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V. 3, n.

6 - Dezembro de 2016

A Somália e o Al Shabaab
Yasmin Virgínia Rustichelli da Silva1
Jéssica Tauane dos Santos
Maria Carolina Chiquinatto Parenti
Rafaella Fiel Nascimento Santos

Resumo Histórico den; já o centro-sul da atual Somália cias para que a Somália continuasse
foi ocupado pela Itália.4 Esses países fornecendo as matérias-primas que
O território que hoje corresponde à basearam sua administração na for- fornecia antes da independência e os
Somália foi definido ainda no perío- ça e utilizaram a política de dividir conflitos entre as elites, entre vários
do colonial2, no fim do século XIX, para governar, o que, de acordo com outros problemas.7
quando França, Reino Unido, Etiópia Abukar, foi um dos fatores que acir-
e Itália, por diversos motivos, decidi- rou o conflito entre os clãs existentes Em 1969, um violento golpe de Es-
ram colonizar aquela área localizada uma vez que a cooperação com a ad- tado levou ao poder o Major General
no Chifre da África. No período pré- ministração colonial por parte deles Muhammed Siad Barre, pertencente
colonial, a população somali utiliza- era compensada com armas. ao clã Darod. O novo regime militar
va como sistema de produção o no- dissolveu a Assembleia Nacional e
madismo pastoral, uma vez que, por Com o fim da Segunda Guerra o Gabinete, suspendeu a Constitui-
conta do clima seco, a única atividade Mundial iniciou-se o processo de ção, baniu todos os partidos políti-
econômica possível naquele momen- descolonização da África e, conse- cos e prendeu seus líderes. Ademais,
to era a criação de animais. Além quentemente, da Somália. Em 1960, por conta da retórica nacionalista,
disso, o clima também determinava ocorreu a independência da Repú- o Presidente tornou estatais várias
o constante deslocamento dos clãs e blica da Somália5, resultado da fusão empresas estrangeiras baseadas no
seu gado em busca de água.3 da Somália Britânica com a Somália país. Barre também tentou diminuir
Italiana.6 A nova república elegeu a influência dos clãs na sociedade e
A região habitada pela população so- um presidente e, por meio de um re- na política que se dava por meio dos
mali foi dividida em cinco diferentes ferendo popular, ratificou sua Cons- regulamentos impostos por eles du-
partes de acordo com os interesses tituição. Entretanto, o novo Estado rante séculos. Dizia que o banimen-
coloniais: as partes norte do país e enfrentou desde o início uma admi- to do sistema de clãs vigente tinha
o sul, onde se encontra atualmente nistração turbulenta devido a vários a intenção melhorar o desenvolvi-
o Quênia, couberam aos britânicos; fatores como a tensão entre as popu- mento, mas não obteve sucesso por
a região onde hoje se localiza o Dji- lações das regiões norte e sul, a falta conta da força e união dos clãs exis-
bouti tornou-se domínio francês; os de compreensão das necessidades do tentes. Posteriormente, para conse-
etíopes passaram a controlar o Oga- novo Estado, a pressão das potên- guir apoio da União Soviética a fim

