suas mercadorias postas em leilão.
Quarenta anos depois, os portugueses ainda constroem barcos dessetipo. Um via-
Sobre o Atlântico no século XVI jante':' admira, em 1634,uma carraça de 1500 toneladas em construçãono porto
de Lisboa. "Os portugueses", conta ele,
O problema, no tocante ao espaço Atlântico do século XVI, geralmente está
mal formulado. Para corrigi-lo, é necessário examinar separadamente os dois grandes
monopólios dos ibéricos: a Carreta de las Índias a partir de Sevilha e a demorada
120.Huguette e Pierre Chaunu,Séví//eef /'H//anrígue, 1955, t. 1, p. 127, nota 3, sobreas disposiçõesde
ligação de Lisboa com as Índias Orientais. 13 fev. 1522 e de ll de março de 1587; limitações também da capacidade: quatrocentas toneladas
Nesses eixos privilegiados, os pequenos navios dos descobridores logo desapa- em 1547e 550 em 1628paraos navios de bota.
121. J. Kulischer, .4//gemeineWirrsc/zaÜ/sgescAlc#fe
dc?sÀ/íf/e/a/fera nd der Nel/self, 1928(e segunda
recem. Dos três navios da frota de Colombo, o Santa María deslocava 280 toneladas. tiragemem 1958),11,p. 385.
o Pinta 140 e o Nifía somente cem. Cinquenta anos depois, as determinações de 1552 122. Albert Girard. La Ripa/í/é commercía/e de Sévi//e ef de Cádü az{ M77r siêc/e, 1932
123. Barradas. em Bemardo Gomos de Bruto, .rãs/óriczZr(íg/co-marítima, 1904-1905, 1, p. 22 1
só aceitavam navios de mais de cem toneladas nos comboios para a América e com
124. Joz/rna/ de Hoyagede... Zune (1579), inédito, P. R. O. 30. 25.156, Í' 32 v'
125. Alfred de Slembeck, His/ocre des.#/óusf]ers, ]93 1, pp. 158 e ss. Abade Prévost, Hfs/ocre généra/e
des voyages,1746, t. 1, p. 355. Terá esseacontecimento inspirado o pormenor relativo a uma carraça
portuguesa de La Espaãola Inglesa das .AXoPe/as
.E/e/np/a/"esde Cervantes?
119.Aloys Schulte,op.ci/., 111,p. 413. 126.B. M. Sloane,1572

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O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll A 'UNll)ADE H\JMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

[. . .] tinham outrora o hábito de íàzer mais navios e de maior tonelagem. A madeira empregadaé
Josué, de trezentas toneladas, está atracado em San Lucar135.As cidades hanseáticas
fantástica, a ponto de uma floresta de várias léguasnão bastar para dois navios. A construção de um desses
enviam para a Espanhagrandes navios que os sevilhanos alugam ou compram para
barcos exige o trabalho de trezentos homens, e eles mal conseguem termina-la em um ano; os pregos e
outras f'ervagensnecessáriaschegam a pesar quinhentas toneladas. As carraças eram outrora de duas mil
as viagens ao Novo Mundo e os portugueses para o Brasil ou para o oceano Indico:
a 2 500 toneladas. Para o mastro, oito pinheiros são escolhidos entre os mais altos e reunidos em um só de passagempor,Cádiz em março de 1595,o.#/íóofe /a Esperança, de 160 tonela-
bloco com aros de ferro; a tripulação a bordo é de quatrocentos homens. das, de Hamburgo, tendo Jean "Neve" como capitão e armado com vinte peças de
artilharia, havia sido destinado ao Brasil pelos cofzfrafadores de /a provisfon de /a
Ainda em 1664, em sua Geograp/zía venera/!s, Varenius admite serem portu- frontera de la corotla de Portugat'" .
gueses QSmaiates naxlos. Hodie maximae sttnt naves Hispattorum seu Lusitanorum Porém,a média fornecida por Baasch, 120 toneladas,indica a existência, ao
qzlas vocanf carracas127.Porém, já nessadata, em 1664, há muito que essesbarcos lado dos grandes navios, de toda uma massade pequenosveleiros que a viagem
pesados perderam o jogo para os barcos leves holandeses: à Espanhanão atemoriza. Um recenseamentode ]538 fornece uma lista de qua-
A partir do século XVI, essesgigantes são menos numerosos e os veleiros renta navios, barcos e chalupasatracados nos portos de Astúrias com média de
leves multiplicaram-se à sua volta. É o segundo espetáculo que deve reter nossa setenta toneladasi37. Em 1577, 1578 e 1579, uma estatísticai38 dos navios estran-
atenção. Os navios das grandes façanhas inglesas do século XVI, das viagens de geiros que aportam em Andaluzia fornece o número anual de oitocentas embar-
descoberta ou dos raides de corso geralmente têm menos de cem toneladas'28.Em cações deslocando sessenta mil toneladas, ou seja, uma modesta média unitária
1572, Drake está a bordo do Parca, que desloca apenas setenta toneladas':9. Em 1585, de 75 toneladas.
o Primrose de Londres'30 desloca 150 toneladas. Em 1586, os três navios de Caven- Os números são forçosamente mais elevados quaíldo se trata de grandes navios
dish têm respectivamente 140, sessenta e quarenta toneladas'31. Em 1587, a Espanha estrangeiros requisitados para os transportes militares, como os enumerados em 1595
é informada da presençade catorze navios ingleses no rio de Londres; eles têm de pelos três relatórios estabelecidosnos portos de San Lugar e Cádiz. No primeiro lote
oitenta a cem toneladasi32.Ainda em 1664, a França possui ao todo alguns milhares de 28 navios recenseadosem 29 de março de 1595t3P,a tonelagem média gira em
de navios de mais de trinta toneladas,dos quais apenasquatrocentoscom mais de torno de duzentas toneladas; para um segundo lote de 37 navios inventariados em 3
cem toneladase sessentacom mais de trezentas'33.O essencialde nossasligações de agosto,no qual figura uma parte ou a totalidade dos navios do primeiro lutei", a
marítimas em direção ao Báltico, por exemplo -- é assegurado por embarcações de tonelagem global é de 7 940 toneladas, com a artilharia compreendendo 396 canhões
trinta a cinquenta toneladas.No século XVI como no XVll, mares e oceanosestão e as tripulações perfazendo 665 homens; portanto, cada navio desloca em média 214
povoados de pequenosveleiros. De 1560 a 1600, os arsenais de Lübeck irão cons- toneladas, transporta dez peças de artilharia e possui uma tripulação de duas deze-
truir 2400 navios, de acordo com as pesquisase cálculos de Baasch;a tonelagem nas de homens (dezoito, mais exatamente). Simplificando, digamos que uma peça de
média é de sessentaLasten, ou seja, 120 toneladas'34.E, no entanto, conhecemosos artilharia correspondea vinte toneladase um marinheiro a deztoneladas.No último
grandes navios de Lübeck: a Grande Barque Capitão Roqueresbart, de seiscentas
toneladas, está na baía de Cádiz na primavera de 1595; nessemesmo momento, o
135.Simancas,E' 174.
136.Idem.ibidem.
127. B. Varenius, Geograp#!a venera/fs, Amsterdam, 1664, p. 7 10. 137. Simancas,GuerraAntigua, XI, s.f.; em (1538) idem, f" 56, J?e/aclónde /as nãos y caraóe//as qzle
128. V. G. Scammell, ''English Merchant Shoppingat the End of the Middle Ages: SomeEast Coast se /zan /zcz//adoen/Fadas/os .pz/er/os des/e .Reúnode Ga/leia, indicação sobre barcas carregadas de
Evidente", Zhe-EconomiaJ71s/o/y.Revlew.1961,p. 334: ainda em 1572,média de tonelagemde 42 sardinhas que vão para Cartagena e Barcelona em caravelas portuguesas, uma carregada de açúcar,
toneladas. outra de couros obtidos na Irlanda. No meio dessespigmeus, uma carraçade mil toneladas em Vivero,
129. John Harris, ]Vaviigan/íuma/que ./}í/zerczn//z/m
.Bíó/io//laca, London, 1746, 1, p. 115. 'que a comum opinion es el maior navio que ay desde Levante à Poniente'
130. R. Hakluyt, ZhePri/zc@a/.AXaplga//o/zs,
}il)Foges..., 11,2' parte, pp. 112-113. 138.Simancas.
E' 160
131. J. Harris, op. czí/.,1, p. 23. V39. Relación de l,os navios q. se han deferido en ta baça de Cãdiz y puerto de San Lacar de Bat"ramada
132. .[cz.armada /nvencíó/e, documentos pub]icados por Henrique Herrera Orla, Va]]ado]id, 1929, p. 24. y de s%spartes, Bondad, Gente de Mar yArtilteria en 29 de Março de IS9S, Slntancas Xa V74
133. P. Charliat, Zrols síêc/esd'économle mar/rime.#ançaise,1931, p. XXX. \ 4q. Relación particular de los llav\os q. estás detenidoseri los puertos de Cádiz. San Lugar. Gibraltar,
134. J. Kulischer, op. c//., 11,p. 1572. /7ae/va. Simancas, E' 174.

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A UN.ÍDAI)E HUMIANA: ROTAS E CIDADES, CIDADES E ROTAS
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ii

dizia, em ]589, em seurelatório ao Senadode Venezae cujo resumo o embaixador


lote de 54 navios''', a tonelagem global é 8 360 toneladas, ou seja, 154 toneladas por
unidade, tonelagem mais baixa não porque se trata do tráfego do outono, mas por- espanholenviaraa Filipe ll''s: "0 Rei Católico estáresolvido a prosseguir o empre-
que o relatório dessa vez abrange todos os navios entrantes, tanto as urnas, grandes endimentoda Inglaterra com a esperançade, remediandofalhas passadas,auxiliar
navios de tipo nórdico, como os pequenos veleiros que o texto chama curiosamente sua execução construindo navios menores, mais adaptados ao oceano, munidos de
de.#/fZ)o/es(da mesma família que./í/ibz/star, piratear, em francês./7ibusrer): o Chien peças mais longas e mais leves". "Navios menores e mais adaptados ao oceano": Fi-
d'Or de Estocolmo, o Saint- Pierre de Koenigsberg, o Charité de Dunkerke, o Chas- lipe 1] sublinhou as palavras do relatório e anotou na margem: "Parece-me que esta-
seur de Estocolmo, para citar apenas os primeiros inscritos nessa lista de barcos do mos procedendo de modo contrário e seria útil trazê-lo à lembrança de P' Menéndez

norte, da Noruega, da Dinamarca, das cidades hanseáticas dos portos fiéis dos Paí- Márquez". Portanto, embora não tenha sido resolvido imediatamente após a tentativa
da Invencível Armada, o problema já é apontado como prioridade.
ses Baixos que em Sevilha e em seus diferentes portos anexos substituem, a partir
de 1586,os navios ingleses e holandesesque o Católico já não quer ver nos portos No plano comercial a evolução é a mesma: os pequenos afastam os grandes,
da Península barcos carregados de velas, madeira, pranchas, trigo... Que às vezes pacífica ou violentamente. Em agosto de 1579,o "Govierno" da Biscaia discutia a
contornam a Escócia pelo Norte para evitar a vigilância inglesa na Mancha. esserespeito'". E um Estadomuito pequeno,masamplamenteaberto parao oceano.
Velhos regulamentos âxam um direito preferencial para o carregamento dos grandes
Porém, os barcos ingleses e holandeses escorraçados da Península se dedicam à
navios em detrimento dos pequenos e com vantagens para os navios nacionais em
pirataria com uma violência ainda maior, de uma orla à outra do oceano,pilhando os
litorais mal guarnecidos, enfrentando os grandes, enormes navios das índias. Nessas relação aos estrangeiros; isso leva o "Govierno" a uma longa discussão. Para nós é
lutas os pigmeus quase sempre vencem por causa de sua maior rapidez, de sua melhor a oportunidade de saber que todo o ferro da Biscaia parte em pequenosbarcos, que
adaptaçãoà água e ao vento, e também devido à sua artilharia, pois, como será ex- estes podem carregar ou descarregar em lugares onde os grandes não podem sequer
pensar em entrar, "en muchos puertos de Franzia y Galicia por ser pequenosy de
plicado bem mais tarde por um contemporâneos': de Richelieu (1626), contrariamente
ao que ocorria outrora, h(Üeum barco de duzentos tonéis pode "transportar canhões poça agua"'". No caso dos grandes navios, as partidas demoram porque é necessá-
rio abarrotar essesmastodontes...Os pequenos garantem partidas mais frequeTltes.
tão grandes quanto um barco de oitocentos [...]": essa invenção, "a quintessência do
mar", permite que os navios pequenos, à semelhança de insetos, possam assolar os Repartem os riscos. Os grandes navios reservam desagradáveis surpresas-Depois
de uma delas, um secretário da Senhoria, Marco Ottobon, que no verão de 1591fre-
lentos e pesados navios dos ibéricos. Se arrebatam uma dessas fortalezas flutuantes,
tou navios em Dantzig para levar trigo a Veneza, deu sua preferência aos navios de
depois de pilha-la devidamente a incendeiam: o que poderiam fazer com elas em suas
]20 a 150 /asfrí (240 a trezentas toneladas), "que são em grande número; carregam
corridas velozes?Consultado em 1594,o príncipe João André Dona aconselhaas
pouco, mas em compensação o grão corre riscos menores de se estragar no caminho
frotas das Índias a servir-se doravante de navios menorese mais rápidosi43.O almi-
[.-] e, como não se contrata um seguro, a perda eventual será menor"l's. Principal-
rantado espanhol, aconselhado pela experiência e antes mesmo da captura do J?evenge
mente "questi vasselli di medíocre grandezza espediscono piü presto il viaggio che
em 1591:", seguramentededicou-se a construir veleiros mais deves.Lippomano já o

;Vavarre/e qz/ePosse e/ ]Museo]Vava/, Madrid, 1946, n' 741 . Situa-se erradamente o documento entre
14\. Retación de tas arcas y$1ibotes que han entrado en este puerto de San Lugar de Barrameda desde
1570 e 1580. Uma data muito mais tardia e mais exata: Gregorio de Oliste a Filipe 11,Nápoles, 13jan
los 3 de octubre hasta tos 21 det dicilo de 1595 y en ta baça de la ciudad de Cádiz y ío que viene
en cada uno de//os. SimancasE' 174. 1604, ocupa-seativamente "de la fábrica de los 12 galeones que V. M. me mando hazer mediante el
asiento", Simahcas,Nápoles, Estado, 1100, f's 8. Numerosas referências, A.d.S., Nápoles, Sommaria
142. Cavaleiro de Razilly a Richelieu, Pontoise, 26 nov. 1626, B. N., Paris, n.a., 9389, f' 66 v'
Consultationum,14 (f" 229-233); 29 (f' 44-45); 30 (f' 31, 38-46, 49-53, 58-80, 158-159,221-225).
143. Codoin, 11,p. 171, 12 maio 1594.
145. Relatado por Fco. de Verá ao rei, Venezia, 29 jul. e 5 ago. 1589, A. N., K 1674.
144. O navio capturado(HenriHauser,Pr( on(france espagno/e,2. ed., 1940,pp. 148 e 154; R. Hakluyt, 146. Fidel da Sagamtinaga, E/ Goóierno-. de Hscaya, 1892, 1, p. 73.
ed. J. M. Dent and Sons, 1927, t. V. pp. l e ss.) teria servido de modelo aos espanhóis.Afirmação
147. Antonio de Quintadueõas a Simón Ruiz, Rouen, 16 abr. 1565, citado por Henri Lapeyre, [/nela/}/í//e
discutível, pois o Revenge afunda, pouco depois de sua captura, durante uma tempestade, Garrett
de marchando, !es Raiz. Contribution à t'étude du commerce entre l,a France et t'Espagne au tempo
Mattingly, Zhedmerican 7Bs/trica/ ./?eview,
IV. n. 2, jan. 1950,p. 351. Em todo caso,não importa a
deP/zl/4)pe/7, 1955,p. 212,n' 169
data, no final do século IXVI há transferência das técnicas inglesas para a Espanha e o Mediterrâneo. 148. Relatório final de Marco Ottobon, no seu regressode Dantzig, 1591, referência fornecida supra,
Annadores ragusanos,Simancas,Contaduría Mayor de Cuentas, SegundaÉpoca, 904, 20 de fevereiro
nota 76 do capítulo 3 da primeira parte.
(1 590), constroem galeões de tipo inglês, /rzdíce de/a Co/ecclón de Documen/os de /'ernández de
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll

li grande"''9, "despacham" a viagem mais depressa do que os grandes. Finalmente,


pormenor relevante, pode-se carregar o trigo diretamente no porão do navio, a riÓaxo,
e com isso evitar a compra de sacos ou tonéis-. Quantas vantagens, na verdade's'l
\

>c i${ \.: .â

No Mediterrâneo + 'B'L: )
S

Verdade do Atlântico. Nela nos detivemos longamente, e era necessário, por-


que ela esclarecea história dos transportes do Mar Interior e prefigura ou confirma
sua evolução.
Para simplificar o prob]ema, ]ivremo-nos desde logo de uma revolução técni-
ca que interessa principalmente a Veneza, mas Veneza é Veneza, e sua importância
é grande. A ga/ée, quejá enfrentava uma intensa concorrência no século XV, será
pra/icamenre eliminada pela nau no decorrer dos trinta primeiros anos''' do século
seguinte. O grande cargueiro substitui o longo e poderoso barco a remos, e este úl-
timo manteve-seainda por muito tempo, aliás por razõesdifíceis de compreender.
As galés de Beirute continuam a ser, na época de Bandello's:, um elemento carac-
terístico da vida veneziana. São as galés que garantem a ligação com a Berbéria até
1532 e com o Egito's: pejo menos até 1569,quando duas galés fazem a viagem de
Alexandria e da Síria:s4.No final do século a ga/ée continuava em serviço, de Veneza
a Spalato'ss,devido ao interesse que havia em dispor, nessa curta distância, de um
navio senhor do seu caminho, apto a suplantar, com os meios de bordo canhões e
homens --, as dificuldades do corso dos uscocos.
A galé, quando cedeu seu lugar, deixou-o inicialmente a barcos maiores do
que ela e que por muito tempo ocuparam a frente do palco, com cerca de seiscentas
toneladasis6,como para o tráfego do vinho na Inglaterra, os transportes de trigo ou
de sal no Mar Interior ou as viagens da Síria.
Em 1525,entre Gênova e a Espanha, o embaixador veneziano Navagero faz a
viagem em uma nau genovesanova, de quinze mil a dezesseismil can/ari, ou sqa

149. idem, Carta aosProveditori alle Biave, Dantzig, 7 jul. 1591


150. Sobre todos esses problemas, as tonelagens, as construções ''à caravela'' e "a batel", os nomes dos
navios e das pequenas embarcações,reportar-se às páginas e às notas de Henri-Lapeyre, op. cí/.
pp. 206e ss
151. Frederic C. Laje, Venetian Ships and Shipbuilders of the Renaissance, 1934, p. 27
152.Bandello,op.c//., VI, p. 71
153.Até 1564,diz-nosFrederic C. Lane, ''The Medit. SpiceTrade'', .d./?l..R.,t. Xl;V. p. 581
154.J. Lopez ao rei, Venezia,2 jul. 1569. SimancasE' 1326.
155. Dr. Jules Sottas,.Z,e.s.A4essczgeríes
mar//ienesà vence aux X7}' e/ Xl" .çiêc/es,1936,p. 136. 38 -- Veleiro Atlântico. O pequenonavio La Coral/lére ou ainda Z,aÀdaresc/za//e,
incendiado a lO
156. F. C. Lane, op. cí/., p. 47. de agosto de 1512, na foz de Brest, B. N. FR 1672, f.' 9 v.'

410
39 Os ingleses tomam Cádiz (1596). B. N. Paria, 13 702

41 Galeras e navios redondos no oceanoAtlântico. A expedição de 1585contra os Açores. Afresco


mural da sala dasBatalhas do Escorial. Em terra tropas desembarcadas.

