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ARTE EM

TEMPOS
SOMBRIOS
ANAIS DO 41.o COLÓQUIO DO COMITÊ
BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE
ARTE EM
TEMPOS
SOMBRIOS
ANAIS DO 41.o COLÓQUIO DO COMITÊ
BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE

Realização

Organização
CBHA – Comitê Brasileiro de História da Arte – Fundado em 1972
Presidente de Honra (in memoriam) – Walter Zanini

Diretoria (2020-2022)
Presidente – Marco Antônio Pasqualini de Andrade (UFU)
Vice-presidente – Neiva Bohns (UFPEL)
Secretária – Rogéria de Ipanema (UFRJ)
Tesoureiro – Arthur Valle (UFRRJ)

Conselho Deliberativo do CBHA (2020 – 2022)


Almerinda da Silva Lopes (UFES)
Emerson Dionísio Gomes de Oliveira (UnB)
Luiz Alberto Freire
Maria de Fátima Morethy Couto (UNICAMP)
Marize Malta (UFRJ)

41º Colóquio do CBHA (2021): Arte em Tempos Sombrios


Comissão Organizadora
Marco Antonio Pasqualini de Andrade (UFU/CBHA) (presidente)
Arthur Valle (UFRRJ/CBHA)
Marize Malta (UFRJ/CBHA)
Neiva Bohns (UFPel/CBHA)
Rogéria Moreira de Ipanema (UFRJ/CBHA)
Sandra Makowiecky (UDESC/CBHA)

Comitê Científico
Almerinda Lopes (UFES/ CBHA)
Arthur Valle (UFRRJ/CBHA) Bianca Knaak (UFRGS/ CBHA)
Blanca Brittes (UFRGS/CBHA)
Camila Dazzi (CEFET-RJ/ CBHA)
Fernanda Pequeno (UERJ/ CBHA)
Fernanda Pitta (Pinacoteca-SP/ CBHA)
Marco Pasqualini de Andrade (UFU/CBHA)
Maria do Carmo de Freitas Veneroso (UFMG/CBHA)
Maria Izabel Branco Ribeiro (FAAP/ CBHA)
Marília Andrés Ribeiro (UFMG/CBHA)
Neiva Bohns (UFPel/CBHA)
Niura A. Legramante Ribeiro (UFRGS/ CBHA)
Paulo César Ribeiro Gomes (UFRGS/ CBHA)
Raquel Quinet Pifano (UFJF/CBHA)
Rogéria Moreira de Ipanema (UFRJ/ CBHA)
Vera Pugliese (UnB/ CBHA)

Imagem da capa
Lydio Bandeira de Mello (1929 - ), Sem título, 2019. Carvão crayon e pastel seco, 75 x 55 cm; Foto: Rafael Bteshe

Diagramação
Vasto Art

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C72 - Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte (41: 2021)

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Pesquisas em diálogo –


evento on-line - 7 -11 nov. 2021. (Organizadores: Marco Pasqualini, Neiva Bohns, Rogéria de
Ipanema, Arthur Valle). Uberlândia: Comitê Brasileiro de História da Arte, 2022 [2021].

1317 p : 21X37 cm: ilustrado


ISSN: 2236-0719 - https://doi.org/10.54575/cbha.41

1. História da Arte. I. Comitê Brasileiro de História da Arte. II. Anais do XXXIX Colóquio do CBHA.
CBHA – Comitê Brasileiro de História da Arte
Publicações, colóquios anteriores e demais informações estão disponíveis em:
http://www.cbha.art.br/index.html
Contato: cbha.secretaria@gmail.com

CDD: 709.81

CBHA – Comitê Brasileiro de História da Arte (Filiado ao CIHA - Comité Internationale de Histoire de l’Art)
http://www.cbha.art.br/index.html - E-mail: cbha.secretaria@gmail.com
O ilusionismo traumático em Magdalena
Abakanowicz: A Multidão Sem Rostos
Camila Nader Martins, Universidade Estadual de Campinas
https://orcid.org/0000-0002-4199-8546
camilanader.m@gmail.com