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de invadir a província de Ogaden, na abrange área da Somália Britânica – substituído pelo Governo Federal de
Etiópia, Barre declarou que a Somá- a qual continua sem ser reconhecida Transição (GFT).11
lia era uma república democrática e pela sociedade internacional.9
socialista e, em 1977, o exército so- O novo governo tinha muitos desa-
mali com o apoio dos soviéticos in- Durante os anos de 1991 e 1995, as fios pela frente, um deles foi a as-
vadiu aquela província. A invasão, tropas das Nações Unidas (ONU) e as censão da União das Cortes Islâmi-
no entanto, falhou e o conflito, ao tropas estadunidenses encabeçaram cas (UCI), que tomou o controle da
longo do tempo, enfraqueceu o regi- operações no país, respectivamente, parte sul do país em 2006. O GFT
me. Concomitantemente, surgiram a UNOSOM (Operação das Nações obteve apoio de forças etíopes e aju-
grupos armados, como o Movimento Unidas na Somália) e a UNITAF da dos EUA com ataques aéreos para
Nacional Somali (SNM) e o Congres- (Força Tarefa Unificada), na tentati- conter as forças da UCI. Apesar de
so Somali Unido (USC), que se opu- va de estabilizar a Somália e garan- terem conseguido controlar o grupo
seram ao governo, enfraquecendo-o tir a entrega de ajuda humanitária. no fim de 2006, este se fragmentou
ainda mais. Finalmente, em 1991 Contudo, ambas fracassaram e o país ao longo do território do país e uma
Barre foi removido do poder.8 continuou extremamente instável.10 dessas fragmentações deu origem ao
Em 2000, depois de várias tentativas Al Shabaab.12 Ademais, o governo
Com o fim do regime militar, os con- de reconciliação, foi realizada a Con- enfrentou resistência no que se refe-
flitos entre os clãs cresceram ainda ferência de Djibouti que estabeleceu re à cooperação das agências huma-
mais, levando o país a uma guerra ci- o Governo Nacional de Transição nitárias, em razão de ser considerado
vil. O SNM se recusou a aceitar a legi- (GNT), o qual não foi capaz de servir um dos mais corruptos do mundo.13
timidade do governo interino central como catalisador da união nacional.
instalado pelo USC e, pouco tempo Depois de várias conferências de ne- Em 2007, o Conselho de Segurança
depois, declarou a independência gociações, em 2004, na Conferência da ONU autorizou a União Africana
da República da Somalilândia – que de Nairobi, o GNT foi formalmente (UA) a estabelecer na Somália uma
missão de paz para apoiar as institui-
ções federais transitórias do país. Em
agosto de 2008, um novo acordo no
James Dahl/CC

Djibouti foi realizado entre o gover-


no de transição somali e os grupos
islâmicos moderados, o que permitiu
a realização de eleições, no início do
ano seguinte, quando um líder da
antiga UCI assumiu o governo tran-
sitório. No mesmo mês, a Etiópia
retirou as tropas da Somália, o que
acentuou os conflitos entre os radi-
cais islâmicos que aumentaram seus
esforços para conquistar o poder.14
Finalmente, em 2012, a Assembleia
Nacional Constituinte aprovou uma
Constituição provisória e ocorreram
eleições nas quais 135 anciãos foram
escolhidos para eleger o parlamento,
que consistiu em 275 parlamenta-
res, e estes elegeram Hassan Sheikh
Mohamud como o novo presidente
da Somália.15

Em 2013, uma conferência, que levou


o nome de Visão 2016, foi realizada
na capital Mogadíscio e estabeleceu
Situação Política na Somália
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várias metas a serem alcançadas pelo substancialmente a luta contra o Al exército somali, esse contingente irá
governo federal, dentre elas esta- -Shabaab, que detém o controle de realizar ataques mais amplos no Vale
vam a revisão da Constituição e sua uma parcela significativa do país.20 do Jubba, região sul da Somália, onde
submissão a um referendo e a reali- A AMISOM, que tem como missão o Al-Shabaab passou a se concentrar
zação de eleições diretas em agosto “proteger o governo Somali, pro- depois das investidas das tropas do
de 2016.16 Contudo, em 2015, o Par- mover reconciliação e apoiar a en- governo e da UA. Ademais, a AMI-
lamento Federal afirmou que ainda trega de ajuda humanitária”21, tenta SOM teve seu mandato prolongado
não seria possível implementar o trabalhar em conjunto com o SNA, até maio de 2017, apesar da falta de
sistema de uma pessoa/um voto em auxiliando tanto no combate ao gru- recursos da União Africana. A saída
2016, como estava previsto.17 Ao in- po considerado terrorista quanto no das tropas africanas é preocupante,
vés disso, 14.025 pessoas foram esco- treinamento das tropas somalis. Um pois o governo somali ainda é muito
lhidas para eleger os novos líderes do exemplo do trabalho conjunto das dependente do apoio da ajuda huma-
país.18 O presidente Mohamud, em tropas ocorreu em 2011, quando se nitária internacional.23
agosto de 2016, solicitou que o exér- deu a expulsão do Al-Shabaab de
cito somali - Somali National Army Mogadíscio.22 Em um relatório de 2013, a Comissão
(SNA) e as tropas da AMISOM unis- da UA deixou clara a situação frágil
sem forças para garantir a realização Em agosto de 2016, o Comissário e volátil na Somália ao discorrer so-
das eleições, já que havia grandes para Paz e Segurança da UA, Smail bre a segurança nas áreas recupera-
chances de o grupo Al-Shabaab ten- Chergui, anunciou que em 2018 o das. De acordo com o documento
tar impedi-las.19 Conselho de Paz e Segurança da- “[os principais riscos são a ausência
quela Organização irá iniciar uma de instituições governamentais efi-
Apesar dos esforços para se conso- diminuição do contingente militar cazes que sejam capazes de fornecer
lidar, o governo da Somália conti- da operação de paz, mas, enquanto serviços estatais e gestão de conflitos
nua bastante fraco, o que dificulta isso não ocorre, juntamente com o entre os clãs. Esta situação é agra-