40 -- Veleiros grandes e pequenos. Um enorme navio português, atacado ao largo de Malaia por pe
quentesveleiros ingleses e holandeses (14 out. 1602). J. Th. de Bry, /ndiae criem/a/es pais sepfíma
Frankfurt, 1606,pl. IXII. B. N. Rés.G 412
A UNIDADE HUM.ANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

(a 89 quilos o cantar), de 1300 a 1400 toneladas's'; em 1533,uma nau de Ragusade


]200 óof/e (seiscentastoneladas) é tomada e depois libertada pelos turcos no porto
de Chia's:; em 1544,a maior nau do Mediterrâneo (a pretensão não é forçosamente
exata) incendeia-se no porto de Messina: ela também desloca 1 200 bo//e'59; em 8 de
março de ]565, uma grande nau veneziana é requisitada no porto de Alicante; é um
barco de 6 500 sa/me (ou, arredondando, 975 toneladas) que carrega a bordo sessenta
peçasde artilharia'". Ao mesmo tempo eram requisitados um cargueiro genovêsde
450 toneladas e um português de 225 toneladas'''. Uma série de inscrições de naus,
principalmente nos registros da Sommaria'': em Nápoles, nos anos de 1561, 1568 e
1569, fornece dez tonelagens válidas (cinco das quais de navios ragusanos). Em or-
dem decrescente de toneladas: mil, setecentas, 675, 450, 300, 270, 190. Em 1579, no
porto de Livorno'ó3, o registro das naus fornece as seguintes tonelagens: para uma
nau marselhesaque se dirige a Veneza com a finalidade de carregar seda, noventa
toneladas; para uma urca com destino a Nápoles, 195 toneladas; para uma nau ve-
neziana, 165 toneladas; para uma nau espanhola destinada à viagem de Alicante,
165toneladas também; finalmente, para uma nave de Ragusa, Santo Spirito e Santa
Mana di Loreto, o capitão Antonio di Veglia, indo a Gênovapara terminar de des-
carregarseu sal e sua lã, 1 125 toneladas.Em 1583,na flotilha que o marquêsde
Santa Cruz dirige aos Açores estão três naus catalãs de 733 toneladas cada, sete
naus ragusanas de 726 toneladas, quatro venezianas de 586, duas genovesas de 449
(essesnúmeros correspondem a médias extraídas do total fornecido para cada um
dessesgrupos'"). Em 1591mencionam-se uma nau ragusana de 375 toneladasió5e
uma de 450 toneladas, construída em Antibes em 1593'"; em outubro de 1596 en-
trava em Cartagena uma nau de Ragusa de 750 tonejadasi'7, carregada de pólvora
e de mechas de arcabuz; nesse mesmo ano os turcos revendem aos ragusanos uma

157. Navaaero. op. cí/., l). l


158. Razzi, .LaS/aria dí Rczgusa,1903,p. 128.
159. idem, p. 156.
160. 8 mar. 1565. Simancas E' 486.
16\. Idem.ibidem.
162. A.d.S. Napoli, Sommaria Partium: 540, f' 51; 546, P 229 v'; 559, í' 267 v' e 268; 560, f' 73, f' 115
v', 1" 185; 562, f' 55 v', f" 237 v'; 561, f" 101 v'; 594, f' 28 v' (a nau de mii toneladas,oitocentos
42 Navio redondo. Modelo muito verosímil do navio que conduziu Carlos V a Argel (1541).Bayeris- carro, em construção em Ragusa); 595, í- 161 v' e 162
chesNational Museum,Munique. 163. 6 maio 1579.A.d.S., Firenze,Mediceo 1829, f' 67
164.A.d.S., Venezia, SenatoDispacci Spagna,Zane ao doge, 15 jul. 1583, encontram-seos números,
Museo Correr. Donà delle Rosé, 154, f' IOI
165. 31 maio 1591, A. de Ragusa,Diversa de Foris, V. f' 15.
166. 2 jun. 1591, A. Cívico, Gênova, Consolato Francese, 332.
167. Miguel de Oviedo ao rei, Cartagena, 19 out. 1596, Simancas E' 176.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE ll A UNli)ADE HUMIANA: ROTASE Cll)ODES, CIDADES E ROTAS

TONELAGENS MÉDIAS DOS NAVIOS RECENSEADOS OU


nau, tomada no ano anterior por Cigala, de 350 Z)erre,cerca de 175toneladas, peia NoS PORTOS
EOIJISITADOS NOS
REQUISITADOS PoR'I'US DA ESPANTA, I»J-1»4
DA ESFANnA, 1551-1554
soma de sessentamil aspres''8; em 1599 aponta em Trapani uma nau ragusana de Portos Dias Número de navios Tonelagem unitária em
240 toneladas'ó9;em 1601 chega uma nave ragusana de seiscentas toneladas carre- toneladas

gada de sal, Santa María di Montenegro''o. cádizt7s 27 dejunhode 1541


Aqui, estamos longe das cifras recorde do século XV. Uma crise das grandes expedição contra Argel
202
Cádiz e Sevilha'" julho de 1541
tonelagens fica evidente em Veneza, em Ragusa''', através todo o Mediterrâneo.
(naus e urnas)
onde se afirma a fortuna dos pequenosveleiros. Em Veneza, com a alta proibitiva expedição contra Argel
dos preços, a partir de 1573,ao sair da crise da guerra turco-veneziana, a constru- Málagai77 14desetembro
de 154] 24 170

expedição contra Aigel


ção de grandes unidades torna-se impossível para os armadores particu]ares. isso 190
Cádiz, SanLugar, (1550)
é precisado'': em um documento oficial: "[...] de 1573hté hoje (4 de novembro de Puerto de Santa María'78 provavelmente
1541
1581),todas as coisas aumentaramtanto de preço, como todos sabem, que nin- Sevilhai79 abrilde 1552 267

guém mais se arrisca, ou raramenteo faz, a construir grandesnavios; atualmente "las nãos que están
en el río de Sevilha
só possuímos sete". Doravante, a fabricação de grandes navios só pode prosseguir 1554
Todososportosdo
por meio de subvenções do Estado, que não cessam de aumentar: elas montavam a Guipúzcoa e de
2 700 ducados para navios de mais de quinhentos bo//e, aumenta para 3 500 em 1581 Biscaia'80
(navios novos)
e mais tarde para quatro mil, 4500, soma essaque cobre, em se tratando de barcos
de quatrocentastoneladas, o custo da construção. Depois dos anos 1590,para os
barcos de oitocentos a mil bo//e, as subvenções alcançam oito mil, nove mil, dez Essespequenosnavios não aparecem somente em Cândia; mais cedo ou pou'
mil ducados''3. É a crise de fim de século da qual falávamos.- Em Cândia, crise co mais tarde, o mar inteiro irá conhece-los; como os nasce//i quadra de Livorno do
análoga, diz o provedor Foscarini ao deixar seu cargo em 1577''4. Outrora os can- século XVll, nos quais o capitão inglês Roberto Torton era o grande especialista'''
diotas navegavam em grandes galeões com velas latinas: era/zo scuo/e, nc'//e gz/a// Sempre presentes nos tráfegos marítimos, eles ostentam as mais diversas formas de
sílacevano de' óllozz/mar/nar/, nessas"escolas" podiam formar-sebons marinhei- acordo com as regiões. No Adriático triunfam as marca/gane,que eliminam os gr#)pi,
ros, aptos ao manejo das galeras, e não sobre essesnav/// que foram introduzidos essaspequenas galés que em 22 dias, ao tempo de Sanudo'*:, traziam a Veneza o vi-
navigartdo agita vela qtladra. nho novo de Cândia, ou os maraní, que em sua origem, no século XV, transportavam
lenha e pedras da lstria que em seguida eram utilizados em percursos mais longos.
As morei/iene são mais encorpadas que as naus e têm o mesmo vexameque elas; a
popa é quadrada, a frente muito espessa. A partir de 1550 elas têm participação no
comércioda Apúlia (azeite, trigo). De pequenatonelagem, açambarcam o tráfego do
168. 4 mar. 1596, A. de Ragusa, D. de Fores,IV. f' 85.
Adriático no final do século XVI e depois avançam, para além do mar estreito, em
169. Trapani, 10 maio 1599, A. de Ragusa, D. de Fores,f' 25 v'. direção às ilhas de Veneza-. Em 1602 Veneza dispõe de setenta marca/!a/ze, algumas
170. O duque de Maqueda, vice-rei da Sicília, aos Jurados de Trapani, 21 ago. 1601, A. de Ragusa, D
de Foris, f' 203 e 203 v', navio de quatro mil sa/me.O duque de Maqueda,vice-rei da Sicília, aos
Juradosde Trapani, 21 ago. 1601,A. de Ragusa,D. de Fores,f' 203 e 203 v', navio de quatro mi 175. Simancas, Guerra Antigua, XX, í' 13
salmo. 176. /dem, f" lO.
171. lodo Tadié (carta de 7 nov. 1963). 177. idem. f:' 15.
172. A.d.S., Venezia,Capitolari, ll C 112, 4 nov. 1581,citado por G. Luzzato, ''Per la Storia delle Costru- 178. idem, í' 9.
zioni Navali a Venezianei SecoliXV e XVl", À/isca//ancadí SízJdiSrorici /n Onore d/ C. À/an!#onl. 179. idem. XI.VI, í' 204.
Venezia,1925,p. 397. 180. idem. Llll. v' 206
173. G. Luzzatto, op. cí/., pp. 392 e ss. 181 . Giuseppe Vivoli, .dana/í dl Z,ivorno, Livomo 1842,111,
P. 425
174.V. Lamansky,op.ci/., p. 560. 182..Día/"íl,Llll, P. 522.

416 417
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA EPOCÀ DE FiL}PE ll A UNIA.ADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

de quatro mastros, chegando a 140 ou 150 toneladas'83,ou mesmo a 250i84.Sinal Em 1612,um cônsul veneziano na Síria fala de barcos marselhesesde quatrocentas
característico, o ducado de Ferrara, cujos portos só são accessíveisàs mare//gane, Óorfe93...Muitas vezes, como diz um capitão marselhês, é somente um ga/eonerro
não se incomoda em amplia-los'ss. A Senhoria, no entanto, colocará obstáculos à boa carregando favas, couros, queijos, entre Cagliari e Livorno'ç'. As saetas marselhesas
fortuna desses ba/eaz/x a partir de 1589:*óe proibirá sua ida até Zante... Em conse- do final do século deslocam de trinta a noventa toneladas'95. Se uma nau de três mil
quência, o número destes cai para 38 em 1619':'. Prova de que Veneza se obstinou salmos(450 toneladas)é construída em Antibes durante o verão de 1593,observe-
em manter as grandes tone]agens, contra tudo e contra todos. Ainda em ]630-1632, mos que já está vendida pela metade a um genovês, Giovanni Battista Vivaldo:P'
Stochove, em sua viagem ao Levante, falará dos navios mercantes de Veneza'8*,"tão Ora, barcas, tartanas, saltas, galeões e ga//Dize/ri, navios e naus de Marselha
pesadose tão malfeitos que não podem navegar com pouco vento, donde resulta le- povoaram pouco a pouco o vasto mar no século XVJ. Nenhum porto da Africa do
varem três a quatro mesespara chegar a Constantiil)pla. Ao contrário, os barcos Norte, nenhum porto de Espanha e da ltália, cujos cais não sejam inundados por suas
da Provença são pequenos e leves, de modo que ao ãiais leve vento não perdem a múltiplas mercadorias. Impõem seus serviços em Veneza a partir dos anos 1560. Em
oportunidade de seguir caminho [-.]" toda a extensãodo mar viajam em grandesfrotas, atraindo o ódio dos grandesna-
A boa fortuna de Marselha, depois dos anos 1570, é explicável por mil razões, vios. Se, em ]574iç', um cargueiro ragusano arrebata uma nau marselhesa, baqueia-a,
como o afluxo em sua direção de mercadorias francesas, inglesas ou alemãs pela rota submerge-a, afogando seus ocupantes, incluindo o grumete, não seria tanto por causa
do Ródanoou o fato de Venezaestar fora do jogo de 1570a 1573devido à guerra da inveja quanto pelo espírito de lucro? Pois o comércio dos grandes cargueiros de
contra os turcos e aos privilégios granjeados pelo acordo de amizade do Cristianís- Ragusasofre com a crise dos transportes. Eles ainda sulcam o mar, do Levante ao
simo com os turcos e os berberescos. E também pela finura dos barcos de Marselha Poente, da Sicília à Espanha. Aventuram-se atrás das armadas de Filipe 11,perecera
e da Provença, naus, galeões, tartanas, saltas, ou parques, como são designadas no Atlântico no final de século. Porém dez anos, vinte anos se passam e Ragusa se
pela nomenclatura de Livorno. Essesnomes não devem iludir, como os das naus e retrai como Veneza,mais ainda que Veneza, no restrito espaço Adriático.
galeões: uma nau Sainte-Made-Bonaventure, em 1597'89,desloca setecentos canfars Isso acontece segundo ritmos que nada têm de misterioso ou excepcional. Sem-
(cerca de sessenta toneladas), uma nave Sainte-Made-Bonaventure (é o nome mais pre dirigidos pela época e pela conjuntura. Marselha, no final do século, dispõe de
comum entre os barcos marselheses) desloca 150 toneladas. Não é grande a "nave' embarcaçõesnumerosas, porém medianas; ora, em 1526, numa petição a Francisco ],
sequestrada em Trapani, no dia 5 de maio de 1596, por Pedro de Leyva, "inventaque ela declarava que seu porto estava equipado por "grandes naus, navios e galeões"
sunt in e a coralla [-.] et alia"iç' [..] Ignora-se a tonelagem dos "galeões" marselheses parafazer o tráfego da Síria, do Egito e da Berbéria'98. Marselha, portanto, sofreu
que vão a Trípo]i da Síria em 159]'9': o galeão La Trinité, patrão Nicolas Sicart (5 transformações no decorrer do século. Ragusa, que segundo uma testemunha em
de abri] ]591), ou o galeão La Foy, patrão George de Ballet (5 de abril 1591),ou o 1574i'Painda possui os maiores navios do Adriático, quando renasce para uma sig-
galeão Saint-Victor, que carrega em Alexandreta (7 de maio 1594). Com certeza eles nificativa vida marítima, depois do longo eclipse do século XVll, a partir dos anos
nada têm de comparável aos antigos e gloriosos galeões do duque de Provença'92. 1734-1744irá lançar sobre as rotas do Adriático dezenase dezenasde pequenos

183. Segundo Auguste Ja], G/ossaíre ]Vau/lgue, 1848. 193. A. Cívico, Gênova, set. 1594, Consolato Francese, 332. Sobre a pequenez dos navios marselheses, ver
184. F. Lane, op. cí/., p. 53; Casoni,''Forze Military", em Heneziae /e sz/e.Lczgune,
1847,p. 195. o censo das saem/íe.Ó'ancesechegadas a Veneza de 158 1 a 1585, A.d.S., Senado Terra, 96. No total, 37
1%S.)üfiedo p:lno.Btança., La Vira Economica degli Stati ltatiani nei Secou XVI, Xyli, Xylll, Secando !e chegadas:seis em 1581; nove em 1582; sete em 1583; nove em 1584; seis em 1585. O maior desloca
.Re/azioni cíleg/í.dmZ)a.soa/origene/i, Catania, 1938, p. 209. 164 óoffe(cerca de 82 toneladas), o menor 54 bo/fe(27 toneladas). Deixei de lado quatro navios cuja
186. 4 nov. 1589, Conselho de Pregada,A.d.S., Venezia, Busta 538, í'' 884. tonelagemé dada em seara(440, 440, 460, 305). A média para os outros 33 fica ligeiramente acima
187. F. Lane, op. cí/., p. 52, nota 52, p. 53, nota 57. de 90 bof/e, ou soja, 45 toneladas
188. }t)yczge d# .[epanf, p. 25. 194. 14 fev. 1590, P. Granchamp, l,a France en Zanísíe à/a./in d WT síêc/e, 1920, pp. 30-31
189. Pierre Grandchamp, La France en Tunisie à la ân du XVI' siêcle, 1920, p. 88. 195. 6 ago. 1596, idem, p. 81
190. B. Com. Palerma,3 Qq D 77, n. 9, 26, 32. 196. 2 jun. 1591, A. Cívico, Gênova, Consolato Francesa, 332.
191. A. Com. Marselha, série HH, não classificada. 197. Ver segunda parte, pp. 245-246, nota 144.
192. Ou ao galeão marselhês de 450 toneladas que, em 1561, faz a viagem de Constantinopla, carregado 198. }7:s/olhe dzzcommerce de.JUarsel//e, t. 111,p. 193.
de alume, e toca em Quios, Aviso do Levante, 12-14 abr. 1561, Simancas E' 1051, f" 55. 199.P.Lescalopier,op.cíf., p. 26.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILiPE ll A UNll)ADE HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

navios: naus, polacras, pequenasfragatas, marcilianas, malucas,patachos, vac/zer/e. 3. As Funções Urbanas


far/ane//e, fraóacco/i... Como seria de se esperar, nomes, forma de construção, tri-
pulações, navios mudaram de nome e de perâlzoo. Por prestigiosas que possam eventualmente ser, as cidades do Mediterrâneo
Em verdade, no século XVI as pequenas embarcações surgem em toda parte. estão,como todas as outras, submetidas às mesmasregularidades. Tal como em ou-
filhas da expansãodas trocas. Sãotanto os navios leves do arquipélago grego quanto tras paragens,elas vivem da ocupação do espaço por meio de seus feixes de estu-
as barcas da Provença (e não somente de Marselha). São também os oito caramu. das,jseus locais de escoamento, suas sucessivasadaptações, suas evoluções lentas
sa/f que pagam o ancorazzo a Veneza:otem 1599 e dos quais pelo menos cinco são ou bruscas. Colmeias cujos enxames vão longe, muito longe. Eis um ragusano em
conduzidos por capitães de Mételin; são, mais ainda, os navios vindos do Norte. os potosÍ,outro em Diu20'e milhares espalhadospelo mundo. Um provérbio afirma,
Z)er/oni, como se costuma dizer. Estes últimos penetraram em duas vagas, antes de e não está errado, que há sempre um florentino em algum ponto do universo. Eis
1550 e depois de ]570, e o mais curioso de sua história é essa quebra de duas déca- um marselhês na Transilvânia205, venezianos em Ormuz20ó,genoveses no Brasilz07
das entre o primeiro e segundo sopros do século XVI.
Cidades e estudas
Mas só aos poucos é que se podem perceber as verdadeiras dimensões desses
problemas. Tudo aí tem um papel: o aumento dos preços, a expansão do bem-estar.
os fretes da volta, as oscilações da conjuntura... É assim que pondera um venezia- Não existem cidades sem mercado e estudas; elas se alimentam do movimento.
no"' cujo discurso se conservou, embora nào se saiba seu nome nem a data exata do O coração de Constantinopla é o Z)azesfan20*,
com suas quatro portas principais, seus
documento, mas seguramente é do início do século XVII. Sim, nos bons velhos tem- grandes arcos de tijolos, suas mercadorias baratas e seus produtos preciosos, seu mer-
pos, com a boa gente di madeiro gz/adagna, tudo andava melhor. Muito diferente de cado de homens, apalpados como animais na feira, os compradores cuspindo-lhes no
hoje, onde todos são guiados pelo interesse."0 que hoje se obtém com cem ducados rosto e esfregando-o em seguida para verificar se foi ou não maquilado pelos vende-
custava 25". Consequência: âm dos grandes navios venezianos; franceses, ingleses, dores209.
Não é relevante que o bazar esteja no centro da aglomeração nem tampouco
holandeses invadem o porto con /oro nave/í mílzorf; pagam mais pelas mercadorias, queestqa sempre situado em sua parte mais baixa, como se tudo devessefluir natu-
arruínam os trá6egosdos outros. Se pudéssemosao menos expulsa-los de Chipre, ralmente para ele -- ou fora da aglomeração, como sucede na zona dinárica da colo-
cujo sal e algodão são uma benessepara o lastro, a savorna dos retornosl Ah, os nização turca, onde todas as cidades, Montar, Sarayevoetc., ostentam "exobazares"''",
bons velhos tempos dos grandes navios e das viagens que duravam cinco meses...l como acontecia ainda ontem com Tângerzt'. Qualquer que seja sua localização ou
Essediscurso bastante resumido reflete o modo pelo qual um veneziano podia, sua forma. um bazar, um mercado, uma cidade é o resultado de uma multiplicidade
em sua própria cidade, sentir a perda, que acabarade acontecerao Mediterrâneo. de movimentos. Em Argel, jumentos carregados de madeira que desaparecemsob a
de seus tráfegos de longa distância, de seus monopólios; sentir também o aumento cargachegamdo Atlas próximo para ir a Bab-el-Oued, a porta do Norte:':; camelos
geral dos preços, que havia muito não cessava. provenientesda Mitidja ou do grandesul descansamdiante da Bab-Azoum, a porta
Na realidade, porém, a economia de Veneza não entrou em decadência tal
como sua marinha. E o enxame das pequenasembarcaçõesque invadiu o Mediter- 204. Cf. segundaparte (vol. 11),p. 122, nota 15.
râneo no século XVI é, pelo contrário, um sinal da sua riqueza, da sua capacidade 205. N. larga, Ospl/l Romelzíin Henezlar/S70-/ó/0y, 1932,P. 75
206. Ugo Tucci, "Mercanti Veneziana in Índia alia Fine del Secolo XVl", Srzldí /n O/core d/ .drmarzdo
de utilizar os serviços dos proletários do Atlântico e pagar por eles. Voltaremos a Safari, 1957,pp. 1091e ss
esse importante problemazos. 207. Gilberto Freyre, Casa-grande & ,Senda/a,Rio de Janeiro, 1946, t. 1, p. 360.
208.Brantâme,JWêmofres,
XI, p. 107
209. Phillipe de Canaye,.Le }'2)yczge
da .[evczn/,P. 114
210. Richard Busch-Zantner, "Zur Kenntnis der osmanischen Stadt", Geograp/?íxcAeZel/sc&riáí, 1932,
200. Josip Luetié, O .pomar/svup.Dzíóropaõke
.Repz/ó/ike
u M7Z7 s/o0eóu,Dubrovnik, 1959,p. 190. PP. 1-13.
201. Museo Correr,D. della Robe,f' 217. ' 211. J. Leclerq, op. cí/., 1881,p. 21.
202. caem,f" 8 e ss. 2ilil b. de'Ú=á op. .i'., 178 «'. Em A-g'i, há d"': fei«: p'' ;'"'" ''m g',«d' "««-ê-.i, d,;