Resumo

A artista polonesa Magdalena Abakanowicz, nascida em 1930 vivenciou uma série de


eventos violentos ocorridos na primeira metade do século XX, como a invasão nazista, o
Levante de Varsóvia e o Massacre de Ochota. Sua produção, reconhecida
internacionalmente a partir da metade dos anos 60 e início dos 70, transita da tapeçaria
com os Abakans para a série Crowd, onde figuras humanas são representadas a partir de
moldes em fibra têxtil, frequentemente sem rostos e alinhados em filas. A representação
das figuras humanas em multidões era uma forma de propor o confronto do homem
consigo mesmo, com sua solidão em meio a uma multidão. A série Crowd era uma barreira
de proteção contra o que a aterrorizava: multidões cuja história consiste na destruição e
morte. Sua produção nos informa a importância de narrar, através da arte, o choque e o
trauma da experiência humana

Palavras-chave: Escultura. Trauma. Testemunho. Polônia. Holocausto.

Abstract

Polish artist Magdalena Abakanowicz, born in 1930, lived through a series of violent events
that took place in the first half of the 20th century, such as the Nazi invasion, the Warsaw
Uprising and the Ochota Massacre. Internationally recognized from the mid-60s and early
70s, she transitions from tapestry with the Abakans to the Crowd series where human
figures, often headless, are made in textile fiber from human moldes and lined up. The
representation of human figures in a crowd was a way of proposing the representation of
the man himself, with his solitude in a multitude. The Crowd series was a protective barrier
against what terrified the artist: people whose history consists of destruction and death.
Her production informs us the importance of narrating, through art, the shock and trauma
of the human experience.

Keywords: Sculpture.Trauma. Testimony. Polish. Holocaust.

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 47
“Is my art not – like sweat – the symptom of my existence?”1

O testemunho tem se apresentado como uma importante ferramenta de


reconstituição de eventos catastróficos para a escrita da história, sobretudo,
quando diante de cenários de conflito e situações chocantes que ultrapassam os
limites da experiência humana. O século XX, identificado como a Era do
Testemunho pela historiadora francesa Annete Wieviorka2, alterou a percepção e
recepção da narrativa histórica a partir do testemunho, tendo em vista as duas
guerras mundiais, o Holocausto e outros numerosos eventos em que a virulência
humana foi evidenciada e marcada nos corpos de milhares de vítimas. A
representação do horror e suas possibilidades narrativas, nesse sentido, se voltam
para a experiência dos sobreviventes, compreendendo sua singularidade, a
necessidade de identificação e escuta.
Experienciar a violência física, psicológica e, por vezes, sexual, de uma guerra,
do genocídio de um povo ou de um atentado terrorista, estabelece uma lacuna
narrativa para os indivíduos envolvidos, incapazes de absorver a quantidade de
estímulo destas experiências ou, ainda, como Freud definirá em Além do Princípio
do Prazer (1996, p. 8) seria análogo a um susto, ou seja, alguém que vivenciou uma
situação de perigo sem estar preparado para ela.
Walter Benjamin, observa o empobrecimento de experiências comunicáveis
nos soldados que retornavam dos campos de batalha, ao contrário do que se
esperava e do que as crônicas de guerra, escritas por outros homens, permitiram
imaginar (1987, p.115). O mesmo ocorre com os sobreviventes do Holocausto, que se
frustram com a ausência de compreensão e escuta de suas narrativas impossíveis.
É preciso narrar para poder existir no presente e não apenas no espaço-tempo
onde a violência incidiu sobre os corpos e os esvaziou de narrativa a partir do
choque. O crítico Geoffrey H. Hartman, co-fundador do arquivo de testemunhos
sobre o Holocausto de Yale, dirá que narrar e ser ouvido caracteriza uma
reconquista da imagem, não permitindo que apenas os registros feitos por outros –
ou, até mesmo, pelos próprios violentadores – sejam as únicas imagem a habitar a
memória (2000, p. 216).
O paradoxo, no entanto, reside no caráter inenarrável destas experiências, e,
ao mesmo tempo, sua necessidade de representação para organização da
memória, tornando necessária a operação de novas formas narrativas. Nesse
sentido, é possível observar a mobilização de diferentes campos de expressão,
desde as artes visuais, a literatura, o cinema, a fotografia, entre outros, como
recursos narrativos para a elaboração do testemunho das vítimas.