Cpl. Olivia McDonald/U.S. Marine Corps Forces Europe

Militares de Uganda em treinamento para compor a AMISOM


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vada pelo Al Shabaab que explora a O clã Somale representa cerca de ditador Siad Barre, os clãs passaram
situação, bem como pela pirataria, 70% da população do país e divide- a disputar o governo e os líderes re-
banditismo e ilegalidade”.24 se nos sub-clãs Hawiye, Dir, Isaq e ligiosos desejavam a instituição da
Darod.31 O modo de vida se relacio- Sharia como lei suprema e a trans-
Estrutura Social na com as condições geográficas lo- formação da Somália em um Estado
cais, como norte da Somália é árido islâmico.
A Somália é conhecida por sua homo- e seco, a família Somale é composta
geneidade étnica, cultural, religiosa e por pastores nômades criadores de A xeer, leis não escritas transmitidas
linguística, sendo um dos poucos paí- cabras, camelos e ovelhas, animais oralmente pelos anciãos, ainda mais
ses africanos com essa característica. que representam a maior parte dos valiosa que a Sharia, também faz
Existe no país, uma sociedade com- bens de exportação e do PIB do país. parte da tradição somali referente
posta por diversos clãs e, de acordo Considerado o clã de maior força em aos assuntos jurídicos. A maior par-
com Roque, tal homogeneidade re- termos numéricos e de poder eco- te da xeer trata da defesa coletiva,
percutiu numa fluidez de liderança nômico, ele busca um governo mais coesão política, segurança e também
no país projetada por meio da mani- legítimo para o país. Já o clã Sab re- das obrigações (direitos e deveres)
pulação das identidades culturais.25 presenta 20% da população e se en- dos membros dos clãs. É o primeiro
globa em dois sub-clãs: Digil e Raha- recurso para a resolução de conflitos
Numa perspectiva antropológica, wayn. São agricultores que atuam no inclusive em relação aos negócios.
clãs podem ser definidos como: “fa- sul do país, região fértil próxima aos No norte, a xeer resolve cerca de
mílias que possuem ascendência e rios Juba e Shebelle. Os ex-escravos, 90% dos casos criminais e disputas.
descendência comuns”, “união de chamados Bantos, e os árabes que No sul, é bastante utilizada, entre-
pessoas de mesma parentalidade san- compõem os 10% restantes da po- tanto, muita vezes recorre-se pri-
guínea, possuidores de algo como pulação, vivem nas zonas ribeirinhas meiro à Sharia. Os anciãos são o po-
ancestral comum, e que representa e exercem trabalhos como pesca ou der legislativo, executivo e judiciário
uma uniformidade sociológica”.26 Os comércio. de seus clãs e o processo de tomada
clãs tem sido o centro político e so- de decisão se dá por consenso para
cial da vida somali desde muito antes Geralmente os clãs possuem grupos que se formulem as resoluções. Eles
da dominação europeia.27 Seguindo armados para defender seus interes- têm a responsabilidade de regular as
o argumento de Koko28, quando a ses, territórios e aspirações políticas. áreas de pastagem e água, além de es-
ditadura de Barre impôs um parti- As lideranças de suas milícias são de- tabelecer a paz e a ordem.
do único, exacerbou a confiança da signadas pelos anciãos, e por vezes,
população nos seus respectivos clãs, alguns acabam deixando o clã e se Os clãs preocupam-se com a prote-
principalmente após o Presidente ter tornam senhores da guerra. As mi- ção e defesa do grupo. O envolvi-
favorecido seu próprio clã, excluin- lícias e seus líderes usam a lealdade mento dos Estados Unidos e da anti-
do os demais das decisões e cargos baseada nos clãs para motivar que ga União Soviética na independência
governamentais. As estruturas dos voluntários se juntem a elas. da Somália, na época da Guerra Fria,
clãs somalis são geográfica e econo- facilitou a entrada de armas no terri-
micamente distintas, segundo Car- A estrutura organizacional da socie- tório resultando num dos países mais
doso.29 Cada clã responsabiliza-se por dade, no geral, é caracterizada como armados do chamado Terceiro Mun-
seus membros e a ação individual de única e delicada. Os clãs estão em do. A posse de armamento pelos clãs
cada membro reflete sobre todo o clã constante disputa pelo poder no país, e o vácuo de poder que se criou com
ao qual ele pertence. Cabe ao clã for- fragilizando o Estado. O atual Presi- a queda do ditador resultaram na di-
necer proteção, acesso à água e terras, dente, Mohamud, pertencente ao clã visão e conflito entre os clãs e grupos
exercer o poder político e resolver os Hawiye e governa desde 2012. quase autônomos no interior do país.
conflitos segundo mecanismos tradi-
cionais de justiça. A população é divi- Avanci32 esclarece que a entrada do Após a queda do Governo em 1991,
dida, basicamente, entre duas grandes islamismo na Somália gerou grandes a Somália passou a ser controlada pe-
famílias de clãs, Somale e Sab.30 Esses mudanças nos clãs, que não abando- los chefes de milícias independentes
clãs principais são fragmentados em naram seus costumes tradicionais e dos diferentes clãs: os warlords ou
outros menores que, por sua vez, incorporaram o Islã de uma forma “senhores da guerra”. Frequentemen-
também apresentam subdivisões. peculiar. Em 1991, após a queda do te, os senhores da guerra que con-