203. Cf. pp. 754 e ss. ll!#'a. pessoasdas planícies e montanhas vizinhas

420 42/
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NÁ ÉPOCA DE FILIPE ll A UNIDADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

43 O grande bazar de lstambul, séculosXVI e XVll


carregamento dos navios, que vogam com maior ou menor segurança, donde o agia,
queé, como se diz, um seguro marítimo proporcional ao risco
Se suas relações viárias são perturbadas, as cidades morrem ou sofrem. Como
Florença em 1528::suas ligações ao sul estão cortadas desde o saque de Romã em
1527:e ela perde oito mil ducadospor semana,que eram asseguradospor suaclien-
tela romana, e também os três mil das compras de Nápolesz'3. Desastres também nas
bandas do Norte, onde todos os caminhos para a França estão cortados por causa de
Gênova; na direção da Alemanha, por causa de Veneza. Florença é obrigada então
a diminuir a produção de panní garbíz'', o./í/zí, o d'oro, e recorrer a alguns caminhos
do contrabando para poder continuar a viver e exportar por via marítima na direção da
Françae de Lyon, além de Asola, Mântua ou mesmoTrieste; por terra na dirá
ção da Alemanha. É a superioridade dos Estados territoriais, ricos em espaços de
poder, essapossibilidade de bloquear ou perturbar segundo sua vontade as relações
das cidades e comprometer à distância o equilíbrio dessasvidas complicadas. Gê-
nova acusa a França de auxiliar os corsos revoltados, porém, escreve Fourquevaux
em fevereiro 1567, irritado por essas acusações, se a trança desejasse prejudicar
Gênova, teria ela necessidade desses atos indiretos? Bastaria, tranquilamente, sem
sair de casa,proibir a utilização das sedase outras mercadoriasgenovesase proi-
bir aos provençais o comércio com Gênova e sua região, que estes abastecem de

O grande bazar é o coração das atividades mercantis de lstambul, aproximadamente no mesmo local do
trigo e vinho:'s. Em 1575,por ocasião dos distúrbios em Gênova, uma das primei-
Grande Bazar de hoje. Compreende em primeiro lugar dois pedes/en-s (a palavra é uma deformação de ras providênciasda Espanha,que teme o pior, será cerrar-lhe o celeiro siciliano'''
Bezzazistão, daí a frequente expressão Bazestão, com todas as variações ortográâcas que possamosima- Pelasestudas todos os bens materiais e imateriais alcançam as cidades. Já
ginar; a origem da palavra é óez, "pano"; em princípio é o bazar dos comerciantes de tecidos). O velho pe-
o dizíamos a respeito de Augsburgo, meio alemã, meio italiana; do ponto de vis-
des/en foi construído por Mehmed, o Conquistador, após a tomada de Constantinopla. E o edifício central
de quatro portas e duasruas principais no interior do qual sepodem ler estaspalavras:mercadodejóias. ta arquitetânico, ela chega a possuir uma face Gênova e uma face Veneza, esta
O novo é Senda/ pedes/eni (de sandal: pano de meia-seda). Em torno dessasduas edificações maciças há última ao longo do Lech, a primeira ao longo do Wertach. O Renascimentoem
uma série de ruas de mercadores e artesães.Os traços em negrito indicam os estabelecimentosde /zczn-s Florença atrairá os artistas de toda a Toscana; o Renascimentoem Romã trará o
(a palavra de uso corrente no Ocidente é K/zan0.São entrepostos vigiados de perto para o abastecimento
afluxo de artistas florentinos e úmbrios em direção à Cidade Eterna. Sem essa
do serralho e da cidade. Os atacadistasescoam ali suasmercadorias. O mapa foi desenhadopor Osman
Ergin (1945)e reproduzidopor RobertMantran em seulivro, que citamos frequentemente,sobreTstambul. gente pronta a se espalhar, deslocando-se de aldeia em aldeia, de cidade em ci-
dade, retomando aqui um afresco feito pela metade, pintando acolá um quadro
meridional; barcos de corso, de comércio fervilham. no porto, carregados em Bona de ou um díptico, acrescentaTldOuma cúpula à igrda abandonada por seu primeiro
manteiga rançosa, de tecidos, panos e madeira em Marselha, de azeite em Djerba, de construtor. o Renascimentoitaliano não teria sido o que foi. Mais tarde, os ele-
perfumes na Espanha, isso para não falar das mercadorias cristãs roubadas no mar mentos arquitetõnicos do que se convencionou chamar de o "Barroco" italiano
ou do dinheiro dos resgates vindos de Valência, de Gênova e de outros lugares. Tudo
isso alimenta, constrói Argel. Cada cidade é feita por movimentos que ela deglute e
213.A. Pino Branca,op.ci/., p. 257.
estabeleceem proveito próprio para depois tornar a colocar em circulação. As ima-
214. Panlzf garbí: tecidos de primeira qualidade
gens que a vida económica evoca são imagens de movimento, de rotas e de viagens. 215. A rainha, 13 fev. 1567, Douais,.Dégpêc/zes...,
111,PP.36-37. " . . ..
Até as letras de câmbio, que os autores do século XVI comparam a navios, ou ao 216. O duque de Terranova ao rei, Simancas E' 1144, 28 ago. 1575; E' 1145, ib tev. i) /o.

423
422
44 -- O coração de Veneza A UNIDADEHUMANA:ROTASE CIDADES,CIDADESE ROTAS

serãotransmitidos pelos operários de construção, pelos talhadores de pedra dos


Alpes2i7,que foram bem longe exercer seus talentos e semearamatrás de si os
modelos de ornamentação e decoração que foram utilizados por gerações de es-
cultores, das aldeias ou das cidades.
Naturalmente o mapa das cidades coincide, em seu conjunto e nos pormenores,
com o mapaviário. O eixo vai de Tarento por Bari até Ancona, e de Ancona por
Bolinha, Módena e Parma até Placência, para terminar no PÓ é um alinhamento
de cidades. Como o é também essaoutra rota, mais singular e menos citada, que de
Medina de] Campo a Valladolid, Burgos e Bilbao une essascidades especialmente
ativas: a cidade das feiras; até 1560 capital de Filipe 11,a grande praça dos mercado-
res de lã e também dos marinheiros e transportadores. A estrada, em sua passagem,
distribui as tarefas às operárias como uma cadeia de montagem.
Fica claro que no Mediterrâneoocidental as grandescidades se comprimem
certo do mar, estradauniversal, enquanto no interior das terras elas são mais es-
%"\ cassas,servidas por vias terrestres de menor rendimento. Ao sul e a leste do Medi-
População em 1586.
Cada ponto representa dez habitantes. terrâneo, pelo contrário, grandes cidades islâmicas recuadas no interior das terras
correspondem precisamente ao apelo de poderosas rotas do deserto.

Os desembarquesde mercadoria

As grandes cidades, sempre localizadas no cruzamento das rotas, não nascem


forçosamente do simples fato de seu encontro (embora Placência, por exemplo, te
nha nascido indubitavelmente do encontro do PÓe da Via Emilia). Porém, vivem

217. Jacob Burckhardt, Gesc/zfc/?/eder Re/zalssancein //a/fen, ed. 1920, pp. 16 e 17

Os dois mapasao lado, segundoD. Beltrami, S/aria de//a Papo/czzioned/ Henezía...,1954,pp. 39 e 53,
levantam um só e mesmo problema: o da organização de um espaço urbano. Para orientar-se, o leitor
\!'
reconhecerá em primeiro lugar o Grande Canal, no meio do qual passa a linha que divide os diferentes
bairros de Veneza; depois, o minúsculo quadrado que figura a ponte de Rialto, a única que passapor cima
do Grande Canal: a praça de São Marcos; ao norte, a mancha branca que representa o Arsenal; ao sul,
a ilha de San Giorgio e a Giudecca, separadasdo resto da cidade pelo largo braço das Zattere; a ponta
entre o Grande Canal e as Zettere corresponde à Alfândega. Os seis bairros são: San Marco; San Polo
na margem direita do Grande Canal. à esquerda da ponte de Rialto; Castelão (o Arsenal); Santa Croce
(terceiro bairro na margem direita); Cannaregio, na face norte, onde se encontra o gueto; Dorsoduro. O
centro da cidade situa-se entre Rialto e São Marcos. Para além da ponte, no meio da mancha preta das
lojas do segundo plano, a praça de Rialto, pequena superfície branca, é o lugar de reunião cotidiana dos
mercadores. A mancha anormal de densidade de povoamento, o gueto, a noroeste da cidade, refere-se
As lojas em 1661. Um ponto por loja. as'
medidas de segregação.Os bairros dividem-se em paróquias cujos limites são, segundo o caso,mais
visíveis num ou noutro dos dois mapas.

425
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FiLIPE li A UNIDADE HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

disso. Segundo a fórmula consagrada: "adquirem importância devido à sua posição ve/zz//adí ferra e trocas lucrativas para ambos os lados. Gênova, tanto quanto seus
geográfica". O encontro das rotas é muitas vezes o local de uma mudança de meio navios, é filha dessescomboios de mulas que nas ruas da cidade deviam movimen-
de transporte,uma paradaobrigatória. Em Arles, as flotilhas do Ródanosejuntam tar-se sobre o caminho de tijolos construídos para esseüm, como uma trilha em
às barcas de cabotagem de Martigues, de Bouc e da Riviera provençal, que asse- meio a calçadas de pedra.
guram o transporte para Marselha. Verona é o ponto de partida da navegaçãodo Essa dupla face é a de todos os portos. Marselha está ligada à rota do Ró-
Adige, que na descida toma o lugar das tropas de mulas ou das viaturas do Bren- dano, Argel é solidária do Magrebe central, Ragusa foi inegavelmente criada pelo
ner. Em Trípoli da Berbéria, em Túnis ou Argel as caravanasparam no mar. Alepo mar e nunca, nem por um único instante, esteve ausentedo vasto mundo balcânico,
nasceu menos dos recursos de sua situação do que da necessidade de um entreposto cubascostas e interior explorou. Interessou-se no passadopelas minas de prata da
entre o Mediterrâneo e o golfo Pérsico2j8, ao encontro, como diz Jacques Gassot2i9 Sérvia, garantindo o abastecimento dos centros de extração e das cidades e feiras
das mercadorias das Índias e dos "panos, tecidos e outros que chegam do poente nas áreaspróximas, Uskub, Prilep, Prizen, Péc2:'...No século XVI, seu comércio
As caravanas vindas de Bagdá param ali, em frente ao relevo do Líbano, e cedem terrestre conheceu um inegável impulso na direção leste222.Seus mercadores avan-
o passo a outras caravanasde mulas, cavalos ou burricos, os mesmosque levam e çam, através da Bósnia e da Sérvia, até Vidin; eles têm um papel a desempenhar
trazem de volta os peregrinos do Ocidente no trayeto vizinho de Jerusaléma Jaffa. nas províncias do Danúbio; formam em Uskub, ponto de partida de comboios que
Todos os portos estão, por definição, no cruzamento das rotas terrestres e se dirigem a Constantinopla223,
uma colónia unida; infiltram-se pela Bulgária, cujo
aquáticas.Nenhum que não seja o término de uma rota por terra ou por água acessodurante muito tempo era dificultado pelos mercadoresgenovesesvindos do
doce principalmente por terra, pois no Mediterrâneo as embocadurasdos rios mar Negro; estão em Belgrado vendendo panos ingleses aos oficiais turcos de volta
são perigosas devido às suas aluviões num mar sem marés. Além do mais, a terra da guerra da Hungria; estão em Andrinopla acolhendo os embaixadores cristãos de
atrás das costas mediterrâneas, está entrincheirada devido ao relevo, e não existem passagem;e, claro, estão em Constantinopla. A surpreendente força de Ragusa no
portos que não apresentemalguma brecha em direção ao continente. Gênova. nos século XVI está ligada a essascolónias mercantis plantadas no interior balcânico,
Apeninos próximos, é uma série de cortes, como o da estrada dei Giovi; seus des- a essascentenas de estabelecimentos comerciais onde os mercadores revendem a
tinos estiveram ligados a essedesfiladeiro determinante. Em uma costa acidentada crédito ou à vista o fustão inglês, os panos de Veneza ou Florença, e também têm
e selvagem, onde muito cedo se instalaram minúsculas aglomerações marinhas, ela relação com essas viagens de comerciantes compradores de couros e de lãs que vão
üoi durante muito tempo uma cidade de segunda ordem, para não dizer uma aldeia. ao encontro dos pastores em seu habitat e dos quais os arquivos de Ragusa às vezes
E verdade que se achava bem abrigada na ponta extrema de seu golfo, porém esta- conservam longas e estreitas cadernetas de contabilidade.
va isolada do continente,mal amalgamadaà rota comercial da idade Média. a Via A totalidade da vida de Ragusaé impensável sem as horríveis estudas que
Francigena,que ia dos Apeninos a Romã.- Gênova só nasce para sua dignidade conduzem a Sarayevo,ao norte, ou a Uskub, através das montanhas montenegrinas
no século XI, quando a primazia sarracena sobre o mar começa a se deteriorar e e albanesas, ponto de transição essencial em direção ao Leste. Ragusa é ajunção de
povos do Norte interessadosnos tráfegos da Europa e especialistas dos caminhos dois movimentos, um que se propaga pelas rotas dos Bálcãs, o outro pelos ilimitados
de montanha (notadamente povos de Asti) chegam a Gênova para ali se aproveita- caminhos do mar e que conduz os ragusanos,no século XVI, a todos os países do
rem dos lucrativos tráfegos marítimos. Gênova nasceu dessa captura continental. Mediterrâneo, sem exceção.Muitas vezes até à Índia, até à Inglaterra, e sabemos
da valorização da passagem dei Giovi220. A via terrestre continuou a desempenhar de uma chegada ao Peru...
importante papel para a cidade. Ao lado das ve/zu/adf mare, sempre existiram as

218. Barão de Tou, .À4émojres,ly; PP. 71-73.


221. A. Mehlan, "Die grossen Balkanmessen in der Türkenzeit", ner/e&a#rsc#rlÓf #ãr cozia/-z/nd Wir/s.
219. Ze .Discoursdu voyczge
de He/züeà Cona/czn/inox/e,
1547,p. 31 c/zq#srgesc#íc;zfe,
XXXI, 1938,PP.20-21.
220. RenéeDoehaerd e Ch. Kerremans, Zes .Re/a/itenscommerria/es en/re Games,Za.Be/gigz/ee/ /'ozlae- 222. J. Tadié, .Dz/órovcani.po./zíz/zo#
Sró#i u XZ7 s/o/ecu G/mnik SÃnpnízz/cd/o, Vll-Vl11, 1930, PP. 197-202
223. L. Bemardo, mczggioczbons/czn/fnopo/í,
Venezia, 1887,p 24, 1591

427
O MEDITERlIÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FILIPE li A \JNll)ADE HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROT.AS

Da rota ao banco nor volta de 1560,e, diz Batera no que respeita à seda227,
a falta da água necessária
impediu o prosseguimento da tentativa.
Rotas e trocas permitiram a lenta divisão de trabalho que criou as cidades se- Muito resumidamente, as funções mercantil e industrial sucedem uma à ou-
milibertadas dos campos, que só escapam dessecerco permanente à custa de repe- traz2B,esta última levada, chamada pela primeira, implicando depois certa velhice
tidos esforços.Esforçosque por sua vez não cessamde agir no próprio interior das económica (entre outras condições bastante numerosas, bem entendido). A cidade
cidades, de organizar suas atividades diferenciadas e transforma-las em seu próprio industrial do Midi francês é Montpellier229, que já tem um longo passado atrás de si,
interior segundo esquemas toscamente regulares. uma riqueza adquirida, capitais para investir, vivificantes contatos com o exterior. O
Nesse processo de mil variantes, tudo, evidentemente, tem início a partir de uma que Colbert desejou fazer no século XVll, desenvolver uma indústria têxtil na esteira
onipresenteatividade mercantil, primordial, organizadora. Verdade evidente em Ve. do comércio francês do Levante, as circunstâncias já o haviam realizado desde mui-
neza, em Sevilha, em Gênova, em Melão, em Marselha-. É uma verdade incontestá. to tempo em outros lugares. A indústria de Veneza se desenvolveu no século Xlll;
ve] para esta última, que só possui algumas indústrias têxteis2:' e fábricas de sabão. E ao mesmo tempo ocorreu a expansão do comércio da Senhoria em ritmo bem mais
também em Veneza, que distribui seus próprios panos e sedas no Oriente, mas também rápido, fazendo com que essaindústria medieval logo se tornasse insignificante em
lãs e veludos de Florença, tecidos de Flandres, talagarças da Inglaterra, fustão de Me- proporção ao volume do comércio exterior. O grande impulso industrial de Veneza
lão e da Alemanha, panos,quinquilharias, cobre-. Quanto a Gênova,já era proverbial chega tardiamente, no século XV e principalmente no XVI, por um lento fluir do
desdea Idade Média: Ge/zz/ensis
ergo merca/or. Não é abusivo portanto, em nossas balcão à oficina, tentativa não pretendida, porém dirigida, exigida pela conjuntura
classificações, falar de um "capitalismo mercantil", designando uma forma ágil de vida do século. Veneza tende a transformar-se em um porto industrial. E foi talvez so-
económica no século que já é moderna e sem dúvida eâciente. Nem tudo resulta de mente o êxito da Fiança e da Europa do Norte no século seguinte que impediu essa
suas proezas, mas muitas coisas dependem de seu dinamismo e atração. Os imperati- transformação de chegar à perfeição:".
vos do grande comércio, do comércio de longa distância e suas acumulações de capital Se a indústria em rápido crescimento pode ser considerada como uma segunda
desempenham um papel motor. É nos baixos da conjuntura mercantil que em Gênova, etapa da atividade urbana, o banco é talvez o terceiro. A partir da infância de uma
Florença, Veneza ou Melão a vida industrial anima-se, particularmente no novo cam- cidade, certamente, todas as atividades económicas já estão em andamento, o co-
po de atividade, revolucionário, do algodão e da seda. A tese clássica de Paul Man- mércio do ouro como os outros. Mas essecomércio só se singulariza tardiamente; é
toux é válida já no séculoXVl: o comérciodirige, impulsionaa vida industrial.E no o último a nascer em sua autonomia e plenitude. Por muito tempo, tudo é co/?áusjolz.
Mediterrâneo, mais que em outros lugares, a regra é a troca, o transporte, a revenda... mercadoria, oficina, banco se mesclam, se reúnem sob a mesma mão. Em Florença,
Essa vida mercantil favorece tudo, transporta tudo, até mesmo os germes os Guicciardini Corei, que adiantam dinheiro a Galileu, se interessam pelo trigo si-
da atividade industrial, tal como o vento leva as sementes para longe... Mas não é ciliano, pela venda de panos e de pimenta; os Capponi, cujos grandes livros foram
sempre que essassementesencontram um terreno fértil para germinar. Em 1490,o conservados, tratam tanto do transporte do vinho e do seguro de navios quanto da
Horentino Pietro del Bantella introduz em Ragusa a "arte di fabricare i panni alti di emissãoou do recebimentode letras de câmbio;os Médias, banqueirosmais que
lana"':s; a arte da seda,por sua vez, foi importada por Nicolõ Luccari, homem da pela metade, possuem suas oficinas para o trabalho da seda no século XV.
região2:ó.Ora, nenhuma das duas indústrias teve sorte favorável, Ragusa contenta- Essa multiplicidade e confusão dos negócios é uma regra antiga, uma razoável
se em produzir alguns panos para consumo próprio, em tingir ou retingir parte dos distribuição dos riscos. O comércio da prata, isto é, os empréstimos aos particulares
que passam por ela. Em Marselha, as mesmas tentativas para a lã e a seda ocorreram