1
ABAKANOWICZ, Magdalena. Fate and Art: Monologue. Milão: Skira Editore, 2008, p. 70.
2
WIEVIORKA, Annette. The Era of the Witness.Ithaca/London: Cornell University Press, 2006.

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Figura 1. Magdalena Abakanowicz. Ninenty Five Figures From The Crowd of One Thousand Ninenty
Five Figures, 2000. bronze, 109 x 38 x 25 cm até 168 x 51 x 36 cm (cada/ dimensões variáveis).

Destino e arte

“As our home and the countryside receded, I felt increasingly hollow.
As if my insides had been removed and the exterior, unsupported by
anything, shrank, losing its form.
I do not remember the beginning, the firing from all sides, mother
and the two of us lying in the street. Later everyone was running, we
too. Suddenly I was alone in a crowd of people. Strange faces. I
shouted: ‘Mama, Terenia!’ Impossible to turn back; only forward.
Suddenly Terenia was there. She grabbed me: ‘Where is Mama?’”.3

O trecho acima foi extraído do catálogo da exposição individual da artista


polonesa Magdalena Abakanowicz, realizada no Museu de Arte Contemporânea de
Chicago, em 1982. A artista escreve 11 páginas de um apanhado autobiográfico
sobre sua infância e adolescência, algo que corresponde ao intervalo de 1930-1945,
em um texto intitulado Portrait x 20. Seu relato é atravessado, em diversos
3
MAGDALENA Abakanowicz. Texts by John Hallmark, Mary Jane Jacob, Jasia Reichardt, and Magdalena
Abakanowicz. New York: Abbeville Press, 1982, p. 28.

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momentos, pelos efeitos da invasão nazista na Polônia, do Levante de Varsóvia, a
reação no Massacre de Ochota, e ao cenário de destruição e terror vivenciado, e,
curiosamente, é relacionado ao formato clássico de um retrato de 20x30 cm.
Chama a atenção a relação estabelecida entre um relato autobiográfico e
um retrato fotográfico, na medida em que o texto se limita a um espaço-tempo
específico de sua história, marcado por uma sequência de eventos que
interrompem o curso previsto de sua infância e juventude. O retrato fotográfico,
nesse sentido, permite congelar um instante, estabelecendo registro de quem
somos em determinado momento (ou, ainda, de como gostaríamos de ser vistos), e
que pode ser revisitado no futuro, em busca de recordações de um período
específico.
O período narrado pela artista, ao que se observa a partir de seus relatos,
constitui parte importante de sua vida e ela o apresenta com frequência de forma
direta, objetiva e evitando intermediações sempre que possível. Em muitas
ocasiões, inclusive, a artista opta por escrever em inglês, evitando traduções, como
acontece com o texto autobiográfico presente no catálogo e nas análises escritas
sobre suas obras, em que ela esboça análises sobre o comportamento humano, sua
relação com as forças da natureza e acerca dos materiais utilizados em seus
trabalhos. Isso para evitar que seus escritos fossem manipulados, alterando o
sentido previsto por sua escrita4.
Em 2008, a artista escreve a autobiografia Fate and Art, apresentando ao
leitor, logo nas primeiras páginas, que a história consiste em uma seleção e
interpretação dos fatos e a verdade parte de uma seleção pessoal do que é visto,
lembrado e aprovado, remetendo esta noção à suas leituras de Heródoto
(ABAKANOWICZ, 2020, p.7). A escolha em explicar, no prefácio, sua concepção
sobre história e verdade nos remete não apenas a crise da verdade no século XX,
que Cathy Caruth, Dori Laub, Márcio Seligmann-Silva, entre outros teóricos dos
estudos sobre trauma, abordam em suas análises sobre testemunho e história, mas
uma provocação que rompe com o pacto autobiográfico, normalmente
estabelecido a partir da noção de que a verdade está sendo narrada pelo autor.
Essa provocação poderia nos levar a duvidar da veracidade dos fatos narrados em
seu monólogo, como a artista escolhe chamar seu livro, ou atribuí-la a um gênero
de autoficção. Por outro lado, parece mais prudente analisar essa escolha, bem
como a da associação com o termo monólogo, à luz do testemunho e suas
barreiras narrativas implícitas à memória traumática.
O psicanalista Dori Laub, ao analisar suas próprias memórias sobre o
Holocausto, observa com estranhamento a riqueza de detalhes sobre o período, o
cotidiano no campo de concentração e, até mesmo, os nomes de pessoas que
conheceu aos cinco anos (1996, p. 62). Cathy Caruth, no prefácio, traça um paralelo

