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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


LICENCIATURA PLENA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Daltro Campanher

RESENHA TEÓRICA DE “STEINS;GATE” E AS POSSÍVEIS


REFERÊNCIAS COM A EPISTEMOLOGIA MODERNA

Santa Maria, RS
2019
Introdução

Steins;Gate é uma franquia japonesa do gênero ficção científica que se iniciou com
uma visual novel lançada em 15 de outubro de 2009 para múltiplas plataformas.
Posteriormente, foram lançados um mangá – publicado pela Media Factory em 2009; e um
anime, criado pelo estúdio White Fox em 2011, tendo sido ambos baseados na primeira obra
citada. A série trata do clássico tema da viagem temporal, trazendo alguns elementos da
história de John Titor, um suposto viajante do tempo que emergiu na internet no início deste
século, construindo sua fama em fóruns de discussão. O enredo do mangá e do anime
apresentam suaves distinções, mas também alguns elementos comuns, os quais serão
discutidos no presente trabalho, relacionando com problemas epistemológicos. Não se
debruçará em demasia sobre a qualidade do enredo, desenvolvimento de personagem e demais
aspectos literários referentes às obras, mas exclusivamente sobre possíveis referências às
epistemologias do período moderno, analisando como as percepções de tempo e de verdade
aparecem de distintas formas durante o desenvolvimento da trama.

O tempo como uma noção a priori ou intuição transcendental

Em diversas ficções, as investigações quanto à possibilidade física de uma viagem


temporal precisaram passar por uma série de sacrifícios para que a obra fosse possível. Em
Steins;Gate, o apelo difere substancialmente da maioria dessas tentativas: a transferência que
ocorre não é de matéria, não visa – pelo menos no início da trama - levar o agente a um tempo
e espaço distintos. A princípio, o objetivo é uma transferência de tipo espiritual; ainda que, ao
fim da trama, sejam feitas com sucesso viagens temporais de seres humanos, integralmente.

Na obra, logo destarte é possível identificar certo dilema que remonta não apenas à
epistemologia mas também ao debate ontológico. O curioso objeto que dá início à aventura de
Okabe, protagonista que representa o clássico estereótipo do “cientista excêntrico” ou
“cientista maluco”, ao que tudo indica, é um micro-ondas. No entanto, há quebra de
expectativa do espectador ao perceber que é impossível, ao micro-ondas, comportar-se
enquanto micro-ondas: não executa sua função, e por isso, aparentemente, há uma intrigante
confusão na tradução fan-made feita da adaptação em mangá da obra, onde o objeto é
traduzido como “celular micro-ondas (não definido)”.

Percebe-se que essa quebra de expectativa, para além daquilo relativo à sua função
primária literária enquanto plot, diversas observações podem ser feitas quanto a esse objeto
específico, imbuído de uma quebra que deriva daquilo que comumente experienciamos, sendo
levados a supor poderes secretos de objetos com qualidades sensíveis similares, como já diria
Hume. Não há mecanismo lógico que ligue aquela coisa a essa, como o próprio autor salienta.
Kant também contribui com o debate, ao estabelecer a ausência de caráter negativo naquilo
que nos é derivado unicamente a partir da experiência (KANT, 2012, p. 46-47), sendo essa
ausência obstáculo intransponível para a elaboração de cálculos racionais quanto ao
estabelecimento e tipificação de tais “poderes”. Nas palavras do próprio autor, “a experiência
nos ensina, de fato, que algo é constituído de tal e tal maneira, mas não que ele não poderia
ser diferente” (loc. cit.). Pois, é o caso do aparente micro-ondas o qual subverte a
representação de “micro-ondas” do próprio espectador, ao permitir ligação com um aparelho
celular e o envio de mensagens (d-mails) para o passado.
Ao se observar a qualidade específica desse tipo de viagem temporal que nos é
inicialmente apresentado na obra, é possível que se perceba outro elemento fundamental da
epistemologia kantiana: o caráter do tempo como uma intuição transcendental ou, como já
representado noutro artigo do campo da filosofia (Cf. ROCHA, 2009), uma noção a priori. A
regra é que, após ser enviada a mensagem, toda a aporia de ações se faria distinta, gerando um
novo futuro, onde não estaria na memória de nenhum dos envolvidos o envio da mensagem
em si. No entanto, o protagonista da obra, por ter uma habilidade especial alcunhada Leitor
Steiner, teria a capacidade de manter sua consciência intacta, mesmo com a alteração das
“linhas do mundo”. A sua percepção de tempo, não sendo afetada pelos acontecimentos –
comumente ocasionados por ele mesmo e seu grupo de colegas – se apresentava afora à
própria dinâmica dos acontecimentos, como uma intuição transcendental, a priori (KANT,
2012, p. 79-80). Há nítida ruptura entre o tempo e a experiência de Okabe, logo no início da
trama, seja na versão mangá ou anime.