227. G. Botero, op. ci/., 1, p. 35.


228. Mare Bloch, em J\4é/fingesd'/zis/oiro sacia/e, 1, pp. 113-114
229. Francesco Guicciardini, .Diário de/ maggío di Spag/za, Firenze, 1932, p. 46. Para uma comparação:
224. Uma fábrica de escarlates,Conselho de 20 nov. 1575, A. Com, Marseille, BB 45. f" 330. Nomes,em 1592,P. George,op. cír., pp- 621-622. . . .
225. GiacomoPedro Luccari, dana/i c# -Rczgusa,
Venezia, 1605,p. 120 230. DecadenzaEconomíca Henezlapza ne/ Seco/oW7/, Colóquio da FundaçãoGiorgio Cmt (2/ Jun.-z
226. idem, p. 139 jul. 1957),1961,PP.23-84

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) MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FILIPE il A anil)ADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDAI)ES E ROTAS

(meio disfarçado, uma vez que a Igreja proíbe empréstimo ajuros), o dinheiro aber-
tamente adiantado às cidades e aos príncipes, os investimentos (as accomand!/e
como se diz em Florença), os seguros marítimos, essejogo puramente financeiro.
têm muita dificuldade para separar-se dos outros. SÓconseguirá afirmar-se em sua 1550um francês manifesta sua admiração por esses"comerciantes ou banqueiros
primeira perfeiçãoem Amsterdam,por volta do final do séculoxvll estrangeiros"(isto é, italianos) que chegam de mãos vazias, "sem trazer consigo
isso não impede que o século XVI erga essa atividade a um alto patamar e dessespaísesoutra coisa além de um pouco de crédito, pena, tinta e papel, ao mes-
produza um número cada vez maior de banqueiros quase especializados, aqueles mo tempo que a arte de sabermanipular, remexer e desviar os ditos câmbios de um
que na Espanha são chamados de óomó/es de lzegocios. No sentido do século Xylll país para outro segundo as informações de que dispõe a respeito das praças onde
francês, seriam antes "financistas" a serviço dos Estais)s. Ora, esse fenómeno só se o dinheiro é mais caro""'
afirma em algumas antigas cidades mercantis que alcançaram a plena maturidade. Em suma, através da Europa, um pequeno grupo de homens que se mantêm
Em Veneza, onde bancos e banqueiros remontam ao século XIV, ou mesmo ao Xlll: informados graças a uma ativa correspondência tem nas mãos a rede de letras de
em Florença, onde as grandes companhias mercantis mantiveram a Europa e o Me. câmbio e de numerário e por esse meio controlam o jogo da especulaçãomercantil.
diterrâneo, da Inglaterra ao mar Negro, sob seu controle a partir do século Xlrl= e Por isso, não nos deixemos ofuscar pela difusão das "finanças". Existem muitas
principalmente em Gênova, que apesar do que disse Michelet:'' não 6oi "um banco diferençase muitos graus entre as "praças", mercantis estas, industriais aquelas
antes de ser uma cidade", mas onde a Casa di San Giorgio foi a instituição de cré- e outrasparcialmente financeiras. Em 1580,quando Portugal se liga à Espanta,
dito mais aperfeiçoada que a Idade Média conheceu. Um estudo mais cabal:3: apre- os homens de negócios espanhóis ficam surpresos com o atraso técnico da praça
senta uma cidade que já é moderna no século XVI, que está à frente de seu tempo, de Lisboa, integralmente mercantil. Em Marselha, os investimentos, no miolo
manejando diariamente o endosso de letras de câmbio e o pacto da r/carga, que já do século XVll, vêm de Lyon, Montpellier e Gênova. Ragusa, comercialmente
é uma arte de impulsionar a cavalaria, no anualjarrão dos banqueiros.Seu papel tão próspera, está sob a dependência financeira das cidades italianas -- no século
precoce entre Sevilha e o Novo Mundo, sua aliança definitiva com a Espanhaem XVII. toda sua fortuna consistirá em rendas, ou de Nápoles, ou de Romã, ou de
1528operaramo resto: ela se tornou a primeira cidade do dinheiro no mundo. na Veneza.O exemplode Venezaé ainda mais revelador.Um longo relatório dos Cín-
ascensão da onda de prosperidade que marca a segunda metade do século Xyl -- o gzzeSavíi em janeiro de 167023'indica que ali todo o jogo "capitalista", diríamos
século de Gênova, cidade onde tratar de mercadorias começa a assemelhar-se a um nós. está nas mãos dos florentinos proprietários das casas urbanas e dos geno-
ofício plebeu. Os Nobí// Hecc#í especulam ocasionalmente grandes somas sobre os veses;uns fornecem o metal branco e os outros são os senhoresdo câmbio. Ao
alumes, ou as lãs, ou as salinas da Espanha. Mas deixam o comércio para os A/oói// "sacar" contra Veneza, genovesese florentinos fazem valer "sobre os câmbios
]Vuovi, reservandopara si os jogos sobre o ouro, a prata, sobre as rendas,os em- (principalmentenas feiras ditas de Besançon,que têm lugar em Placência),a
préstimos ao rei da Espanha... dinheiro abundante dos emprestadores venezianos. Ocorre assim uma "capta-
Todavia, em aparente contradição com essa imagem simples, em cidades ção" do numerário disponível da cidade. O piemontês Giovanni Botero percebe
quase novas da Europa começam a aparecer numerosas praças de dinheiro. Mas a situação ao comparar Gênova e Veneza em 1589, e suas preferências vão para
que é que essesbruscos e avultados florescimentos dissimulam? Uma simples pro- Veneza. Em Gênova, a fortuna dos manipuladores de dinheiro desenvolveu-se
pagação do banco italiano, que também é uma tradição. Nas feiras de Champagne prodigiosamenteem detrimento das demais atividades que animam a cidade. Há
Jã são os de hiena, Lucra, Florença ou Gênovaque têm em suasmãos o balanço um recuo em sua vida industrial (artigos têxteis, construção naval); ora, as ara
dos cambistas; são eles que criam a fortuna de Genebra no século XV; e depois as eram a vida do povo genovês, bastante pobre em seu conjunto. Comparada à sua
grande rival, Veneza é uma cidade menos evoluída, executando ela mesma quase

231. Ze .Bangz/e/,p. 17, citado por Th. Scharten, Zes Pêyagese/ /es sÕours de .Àêc.be/e/e/zl/a/ie, Paria,
233. B. N.. Paras.Fr. 2086. f's 60 v', 61 r'.
232. JacquesHeers, op. c//., pp. 74 e ss. 234. A.d.S., Venezia, Ci/zqz/eSavíi, Risposte 1602-1606, f" 189 v', 195

43/
D MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE ll .A 'UNIDADE HUMIANA: ROTAS E CIDADES, CIDADES E ROTAS

todos os ofícios. Por isso, o povo ali é menos infeliz do que em Gênova, e a dis. Uma tipologia muito incompleta
paridade entre as fortunas é meHor23s

Essa tipologia geral das cidades que acabamos de esboçar é, por força, incom-
Ciclo urbano e regressão oleta. Tudo complica sua existência. Cada cidade está ligada a uma determinada eco-
nomia. Nas pequenasdistâncias está implícita as relações com seu campo, com as
Se a vida urbana avança, se se constitui por fases, ela também se deteriora cidades próximas, sejam elas dominantes ou dominadas em relação a estas últimas.
em fases. As cidades nascem, progridem e declinam segundo a pulsação da vida Com um raio mais amplo, isso significa ligações e laços de acordo com as distâncias
económica. Ao declinar, abandonam os atributos de seu poder em partes, sucessi- do Mediterrâneo, ou mesmo do Grande Mediterrâneo. Há, enfim, as conjunturas da
vamente. Seria por acaso que, em Gênova, o primeiro sinal negativo (a presença vida política. No século XVI ela arruína a antiga independência das cidades, socapa
de cargueiros de Ragusa)afeta os transportes, essariqueza primeira das grandes as bases de suas tradicionais economias, cria e impõe novas estruturas.
cidades, enquanto no outro extremo da cadeia o que resiste por mais tempo são Um historiadora" que está terminando um trabalho a respeito da tipologia das
precisamente as ativídades bancárias, as últimas que se desenvolveram? Gênova e cidades de Castelã no século XVI faz uma distinção final: cidades burocráticas, como
Veneza no século XVlll, no fundo de sua decadência, ainda são cidades do ouro. Granada e Madri esta última crescendo tão depressa que o abastecimento de uma
O drama de Barcelona, pelo menos no século XVI, não seria uma consequência população ociosa é frequentemente interrompido. Como relata uma correspondência
de seu passado, o resgate de uma riqueza rapidamente conseguida e que não foi de 1615,já se viu "faltar pão dias a fio e as pessoasnas ruas, com dinheiro na mão,
atentamente finalizada no plano bancário apesar de tudo o que se diz? Foi a falta tentando encontra-lo e pedindo-o per / 'amor d/ Z)ío"238,-cidades mercantis como To-
de dinheiro, de câmbio, de giro, já observava Capmany:s', que paralisou a cidade ledo, Burgos e Sevilha, cidades industriais (no sentido em que a indústria moderna
no século Xyl
se instala ali com as formas capitalistas do Her/aggssysrem,que não são especíâcas
Levando essasobservaçõesaos limites, será que podemos dizer que o de- da Alemanha) como Córdoba e Segóvia; cidades industriais, porém artesanais, como
senvolvimento de uma fase industrial indica quase sempre algum incomodo no Cuenca; cidades agrícolas, sustentadas pelo campo circundante, invadido por ele, como
âmbito das circulações de uma cidade? Que a indústria é, de algum modo, uma Salamancaou Jerez de la Frontera; cidades clericais, como Guadalajara; uma cidade de
resposta a esse óbice à circulação? Em todo caso, é sintomático ver florescer a ovinos como Soda... E mais algumas cidades militares que no século XVI se distin-
indústria nas cidades afastadasdo mar, que por isso mesmoficam emaranhadas guem tão mal das outras quanto no mar os navios de guerra se distinguem de simples
em seuofício de cidadesdas rotas, quer seja Lucra, a pátria das sedas.ou Mi- barcos de comércio. Essas classificações contam a diversidade das personagens que
lho, ou Como, ou a própria Florença. Ou então nas cidades do século XVI cujos fazem parte da questão. Faltaria distinguir também, qualquer que seja seu tipo, entre
transportes ou mercadorias enfrentam ameaças,quer seja Florença ou Veneza. cidades de primeira e de segunda ordem e observar como (numa estrutura específica à
Concluindo, podemos também dizer que a vida provém das dificuldades mercan- Europa) cidade principal e cidades associadasse comportam umas em relação às outras.
tis e industriais? Uma determinada atividade surgindo em detrimento das outras Aliás, cada personagem, uma vez estabelecido o quadro no qual desejáramos
e não necessariamenteem harmonia com elas. isso não é dito com o objetivo de confina-la. sai dele imediatamente. Pouco afeita ao negócio de dinheiro (embora te-
tudo explicar, mas no intuito de percorrer em rápida perspectiva o conjunto dos nha seusbancos), Sevilha é também burocrática, vive de rendas, é artesanal; o luxo
problemas do dinamismo urbano.
exige seusdireitos, ali vive um proletariado que adivinhamos amontoadoem casas
compartilhadas por várias famílias pobres, como nos arrabaldes de Triana, onde se

235. Giovanni Botero,op. cj/., P. 38 237. Felipe Ruiz Martín, professor da Universidade de Bilbao, que me comunicou o plano de seupróximo
236. Antonio de Capmanyy de Montpalau, .Ã4emorías
]l/h/óricax .çoóre/a .Ã4arína,Comercio./ 4rfe de livro
/a.dH/jgzza
Cizldad
de.Barca/o/za,
Madrid,
1779,
1,PP.
205ess. ' ' '' ''''''' ''- .,''' '',-u- 238. A.d.S., Venezia, Dispacci Senato Spagna,F' Moro ao doge, Madrid..., 1615.

432 433
A UNli)ADE HUMI.ANA:ROT.ASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

45 -- População das cidades de Castelã


fabricam lixívia e sabão:3P.
Salamancaé rural, mas é também o grande centro de
A. Costaatlântica estudosque conhecemos. Pádua,brilhante cidade universitária, é também uma me-
trópole rural. Antes de 1405,em sua luta contra Veneza, os senhoresde Carrara,
que a comandavam,"para alimentar a carestianas terras da rival", tiTlhamestabe-
San Vigente de la
lecido impostos de saída sobre galináceos, lapões, gansos, ovos, pombos, legumes
Corunha
e frutas... Por causa desse conservantismo das cidades, do qual temos provas mais
Laredo
Santander
que abundantes, essesdireitos prqudiciais a Veneza serão, não obstante, mantidos
até 1460z", muito tempo depois da submissão de Pádua à República de São Marcos.
Entretanto, Pádua permanecia como que mergulhada em seu campo, e em 1509

B. Meseta castelhana Bayard e seus companheiros a encontram às voltas com os trabalhos agrícolas: "To-
dos os dias recolhiam muito feno", conta Le Loyal Serviteur, "e por estas paragens
Valladolid
fazem grandes carroças de tal modo que, ao tentar passar por uma porta, conseguem-
Toledo
-no quaseà força"24i.Mesmo espetáculo em Brescia, onde a Porta San Stefano, que
leva ao Broletto, possui um gargalo tão estreito que "quaíldo vi si treva qualche carro
di feno o paglia o legne, per li non ponno transitar gli uomini"24z. Mesma realidade,
ou mesmo espetáculo,em Lucera, pequenacidade da Apúlia que possui feiras ativas.
Ela arvora também, para seu grande tormento, capitães nomeados pelo marquês de
Viço, dos quais tem todas as razões de se queixar. Eles matam, roubam, jogam e,
ultima vileza, "enviaram uma grande quantidade de porcos, antes da data autorizada,
C. Andaluzia
aos campos e terrenos da cidade, em detrimento dos outros c/fíad//zí [.-] sem contar
os estragos que causam os ditos porcos ao trigo, às águas e às pastagens""'. Assim,
a criação de porcos se faz no próprio perímetro da cidade. Essasimagens da vida
agrícola afetandoa arte das defesasmilitares ou com a honestidadedos governan-
tes dizem até que ponto as cidades do século XVI estão sempre abertas, sda a que
preço for, para seuscampos De outro modo, como poderiam viver?
D. Levante

239. Cf. os admiráveis documentos de Simancas, Expedientes de Hacienda, 170, onde se encontra além
disso o censo, o .padróm da cidade em 1561
240. A.d.S., Venezia,SenatoTema,4, f' 138, 22 mar. 1460,
241. Ze .Lapa/ Sew//eur, op. ci/., p. 42.
242. A.d.S., Venezia, Senato Terra 27, Brescia, 5 mar. 1558; a questão se coloca anteriormente, idem, 24,
Brescia. fev.-mar. 1556.
243. A.d.S., Napoli, SommariaConsta//a/íonum,2, f'' 75 v' e 76, 7 jul. 1550.

435
) MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILiPE li A UNIDADE HUMANA. ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

4. Às Cidades, Testemunhas do Século


Todas as categorias de cidades estão em igualdade nessemovimento de pro-

Essas cidades variegadas, onde as atividades se distribuem sempre de maneira


original vamos agora interroga-las a respeito do espetácu]o do qual todas participam
simultaneamente e estar atentos para o que elas Fere/em, na medida em que todas
estão submetidas a uma conjuntura, por toda parte a mesma ou aproximadamente
a mesma, durante a segunda metade do século XVI mediterrâneo. Os testemunhos
para aquelas que conhecemos bem são concordantes: a população dessascidades
aumenta; para além das transformações e mudanças em sua vida cotidiana, que cer-
tamente não são escassas,a /ongo prazo elas se portam bastante bem, uma vez que
seuscorpos crescem; em todo caso conseguemsuperar crises e dificuldades; todas.
porém, estão sujeitas à restrição de suas liberdades face aos Estados territoriais que de Nápoles e nas praias de Sorrento ou de Amalfi. Trata-se de um desenvolvimen-
crescem ainda mais do que elas, envolvem-nas, subjugam-nas ou até mesmo as de- to generalizado, e essaascensão implica lodos os universos urbanos. Dessa forma a
sestabilizam à distância. É uma nova fase da política e da economia que se anuncia hierarquia das cidades pouco varia, tanto quanto suas relaçõesrecíprocas. Um mapa
Fase da qual o Mediterrâneo terá sido um participante precoce. como o dos níveis de vida urbana no reino de Granada em ]591, por mais imperfeito

Conhecemos apenas a milésima parte


O crescimento demografico244

e mal! -- do que os historiadores po-


deriam reunir sobre o movimento das populações urbanas no século XVI. Porém os
:=HUnn=i3::==n;.R
lojas com mais fregueses;as cidades-satélite olham-nas, giram a seu redor,
servem-
.250 .
nas e se servem delas. Esses sistemas planetários, tão característicos da Europa"' e
diagnósticos de conjunto são possíveis e quase seguros. Para apresentar uma ideia do Mediterrâneo, manterão sua regularidade.
mais precisado fato, reproduzimos (p. 434) um gráfico do movimentoda popula- Entretanto, ocorrem mudanças, ruidosas, luzindo com vivo esplendor: e que
ção das cidades castelhanas24s.
A linguagem é clara: todas as retas -- as exceções também são bastante lógicas.
confirmam a regra assinalam progressões nítidas e constantes até os últimos anos Em primeiro lugar, um aumento demográfico nunca ocorre em sentido único:
do século XVI.
ora é poderio, ora perturbação;ora equilíbrio, ora fragilidade. Muitos males antigos
De modo geral, as cifras referentesà ltália24ó,à Turquia247
europeiae asiática perduram e por vezes se agravam: o sécu]o XV] não teve a virtude nem a força para
apresentam aproximadamente a mesma curva. Podemos, sem risco excessivo. es- suprima-los. Ademais, as cidades não estão sozinhas na condução do mundo. Seu
tender essetestemunho a todo o Mediterrâneo, tanto muçulmano quanto cristão. É reinado privilegiado durante a primeira ascensão da Europa e do Mediterrâneo, do
a característica do "longo século XVl" na Europa, como no Mediterrâneo, o haver século XI ao XVI, é questionado no limiar da modernidade. Os Estados existem,
implicado, na base, essa progressão do número de homens de quem tudo, ou quase desenvolvem-se lentamente durante os séculos anteriores, porém a modernidade faz
tudo, terá dependido. ' ' '
bruscamentecom que ganhemimportância. E, para terminar, o campo permanece

248. E. Hobsbawm, "The Crisis of the 17thCentury'', Pas/ and Fresca/, 1954, n 5, pp. 33-53 n. 6,
::!: .=n=:-.:H=:=.==''"":;ã::'.= :=b-" .« "