4
“ I am aware of the differences in meaning of the same word in every language and of the untranslatable
context behind the word. I needed to write this book for myself in the same way I make my art, first of all for
myself.” IN: ABAKANOWICZ, Magdalena. Fate and Art: Monologue. Milão: Skira Editore, 2008, p.7.

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 50
com um dos depoimentos coletados pela assistente social Florabel Kinsler, em que
uma criança, após anos de lembranças intrusivas com um trem, consegue
comunicá-las a outros sobreviventes e percebe, enfim, que não estava louca: o local
onde as crianças ficavam no campo de concentração de Theresienstadt permitia a
visão dos trens que chegavam com novos prisioneiros (1996, p. 6). A memória em
circunstâncias de extrema violência, sobretudo, em situações traumáticas fornece,
por vezes, uma quantidade de informações superior ao que seria esperado das
vítimas. Em uma experiência de destruição, como a narrada pela artista durante o
Levante do Gueto de Varsóvia e a reação brutal dos soldados alemães, a expectativa
é de destruir não apenas as instalações físicas da cidade mas, também, as provas
do aniquilamento de um grupo de pessoas. O testemunho e a memória, nesse
sentido, oferecem uma fonte única de resgate da realidade, para além da imagem
de violência e devastação proposta pelo persecutor.
Seu relato, no entanto, é interrompido. Logo após reencontrar sua irmã
durante o Levante de Varsóvia, a narrativa salta para a chegada dos três – ela, a
irmã e o pai – em uma cidade do interior. A mãe só reencontra a família um mês
mais tarde, junto a uma multidão que se deslocava fugindo das bombas e dos
ataques dos soldados alemães. O intervalo de tempo até o encontro do pai, a fuga e
o desespero diante do risco de morte iminente, criaram uma sobrecarga de
estímulos que não puderam ser registrados pela artista, aos quatorze anos.

A Multidão

A multidão de pessoas descrita por Magdalena Abakanowicz em seus


relatos, aparece em seu trabalho a partir dos anos 70. A artista, que até então se
dedicava às esculturas em fibra, os Abakans, que revolucionaram a arte têxtil com
suas formas abstratas e movimento, aos quarenta anos se coloca diante de um
modelo humano.
Mergulhada no estudo da anatomia humana e na observação de
agrupamentos humanos, com função religiosa, política ou social, Magdalena
Abakanowicz se dedica a criação de um molde, coberto com fibra natural e cola.
Inicialmente, com a série Backs, figuras humanas, agachadas, com as costas
arqueadas, são posicionadas solitárias dentro dos espaços expositivos. Em Cage,
1981, a figura é circunscrita por uma estrutura de madeira, com os braços
posicionados à frente do corpo, oferecendo a impressão ao espectador de que sua
cabeça está curvada em direção ao peito, em um esforço suficiente para não ser
vista.

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Figura 2. Magdalena Abakanowicz. The
Cage, 1981. Collection of the Museum of
Contemporary Art, Chicago. Foto:
Arkadiusz Podstawka.

As figuras, frequentemente, não possuem cabeças. Sua ausência nestas


primeiras obras se confunde com um esforço silencioso em mantê-las abaixadas,
em uma posição de submissão e obediência forçada. Não raramente as obras foram
relacionadas aos campos de concentração e, mais à frente, na série Crowd, foram
feitas associações à cerimônias religiosas e povos originários. Diante de todas as
interpelações sobre os possíveis significados de suas obras, Magdalena
Abakanowicz respondia afirmativamente, pois, segundo a artista, as obras falavam
sobre a condição humana em geral (ABAKANOWICZ, 2020, p. 67).
Interessada em analisar a condição humana a partir do confronto do
indivíduo com a multidão e do espectador diante de suas obras, a artista expõe o
seu próprio confronto com os homens que a ameaçavam. Com as multidões de
pessoas que corriam, desesperadas e eram pisoteadas fugindo dos ataques dos
soldados alemães. Abakanowicz se fascinava com a quantidade de peças
produzidas e expostas, que ultrapassavam duas mil até a publicação de seu
monólogo em 2008, e que ela afirmava estarem sob o seu controle. A multidão
criada pelas mãos da própria artista e que permitiria o confronto com a catástrofe,
com o Real impresso em suas obras.