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trolam grupos armados pertencentes queda do ditador militar Barre em Presidente e com o apoio dos Estados
aos clãs se desligam deles para liderar 1991, a Somália vive um estado de Unidos. Segundo Roque, esse pedido
suas próprias tropas. Segundo Ferrei- anarquia com as estruturas estatais de ajuda para restaurar a ordem no
ra33, “a dinâmica conflitiva dos senho- desintegradas.39 No entanto, pode- país pode ser considerado o início da
res da guerra está arraigada na própria mos notar a ausência de instituições queda do presidente do GFT, Abdul-
estrutura social de clãs e tribos”. Os desde o início da ditadura militar na lahi Yusuf. Em dezembro do mesmo
warlords são os maiores influenciado- Somália, como ilustra Yoh, ao atri- ano, o exército etíope tomou a capital
res do governo Somali e seus homens buir ao ditador Barre a causa de todos do país, Mogadíscio.44
servem unicamente aos seus objetivos os problemas subsequentes do país,
pessoais.34 Assim, os políticos neces- quando concentrou todos os pode- O Al Shabaab faz uma interpreta-
sitam de seus apoios para governar e res do Estado dentro de seu próprio ção wahhabi do Islã, além de pos-
obter certa legitimidade. gabinete.40 Nesse contexto, emergiu suir orientação salafista.45 A invasão
no país a UCI e tribunais seguidores etíope na Somália em 2006 provocou
Em razão do poder que possuem da Sharia surgiram para preencher o um efeito direto no grupo. Sendo
as alianças e as quebras de alianças vácuo legal deixado pelo colapso do o único grupo militar que resistiu
feitas com os senhores da guerra se Estado a fim de estabelecer a ordem aos ataques, o Al Shabaab passou a
refletem na sociedade e podem le- por meio da lei islâmica.41 A UCI adotar um novo modo de operação,
var ao início de uma guerra civil. Os propiciava aos cidadãos educação, utilizando táticas de guerrilha como
senhores da guerra já foram, inclu- justiça e assistência médica, propor- forma de resistência. Além disso, fo-
sive, nomeados para comandar tro- cionando certa estabilidade. No en- ram criados campos de treinamento
pas regulares o que recebeu diversas tanto, o objetivo de implementar um para seus combatentes e foi adotado
críticas. Uma delas, por exemplo, se Estado islâmico, trouxe preocupação sistema de tributação para arrecadar
relacionava com a participação de para alguns países, dentre eles os fundos nas áreas que dominam.46 A
Muse Sudi Yalahow, que fez parte da EUA e a Etiópia, mesmo que a UCI ocupação também surtiu efeitos no
aliança militar de 2006 e era acusado desempenhasse um papel unifica- recrutamento do grupo, pois utilizou
de atrocidades, incluindo ter impe- dor entre clãs somalis no sul do país, a hostilidade para com os etíopes e o
dido a chegada da assistência médica contendo a influência de senhores da nacionalismo somali para conseguir
aos civis.35 guerra e outros líderes de facções.42 militantes.47