246. O acontecimentoé7}a/ssedomínio, a publicaçãodo tomo 111e último de Kart Julius Beloch, .Bevõ/-
247. A novidade revolucionária dos estudos de Õmer Luta Barkan
iiilbÜH$#z nBzpi:zpr:iii:i:
436 437
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÂ ÉPOCADE FILIPE ll A UNID.ADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROT.AS

majoritário. Ele também apresenta uma progressão no século XVI, possivelmente as aves são surpreendidas por quedas de neve que chegam aos ombros dos homens
menos marcada do que a das cidades que eles nutrem. Estas registram seguramen- e deixam-se apanhar com as mãos. E os seres humanos? Matam-se por um pedaço
te um desenvolvimento, embora não sqa possível quantifica-lo com precisão25'.As de pão2só.Em 1583 o flagelo se espalhará por toda a ltália, especialmente no Estado
cidades saem na frente, embora em situação delicada. Quando acontecer o refluxo Pontifical, onde'semorre de fome:''
populacional do século XVll, como no Vêneto:':, onde dispomos de dados, as cida- Habitualmente, porém, não se trata de fomes que abarcam integralmente as
des recuarão mais depressa que os campos vizinhos. Será diferente no século XVlll? regiões onde ocorrem são fomes urbanas. O que faz a singularidade da penúria
M. Moheau:53 sustenta que a França rural cresce ainda mais depressa do que a Fran- toscana de 1528 é o fato de ela se estender a toda região vizinha de Florença e tornar
ca urbana. Essasbreves comparaçõesajudarão a compreender melhor o destino. ao necessário,como foi dito, expulsar da cidade os camponesesque ali se refugiam. Do
mesmo tempo frágil e determinante, das cidades do sécqo XVI. mesmo modo em Perusa, em 1529, há uma falta total de trigo num raio de cinquenta
milhas. Essas catástrofes são de um tipo ainda raro. Os camponeses arrancam de sua
Misérias antigas, novas misérias: a penúria e o problema do trigo terra praticamente tudo quanto lhes é necessário para sobreviver. Ao contrário, as
fomes urbanas, limitadas à área cercada pelos muros da cidade, são, no século XVI,
O século XVI nem sempre sorriu aos universos urbanos. Penúria e epidemias de uma frequência extrema. A própria Florença, que não está situada numa região
abalam as cidades repetidas vezes. Devido à lentidão dos transportes e a seus pre particularmente pobre, conheceu 111delas de 1375a 1791,para dezesseiscolheitas
ços excessivos, à irregularidade das colheitas, qualquer aglomeração está arriscada excelentes no mesmo lapso de tempo258.Até os portos de redistribuição do trigo, como
a sofrer penúria ou privações a qualquer momento. A menor sobrecarga a arruína. Messina ou Gênova2s',conheceram fomes assustadoras. Todos os anos, no início
Quando o Concílio de Trento se reúne pela terceira e última vez, em 1561 (a cidade, do século XVll, Veneza precisa gastar milhões em ouro para seu abastecimento:'"
no entanto, está localizada na grande rota do Brenner e do Adige, rota do trigo bá- Em razão de suas necessidadese de seus meios, os grandes compradores de
varo, que às vezes abastece Verona), um difícil problema de abastecimento se apre- trigo são, portanto, as cidades. Poder-se-ia escrever um livro inteiro sobre a política
senta de chofre para os padres do Concílio e seu séquito, fato que com toda a razão do trigo em Veneza ou em Gênova. Gênova está sempre pronta para se aproveitar
produz grandes inquietações em Romã:54.No Mediterrâneo e fora do Mediterrâneo. a de toda e qualquer oportunidade de reabastecimento, e no século XV volta-se para
penúria é um fato corriqueiro. Em 1521,a fome de Castelãcoincide com o princípio a França,a Sicília e a Africa do Norte; esta última participa do comércio de trigo
da guerra contra a França e a rebelião interna dos Comuneros. A falta de pão aflige do Levante, negociando com os turcos desde 1390, o que não a impede de se abaste-
nobres e plebeus no ano que em Portugal Foi denominado o da Grande Penúria. Em cer com outros fornecedores, a Apúlia e a Sicília. Veneza também adora prescrições
1525, uma seca atroz arruína a Andaluzia. Em 1528, a penúria desencadeia abomi- permanentes,proibindo em 1390,em 1539,em 1607 e em 1628:'' toda e qualquer
nações na Toscana: Florença precisou fechar seus portos aos camponeses famintos saída de trigo para fora de seu "golfo:
de seu território. Em ]540 o drama se repete: Florença profeta fechar uma vez mais No século XVI, não há cidade de certa importância que não possuao que
os portos da cidade e abandonar o campo à sua sorte. E quando chegam navios de se chama em Veneza nome estranhamente moderno uma Secretaria do Trigo
Livorno com o trigo do Levante. O país está salvo; mas por milagre:ss. Em 1575. nas (cujos documentos, nos anos que nos interessam, desapareceram). Trata-se de uma
regiões romenas (embora ricas em grãos), os rebanhos morrem em massa; em março

251. Earl J.1.122.lton, .E/F7orecimiem/ode/ Cap//a/esmo.y O/ro.s.Eyzsayos


de JI/is/aria.Económica,1948, 256. N. lorpa, Ompi/í./?omeníín Henezia,op. ci/., p. 35
257. G. Mecatti, op. cí/., 11,p. 766.
252. Daniele Beltrami, .Fb«,. d .[av.,o e .Prof,ie/à Fon ria «//e Campagn gene/ede/ Se«/í XP'# . '2S%.Atmanaccodi Economia di Toscanadel,t'Anho 1791,F:ket\ze,\19\
259. Assim, em 1539,Rosário Russo,ar/. cí/., .Riv/scz Sforíca ./}cz/lama,
1934,p. 435, e também,em 1560,
253. M. Moheau,RecÀerc&e.s
e/ consic#ra/iom.ç
sur /a.popzz/a/io/z
de /a France, 1778,pp. 257-258e quadro SimancasE' 1389, 19 jun. 1560. Em relação a Messina, em 1577, Simancas, E' 1148, 9 maio 1757.
260. A. Serra ''Breve Trattato della Causeche Possonofar Abondare li Regni d'Oro e Argento dove non
Sono Miniere'', em A. Graziani, .Economü/i de/ C/fique e Seicen/o, Bati, 1913, p. 164.
255. G. Vívoli, OP.cj/... 111,pp. 15 e 24, nota 17. 7 ago. 1561;custa, op. cif., 1, pp. 67-68 e notas68-69. 261. A. d.S., Venezia, C//zqueSavií..., Busta 2.
A UNIDADE HUM..AN.A:ROTASE C]])ODES, CIDADES E ROTAS
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NÁ ÉPOCA DE FILIPE ll

maravilhosa organização:'2. A Secretaria controla não somente as entradas de trigo .se os Reformados: ganho duplo para a cidade, inimiga dos huguenotes. Em Nápo-
e de farinha mas também as próprias vendas nos mercados da cidade. A farinha só les. durante a fome de 1591,a Universidade reflete bem os efeitos do desastre:ela é
pode ser vendida em dois "locais públicos", um perto de São Marcos, o outro em fechada e os estudantes são mandados de volta para suas famíliaszó9. De um modo
:Rivoalto":':. Todos os dias o doce deve ser informado do montante dos estoques nos geral, pode ocorrer o racionamento, como em Marselha em agosto de 1583270
armazéns.A partir do momento em que fica claro que Veneza só tem trigo para um Mas naturalmente, e antes de qualquer coisa, parte-se em busca de grãos, seja
ano ou oito meses, o Colégio é devidamente avisado; por um lado, a Secretaria trata a que preço for; primeiramente junto aos fornecedores habituais. Marselha volta-se
de se abastecer;por outro, concedem-se imediatamente adiantamentos em dinhei- normalmente para seu interior e para a benevolência do rei da França, ou então se
ro aos mercadores. Os padeiros também são objeto de investigações: são obrigados dirige a seus "caríssimos e amados amigos", os cônsules de Arles, ou até aos mer-
a fornecer ao público pães brancos feitos de "bom grã(#, cujo peso pode variar de cadoresde Lyon. E preciso ainda para atingir, além de Lyon, o celeiro borgonhês
acordo com a abundância ou escassezdo abastecimento; porém o preço unitário é e depois encaminhar os grãos até Marselha que os barcos nos rios "Shomme e
invariável. Na época isso é uma regra em quase todas as cidades da Europa. do Rosne", apesar das águas aumentadas, possam passar "as pontes [.-] sem grande
71
Não diremos que toda cidade possui uma reprodução exata dessa Secretaria do perigo"
Trigo. SÓexiste uma Veneza,mas, sob nomesdiferentese com organizaçõesdiver- Em agostode 1557,em Barcelona,os inquisidores imploram a Filipe ll auto-
sas, em toda parte se encontram agências oficiais de trigo e farinha. Em Florença, a rização para que lhes enviem trigo do Rossillonz7z,ao menos para seu uso pessoal.
,4óóondanzafoi transformada pelos Médias (que reservam para si o abastecimento No ano seguinte os inquisidores de Valências" pedem para importar trigo de Cas-
de grãos para o exterior), mas subsistiu, ao menos para tarefas menores, mesmo de- telã, solicitação renovada, aliás, em 1559. QuaTldoprevê uma colheita ruim, Verona
pois do bando de 1556,no qual se costuma ver o ílm de sua atividade264.Em Como. pedeà Sereníssimaque Ihe permita comprar trigo da Baviera274.
Ragusa volta-se
a tarefa dependedo Consiglio Generale da Comuna, de um Ufflcio d'Annona e dos para o Sandjak da Herzegovina, Veneza pede ao Grão-senhor uma autorização para
Diputati di Provvisione2ós.Quando esseorganismo não existe de modo autónomo. a carregar os cereais do Levante...
política do trigo é confiada aos encarregadosseja do governo da cidade, seja de sua De cada vez são negociações,expedições, grandes despesas.Isso sem contar

administração. Em Ragusa, que está muito mal situada geograficamente para poder as promessas e os bónus concedidos aos mercadores*"
ignorar a fome, os próprios reitores da República ocupam-se do abastecimento. Em Quando tudo fracassa, o grande recurso é voltar-se para o mar, vigiar as naus
Nápoles, o vice-rei2óó em pessoa. carregadas de grãos, apoderar-se delas e depois pagar o carregamento a quem de
A fome ameaça: então, em toda parte, as medidas são idênticas. Primeiro ato: direito. Mais tarde, não sem antes ter discutido bastante... Certa vez Marselha cap-

proíbe-se, ao som de trompas, a saída do trigo da cidade, dobram-se as guardas, tura duas naus genovesasimprudenteso bastantepara adentrar seu porto; em 8 de
novembro de 1562,ordena a uma fragata que inspecione todos os navios carregados
procede-se a investigações, determinam-se as disponibilidades. Quando o perigo
ronda, segundoato: busca-sediminuir o número dos consumidores;fecham-seas de trigo que encontrar ao largo da cidade:'ó. Em outubro de 1557as autoridades
portas da cidade; ou então se expulsam os estrangeiros, gesto habitual em Veneza, a
menos que façam chegar à cidade uma quantidade de trigo proporcional ao número
269. GiuseppePardi,"Napoli attraversoi Secoli", .N.R. S/., 1924,P. 75.
de pessoasde sua comitiva ou de sua casa2ó7.Em Marselha, em 15622ós,
expulsam-
270. Medidas solicitadas contra os pescadoresdo "bairro" St. Jehan "que saem do porto, levam e trazem
mais pão do que precisam [-.]", 7 ago. 1583, A. Comm., Marseille, BB 45, f' 223.
262.B. N., Paria,â. 5599. 271. AlexandreAgulRequi(?) aoscônsulesde Marselha,Lyon, 11 nov. 1579, Arquivos Comm., Marseille.
263. Ou sda, Rialto. 272. 28 ago. 1577, A. H. N., Inquisição de Barcelona, Libro 1, f' 308.
2.64.G. Parenta,Prime RicetchesuZZaRtvoZuzionede{ Prezzi in Firenze, 1939,pp. 96 e ss. 273. 12 out. 1558,Inquisição de Valência,Libro 1, A. H. N.
274. A.d.S. Venezia, Capade/ Consig/io dei .Y, B' 594, f' 139, prometode compra, 23 jun. 1559; o mesmo
265. Giuseppe Mira, ..4spe//ide// 'EconomiaComczsca
a//'Zníz/o de// 'Zíà .À4oderna,
Como, 1939,pp. 239
ss pedido,16maio 1560,!dem,f' 144.
266. Cf. PP. 463-464, 111#'a. 275. Em Marselha, Conselho de 4 de maio de 1572, bónus de seis soldos por carga aos mercadores, BB
267. SimancasE' 1326,29 set. 1569-1' out. 1569. 43, f' 144 e ss.,Arquivos Comm.,Marseille.
268. Conselhode 13 dez. 1562,BB 41, f' 25 e ss. 276. A. Comm.,Marseille, BB 41, f'' l e ss.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILiPE ll A UNIDADE HUMANA: ROTASE Cll)AGES, CIDADES E ROTAS

de Messina mandam descarregar navios com trigo do Levante e da Apúlia277.os Difíceis, essaspolíticas são semprealeatórias.Daí se originam sofrimentos e
Cavaleiros de Malta, pouco favorecidos em matéria de abastecimento, contentam-se desordens.Sofrimentos para os mais pobres, às vezes para uma cidade inteira. De-
regularmente em vigiar as costas da Sicília: comportam-se nessecaso exatamente sordenspara as instituições e para a própria base da vida urbana. Essasreduzidas
como os corsários de Trípoli. Acabam por pagar, certamente,mas sobem a bor- unidades, essas economias de outrora, estarão à altura dos novos tempos?
do como os piratas. Talvez ninguém pratique esse método detestável mais do que
Veneza. A partir do instante em que se sente em dificuldade, não há no Adriático Misérias antigas, misérias novas: as epidemias
navio carregado de trigo que esteja em segurança.
Veneza não hesita em deixar uma ou duas galeras em Ragusa Vecchia, que, Em relação à peste, inquietadora visitante, pode-se traçar um mapa geral
nas barbas dos ragusanos, se apoderam dos navios de,grãos que foram carregados imperfeito, mas eloquente. Ao lado de cada cidade hgurariam números indicando
pelos reitores em Volte, na Tessalânica,e até nos portos vizinhos da Albânia. Ou os anos em que o flagelo grassou. Nenhuma cidade escapa a esse censo sumário,
então vai procurar cargueiros de trigo na costa da Apúlia e os faz descarregar em a essequadro de avisos. A peste é o que parece ser: uma "estrutura" do século.
Corfu, em Spalato ou diretamente em Veneza... Sem dúvida não conseguiu manter- Mais frequentementeque as outras, as cidades do Oriente sofrem seus repetidos
-se na costa da Apúlia, onde tentou instalar-se por duas vezes e veio a perder esse impactos. Em Constantinopla, às portas perigosas da Ásia, o flagelo instalou-se
providencial celeiro de trigo e depósito de azeite e vinhos. Pouco importa! Sempre em caráter permanente. É o grande foco das epidemias, de onde estas se estendem
que se faz necessário, ali volta para se abastecer,já pacííicamente,já pela violência. para o Ocidente.
Não sem que Nápoles e, mais além, a Espanha protestem com razões justas, eternas Esses flagelos, aliados às fomes, acarretam uma renovação contínua das
e mütels: essasnaus que Veneza captura são geralmente as que Nápoles fretou para populações urbanas. Em 1575-1577 Veneza foi devastada por uma epidemia de
si própria. As capturas de Veneza envolvem o risco de provocar tumultos na cidade peste tão terrível que cinquenta mil pessoas pereceram, um quarto ou um terço
que fervilha de gente pobre278.
da cidades:0. De 1575 a 1578 teria havido quarenta mil mortes em Messina. Por
Tudo isso, ao cabo, é muito oneroso. Mas nenhuma cidade pode escapar a toda a ltália depois da peste, em 1580, alastra-se uma epizootia mortal, o mal de/
esses pesados encargos. Em Veneza, enormes perdas são inscritas na Secretaria mo/zfolze
ou do cas/Fome:*',
que, por ricocheteio,ameaçaa vida dos homens.Es-
do Trigo, que de um lado outorga importantes bonificações aos mercadorese. de sas cifras dadas pejos contemporâneos assinalam muitas vezes, por seu volume,
outro, revende o trigo e a farinha muitas vezes abaixo do preço de compra. Em o pavor das provações sofridas. Bandello fala de 230 mil vítimas em Melão, no
Nápoles é ainda pior; lá, o medo torna as autoridades não somente liberais mas tempo de Ludovico Sforza2821Em 1525, a crer em outro informante, desapareceram
pródigas. Em Florença é o grão-duque quem paga a diferença. Na Córsega, Ajac- nove décimos da população de Nápoles e de Roma283;em 1550, de novo metade da
cio toma empréstimosde Gênova279.
Marselha, boa administradora de seusbens. população de Milão284;em 1581,em Marselha, a peste teria deixado apenas cinco
toma emprestado mas, sempre previdente, na véspera da colheita proíbe a entrada mil pessoas285
com vida, e em Romã teria levado sessentamii286...Essesnome
de grãos e liquida seus estoques antigos, quando estoque existe. Assim procedem ros não sãoexatos,masindicam seguramenteque um quarto, um terço de uma
muitas outras cidades.
cidade podia desaparecer bruscamente numa época em que seus conhecimentos

277. Pieüo Lomellino à Senhoriade Gênova, Messina, 8 out. 1557, A.d.S., Gênova,Ze//ere Canso//.Napa/í,
280. H. Kretschmayr, op. cí/., 111,p. 41.
281. G. Mecatti, op. cí/., 11,p. 764
282. M. Bandello, op. ci/., V. p. 167. Em 1524, Salvatore Pugliese, Copzdízio/ze
.Economicãe e .Fíncznziaríe
de//a .ÉomZ)ardiane//a Prima .JWe/àde/ Seco/o XP7/7, 1924, p. 55, fala de cem mil mortos.
283. G. Vivoli, op. cí/., 111,P. 268
284. Idem. ibidem.
2BS. Idem, ibidem.
279 1527,Mano Branetti, "Notizie di Fonti et Document", ..4rc.b/v/o
S/orjco í# Corsjca, 1931, P. 53] 2B6,.Idem,ibidem.

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O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE ll A UNIDÀ])E HUM.ANA: ROTASE CIDADES, Cli)ÀI)ES E ROTAS

de higiene e de medicina pouco resguardavam contra a contaminação287.