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Sua narrativa que remete a um espaço-tempo específico, parte de um
evento histórico passado, porém, sempre reapresentada como parte de sua
identidade no presente, aparece agora corporificada em uma série de esculturas,
alinhadas, em um movimento silencioso e obediente sob o controle da artista.

Figura 3. Magdalena Abakanowicz. Three Wheels and Crowd I, 1986-87. madeira, juta e resina
(dimensões variáveis). Foto: Artur Starewicz.

O movimento impassível e indiferente à aflição que estão sujeitas, como na


instalação Three Wheels and Crowd I, 1986-87, em que três rodas gigantes de
madeira são posicionadas em frente à multidão de figuras humanas, possuem um
forte impacto visual. A fragilidade com que as rodas são posicionadas e se
sustentam, estáticas, sugere a iminência de uma catástrofe, sustentada por um
instante prévio que permite ao espectador o seu vislumbre. Esse instante que
antecede o choque, em diálogo com a análise oferecida por Hal Foster sobre as
obras de Andy Warhol, pode ser associado a uma repetição neurótica sobre o
objeto de angústia da artista, sob a forma de um ilusionismo traumático5. Ao
espectador, posicionado entre as figuras e a roda, é proposto o confronto com a sua
própria humanidade, na medida em que as figuras sem rostos – ou com
fragmentos que não permitem a visualização de suas expressões – colocam em
xeque as noções de etnia e as associações comumente feitas à grupos a partir de
suas características físicas.

5
FOSTER, Hal. O Retorno do Real. A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu, 2015. [e-book].

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Em sua retrospectiva realizada em Paris, em 1982, um homem aborda
Magdalena Abakanowicz após visitar a sala que abrigava 80 peças da série Backs:
“Eu entendo: o rosto pode mentir, o corpo não.”6 Abakanowicz dirá que, quando
jovem, ao olhar para o rosto das pessoas, era possível saber quem era nobre ou
judeu, e isso já transformaria as circunstâncias em que cada um estaria inserido
dentro de um grupo, além das retaliações que seriam impostas. Ao encarar as
figuras, sem cabeças, se torna possível para o espectador um descolamento da
identificação do indivíduo representado, proporcionando o confronto com sua
própria humanidade, em sua virulência e fragilidade, independente do
endereçamento oferecido pelo rosto.
Essa análise apresenta um ponto de contato com Levinas e seu exercício de
alteridade, na perspectiva de constituição do sujeito a partir de sua noção ética
associada à responsabilidade sobre a experiência do Outro.7 No rosto, que poderia
ser representado pelas costas expressivas dos familiares que esperavam notícias
dos detidos políticos em Lubianca8, residiria a extrema precariedade humana,
traduzida no instante em que a morte invisível que concerne ao Outro passa a ser
também da minha conta. O sofrimento narrado pelas obras de Abakanowicz, nesse
sentido, torna o espectador não apenas empático mas o faz tomar parte da dor
impressa pelo silêncio das multidões, o comovendo ao ponto do horror.

Figura 4. Magdalena Abakanowicz. 80 Backs, 1982. juta e resina (dimensões variáveis).Foto: Dirk
Bakker.

6
ABAKANOWICZ, Magdalena. Fate and Art: Monologue. Milão: Skira Editore, 2008, p. 67.
7
LEVINAS, Emmanuel. Alterity and Transcendence. London: The Athlone Press, 1999, p. 131-144.
8
Em referência ao excerto da obra de Vassili Grossmann, Vida e Destino, 1980, citada pelo filósofo. Ibidem, p.
140.

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 54
Se podemos pensar a partir de uma política das imagens para organização
de narrativas traumáticas, sobretudo, a escultura de Magdalena Abakanowicz se
mostra muito eficiente enquanto recurso mnemônico, funcionando quase como
uma arma que golpeia o espectador, dada a sua potência e o tensionamento
provocados e rompendo com os interditos que a violência insiste em demarcar
através do silêncio.