O Al Shabaab O Al Shabaab começou como uma A invasão etíope empurrou o grupo


milícia de uma organização somali para o sul do país e fez com que o Al
O Harakat Al-Shabaab al-Mujah- islâmica, o al-Itihad al-Islami (AIAI), Shabaab, antes sem muita importân-
edeen, ou somente Al Shabaab, é o que surgiu na década de 1980 com a cia e influência, se transformasse no
grupo jihadista regional de origem intenção de substituir o governo de grupo armado mais poderoso e radi-
somali. Também é conhecido como Said Barre por um governo islâmico. cal da Somália.48
The Youth, pois significa juventu- Em 2000, os membros que restaram
de, em árabe. Segundo Monteiro36, dessa milícia, a maioria jovens, cria- No ano de 2007, quando as tropas
o grupo extremista é constituído, ram o Al Shabaab, que foi incorpora- etíopes se retiraram do país e o grupo
em sua maioria, por membros do clã do pela UCI. Assim, o AIAI é conside- intensificou suas ações contra o go-
Hawiye. Entretanto, o extremismo rado o grupo precursor e de onde vêm verno, estrangeiros passaram a se jun-
que pratica ultrapassa os laços entre alguns de seus combatentes.43 O gru- tar ao grupo extremista, por exemplo,
clãs. Os principais objetivos do gru- po também pode ser considerado sub- acredita-se que até 2015 cerca de 50
po são derrubar o Governo Federal produto do Movimento do Despertar americanos teriam se juntado ao Al
de Transição (GFT) e instituir a Sha- Islâmico (IAM) surgido na Somália Shabaab. O recrutamento de estadu-
ria, um sistema de governo baseado no começo dos anos 1960 quando o nidenses tem sido feito por meio de
em leis islâmicas fundamentalistas37, Estado independente foi formado. vídeos e das mídias sociais em busca
criando um califado. de militantes, tanto para operar na
Dessa forma, o Al Shabaab surgiu Somália como para agir em missões
De acordo com Monteiro , a origem
38
num quadro de instabilidade e guerra como ‘lobo solitário’.49
do Al Shabaab tem referência com civil. Em julho de 2006, a Etiópia in-
a história recente do país. Desde a vadiu a Somália, após o apelo do então Em 2008, o grupo se aliou à Al Qae-

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OCI • Série Conflitos Internacionais

da, aliança que trouxe benefícios

AMISOM
para ambos. O Al Shabaab obteve
maior força e recursos e a Al Qae-
da passou a exercer influência sobre
o grupo, alterando sua ideologia e
colocando-o como uma “frente de
combate” na “guerra” contra o Oci-
dente.50 Sua estratégia operacional
consiste em ataques suicidas contra
civis e foram estabelecidos campos
de treinamento por todo o país.51