Esses menostranquila. Esseé, como notou René Baehrel292,
um velho conflito, a origem
números também estão de acordo com as narrativas habituais, com ruas juncadas de sólidos ódios de classe. Em junho de 1478293,
Veneza foi acometida pelo mal; na
de mortos, a carroça diária onde se amontoam os cadáveres, tão numerosos que cidade, como costuma acontecer, os roubos começam imediatamente; a casade um
não é possível enterra-los...Tais flagelos arruinavam, renovavamuma cidade. membro da Ca Balastreo foi inteiramente esvaziada, assim como um armazém da
Quando a peste se abranda e a abandona em 1577, Veneza é outra cidade, outro os Ca Foscari e, em "Rivoalto", a Secretaria dos Cônsules dos mercadores. Isso por-
dirigentes que lá se encontram. Teve lugar uma imensa substituição:**. Pregando que, "hoc tempere pestis communiter omnes habentes facultatem exeunt civitatem,
em Nápoles por volta de março de ]584 seria pura coincidência?--, umyPa/e d/ relictis domibussuis, aut clausis aut cum uma serva, vel famulo". Em 1656,em Gê-
San Z)o/neníco sustentava que "há certo tempo Veneza se comportava mal, pois nova, conforme o testemunho do Capuchinho Caridoso, o espetáculo é exatamente
os Jovens assumiram o governo no lugar dos velhos" (PO/c#e i G/ovanní #avevano o mesmo, palavra por palavra:"
solto il governo a vecchi..y'*9 No entanto, as grandes epidemias do primeiro século XVll Milho, Vero-
Mais ou menos depressa, essas feridas se curaram. Se Veneza não se recupe- na em 1630;F]orença em 1630-163]; Veneza em 1631;Gênova em 1656; e mesmo
ra inteiramente depois de 1576z90,
é porque com o século XVI a conjuntura secular Londres, em 1664 parecem ser muito mais graves do que as do século anterior.
vai oscilar no mau sentido. A peste e as outras epidemias só são graves em épocas As cidades teriam, portanto, durante a segunda metade do século XVI, passado por
de dificuldades materiais e alimentares. Fomes e epidemias dão-se as mãos, velha provações relativamente menos severas. Algumas explicações acodem ao espírito
verdade que o Ocidente conhece desde muito tempo. Há muito tempo também cada naturalmente: o agravamento da umidade e do frio, as relações mais diretas entre a
cidade tenta defender-se contra o mal, por desinfecções à base de plantas aromáticas. ltália e o Oriente. Mas por que o Oriente sofre mais com o flagelo?
a destruição pelo fogo dos objetos pertencentes aos pestilentos, a quarentena de pes- As cidades no século XVI não são apenas vítimas da peste. São também presa
soas e mercadorias (Veneza foi, nesse campo, uma vanguardista), pelo recrutamento das doenças venéreas, da "sudâmina", da coqueluche, da disenteria e do tifo. Não
de médicos, pela utilização de bilhetes sanitários, pelas car/as de sa/zld da Espanha, poupam também os exércitos, essas cidades ambulantes que são ainda mais frágeis.
pelosle(# d/ sana/à da Itália. Os ricos, desde sempre, encontraram sua salvação numa Durante a Guerra da Hungria (1593-1607), uma espécie de tifo, o chamada ungarls-
fuga precipitada. Assim que o mal se anuncia, eles fogem para as cidades vizinhas c/ze Krnk/ze/f29s,dizima os soldados alemães, enquanto poupa turcos e húngaros; e se
ou, na maior parte das vezes, para suas preciosas casas de campo. "Nunca vi nenhu- propagará pela Europa até a Inglaterra. As cidades são as estações de muda dessas
ma cidade rodeada de tantas chácaras e casas de lazer", escreve Thomas Platter291 doenças contagiosas: em 1588, uma gripe que podemos seguir a partir de Veneza,
quando chega a Marse]ha em ]587. "A razão disso é que, em tempos de peste (coisa onde dizima, sem destruir a cidade, toda a população, esvaziando de um só golpe o
frequente, dado o grande número de pessoas vindas de todo o país), os habitantes Grande Conselho o que, por sua vez, a pestejamais conseguiria --, atinge Milho,
refugiam-se no campo." Por habitantes é preciso entender os ricos; os pobres perma- a França, a Catalunha e depois, subitamente, a América"'.
necemem toda a cidade acometidapelo mal, e desdeentão ela é cercada,mantida Esse regime de epidemias tem sua responsabilidade na vida agitada das ci-
sob suspeita, abastecidado exterior com liberalidade, para que se conserve mais ou dades, nos "massacres sociais" de pobres, que só cessação com o século XVIII. E
ainda assim...

sem paginação nao e iÊacilde n59consumato da uma peseilenza", G. Botero, op. c//. , ]], Proem/o (p- ] ),
288. Cf sup/cz,nota 280 292. René Baehrel. "La haine de classe en temps d'epidémie'', .dana/es .E. S. C., 1952, pp. 315-350, e
mais ainda, "Economia et terreur: histoire et sociologia", d/znéz/es#is/. de /a Révo/z//lon .P'ançaíse
1951, PP. 113-146.
293. A.d.S., Venezia, Senato Mista, 19, f' 72 v' e 73, 3 jun. 1478. .. . , ,.
294. Padre Maurice de Tolon, Preserva/ Ése/ remêdesconrre /a peste ou/e Capucln C&aríraó/e, lbbõ,
pp. 60 e ss.
295. OP. cj/., 11,P. 14.
291. Thomas Platter, op. ci/., PP.315-316.
296. Pare P. Gil, Livre Primar de la Historia Cathalana-., f' 81 io
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÁ ÉPOCADE FILIPE ll A UN.íl)ADE HUMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

O indispensável imigrante e desesperadaé uma benessepara os ricos, que obtêm a bom preço os servidores
exigidos por seusjardins, suas cavalariças e residências [.-]". Esses miseráveis fa-
Outro traço habitual: o proletariado das cidades só pode manter-se,e com mais zem concorrência até mesmo ao trabalho escravo"'.
razão ainda aumentar, graças a renovadas imigrações. A cidade tem o privilégio e a Em Lisboa, para onde afluem os recém-chegados,os mais miseráveissao os
obrigação de atrair, além do eterno imigrante montanhês, candidato a qualquer tarefa.
uma massa de proletários ou de aventureiros de todas as proveniências que atenda
à sua demanda. Ragusa encontra sua mão de obra na montanha vizinha. Podem-se
ler, nos registros das Diversa de .f'orfã, inumeráveis cópias de contratos de aprendi-
zes domésticos, que se enganam por um, dois, três, sete anos, com a taxa média, em tem uma aparência mais bela do que um branco vestido [...]".
1550, de três ducadosde ouro por ano,o salário muitas v;zes sendopago ao final do Em Veneza, o imigrante chega das cidades vizinhas (que decepção ser ali ignora-
contrato. Tallamz//z/s compromete-se a servir a seu senhor /n parfíózís Zarcicorum: do, colocado à parte, conta um pouco longamente Cornélio Frangipane, um escritor do
todos recebem alimentação e vestimenta, além da promessa de aprender o ofício de meado do século;") e dos campos e montanhas próximos(Ticiano é de Cadore). Se a
seu patrão297ou de receber um prêmio em peças de ouro ao termo dos cinco, oito gente do Friul -- os /'ar/aní -- são bons recrutas para o serviço doméstico e para os tra-
ou dez anos de seus contratos:':... Entre eles, além dos nascidos na região, quantos, balhos pesados,e fora da cidade para as tarefas agrícolas, os rapazes de má qualidade,
sem que os textos o digam, não são filhos de camponeses do território ragusano, ou que os há, vêm todos, ou quase todos, da Romanha e das Marchas. "Tutti li homem di
mesmo de À4or/ac#/, mais ou menos súditos dos turcos? mala qualità", diz um relato de maio de 1587so',"o la maggiore parte di toro che capi-
Em Marselha, o mais típico dos imigrantes é o corso, particularmente o Ca- ta in questa città sono Romagnoli e Marchiani". Visitantes indesejáveis e geralmente
pocoriino. Em Sevilha, o imigrante (excluindo os apreciadores da viagem às Índias clandestinospenetram à noite na cidade por canais regulares, dirigindo-se a algum
vindos de toda parte), o proletário permanente é mourisco. Chegado da Andaluzia. Z)arcarz/o/,que não pode recusar o acesso à sua barca de homens armados muitas ve-
ele pulula na grande cidade, a ponto de as autoridades temerem, no final do século. zes de arcabuz de roda e que, am igavelmente ou não, fazem-se conduzir até Giudecca,
rebeliões não mais da montanha, mas da própria cidade, em conexão com os de- em Murano, ou a outra ilha. Proibir tais chegadasequivaleria a frear a criminalidade,
sembarques ingleses2PP.Em Argel, os recém-chegados são cristãos, que engrossam mas seria necessária uma vigilância redobrada e a presença de serviços de inteligência.
o mundo do corso e dos cativos; fugitivos andaluzes ou aragoneses(chegados com O Império de Venezae as regiõesvizinhas fornecem também suarecolta de
o ílm do século XV e o início do século XVI), artesãos e lojistas cujos nomes ain- homens:albanesesrápidos com as mãos, de ciúmes sanguinários; gregos, hono-
da podemosencontrarno atual bairro dos Tagarins;"; sãotambém,e ainda mais ráveis mercadores da "nação grega";'s ou pobres-diabos que prostituem mulheres
numerosos, os berberes das montanhas próximas de Cabília, que já tinha fornecido e filhas para superaras primeiras dificuldades de instalação e em seguidatomam
o primeiro estrato de população. Haedo mostra-os, miseráveis, cavando os jardins gostopor esseconfortável bem-estará";amor/ac/zidas montanhasdináricas: o cais
dos ricos, com a ambição de chegarem, quando possível, a um posto de soldado na dos Esclavõesnão é somenteo cais das partidas... Pelo fim do século, Venezase
milícia: só então estarão seguros de comer na medida de sua fome... Em todo o Im- orientaliza mais do que nunca, com a chegadados persas,dos armênios;'' e dos
pério Otomano não há uma só cidade, apesardos controles e das defesasdo Estado
e da suspeição das corporações, que não receba permanentemente imigrantes ori-
301. Õmer Luta Barkan, CorZáerênclas /nédí/as na Esmo/ados H/fos Es/tidos, P. ll
ginários de campos deserdados ou superpovoados. "Essa mão de obra clandestina 302. B. M. Sloane, 1572, f' 61, jul.-ago. 1633.
303. B. Gerometta, / .F'o/"esííericz Henezia,Veneza, 1858, p. 9.

304. A.d.S , Vênezia,SenatoTemia,IOI'jmai l 1587SimancasE' 1324, f' 136; N. longa, op. cií., P. 136.
297. A. de Ragusa:ver igualmentea série Diversa di Cancellaria. 137. A par dos gregos, armênios, circassianos, valáquios.
298. idem, 146, f' 32 v', 140, 187 v', 205, 213 v'. 215 etc
299. A.d.S., Firenze,Mediceo 4185, í' 171-175. 307. Nicolà Cmüo a Antonio Parta, Andara, 2 maio 1585; Cucina a Paruta,Venezia, 16 abr. e 25 jun.
300. D. de Haedo,op. cf/. P. 8 v' (sobre os cabidas),p. 9 (sobre os andaluzes). 1509.A.d.S., Venezia,Lefíere Com., 12 rer, e N. larga, op. cf/., p- 19.

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D MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FILIPE il A Unia.ADE H\JMANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

turcos, estes últimos a partir da segunda metade do século XVI, acantonados em Gilberto Freyrel As primeiras cidades do Brasil acabampor atrair os fazendeirose
uma dependênciado palácio de Mare Antonio Barbaro30*, esperandoque no sé- suas próprias casas. Há um deslocamento integral para a cidade. No Mediterrâneo
culo XVI sda criado olonríco dei Euro/zl.Venezatorna-se também a etapa mais também tudo se passa como se a cidade agarrasse de uma só vez os castelõese os
ou menostemporária de que se utilizam famílias judias, de origem portuguesa, castelos.Um senhor sienensetem seu castelo em Marema e seu palácio em hiena,
para ir do Norte europeu (Flandres ou Hamburgo) ao Oriente309.E, cada vez mais. que Bandello apresenta com seu andar térreo raramente utilizado, seus quartos de
o refúgio dos exilados e, mais tarde, de seus descendentes.Assim, em 1574os luxo onde a sedafaz sua triunfante aparição
descendentesdo grande Scanderberg ainda vivem lá: "a raça aí subsiste [.-] com Esses palácios são grandes testemunhos de uma história que precedeu uma
meios honestos"310. nova emigração dos ricos para fora das cidades, essesretornos ao campo,aos po-
Esses imigrantes indispensáveis nem sempre são,.meroscarregadores ou ho- marese às vinhas, essabusca "burguesa" de ar livre, tão visível em Veneza"', Ra-
mens medíocres. Muitas vezes levam consigo técnicas covas, não menos indispen- gusa3ió,Florença3i7, Sevilhasn, e bastante generalizada no século XVI. Essa emigra-
sáveis que suaspessoaspara vida urbana. Os judeus, banidos devido à sua religião ção é sazonal: mesmo que retorne muitas vezes à sua casa de campo, o senhor que
e não por causade sua miséria, desempenharamum papel excepcional nessatrans- construiu seu palácio na cidade é doravante um citadino. A casa de campo não passa
ferência de técnicas. Os banidos da Espanha, que a princípio são mercadores va- de um luxo a mais, e quase sempre é uma questão de moda. "Os florentinos", escre-
rejistas em Tessalânica e em Constantinopla, onde aos poucos desenvolveram seus ve em 1530 um embaixador veneziano, Foscari, "vão pelo mundo; quando ganham
negócios até fazerem uma vitoriosa concorrência comercial a ragusanos,armênios e vinte mil ducados,gastamdez mil em um pa/azzo fora da cidade. Nisso, cada um
venezianos. Trouxeram para essasduas grandes metrópoles do Oriente a imprensa, seguea moda do vizinho [-.] de modo que fizeram tantos e tão suntuosos e magní-
as indústria da lã e da seda:''; e também, a julgar por certos rumores, o segredo de ficos palácios fora da cidade que constituem, por si sós, uma segunda Florença"'''
fabricação das carretas de artilharia de campanha''z. Presentes de valorl São também O mesmo ocorre em Sevilha: as nove/as dos séculos XVI e XVIJ falam copiosa-
alguns judeus que, banidos de Ancona por Paulo IV. fizeram a fortuna relativa. é mente das v///as na vizinhança da cidade e de suas festas magníficas. Parecidas são
verdade da escala turca de Valona313. as quintas cheias de árvores e de águas cristalinas em torno de Lisboa32'. Eviden-
Há ainda outros imigrantes de qualidade que podem ser artistas itinerantes temente esses gostos, esses caprichos podem ceder a decisões mais sensatas e mais
atraídos pelas cidades que crescem e incrementam suas construções. Ou os mer- consequentes. No século XVll, e mais ainda no século XVlll, em Veneza, é de uma
cadores,particularmente os mercadorese banqueiros italianos, animadores e até reconversão de citadinos à propriedade rural que devemos falar. Veneza, no tempo
mesmo criadores de Lisboa, Sevilha, Medina del Campo, Lyon e Antuérpia... E de Goldoíti, deixa cair em ruína seus mais belos palácios urbanos e todo o luxo se
preciso haver de tudo para construir um mundo urbano também de ricos. A cida- concentra nas ví//as às margens do Brenta. Na cidade, com a chegada do verão, só
de os atrai tanto quanto atrai o proletário, ainda que por outras razões. No grande ficam os pobres: os ricos estão em suas terras. Modas e caprichos, como sempre que
problema, tão discutido pelos historiadores, do /nuróamen/on4,não são apenasos se trata de ricos, não explicam tudo. As vi//as, casasde campo onde o propnetârlo
pobres con/adízzique vão para a cidade mais próxima, são também os senhores. os mora ao lado de seus criados da lavoura, basrídes, como se diz na Provença, são
ricos proprietários de bens de raiz. A título de comparação: quantos não são os es- também os marcos de uma conquista social de terras em benefício do dinheiro das
clarecimentos fornecidos pelos belos trabalhos do historiador e sociólogo brasileiro cidades. Esse movimento é intenso e não poupa as terras férteis dos camponeses. Em

308. G. d'Aramon,op.ci/., p. 3.
309. F. de Veráa Filipe 11,Venezia,23 nov. 1590,A. N., K 1674.
310. P. Lescalopier, op. ci/., p. 29. 315. H. Kr icolay, .Nàvigarionse/ .l2ér(!crina/íozzs
oríen/a/es,op. cif., p 157, as casasragusanasem Gra-
311. G. Botero, op. c//., 1, p. 103. vosa, seusjardins de laranjeiras e de limoeiros.
312. J. W Zinkeisen, op. ci/., t. 111,P. 266.
313. G. Batera, op. ci/., 1, p. 99. 318. Mateo Alemán, l)e /a Hda de/ Pícaro Guzmópz
de ,4(áarac#e,1615,1, pp. 24 e 29.
314. Penso sobretudo no livro de J. Plesner, .É /ion de /a ca/npagne /ióre de F7orence az/ mZr siêc/e. 319. Citado por G. Luzzatto, op. ci/., P. 145.
1934
320. B. M. Sloane,1572.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE li A UNIDADEHUMANA ROTASE CIDADES,CIDADES E ROTAS

Ragusa, onde tantos contratos de terras camponesas estão conservados nos registros çorretamente ou estava convenientemente organizado, e muitas vezes os conflitos
oficiais, no Languedoc, na Provença, nesse caso nenhuma dúvida é possível. O mapa foram resolvidos amigavelmente, sem drama aparente, e os novos frutos, amargos
dessacomuna provençal à beira do Durante, que vemos na tese de Robert Livet. o
demonstra à primeira vista. As terras da aldeia de Rognes são, desde o século Xy ezesrl observamseuspr melros sinais é prcer.o remontar ao início do século XV,
e mais ainda posteriormente, cravejadas de Z)asrídes,todas elas acompanhadasde
consideráveis extensões de terra; pertencem, no século XVI "a darás/e/roi, isto é.
a proprietários que não possuem domicílio em Rognes. Quase sempre são 'alxols
pessoasenriquecidas de Aix"321.
Temos assim fluxo e refluxo entre cidade e campos. Nos séculos XVI e XVIJ
ainda prevalece o sentido campo--cidade, mesmo em se tratando dos ricos. Milão
torna-se então uma cidade de senhores, muda de tom. Na mesma época, os proprie-
tários turcos de /sc/zeó///ksabandonam suas aldeias e seus servos para ganhar as ci-
dades vizinhas32:. Nesse final do século XVI, numerosos senhores espanhóis deixam
seus campos para se instalarem nas cidades castelhanas, especialmente em Madri3z3. escapaa seusdonos e depois os chama de volta, os Sforza em primeiro lugar, os
A mudança de clima entre o reino de Filipe ll e o de Filipe 111,imputável a tantas reis da França em seguida. Mas ela perde seu império no mar Negro. Perde também
variações, estátambém ligada à chegadada nobreza espanholaaos quadros urbanos. Livorno, mais próxima. Seu restabelecimento após essas catástrofes é, por si só, um
onde até então só havia permanecido a título provisório. Seria essaa explicação da milagre329.Entregando-se pela metade à França de Francisco 1, para traí-la em se-
reação dita feudal no tempo do sucessor do Rei Prudente? guida com Andrea Dona e a Espanhaem 1528,engendrando na ocasião uma consti-
tuição oligárquica;;'. Mas antes dessasdatas ela já é forte o bastante para conservar
As crises políticas urbanas seusbens e apoderar-se dos bens alheios. Em 1523, as milícias de Gênova tomam
Savona;de 1525a 15263s'o vencedor se encarniça sobre a presa, demole o molhe,
Essas dificuldades das cidades, suas histórias cinzentas no dia a dia, não têm aterra o porto e, finalmente, após a tentativa de revolta da cidade que com deleite se
o elemento dramático dos conflitos políticos onde são mergulhadas impiedosamen- entregaria aos turcoss32, em 1528 derruba suas torres no intuito de construir ali suas
te pela evolução do século, cada qual por sua vez. Mas não exageremos essa histó- próprias fortalezas333.
Porém, a essaaltura dos acontecimentos, outras catástrofes de
ria espetacular.E, sobretudo,não sejulgue com os sentimentosdos homens desse muito maior pesojá tinham ocorrido.
tempo, carrascosou vítimas, com a violência dos pisanosjulgando Florença, mas Em 1453.ocorreu a tomada de Constantinopla, simbólica por mais de uma ra-
compreenda-se o processo que as esmaga, ou parece esmaga-las. Pois os Estados zão; em ]472, Barcelona capitulava diante das tropas de João ll de Aragão; em 1480,
triunfam, mas as cidades sobrevivem, tão determinantes antes como depois de ha- num acordo mútuo, o rei da França tornava-se o senhor da Provença e de Marselhal
verem sido disciplinadas..
Crónicas e histórias políticas relatam uma interminável sucessãode catástrofes
324. H. Kretschmayr, op. ci/., 11,P. 251
urbanas. O que foi abalado então não foram somente as instituições, os hábitos e as
325. G. Vivoli, OP. cíf., P. 52.
vaidades bocais; foram também a economia, a aptidão para criar, a própria felicidade 326. H. Kretschmayr, op. cí/., 11,P. 254.
das comunidades urbanas. No entanto, o que desmoronou nem sempre funcionava 327. idem, pp. 337-338.
328. A. Petit, .Xndré.Do/"í(z...,OPcjf., P. 6.
329.Idem,pp. 32-33
330. /dem, pp. 216 e ss
321.RobertLivet, op.ci/., p. 157. 331. Cf. lllP'a, nota 333.
322. R. Busch-Zantner, op. ci/., cf vol. 11,PP. 442-443. 332. P. Egidi, Emana/e/eFI/íóerfo, 1928, P. 114. 1932,P. 116
323. L. Pfandl,/n/roducción a/ Sfg/o de Oro, Barcelona,1927,pp. 104-105. 333. Scovazzi e Nobaresco, Savana, segundo resumo publicado em Rivís/a Sroríca

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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE ll A UNll)ADE HUM.ANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