Referências

ABAKANOWICZ, Magdalena. Fate and Art: Monologue. Milão: Skira Editore, 2008.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CARUTH, Cathy. Unclaimed Experience. Londres: The Johns Hopkins University Press, 1996.

CARUTH, Cathy. Trauma. Explorations in Memory. Londres: The Johns Hopkins University
Press, 1995.

FOSTER, Hal. O Retorno do Real. A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu, 2015.
[e-book].

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. Psicologia de grupo e outros trabalhos


(1920-1922). Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (Parte III). Volume XVI. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.

LEVINAS, Emmanuel. Alterity and Transcendence. London: The Athlone Press, 1999.

MAGDALENA Abakanowicz. Texts by John Hallmark, Mary Jane Jacob, Jasia Reichardt, and
Magdalena Abakanowicz. New York: Abbeville Press, 1982.

NESTROVSKI, Artur; SILVA, Márcio Seligmann (org.). Catástrofe e Representação. São Paulo:
Escuta, 2000.

SILVA, Márcio Seligmann. Narrar o trauma – A Questão dos Testemunhos de Catástrofes


Históricas.In: Revista de Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65 –82, 2008.

WIEVIORKA, Annette. The Era of the Witness.Ithaca/London: Cornell University Press, 2006.

Como citar:

NADER, Camila. O ilusionismo traumático em


Magdalena Abakanowicz: A Multidão Sem Rostos. Anais do 41º
Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Arte em
Tempos Sombrios , Evento virtual, CBHA, n. 41, p. ------., 2022 (2021).
ISSN: 2236-0719.
DOI: https://doi.org/10.54575/cbha.41.004
Disponível em: http://www.cbha.art.br/publicacoes.htm

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 55
Asfixias da violência histórica na geografia de
uma cidade. Denúncias de uma artista
Mônica Zielinsky, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
https://orcid.org/0000-0003-0815-3725
monicazielinsky@gmail.com

Resumo

A violência de um passado político ditatorial no Brasil dilata-se e parece “contaminar o


presente”, ao oferecer, em nossos dias, possíveis analogias com fatos passíveis de seu
reconhecimento cada vez mais presente na vida brasileira hodierna. Este contexto,
particularmente no Rio Grande do Sul, vem a ganhar vida pela obstinada criação da artista
Manoela Cavalinho (Porto Alegre, 1981), alguém profundamente amargurada por uma
amnésia histórica, quando seu inconformismo explode com vigor e violência, ao transgredir,
entre as superfícies da cidade, o silêncio de todos os fatos. Denuncia ao mundo, através de
sua arte, a violência subterrânea dos acontecimentos, através de pequenas epígrafes
calcadas sobre os lugares da história em Porto Alegre.

Palavras-chave: Manoela Cavalinho. Arte e violência. Arte e memória. Ditadura militar.


História da arte no Rio Grande do Sul.

Abstract

The violence of a dictatorial political past in Brazil expands and seems to “contaminate the
present”, by offering, in our days, possible analogies with facts that can be increasingly
recognized in Brazilian hodiernal life. This context, particularly in Rio Grande do Sul, comes
to life through the obstinate creation of the artist Manoela Cavalinho (Porto Alegre, 1981),
someone deeply embittered by a historical amnesia, when her nonconformity explodes
with vigor and violence by transgressing the silence of all facts among city surfaces. She
denounces to the world, through her art, the subterranean violence of the events, through
small epigraphs traced on the places of history in Porto Alegre.

Keywords: Manoela Cavalinho. Art and violence. Art and memory. Military dictatorship. Art
history in Rio Grande do Sul.