A Al Qaeda da Península Arábica


(AQPA), localizada no Iêmen, e o
Estado Islâmico disputaram as aten-
ções do grupo extremista somali
Soldados do Exército Nacional da Somália em Mogadíscio (Agosto de 2012)
buscando uma aliança. No entan-
to, a ligação foi estabelecida com a
AQPA52, por ser uma parceira mais
conveniente. Enquanto o EI facili- uma liderança descentralizada com Eritreia. Nas regiões que controla,
taria um aumento considerável de múltiplas células independentes e impõe uma versão rígida da Sharia,
recrutas internacionais, o apoio lo- autônomas. Sua estrutura pode ser onde até atividades como fazer a
gístico que a AQPA pode prover e a representada em forma de pirâmi- barba são proibidas. Desde 2008 o
proximidade do Iêmen consolidaram de. No topo estão os Qiyadah que Al Shabaab tem se mostrado capaz
a união.53 representam os vários comandantes de realizar perigosos ataques e, mais
espalhados pelo país. Abaixo estão recentemente, recrutou a sobrinha
O Al Shabaab é o grupo que tem os Muhaajiruun, combatentes es- do Ministro do Interior somali, que
maior controle territorial na Somá- trangeiros e somalis com passaporte assassinou o seu tio em um atentado
lia. Estima-se que há cerca de 7.000 estrangeiro. Na base estão os Ansar suicida em sua casa.59
a 9.000 combatentes, sendo que que são combatentes somalis locais.
muitos são estrangeiros. O grupo As decisões cabem ao Conselho da A estrutura fraca do governo permite
tem usado armas modernas deixadas Shura, um corpo consultivo de 7 a a atuação do grupo em diversas partes
pelas forças etíopes, como carros de 10 pessoas. Esse tipo que organiza- do país. Segundo o National Counter-
combate soviéticos, veículos blinda- ção garante que o grupo continue terrorism Center60, o Al Shabaab as-
dos e helicópteros.54 Os jihadistas são atuando mesmo após a morte de um sumiu a responsabilidade por uma sé-
financiados por doações do exterior, de seus líderes.57 rie de ataques em Mogadíscio e outras
cobrança de taxas nas áreas sob seu áreas. Seus principais alvos são mem-
controle e, cada vez mais, com a pi- Em 2008 o Al Shabaab foi conside- bros do governo e da AMISOM e seus
rataria e cobrança de resgate.55 Há rado organização terrorista pelos Es- aliados. Além de realizar ataques na
alegações de que a Eritreia patroci- tados Unidos. O grupo ganhou força Somália, o grupo também atua em
na as atividades do Al Shabaab, no prometendo segurança à população, território estrangeiro, especialmente
entanto, o país nega tal afirmação. no entanto, perdeu um pouco de vi- no Quênia. O mais notável ataque foi
Mesmo após terem sido expulsos da sibilidade ao negar ajuda alimentícia em setembro de 2013 num shopping
capital em 2011 pelas forças da AMI- vinda do Ocidente em um momento em Nairóbi, deixando dezenas de
SOM, os combatentes continuam em que o país passava por uma crise mortos. Quando passou a fazer par-
realizando ataques. A atuação se dá alimentar.58 De acordo com o Cou- te da Al Qaeda, o grupo ampliou seu
principalmente nas regiões central nter Extremism Project, o objetivo objetivo para conduzir a guerra santa
e sul do país, tendo grande domínio atual do grupo é estender seu domí- – jihad - contra o mundo ocidental e
das áreas rurais. nio por toda a região do Chifre da combater os inimigos do Islã. 61
África, que inclui, além da Somália,
De acordo com Ali56, o grupo possui a Etiópia, o Quênia, o Djibouti e a Em setembro de 2014, o ‘Emir’,

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Shabaab. A organização social da So-


AMISOM

mália favorece o grupo que consegue


apoio da população não só pela ideolo-
gia, mas também por ter surgido den-
tro da União das Cortes Islâmicas, que
possui grande importância na história
recente do país e da sua população.

O Estado somali não conseguiu se


consolidar, tendo sofrido diversas in-
tervenções ao longo da história, sendo
extremamente dependente do apoio
internacional. A homogeneidade da
Somália dá a falsa impressão de que
Membros do Al Shabaab se entregam às tropas da União Africana (Setembro de 2012)
ela seria uma nação facilmente gover-
nável. No entanto, a vulnerabilidade
governamental exacerbada pelo se-
Ahmed Abdi Mohamud ‘Godane, lí- sity College, no nordeste do Quênia, cular regime de clãs, a facilidade para
der do Al-Shabaab, foi morto em um matando pelo menos 148 pessoas e obter armamentos, a pobreza crônica,
ataque de drone dos EUA. Sua morte ferindo outras 79, principalmente o apoio externo de grupos extremis-
foi apresentada como um sério golpe estudantes. Foi o pior ataque terro- tas, dentre outros fatores, favorece-
para o grupo e alguns observadores até rista no Quênia desde o ocorrido na ram a consolidação do Al Shabaab.
previram que seria “o começo do fim” embaixada dos Estados Unidos pela
do Al-Shabaab. Mas, o novo ‘Emir’, Al-Qaeda em 1998, superando até O grupo continua com capacidade de
Ahmed Omar Diriiye ‘Abu Ubeydah’, mesmo a carnificina no Westgate realizar ataques contra a população
conseguiu dar continuidade e sob sua Shopping Mall de setembro de 2013. civil, membros do governo e as for-
liderança, o grupo continuou engaja- Parece que Al-Shabaab está agora a ças da AMISOM na tentativa de ins-
do em sua guerra assimétrica, combi- caminho de se tornar uma verdadei- talar na Somália um Estado islâmico.
nando táticas de guerrilha em áreas ra organização transnacional, fun- Enquanto isso, o governo somali terá
rurais e operações complexas em dindo-se com a sua filial queniana de lidar com a volta de milhares de
grandes cidades, incluindo a capital - Al-Hijra - e atraindo um número refugiados após o fechamento do
somali, Mogadíscio.62 crescente de seguidores e militantes campo de Dabaab no Quênia e a re-
de toda a África Oriental.63 cém saída do país das tropas etíopes
A continuação das estratégias de que faziam parte da AMISOM. A re-
Godane foi reafirmada num ataque Considerações finais tirada dessas forças preocupa as Na-
realizado em abril de 2015, quando ções Unidas e a União Africana por
militantes do Al-Shabaab invadiram A fraqueza do Estado somali permite deixar um vácuo que pode ser ocu-
o campus de Garissa do Moi Univer- compreender a ascensão do grupo Al pado pelo Al Shabaab.