Granada sucumbia em 1492. E a grande hora da derrota dos Estados urbanos, dema- organizados,aos nossosdias. Quando nós, historiadores, nos queixamosde nunca
siado reduzidos para sobreviver à luta travada contra Estados mais extensos. Estes. encontrar documentos do século XVI em seus devidos lugares, culpamos habitual-
desde cedo, conduzem o jogo. No início do século, algumas cidades apoderavam- mente as negligências, os incêndios, as destruições e os saques, que também tiveram
.se de outras, aumentandoseus territórios: Veneza constituía a Terra Firme, Melão seu papel. Devemç)sincriminar ainda mais a passagemdo Estado urbano ao Estado
criava o Milanês, Florença iria tornar-se a Toscana. Os vencedores doravante são territorial, essesmúltiplos reinícios institucionais que embaralharam tudo. Aqui, a
os turcos, os aragoneses, o rei da França, os reis associados de Aragão e Castelã. cidade-Estadojá não opera com suasvigilâncias meticulosase o Estado territorial
Há, evidentemente, incêndios que recrudescem, mas são muito breves: Pisa, con- ainda não a substituiu. Salvo talvez na Toscana, onde o "despotismo esclarecido:
quistada em 1406, volta a ser livre em 1494; subjugada novamente em 1509, é aban- dos Médias apressou essa passagem. Mas na inalterada Ragusa tudo está admira-
donada por seus habitantes, que em massa se dirigem à Sardenha, à Sicília e a outras velmentearquivado no Palácio dos Reitores: os papéisjudiciários, os registros de
regiões334.
Novos fogos se acendemem outros lugares: em 1521, em Villalar, as pujantes certidões, os títulos de propriedade, as correspondências diplomáticas, os seguros
e orgulhosas cidades de Castelã são enquadradas, devem acertar o passo.- Em 1540 marítimos, as cópias de letras de câmbio... Se temos a possibilidade de compreender
é a vez de Perusa,que deve ceder diante do Sumo Pontífice no curso da Guerra de/ o Mediterrâneo do século XVI, é por meio dessecentro privilegiado, tanto mais que
Sa/e, uma guerra fiscal desprovida de glória"s... Na mesma época, por volta de 1543, os cargueiros ragusanos percorrem toda sua extensão, entre o lslã e a Cristandade,
bastou o catastrófico endividamento das cidades napolitanas para que suas últimas li- do mar Negro às Colunas de Hércules e mais além.
berdades3" se desvanecessempor si próprias. Em Aquela, nos Abruzos, a cidade é um Mas isso corresponde a uma realidade ou é um cenário pintado? Ragusa anuiu
corpo mutilado, pelo menos depois de Philibert de Chalon tê-la despojado, em 1529,de em pagar tributo aos turcos. Foi somente a essepreço que logrou salvar seus entre-
seus preciosos Gaffe/// e taxas num raio de quarenta milhas337.No princípio do século postos disseminados através dos Bálcãs, sua riqueza e a mecânica precisa de suas
XVll, Alongo de Contreras3:8,comandante do punhado de homens de sua guarnição, instituições-. Sendoneutra,aproveitou-sedos momentosde indecisãodo século.
trata desairosamentee sem escrúpulos os membros do Conselho Comunal. Essaquerela Neutra, sim, mascom heroísmo e habilidade: ela sabe eriçar as garras afiadas em
burocrática é uma das últimas labaredas de incêndios que há dois séculos se renovam. defesa própria, defender sua causa rezando pelo campo de Romã e da Cristandade;
não é ela fervorosamentecatólica?Do lado turco, fala com firmeza... O capitão do
O que desapareceucom essalonga crise? A cidade, a cidade medieval, senho-
ra de seus destinos, bem assentadaem suas terras de cultivo e criação, de poma- navio ragusano que os argelinos capturam à revelia de qualquer direito se queixa,
res, de vinhas, de campos de trigo, de litorais e de rotas próximas. E desapareceu grita, vocifera, tanto que um belo dia decidem atira-lo à água com uma pedra no
como se apagam as paisagens e realidades da história, deixando em seu rastro ves- pescoço339.
Não é em tudo e não é sempre que os neutros âcam em posição vantajosa.
tígios surpreendentes.A Terra Firme de Venezacontinua sendouma federaçãode Cenário pintado em Lucra, indiscutivelmente. Mal disfarçado protetorado dos
cidades, com suas liberdades, suas outorgas e concessões, seus semifechamentos. espanhóisdo Milaítês. A única cidade da ltália, diz candidamente Cervantes, onde
Mesmo cenário em Lucra, que se pode contemplar com os olhos de Montaigne sem os espanhóis são amados"'
achar demasiada graça na prontidão militar da minúscula República. Melhor ainda, Mas as exceçõesconfirmam a regra. As cidades não lograram sobreviver in-
vamos a Ragusal No coração do século XVI, ela é a imagem viva de Veneza no tactas à longa crise política dos séculosXV e XVI. Sofreram as consequênciasda
século Xllt, um desses Estados urbanos que antigamente povoavam as costas mer- tormenta e tiveram que se adaptar: para tanto precisaram, ao mesmo tempo, ceder,
cantis da ltália. As velhas instituições urbanas permanecem em seus lugares, intac- trair, discutir, perder-se e se restabelecer, abandonar-se ou vender-se, como Gênova;

tas, e os preciosos documentos que lhes correspondem chegaram, bem guardados e ou lutar, como Florença, de modo mais apaixonado que lúcido; ou então lutar e além
do mais conseguir aguentar, como fez Veneza de modo sobre-humano. Mas foram
obrigadasa se adaptar: foi o preço da sobrevivência.
334. G. Botero, op. ci/., p. 39.
335. SobrePerusa,cf os estudosdeTordoe deA. Bellucci e o drcÀivio SZorico./la//ano,t. IX, pp. 114 e ss
336. .,4rc#jvíoSÍorjco.//cz/ja/zo,
t. llX, P. 47.
337. Sobre essepequeno caso da história urbana, cf. os estudosde Leopoldo Palatina, de Vinca, de Casta. 339. D. de Haedo, 7Z)pog/"ap/zía...,
p. 173 v'
338. .[es .dven/z/resd# capa/czíne.,4/anjo
de (;onüeras, 1582-1633,p. p. JacquesBoulenger, 1933, pp. 222 e ss. ''Licenciado Vidriera' 1,P. 263
340. ]Vove/as.Zge/mp/ares,

4j2 453
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NA ÉPOCA DE FILIPE ll

As cidadesprivilegiadas do dinheiro

Os Estados não conseguiram tomar tudo, nem tudo assumir. Eles são máqui-
nas pesadas ainda insuficientes para realizar suas novas e sobre-humanas tarefas. A
economia dita /erra/or/a/ de nossas classificações escolares tarda a abafar a economia
dita z/róana. As cidades continuam a ser os motores. Os Estados onde se localizam
devem amoldar-se a elas e suporta-las. O acordo ocorre de modo ainda mais natural
porque as cidades, mesmo quando independentes, têm a necessidade de se apoiar no
espaço dos Estados territoriais.
A Toscana inteira não consegue, sozinha, sustentar a riquíssima Florença dos
Média. Não produz nem um terço de seu consumo anual de trigo. Os aprendizes das
lojas da ,4r/e de//a Lama vêm das altas regiões toscanas, mas também de Gênova.
Bolonha, Perusa, Ferrara, Faenza, Mântua3'1. Até por volta de 1581-1585,os inves-
46 e 47 -- Gênova no século XV. Uma
timentos do capital florentino (os accomandfre)estão disseminadospor toda a Eu- cidade encerradaentre o mar e a mon-
ropa, alcançando o Oriente;':; colónias de mercadores florentinos estão presentes tanha cresce em altura. Pormenoresdo
em todos os lugares importantes, muito mais decisivos na região ibérica do que se quadro de Cristoforo Grassa,Hedz/fadi
Gênova, 1485, Cívico Musgo Navale de
costuma pensar, dominantes em Lyon, em primeira posição na própria Veneza, no
Pegli (Gênova).
início do séculoXVll";. A partir da chegadado grão-duqueFernando(1576),im-
plementam-se projetos de busca de novos mercados. Os menos surpreendentes não
são os cruzeiros das galeras de Saint-Étienne, ou as associações com os holandeses
para chegar ao Brasil ou às Indias344

Essasgrandes cidades do século XVI, com seu capitalismo ágil e perigoso, têm
a capacidade de apoderar-se do mundo inteiro e domina-lo. Veneza não se explica
unicamente por sua Terra Firme, ou por seu império de costas e de ilhas explorados
com tenacidade. Na verdade, ela se nutre da densidade do Império turco. A hera
vive das árvores a que se agarra.
Também Gênova não se contenta, para alimentar sua vida opulenta, com suas
pobres costas do Poente e do Levante, ou com a Córsega, preciosa e embaraçosa
propriedade-. O drama, nos séculos XV e XVI, não é somente o dos destinos polí-
ticos; estes são uma resultante, muitas vezes uma simples aparência; o drama é que
Gênovaperde um império, mas reconstitui um segundo.E o segundonão se parece
em nada com o primeiro.

341. Segundo a tese inédita de Maurice Carmona, sobre Florença e a Toscana no século XVII.
342. Maurice Carmona,"Aspecto du capitalismotoscan aux XVI' et XVll' siêcles", .Recued Hls/o/re
moderne et contemporaine, \.964..
343. Cf. principalmentepp. 393-394.
344. Cf. pp. 169-168e nota 18.

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48 O arsenal de Veneza (1500). Segundo o vasto plano de Jacopo di Bárbaro

49 Constantinopla.Vista parcial a partir do Chifre de Ouro(século XVI). B. N. Paras,C 4093


A 'UNIDADE HUh4ANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

O primeiro Império de Gênova compõe-se essencialmente de colónias mer-


cantis. Deixemos de lado, a esse respeito, as ideias de W. Sombart sobre a expansão
feudal e agrícola das cidades italianas da Idade Média, culminando com a consti-
tuição de vastos domínios territoriais. Isso vale, sem dúvida, sobretudo para a Síria,
Creta, Chipre e Quios, onde os genovesespermanecerão até 1566. Mas o essencial
da fortuna dos genovesessão,além de Constantinopla, as colónias que ela implantou
no limite do Império Bizantino, em Caffa, Taça, Soldaia, Trebizonda... São as feito-
rias. Na costa norte-africana, Tabarca, organizada pelos Lomellini, é mais uma de
]as, drenando para Gênova os lucros fabulosos da pesca de coral, estranha cidadela
mercantil que continua viva no século XVI.
O segundo Império de Gênova, voltado para o Ocidente, apoia-se em estabele-
cimentos comerciais muito antigos, velhas e poderosascolónias mercantis cujo bom
funcionamento foi suficiente manter, como em M não, em Veneza, em Nápoles... Em
Messina, em 1561,a colónia genovesa arrecada somas consideráveis, pois detém uma
boa parcela do comércio do trigo, da seda, das especiarias. Oficialmente, segundo
um documentoconsular,ela é de 240 mil escudospor anos's.Dez, vinte, trinta co-
lónias desse gênero estão implantadas à volta do Mediterrâneo.
50 -- O Caíra. Desenho mais ou menos exato. Notar a orientação: ao alto o Leste. em baixo o Oeste As Pi
Mas o Império, graças ao qual Gênova compensou os desastres no Oriente
ram aes estão portanto situadas corretamente. Segundo Giulio Balbíno, Z)e' Deseg/zi de/e plü ///z/sfrí Ci/à e
ocorridos em fins do séculoXV, edificou-se em território hispâítico, em Sevilha,
em Lisboa, em Medina del Campo, em Valladolid, em Antuérpia, na América... O
mapa de sua fundação em Sevilha é a convenção de 1493,assinada entre Gênova e
os Reis Católicos34ó;reconhecia às colónias genovesas o direito de eleger um cônsul
de sua nacionalidade, consta/em suZ)dí/orum s orum, podendo substituí-lo segun-
do sua vontade... Essascolónias do Oeste, que iriam tão profunda e rigorosamente
trabalhar a matéria financeira e fiscal da Espanha até à véspera de sua grandeza
americana, essas colónias são de um tipo bem à parte na verdade, são colónias de
banqueiros. Gênova compensou seu desastre comercial no Oriente com uma vitória
financeira a oeste.
E por meio da arte dos câmbios que os genovesesirão organizar o comércio
sevilhano na direção da América; que em curto espaço de tempo se apoderarão
de grandes monopólios, os do sal e da lã; que incluirão poderosamente no gover-
no do próprio Filipe ll a partir de meados do século... Vitória de Gênova? Sim e
não. EsseImpério do dinheiro, cujas malhas,em 1579,com a criação das feiras

345. O cônsul Raff'aelo Giustiniano ao doge e govemadores de Gênova, Messina, 3 jun. 1561, A.d.S
5 1 Plano de Veneza (século XVI). Palácio dos marqueses de Santa Cruz, em Ciudad Real. Notar a ponte de Gênova. .Le//ere Canso/i, Messina, 1-2634
Rialto ainda em madeira, o início do Arsenal, a ilha de São Jorge, a Giudecca, os Zaterre. 346. A.d.S., Gênova, Giz/n/a dí amar/na,Canso/i JVaziona/íed Zs/erf, 1438-1599.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NÀ ÉPOCA DE FILiPE ll A aNIl)ADE HUMIANA:ROTASE Cll)AI)ES, CIDADESE ROTAS

de Placência, estendem-seao conjunto do mundo ocidental, como ontem o poder envia ao calabouço3sl.Uma historiograíla marxista352estabeleceuo balanço da ruína
da praça de Londres esse império é o das grandes famí]ias patrícias, dos ]VoZ)//i que o capitalismo mercantil de Nuremberg causou na Boêmia, no Sabe, na Silésia,
Hecc/zí,não o dessacidade infeliz, firmemente dominada por eles desde 1528e e atribui-lhe a responsabilidadepelo atrasoeconómico e social dessasregiõesque
que, apesar dos novos nobres, das paixões populares e da grande oportunidade de foram cortadasdo exterior e só tendo acessoa ele por meio dessesintermediários
1575, não lhes escapará. Essa extraordinária aristocracia financeira que devora o dominadores. Podemos instruir o mesmo processo contra os genoveses na Espanha:
mundo é a maior aventura urbana do século XVI. Gênova parece então a cidade eles bloquearam o desenvolvimento de um capitalismo espanhol; os Malvenda de
dos milagres. Se já não possui uma frota própria, as naus ragusanaschegam na Burgos ou os Ruiz de Medina del Campo só são personagens de segundo plano, e
hora certa, seguida pelas barcas marselhesas. Se perdeu suas colónias do mar Ne- além deles os responsáveis pelas finanças de Filipe ll desde Eraso e Garnica até o
gro e em seguida Quios, que é o centro de suasoperaçõesmercantis no Levante. marquês de Aufíon, recém-empossado em seus títulos, prebendas e prevaricações
em 1566...o registro dos caraffí de/ mare, de 1550a'1650, indica que continuam não passam de gente miúda, compráveis e comprados...
a chegar a seda da Ária central, as ceras brancas da Rússia e a .K/zazaría,como Dessa forma os Estados territoriais e os impérios se apoderam de vastíssimas
nos séculosXlll e XIV347.Embora o turco deixe de Ihe conceder o "tráfego dos extensões,porém se dão conta da incapacidade em que se encontram de explorar
trigos", quando a oportunidade se apresenta ela consome o trigo turco... O século sua imensidão económica. Essa incapacidade torna a abrir a porta às cidades, aos
XVll assiste a um recuo das economias, mas Gênova continua poderosa, agres- mercadores. São eles, são elas que fazem fortuna, a coberto da pretensão dos outros.
siva, e declara seu porto livre em 1608348.
São milagres do dinheiro, que já em si E lá mesmo em sua casa, onde seriam mais facilmente os senhores,frente a seus
mesmosnão são milagres simples. Tudo aporta nessacidade dos riquíssimos. Se verdadeiros súditos, os Estados tergiversam e fazem compromissos. Observemos a
compra alguns carafs de um navio ragusano3'9,de repente o barco está a serviço sorte das cidades privilegiadas: do Rei Católico, Sevilha, Burgosss3;do Rei Cristia-
da Z)omína/z/e.Basta um pouco de dinheiro investido em Marselha para que os níssimo,Marselha,Lyon... E assimpor diante!
barcos de toda a costa da Provença Ihe ofereçam seus serviços. Por qual razão não
poderia a seda branca sair das profundezas da Ásia e chegar até Gênova, se para As cidades reais e imperiais
isso basta um pouco de metal precioso?
Pois Gênova é, a partir dos anos 1570-1580, o centro de redistribuição do metal Logo, não admira que, apesar dessaapropriação por parte dos Estadosterrito-
branco da América sob o controle dos privilegiados das finanças,os Grimaldi, os riais, as cidades do século XVI, levadas pelo fluxo da conjuntura económica e pelas
Lomellini, os Spinola e tantos outros. O dinheiro que não aplicam em seusdeslum- próprias tarefas que o Estado lhes deixa, fiquem cheias de homens e de riquezas,
brantes e altivos palácios genoveses, investem-no em compras de terras e de feudos desmedidamentealgumas.
"em Melão, em Nápoles, no Ã4oneÁerra/oí/Úer/ore (as pobres montanhas genovesas Poderíamos deter-nos no caso de Madri; capital tardia, suplanta Valladolid em
não poderiam oferecer investimentos que fossem tão seguros) ou nas rendas na Es- 1560e cede-lhe de novo a primazia, de má vontade, de 1601 a 1606. Mas Madre só
panha, em Romãou em Veneza;se.
Seria necessárioestabelecera lista de seusma- conheceria seus momentos de glória com o reino pródigo e poderoso de Filipe IV
lefícios na Espanha. Ali onde o povo instintivamente detesta essesorgulhosos mer- (1621-1665).Poderíamostambém deter-nos no caso de Romã, recentemente esclare-
cadores, onde Filipe 11,quando surge a oportunidade, os trata como criados ou os cido por um belo livro3s4, mas Romã é um caso à parte. Como exemplos de cidades

351. J. Paz e C. Espio, .[as .Jnfzkuas/%rias de ]Med]/zíz


de/ Ca/mpo,1912, pp. 139-141,têm razão em
destacar como exemplar a prisão, em novembro de 1582, do príncipe de Salemo, que se recusa a ir
347. R. di Tucci, "Relazioni Commerciali âa Genova ed il Levante", em Za G/cinde Genopa. nov. 1929. à feira de Medina del Campo.
P. 639 352. Laszlo Makkai. arf. cl/., cf. referência na segunda parte, p. 509, nota 151, íl:Pa.
348. G. Vivoli, op. cí/., IV. p. 23. 353. Sobre Burgos, cf. A. de Capmany, op. cíf., 11,pp. 323-324, e as importantes observações de R. Ca-
349. Assim, Nicoloso Lomellino tem oito cczrcz/s
sobre a nave ragusana,SantaNunciata,que V Basilio rande, op. cí/., p. 56
comanda, A. de Ragusa, .Diversa de ./;loris, Xll, f' 135, 4 maio 1596. 354. Jean Delumeau, He économlque e/ sacia/e de ./?omeda/zs /a seconde moi/íé d# ..YP7'siêc/e, Paria,
350. Museo Correr, Relatório de Santolone sobre Gênova, 1684. 2 voas.,1959.
) MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NÁ ÉPOCA DE FILiPE li
Á UNIDADE HUMAN.A: ROTAS E C]])AGES, CIDADES E ROT.4S

Em 1624, a ameaça das leis suntuárias na Espalha, pondo em risco as exportações


napolitanas de seda e de artigos de seda, também ameaça as receitas fiscais anuais
de 335220 ducados3'0.Porém lá estão presentesmuitas outras indústrias, e outras
poderiam aclimatar-se ali, dado o mercado cheio de mão de obra.
Os camponesesde todas as províncias do vasto reino, montanhês e pastoril,
convergem para a cidade. São atraídos pelas "artes" da lã e da seda; pelos trabalhos
públicos da cidade iniciados na época de Pietro di Toledo e prosseguindo bem depois
dele (alguns ainda não estavam concluídos em 1594);''; pelo serviço nas casas dos
nobres, pois ganha corpo a moda de os senhores habitarem na cidade e ali exibirem
seuluxo; e na falta desseselementosainda podemcontar com as inúmerascasas
eclesiásticas e suas concentrações de servidores e mendigos. Ao acorrerem para es-
ses empregos, fáceis, "em qualquer estação"3ó:, os camponeses se libertam de uma
só vez das pesadas pressões senhoriais, quer o senhor sda da região, quer tenha
comprado -- como alguns mercadores não genoveses terras e títulos que sempre
estãoà venda. Diz o provérbio que "o ar da cidade liberta", o que quer dizer "tor-
na feliz ou bem nutrido". Portanto, a cidade não para de crescer: "Desde cerca de
trinta de anos", diz um relatório de 15943õ',
"a quantidadede casase de habitantes
cresceu, seu perímetro aumentou de duas milhas e seus novos bairros estão repletos
de construções, quase como os antigos". Porém, já em 1551a especulação atingia os
terrenos vazios de ambos os lados da nova muralha, construída perto da Porta de
San Giovanni, em Carbonara, até Sant'Elmo, perto do jardim do príncipe de Alise:ó'
Forçosamente, nessa enorme aglomeração o problema do abastecimento não
cessade estar presente e de ocupar o primeiro plano. Pelo administrador do An-
none, nomeado a partir dos anos 1550 (verdadeiro ministro do aba;tecimento, en-
carregado das compras, da estocagem, das revendas aos padeiros e aos vendedores
ambulantesde azeite), é o vice-rei que controla esse antigo serviço estritamente
municipal3ós.A cidade não poderia assumir sozinha essa gestão deficitária. Em
1607,um documento digno de fé indica que ela gasta pelo menos 45 mil ducados
por mês, enquanto suasreceitas não chegama 25 mil3óó.O trigo e o azeite são re.