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 56
“A tarefa de uma crítica da violência pode se circunscrever à
apresentação de suas relações com o direito e com a justiça. Pois,
qualquer que seja o modo como atua uma causa, ela só se
transforma em violência [...] quando interfere em relações éticas”1.
- Walter Benjamin, 1921

Neste estudo meu interesse irrompe da pesquisa que desenvolvo há certo


tempo sobre “Os apagamentos da memória na arte”, estendida na constituição de
um grupo de estudos, acordos interinstitucionais, publicações, igualmente em
colóquios, todos organizados em uma perspectiva internacional. Tenho buscado
aprofundar o problema em investigações sobre a produção contemporânea de
artistas do Rio Grande do Sul, ao apontarem estes, em suas criações, sob diferentes
modos e procedimentos, estes apagamentos da memória, ao reconhecê-los, mais
ainda, ao colocarem em xeque seus inconformismos a respeito e seu mais intenso
repúdio a esses fatos.
Através desta reflexão percebo rasgarem-se os tempos. Dos fluxos do
presente ao passado e do passado ao presente descobrem-se tempos sombrios,
em seus constantes anacronismos. Evocam-se, a partir da atmosfera autoritária das
condutas políticas do Brasil hoje, nutridas de problemas de ordem ética, também
as de um passado fortemente dramático, este relativo a uma história cultural
esquecida na cidade de Porto Alegre durante o longo período da ditadura militar
no país (1964-1985), como se esta história nunca houvesse existido. Neste lugar,
reconhecido como um dos mais efervescentes polos de repressão política no Brasil,
viram-se soterradas, sob um implacável silêncio, muitas das suas memórias
culturais, históricas e institucionais. Ali alastrou-se a asfixia de numerosos
sofrimentos humanos, como também o esquecimento, por quase duas décadas, de
traumas intermitentes, da angústia frente à brutalidade das perseguições e prisões,
das tantas fugas e torturas, mas sobretudo do legado de dolorosas mortes. Em sua
base, erigia-se o mais violento poder opressivo do Estado brasileiro e dos militares,
nutrido pelo desrespeito aos direitos humanos e à democracia. A violência de um
passado político ditatorial dilatou-se e parece “contaminar o presente”, ao oferecer,
em nossos dias, possíveis analogias com fatos passíveis de seu reconhecimento
cada vez mais presente na vida brasileira hodierna.
Este contexto opressivo ganha vida e sua contribuição efetiva aos olhos
públicos que o ignoram através da obstinada criação da artista Manoela Cavalinho
(Porto Alegre, 1981). Profundamente amargurada por esta amnésia histórica, ela traz
à luz, com sutileza, mas ao mesmo tempo envolta em sua mais violenta repulsão,
seu inconformismo. Este explode com vigor e veemência, ao transgredir Manoela,
com sua arte, os territórios da geografia da cidade, também o mutismo sobre os
fatos dos quais eles foram cenário. Em seu repúdio ao irreparável olvido cultural e
político, esta artista decide denunciar ao mundo a violência subterrânea dos

1
Walter Benjamin. “Para a crítica da violência”, in: Jeanne Marie Gagnebin (org.) Walter Benjamin. Escritos sobre mito e
linguagem. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2011, p. 121.

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 57
acontecimentos passados no presente. Para isso, cria pequenas epígrafes calcadas
com estratégia e extrema rapidez sobre os lugares omitidos na história de Porto
Alegre, também sobre superfícies de vidro erguidas em seus braços para serem
fotografadas nesses sítios, em meio às dramáticas histórias silenciadas.

Figura 1. Manoela Cavalinho. Epigramas. Av. João Pessoa, 2050 – 2020

Manoela rompe com isso muitos segredos do passado dispersos na


geografia urbana. O espaço, em meio ao trabalho da artista, traz, ao contrário,
através desses marcos fundamentais dos fatos, a representação trágica desta
história e do mundo real desconhecido desta urbe. Para isso, ela investiga e
descobre, levada por verdadeira obsessão, notáveis trabalhos realizados por
pesquisadores universitários sobre muitos dos catastróficos episódios e
acontecimentos da ditadura militar ocorridos nas ruas e lugares da cidade. Traz,
através dessas consultas, a indicação de valiosos marcos fundamentais para a
constituição da própria história da cidade, pois dessas sinalizações são arrancadas
as verdades da política e da própria vida, ao dilacerar a artista com visceral ousadia
crítica, a imobilidade e os ocultamentos da memória que a constituíram e
permanecem vivos desde os longos tempos de sua modelagem cultural.
O trabalho artístico de Cavalinho projeta-se desde lembranças construídas
no mais íntimo recanto familiar de sua infância e juventude, ao nele conviver, em
meio a alguns silêncios, imprecisões e mistérios sobre os fatos políticos da ditadura
brasileira. Lembro que um dos importantes estudiosos sobre a memória, Jan