A dúvida da própria realidade para Okabe Rintarou

Na primeira vez em que o protagonista passa pela “alteração de linha do mundo”,


tanto no anime quanto no mangá, é tratado como louco ao tentar retratar ao seu colega Daru, e
o mesmo ocorre para com Kurisu. Assim, Okabe começa a duvidar da própria percepção da
realidade, ainda que brevemente, visto que pouco tempo depois foi possível constatar as
viagens temporais. Essa dúvida do personagem está diretamente relacionada com o primeiro
arcabouço da epistemologia moderna, formulado por Descartes.

Certa vez, escreveu o filósofo francês:

Tudo o que recebi até o presente como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos
sentidos ou pelos sentidos; ora, algumas vezes experimentei que tais sentidos eram
enganadores, e é de prudência jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez nos
enganaram (DESCARTES, 2005, p. 31).

É perceptível que tal ceticismo assola o protagonista, que chega a se questionar, na


primeira página do segundo capítulo do mangá: “Isso é um sonho? Uma alucinação?”, logo
após enfrentar sua primeira viagem temporal. Esses mesmos questionamentos são
repetitivamente feitos até que sua habilidade Leitor Steiner seja devidamente diagnosticada na
trama, bem como a natureza das viagens temporais.

O empirismo e a busca por juízos a priori na investigação

Logo ao fim do quarto capítulo, são feitas conclusões a partir das experimentações
realizadas com o “celular micro-ondas”, para além de reflexões sobre os experimentos que
teriam sido supostamente realizados pela SERN – organização secreta que, em tese, domina o
mundo no futuro, no universo da franquia, usando de um acelerador de partículas - a fim de
realizar viagens temporais. Diversos elementos da epistemologia moderna podem ser
constatados nesse exercício feito por Kurisu.

David Hume, em sua obra “Investigações sobre o entendimento humano”, difere


questões de fato das relações de ideias. Esses elementos, somados a elementos de sua
discussão posterior, nessa mesma obra, quanto às relações de causa e efeito, reverberam até
hoje na metodologia científica e posteriormente no desenvolvimento dos tipos de juízo
kantianos. O inglês estabelece que os objetos do entendimento do tipo relações de ideias são
aqueles verdadeiros por indução, como as verdades matemáticas, geométricas, aritméticas.
Nas palavras do autor, são verdades que conservam “para sempre sua certeza e evidência”,
existindo de maneira independente do universo (HUME, 2004, p. 53). Por outro lado,
questões de fato são representações que não apreciam da mesma “autoevidência”, por assim
dizer, sendo seu oposto completamente permissível (ainda que Kant, posteriormente,
desmonte a crença de que toda matemática esteja ancorada sobre o princípio da não-
contradição, Cf. KANT, op. cit., p. 53-55). Para Hume, o que sustenta que fatos da realidade
empírica tenham relação uns para com os outros, mesmo levando em conta seu caráter de
contingência, é a relação de causa e efeito. (HUME, op. cit., p. 54-55).

Na epistemologia humeana, o entendimento é que as relações de causa e efeito são


concebidas sempre de modo a provir da experiência; nunca por meio de raciocínios a priori.
Noutras palavras, as ocorrências individuais de fenômenos tornam-se indetermináveis e os
efeitos são, em absoluto, acontecimentos singulares, distintos de suas causas. Adiante, esse
mesmo raciocínio faz o autor ser levado a uma espécie de ceticismo e ode ao que hoje seria
tachado como substancialista (Ibid., p. 55-60) (Cf. BACHELARD, 1996, p. 27).