360. A.d.S. Napoli, Sommaria(bnsz///a/ío/zum31. f' 110. 111.7 fev. 1624.


355. GeorgesYvq z. Cbmm.«.. ./ /e.«««.ê«dx da«. / Z/a//. «,é,Ídl«a/. - XZZr ./ « ,V?'' ./ê..re, 361 . ,4rc#jvjo S/orico ./}a/cano, t. IX, p. 247.
356. Jean])elumeau,op. clf., PP.365 e ss. '362.Idem, ibidem
357. K. Julius Beloch, OP.cjf., 111,P. 357. '363.Idem, ibidem
364. A.d.S., Napoli, SommariaConsi///a/íonz/m.1. f'. 79-84. 27 fev. 1551

=HT«,11.,.: .:====$=='=Z:.!::l;:ll;=.:'1.:=';:=:1'y=:=1:=
359. E. von Ranke, ar/. cj/., P. 93
365. Para mais pormenores sobre o papel desseprefeito no executivo napolitano, que é o Tribunal de S
Lorenzo, cf. Bartolomeo Capasso, Cb/a/ogo ./?ízgiona/ode//'Hrc/ziv/o .À4aníc@cz/e
P. 120
dí Napa/i, 1876, 1

366. drc&ívlo Sforjco //cz/!ano, t. IX, p. 264 e nota l

4Ó3
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILIPE il A UNIDADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

vendidos quase sempre com prejuízo. A diferença é coberta por meio de emprés- exibem suas plumas37', é a cidade mais espantosa, mais deliciosamente picaresca
timos nada sabemos de suas condições, o que é uma pena. O segredo da vida do mundo. Mais laboriosa, é claro, do que apregoa sua já famosa má reputação,
de Nápoles é parcialmente dissimulado por essede{/7clf,que totaliza três milhões mas essa reputação não é, apesar de tudo, usurpada. Ora é necessário agir contra
em 1596 e oito em 1607;'7. E o orçamento do Reino (que não se restabelece com os vagabundosque inundam a cidades's,ora é preciso agir contra as confrarias
o passar dos anos) que sustenta a diferença? Ou são as virtudes de uma economia dessesvagabundosque pululam e já se constituem em dirigentes dos /azzaroní'''
ainda simples e robusta?Ou a chegadados navios nórdicos3ó8, que vêm estimu- Nápoles correspondeàs dimensõesda ltália do Sul, do Reage; lstambul é a
lar a atividade de Nápoles e, trazendo o trigo e os peixes do Norte, facilitam sua imagem do imenso Império Turco, tão celeremente organizado. A cidade, em toda
vida cotidiana? Vida cheia de percalços, sqa em relação ao abastecimento de água sua massa, segue a curva dessa evolução: conta cerca de oitenta mil habitantes quan-
potável (a partir das águas do Formale, em 1560);'â ou à manutençãodas ruas, do de sua conquista, em 1478; quatrocentos mil entre 1520 e 1535; setecentos mil,
ou à circulação do porto. O molhe que protege os navios ancorados está, no final no dizer dos ocidentais, no final do séculos'7.E o prenúncio do que em breve serão,
do século,tão repletode imundícies,dos dejetosde esgotos,de terras ali larga- nos séculos XVll e XVlll, Londres e Paras, cidades privilegiadas; e pelas mesmas
das pelos construtores de casasou de edifícios públicos, que em 1597 se cogita razões]stambul não conhecerá nenhum recuo, muito pelo contrário, nos séculos
seriamentenão apenasem limpa-lo mas em substituí-lo por um novo molhei'0. XVlleXVlll.
Na verdade, tudo é desproporção sempre que se trata da enorme Nápoles: anual- lstambul não é uma cidade, é uma aglomeração, um monstro urbano. Sua con-
mente e]a come quarenta mi] sa/me de trigo da Apúlia, além dos outros abaste- figuração geográfica a cinde contra si mesma e cria, ao mesmo tempo, sua grande-
cimentos, e em 1625 importa, acredita-se, trinta mil can/ars de açúcar (ou seja, za e suasdificuldades. Sua grandeza, seguramente.Sem o Chifre Dourado único
1 500 toneladas) e dez mil ca/zfars de mel, reexportaTldo uma grande quantidade abrigo seguro desde o mar de Mármara, tantas vezes castigado pelo mau tempo,
sob a forma de siropare, padre e a/fre cose di zz/caro, iguarias que evidentemente até o mar Negro, que merece sua reputação de mar "de tempestades violentas, mas
os pobres não saboreiam37j. breves" sem o Bósforo, nem Constantinopla nem lstambul, sua herdeira, seriam
E difícil adivinhar o que essa vida poderia ser. Sabe-seque as autoridades concebíveis. Mas o espaço urbano é fracionado por sucessivas extensões de água e
espanholascogitaram em reduzir o crescimentoda enorme cidade":, semjamais costas demasiadamente extensas. Uma população de marinheiros e de barqueiros
adoraremmedidas concretas: seria razoável, ao final das contas, suprimir essa anima milhares de barcas, caíques, broquéis, maonas, aliUos, naus de madeira (para
"válvula de segurança" indispensável à agitação ininterrupta do vasto Reino37s? o transporte de animais entre Scutari e a costa da Europa). "Rumeli Hisar e Bsiktas
Nápoles continuará sendo essa cidade inquietante e superpovoada; ali a ordem ja- são duas prósperas aldeias de barqueiros"s'8, esta para as mercadorias, aquela para
mais reina, e à noite é o mais forte, ou o mais hábil, quem faz a lei. Seguramen- os viajantes. Sempre há trabalho em meio a essafaina incessante,extenuadora, por
te, mesmo descontando a fanfarronice dos soldados espanhóis, que tão facilmente meio da qual a unidade necessária da cidade é reconstituída. Pierre Lescalopier, ao
chegar a Constantinopla na primavera de 1574, observa: "Nos broquéis (as perames
ou barcas de trânsito) há cristãos (escravos) que ganham o necessário para pagar seu

367. B. Capasso,op. cí/., p. 51 resgatecom a autorização de seus senhores"'''


368. Wilâid Brulez, op. ci/., p. 576
369. A.d.S. Napoli, SommariaConsultationum,1, f. 235 v', 4 nov. 1560.
370. idem, 13, f' 373 v', 20 jun. 1597. 374. Antes de tudo, cf. M igual de Castra, Hda de/ So/ando Espaço/ À6gzle/ de Casrro(Colección Austral),
371. Em relaçãoao trigo daApúlia, idem, 5, 13 abr. 1576; em relaçãoao açúcare mel, falem,33, f" 13, 1949, e também Les dvenfzz/.esdu capa/ame 4/tenso de Co/z/Feras r/582-/ó33), op. cíf., notadamente
135-137,4 fev. 1625. PP. 17-20.
372. Sobre o crescimento de Nápoles freado pelas autoridades espanholas,cf. G. Botero, op. ci/., 1, p. 144; 375.Simancas,
Napoli Est' 1038,1549.
22 mar. 1560,Sim. E.' 1050,í'' 23; 1568,Sim. S. P.Nápoles, 1; .,4rcÀ.S/. //., IX, p. 247; B. N. Paris,
cercade 1600,Esp. 127.f"' 17 e 19v'; GiuseppeParda,a/'/. ci/., p. 73; e.pczss/mo livro capitaljá citado 376. Felipe Kulz Madín, ar/. cif.. p 32são, cf. Robert Mantran, is/a/zbu/ duns /a seconde ,oí/é du xl'lr
de Giuseppe Coniglio. siàcte.Étude d'histoire institutionnette,économiqueet sociale, \962, 'p'p.44 e ss.
373. Felipe Ruiz Martín, "Ferrando el Catolico y la Inquisición en el Reino de Nápoles'', }' Congreso de 378.Idem,p. 84.
/a Corola de .4ragón, out. 1952. 379. Pt)yagelaíc/par lnoy,Pierre Lescalopier-., f" 35

4Ó5
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO NÀ ÉPOCA DE FILiPE ll A UNIA.ADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, CIDADES E ROTAS

Das três aglomerações,Constantinopla, Stambul ou lstambul é a mais impor- Na outra margem do Chifre Dourado, Gaiata ocupa a faixa das orlas meridio-
tante. Ela é essacidade triangular, entre o Chifre Dourado e o mar de Mármara. fe- nais, seguindo-se ao Arsenal de Kasim Paga,com "cerca de cem arcos de pedras
chada pelo lado terrestre por duplas muralhas, "aliás não muito boas"38',onde "por bem abobadados,tão longos que sobre cada um deles se pode construir uma galera
todo dadohá ruínas em quantidade"381.Tem um perímetro de vinte a 24 quilâmetros382 coberta [...]"a9ze alcançando, mais ao sul, o segundo Arsenal de Top gane, "onde se
enquanto Veneza mede apenas treze. Mas esse espaço urbano está cheio de árvores. fabricam a pólvora e a artilharia"sw3.Gaiata é o porto frequentado exclusivamente
dejardins, de praças com fontess*;, "de prados", de áreas de passeio, e conta com mais
pelos navios do Ocidente; é ali que estão os comissários judeus, as lojas, os entre-
de quatrocentas mesquitas, cobertas com fetos de chumbo. Todas têm espaço livre à postos, os cabarés célebres, onde se bebem o vinho e o arar; atrás, no alto, ílcam as
sua volta. A mesquita de Solimão, o Magnífico, a Suleymanié, "com sua esplanada, Vinhas de Pera, onde o primeiro de todos os representantes do Ocidente, o embai-
suas medressés, sua biblioteca, seu hospital, seu imare/, suas escolas e seus jardins, xador da França, estabeleceu sua residência. É a cidade dos ricos, "bastante grande,
ocupa, sozinha, o espaço de um grande bairro"s8'. E, âÕalmente, as casas são baixas. populosa, construída à francesa", povoada pelos mercadores, latinos e gregos, que
espremidasumas contra outras, feitas "à moda turca", de madeira, "de divisórias de muitas vezes são riquíssimos, vestem-se à moda turca, moram em casas opulentas,
terra""' e de tijolos mal cozidos; suas fachadas são "pintadas de azul pálido, rosa adornam suas mulheres com sedas e jóias... Essas mulheres talvez demasiado sedu-
amarelo"38ó.As ruas são estreitas, tortuosas e desiguais"387,nem sempre pavimenta- toras"parecem mais belasdo que são, porque se maquilam muito e gastamtudo o
das e frequentemente em declive. Circula-se ali a pé, a cavalo, mas nunca em viatura que têm para se vestirem e exibirem anéis nos dedos e pedrarias na cabeça, falsas
Os incêndios são frequentes e não poupam nem mesmo o Serralho. Ali, no outono em sua maioria"394. Gaiata e Pera, que são confundidas pelos viajantes, formam con-
de 1564, 75 mil lojas de madeira se queimaram de uma só vez3*8.No interior dessa juntamente "uma cidade comparável a Orléans":9s.Gregos e latinos não reinam ali
grande cidade encontra-se outra, o Besestan, "como uma beira de St.-Germain", diz como senhores, longe disso, mas ali vivem e rezam à vontade. Notadamente, "nesta
Lescalopier, que Ihe admira as "grandes escadas de formosas pedras e as belíssimas cidadese pratica a religião católica com toda a liberdade e até se realizam procis-
lojas de armarinhos e de tecidos de algodão trabalhados em ouro e seda [-.] todas sõesitalianas dos vencidos, e na festa de Deus as ruas são atapetadas sob a guarda
bonitas e agradáveis. . ."3s9E mais outra, "o Atbazar", mercado de cavalos390.Enfim. a de dois ou três janízaros a quem se dão alguns asares"3çó.
mais preciosa de todas, o Serralho, na ponta meridional: sucessãode palácios, quios- Na costada Ásia, Scutari(Uskildar);P' é o esboçode uma terceira cidade, di-
ques e jardins. Sem dúvida, lstambul é por excelênciaa cidade dos turcos, que ali ferente das duas outras. É a paragem das caravanas de lstambul, o ponto de chega-
pontificam com seus turbantes brancos: perfazem 58% da população no século XVI, da e de partida das imensas rotas da Ásia. O número de seus caravançaráse e seus
tanto quanto no século XVII. Ali também encontramos um grande número de gregos /lans já prenunciao fato, e igualmente a importância, de seu mercado de cavalos.
com turbantes azuis e judeus com turbantes amarelos, além de armênios e ciganos:PI. Não há porto de mar que forneça abrigo conveniente: as mercadorias devem seguir
apressadamente,ao acaso. Cidade turca, Scutari é cheia de jardins, de residências
principescas. O sultão tem ali seu palácio, e é um grande espetáculo quando ele deixa
380. G. d'Aramon, op. ci/., p. 93.
o serralho e chega de fragata à costa da Afia, "para ali se divertir"39*
381. P. Lescalopier,}t)Vaga.-, f" 3 1 v'
382. G. d'Aramon, op. c//., p. 25. A descrição da aglomeração estará completa se acrescentarmos a lstambul o
383. idem, p. 93.
mais importante de seus subúrbios, Eyub, suas passagenspara o Chifre Dourado,
384. R. Mantran, op. ci/., p 40, e Omer Luta Barkan, ''i.'organisation du travail dans le chantier d'une
grandemosquéeà lstanbul au XVI' siêcle", ..4nncz/ei .E.S.C. 1962,n' 6, pp. 1093-1106.
385. P. Lescalopier,Pt)yage...,f" 32. '' 392. P.Lescalopier, }byage..., :F 37 v', nota que os "arcos" no Arsenal de Veneza são cerca de trinta e não
386. R. Mantran, op. cí/., p. 29. passam de ''estacas de madeira:
387. idem, p. 27. 393. /dem, .P37 v'
388. E. Charriêre,.ATÉígoc/a/ion.ç...,
OP.cí/., 11,PP.757-759; cf. Tou, Jldémoíres,
OP.ci/., 1, p. 75. Lista de 394./dem,f' 38.
22 incêndios, de 1640 a 1701, R. Mantran, op. ci/., pp. 44 e ss. ' 395.Idem.f' 36 v'
389. P. Lescalopier, Pt)yczge...,
f' 33 v' 396./dem.f' 37
390. idem, f. 33 v'
397. R. Manlran, op. cif., pp- 8] e ss. Sobreos ca\aios de Scutari, numerosasretêrênciasdosviajantes.
391. R. Mantran, op. cí/., pp. 44 e ss. 398. Assim, P. Lescalopier, Pil)Foge...,f' 32 v' e 33.

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) MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONA ÉPOCADE FILiPE ll A UNIDADE HUMIANA: ROTASE CIDADES, Cll)ODES E ROTAS

comércio do trigo, percebemos o papel dos grandes negociantes que exploram os


pequenostransportadores do mar Negro e o dos capitães gregos e turcos de Yeni
Kõy, na costa europeia do Bósforo, ou os de Top Hane, na sequência dos cais de
Gaiata, possuidores de enormes fortunas, negociantes e transportadores muitas
vezesinteressadosno contrabandodo trigo para o Ocidente, a partir das ilhas
do Arquipélago"'
Assim, Constantinoplaconsomeos milhares de produtos do Império e tam-
bém os tecidos e objetos de luxo do Ocidente; em troca, a cidade não restitui nada,
ou quasenada, excetuadosos fardos de lã e couro de carneiro, bois ou búfalos que
transitam em seu porto. Nada comparável aos grandes portos de saída que são Ale-
xandria, Trípoli da Síria e, mais tarde, Esmirna. A capital goza do privilégio dos
ricos. Outros trabalham por ela.

A favor das capitais

Não é possível,porém, sem restrições, instruir o interminável processo das


cidades demasiadamente grandes. Ou então é necessário indicar imediatamente que
elastêm suasrazões de ser e que o historiador pode também advogar pela inocência
dessasadmiráveis ferramentas intelectuais e políticas. Elas são o viveiro de toda a
civilização. Por outro ]ado, criam uma ordem. Coisa que faz uma falta cruel em cer-
tas regiões vivas da Europa: na Alemanha, onde nenhuma cidade pode impor uma
direção devido a seu tamanho desproporcional, nessaltália esquartdada entre seus
diversos "polos" urbanos. As cidades criadas pelas unidades nacionais ou imperiais
criam, por sua vez, essasunidades determinantes. Olhemos Londres e Paria. Será
tão pouca coisa assim?
Faltou à península da Espanha uma capital poderosa.Deixar Valladolid em
1560e seguir para Madri, cidade voluntariosa, arbitrária e "geométrica", talvez ílão
tenha sido um cálculo satisfatório. O historiador J. Gounon-Loubens"' afirmou, há
muito tempo, que o principal erro de Filipe ll em Madre foi não ter situado a capital
399. R. Mantran, op. cíf., P. 85. em Lisboa, onde o Rei Prudente ficou de ]580 a 1583 para depois abandona-la defi-
400. P.Lescalopier,PZpage...,
f' 32
nitivamente. Ele poderia ter feito de Lisboa uma espécie de Nápoles, ou de Londres.
Essacrítica sempreme impressionoumuito. Filipe 11,em Madri, evoca de antemão
:=.'
essesgovernos que fixam arbitrariamente suas capitais em "cidades de vontade".
Filipe ll no Escorial é Luís XIV em Versalhes...Porém, refazer a história é apenas

403. R. Mantran, op. ci/., pp. 184 e 189


404. J. Gounon-Loubens,Essczis sur / 'admínís/ra/ionde /a Cas/í//e czz/
XPT .s/êc/e,1860,pp. 43-44
O MEDITERRÂNEOE O MUNDO MEDITERRÂNEONÀ ÉPOCADE FiLIPE ll

um jogo, uma maneira de argumentar, de tomar contado, na falta de coisa melhor.


com um assunto vasto, difícil de apreender.
No século XVI, as capitais essas cidades à parte emergem, mas é o século SEGUNDAPARTE
seguinte que lhes vai outorgar em deânitivo os papéis protagonistas. Sem dúvida
porque, em plena regressão económica, o Estado moderno foi então o único em-
preendimento que se impôs, que prosperou na contracorrente. A partir de hns do DESTINOS COLETIVOS E MOVIMENTOS DE CONJUNTO
século XVI, os sinais de retração já são visíveis e a discriminação entre as cidades
onde o pão, de qualquer forma, está garantido, e as outras, que vivem apenasde seu
trabalho, começa a se esboçar. Estas últimas já estão familiarizadas com as inter-
rupções geradas pela própria corrente da vida económica suas águas fluem mais
lentamente e suas rodas giram mais devagar.

Já a conjuntura

Em todo caso, a história dinâmica das cidades está fora de nosso propósito
inicial. Tínhamos a intenção, nesta primeira parte, de estar atentos às constâncias,
às permanências,aos números conhecidos e estáveis, às repetições, às bases da
vida mediterrânea, às suas massas de argila bruta, às suas águas tranquilas, ou que
imaginamos tranquilas. As cidades são motores, giram, animam-se,exaurem-se,
recomeçam. Suas próprias avarias nos introduzem nesse mundo do movimento que
nosso segundo livro vai percorrer. Elas falam de evolução e conjuntura, permitindo-
.nosintuir a linha do destino: essaretração anunciada por tantos indícios do século
XVI moribundo e que o século XVll acentuará. Podemos falar em ignição precoce
dos motores urbanos de 1500 a 1600; mas, muito antes do novo século, o acelerador
está travado: quebras, interrupções, ruídos suspeitos se multiplicam, embora tudo
continue a avançar.

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