1
Discentes do Curso de Relações Internacionais da UNESP – Campos de Marília/ 9
Idem.
SP e membros do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Conflitos Internacionais
(GEPCI) e do Observatório de Conflitos Internacionais (OCI).
10
Idem.
2
SAND, J. B. State-Structures in Somalia: Why do Some Succeed and others fail?
11
AMISOM. Somali Peace Process. 2016. Disponível em: <http://amisom-au.org/
Thesis. Master in International Relations. School of Philosophy, Political Science about-somalia/somali-peace-process/>. Acesso em: 02 set. 2016.
and International Relations. Victoria University of Wellington. 2011. Disponível
em: <http://researcharchive.vuw.ac.nz/xmlui/bitstream/ handle/10063/1854/
12
ABUKAR, 2015, op. cit.
thesis.pdf?sequence=1>. Acesso em: 02 set. 2016.
MENKHAUS, K. State Failure, State-Building, and Prospects for a “Functional
13

3
ABUKAR, A. Somalia: A Brief Country Report. 2015. Disponível em: <http:// Failed State” in Somalia. The Annals of the American Academy of Political and
www.awepa.org/wp-content/ uploads/2015/10/Somalia-A-Brief-and-Country- Social Science, v. 656, 1, p. 154-172, 2014.
Report.pdf>. Acesso em: 02 set. 2016. 14
SANTOS, Luís Ivaldo Villafañe Gomes. A arquitetura de paz e segurança
4
SAND, 2011, op. cit. africana. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011.
5
Idem. 15
ABUKAR, 2015, op. cit.
6
ABUKAR, 2015, op. cit. 16
Idem.
7
Idem. 17
STREMLAU, N. Constitution-Making, Media, and the Politics of Participation
8
Idem. in Somalia. African Affairs, v. 115, n. 459, p. 225-245, 2016.

7
OCI • Série Conflitos Internacionais

18
AMISOM. Somalia President appeals to AMISOM to help secure upcoming 38
MONTEIRO, 2012, op. cit.
elections. 08 ago 2016. Disponível em: <http://amisom-au.org/about-somalia/
somali-peace-process/>. Acesso em: 02 set. 2016. 39
KOKO, 2007, op. cit.
19
Idem. YOH, John G Nyuot. Peace Processes and Conflict Resolution in the Horn of
40

Africa. African Security Review, [s.l.], v. 12, n. 3, p.83-93, jan. 2003.