Posteriormente, Kant desenvolveu e elucubrou sobre o que fora previamente tratado


por Hume. Ainda sobre a ausência de caráter negativo naquilo que se deriva da experiência,
na obra se percebe algo relacionado para além da questão de representação do “celular micro-
ondas” previamente desenvolvida. Na obra, alguns acontecimentos temporais não podem ser
alterados meramente com d-mails (mensagens enviadas ao passado), mas com ações mais
incisivas, o que levou o laboratório amador de Okabe a desenvolver um bem-sucedido método
de transferência de consciência para tempos passados, após alguma pesquisa. Isso só foi algo
percebido a partir de um conhecimento que não poderia ser obtido apenas por questões de
fato, tendo vindo de cálculos do futuro provindos da outra viajante do tempo na trama, Suzuha
(que veio do futuro).

Do mesmo modo, a elaboração de normas a partir das diversas ocorrências de


experimento realizadas por Kurisu e o resto da equipe, só foi possível tendo em vista não a
sequência temporal entre os acontecimentos, mas sim “o conceito de uma necessidade da
conexão com um efeito e uma universalidade estrita da regra” (KANT, op. cit., p. 47-48).
Desse modo, como diria o filósofo de Königsberg, buscou-se a construção de um conjunto de
“juízos sintéticos a priori”, dada a busca pela necessidade da conexão entre causa e efeito e,
por conseguinte, seu caráter universal e não meramente tautológico em relação a um conceito
puro ideal (portanto, não analítico) (Ibid., p. 51-59).

A Gaia Ciência e a Ciência em Steins;Gate

Ao avançar mais além na história da trama, se terá sabido que o futuro, no universo de
Steins;Gate, é distópico. A SERN domina o mundo, segundo Suzuha, sendo capaz de
manipular todas as linhas temporais e controlar a todos, gerando uma autocracia global, por
meio da tecnologia desenvolvida. Ainda que não seja exatamente sobre isso a reflexão de
Nietzsche sobre o culto à ciência e sua pretensa busca por uma verdade universal, no anime é
mostrado o extremo onde todo o destino do mundo pode ser posto nas mãos de uma
tecnologia, onde o fim e a causa última passam ao segundo plano para dar lugar a fenômenos
da contingência mundana, tal qual o raciocínio nietzscheano, onde a figura de Deus é relegada
ao segundo plano, e aquilo que compreendemos é relegado ao devir da causa e efeito, ainda
que esse último esteja sendo cada vez mais complementado (NIETZSCHE, [2008?], p. 117-
122). O que fica prejudicado na obra, pelo menos parcialmente, é o caráter de uma natureza
sem fins – e portanto também sem acasos, que aparece nessa filosofia (loc. cit.), na medida
em que a “linha do tempo”, por si só, determina certos acontecimentos.

O caráter da razão enquanto tradição que afere a pretensão da impessoalidade, bem


como a questão da vontade de verdade nietzscheanas também aparecem explicitamente na
obra, ao se analisar não apenas os acontecimentos da parte inicial da trama, mas também a
personalidade do protagonista, Okabe, e especialmente suas ações nesses acontecimentos, no
sentido de querer “desmascarar” o palestrante ainda no primeiro capítulo, fazendo agir por sua
“vontade de verdade”, de certa forma. Fica nítido, no personagem, a forte veneração à ciência,
como se de fato ele seguisse-a como uma religião, de modo a “enchê-lo” de si, como viria em
certo tempo a dissertar Nietzsche (loc. cit.) (Ibid., p. 176-177). Essa convicção de busca pela
verdade vem a sacrificar, relegar todas as outras convicções, o que pode trazer ao cientista
certa obstinação, sendo ignorado o fator da vida ser feita de aparências e o próprio exercício
do julgamento quanto a essa convicção primeira (Ibid., p. 206-208).

A falta desse julgamento faz, no anime, com que se crie o futuro distópico supracitado.
Por isso, Nietzsche traz em diversos momentos a moral para a pauta e, indica, ainda, que na
natureza não é o espírito da conservação mas o instinto da extensão do poder que predomina
(Ibid., p. 215-216).

Conclusão

Conclui-se, assim, que Steins;Gate oferece diversos pontos de gatilho para discussões
envolvendo a ontologia, a epistemologia e a filosofia em geral, devido à estrutura particular
de seu enredo e os tópicos que são abordados, que têm a ver direta ou indiretamente com a
ciência.
Referências

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Bragança Paulista: Vozes, 2012.

ROCHA, Caio P. O tempo como noção a priori: contribuições da epistemologia genética à


teoria do conhecimento. 2009. 89f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade
Estadual Paulista, Marília, 2009.

DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da


moral. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma


psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. -: Escala, [2008?].

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