20
INSTITUTE FOR SECURITY STUDIES. Relatório do Conselho de Paz e
Segurança (Etiópia). Can AMISOM exit Somalia responsibly by 2020? 24 Aug. 2016. 41
VINCI, 2006, op. cit.
Disponível em: <https://www.issafrica.org/ pscreport/situation-analysis/can-
amisom-exit-somalia-responsibly-by-2020?utm_source=BenchmarkEmail& 42
KOKO, 2007, op. cit.
utm_campaign=PSC+Report&utm_medium=email>. Acesso em: 05 set. 2016.
43
WISE, Rob. Al Shabab. Washington: Center for Strategic and International
21
ABUKAR, 2015, op. cit. p.30 Studies, 2011.
22
SHEIKH, Abdi; OMAR, Feisal. Islamist group al Shabaab kills 15 soldiers: 44
AGBIBOA, Daniel E. Terrorism without Borders: Somalia’s Al-Shabaab and the
Somali military. Reuters, Mogadishu, 01 maio 2016. Disponível em: <http://www. global jihad network. Journal of Terrorism Research. St. Andrews, p. 27-34. fev. 2014.
reuters.com/article/us-somalia-attacks-idUSKC N0XS11H>. Acesso em: 05 set.
2016. 45
O Wahhabismo é derivado do Salafismo, sendo assim, ambas são correntes
extremamente conservadoras e antigas do Islã. Elas pertencem ao islamismo
23
INSTITUTE FOR SECURITY STUDIES, 2016, op. cit. sunita, fazendo uma leitura fundamentalista, literal e rigorosa do Alcorão.
24
AFRICAN UNION. Report of the African Union Commission on the Strategic 46
WISE, 2011, op. cit.
Review of the African Union Mission in Somalia (AMISOM). 2013. Disponível
em: <http://www.peaceau.org/uploads/psc.report-356. somalia.27.feb.pdf>. 47
WISE apud AGBIBOA, 2014, op. cit.
Acesso em: 06 set. 2016.
48
AGBIBOA, 2014, op. cit.
25
ROQUE, Paula Cristina. The battle for Mogadishu: Revealing Somalia’s fluid
loyalties and identities. African Security Review, [s.l.], v. 18, n. 3, p.74-79, set. 2009. 49
ANTI-DEFAMATION LEAGUE. Al Shabaab’s American Recruits. New York,
24 Feb. 2015. Disponível em: <http://www.adl.org/combating-hate/domestic-
26
DICIO. Clã - Significado de Clã. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/ extremism-terrorism/c/al-shabaabs-american.html?referrer=http: //www.
cla/>. Acesso em: 08 de dez de 2016. google.com.br/#.WFrdjMvJ3qA>. Acesso em: 22 set. 2016.
27
KOKO, Sadiki. Whose responsibility to Protect? Reflection on the dynamics 50
WISE, 2011, op. cit.
of an ‘abandoned disorder’ in Somalia. African Security Review, [s.l.], v. 16, n. 3,
p.1-13, set. 2007. 51
Idem.
28
Idem. 52
ANTI-DEFAMATION LEAGUE, 2015, op. cit.
29
CARDOSO, Nilton César Fernandes. Conflito armado na Somália: Análises das 53
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Acesso em 03 set. 2016. 54
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30
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ANTI-DEFAMATION LEAGUE, 2015, op. cit.
31
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32
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60
34
VINCI, Anthony. An analysis and comparison of armed groups in Somalia. em: <https://www.nctc.gov/ site/groups/al_shabaab.html>. Acesso em: 30 ago. 2016.
African Security Review, [s.l.], v. 15, n. 1, p.75-90, jan. 2006.
61
MONTEIRO, 2012, op. cit.
35
ROQUE, 2009, op. cit.
62
BRYDEN, 2015, op. cit.
36
MONTEIRO, Ana. Dinâmicas da Al Shabaab. Nação e Defesa, Lisboa, v. 5, n.
131, p.155-173, 2012. 63
Idem.

MARCHAL, Roland. The Rise of a Jihadi Movement in a Country at War: Harakat


37

Al-Shabaab Al Mujaheddin In Somalia. Paris: Cnrs Sciences Po Paris, 2011.

Série Conflitos Internacionais é editada pelo Série Conflitos Internacionais mais recentes:
Observatório de Conflitos Internacionais da Libia: 4 años después de la intervención humanitaria
Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da y el R2P V. 2, n. 5
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita
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O conflito na República Centro Africana V. 3, n. 1
Editor: Prof. Dr. Sérgio L. C. Aguilar Conflito no Iêmen, o caso Huti V. 3, n. 2
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ISSN: 2359-5809 Iraque, Somália, Nigéria, Líbia e Mali V. 3, n. 3
Comentários para: oci@marilia.unesp.br Segurança e terrorismo na Europa V. 3, n. 4
Disponível em: www.marilia.unesp.br/#oci O conflito armado em Darfur - Sudão V. 3, n. 5
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