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Assmann (2010)2, leva-nos a compreender que o espaço comum da experiência se
estrutura de modo conectivo, quando as lembranças marcantes possibilitam ser
armazenadas na memória, ao incluírem também imagens de outros tempos no
horizonte de um presente sempre em trânsito. Este processo conectivo é visto
como fundamental na criação da artista - pois a atmosfera dessas longínquas
lembranças de outrora em família eclode com impulsividade na atualidade, no
rasgo vigoroso que destrói tantos mistérios e as deslembranças contidas na história
da capital sul do Brasil. Ao propagá-las, em meio a um sabor fundamental de
verdade, Manoela visa sua ampliação, desde um âmbito mais privado e familiar, a
um imprescindível conhecimento público.

Figura 2. Manoela Cavalinho. Epigramas. Rua dos Andradas, 562 – 2020

A sua produção artística acontece, na maioria das vezes, espraiada em


lugares públicos, ao instaurar seu corpo nos espaços. Quase em constante fuga, em
ações performáticas no campo político das ruas, em sua liberdade expressiva e
visivelmente ágil, mas sorrateira, evade-se ininterruptamente, por pressentir
ameaças de possíveis vigilantes institucionais ou da parte de espaços conflitantes.
Lembra um estudioso do espaço, Karl Schlögel, que “as paisagens não são textos,
tampouco as cidades. Os textos podem ser lidos, mas às cidades, tem-se que ir” e

2
Jan Assmann. La mémoire culturelle. Écriture, souvenir et imaginaire politique dans les civilisations antiques. Paris:
Flammarion, 2010.

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acentua, com estas palavras, a importância da vivência permanentemente
presencial, mesmo que fugidia, de Manoela nos espaços da cidade.
Em tempos sombrios como os de hoje, contudo, Manoela não emprega
representações da violência, como diversos artistas buscam representá-la em sua
arte. A criação de Cavalinho, ao contrário, busca, como cerne fundamental, sua
própria presença física, ao empregar seu próprio corpo no ato de colar sobre
lugares por ela escolhidos frases inscritas, no intuito de trazer à luz dolorosas
ocorrências relatadas nesses espaços que se tornam profundamente políticos. São
os da própria violência aqui por ela evocada, a Gewald, citada por Walter
Benjamin3. São ao mesmo tempo aqueles sítios que expõem o poder supremo
sobre a vida e sobre a morte e se manifestam de forma terrível, nas próprias
palavras do grande filósofo alemão. Envolvem uma ação performática de aparecer,
mesmo a um modo efêmero, em uma exigência corpórea presente no processo de
plasmar a escrita de seus Epigramas4. Busca, por esses atos presenciais, relembrar
fisicamente os tantos espaços a serem denunciados ao mundo, pela tragicidade
que eles trazem constituintes em suas histórias. Marca assim diversos pontos da
cidade de Porto Alegre por suas interferências e escolhas históricas. Com isso, a
artista marca vigorosamente os espaços de seu interesse e refaz uma nova
geografia e um novo mapa desta urbe, em um ato de redesenhá-la pelos atos de
violência que nela ocorreram quase desconhecidos sobre sua própria história.
Possibilita assim, em um vívido ato heurístico e com um certo grau de deleite pela
conquista, o assinalar desta dramática conjuntura do passado ditatorial do sul do
Brasil, porém, aquele que poderia quem sabe abrir, ao mesmo tempo, um possível
caminho de estudos e aprofundamentos em suas mais distintas nuances.
No cerne fundamental de cada um dos trabalhos de criação desta artista,
por um lado podem ser instaurados agudos pensamentos relacionais sobre
violência, justiça e direitos humanos e sua real identidade, ao interferir em questões
éticas, conforme se irradia a partir do pensamento de Benjamin, o da epígrafe
deste texto, mas também são vívidos nos Epigramas de Manoela. Em uma ótica
anacrônica e por certa similaridade entre pensamentos e condutas, esses
apontamentos tornam-se essenciais para a compreensão social e política referente
ao Estado brasileiro contemporâneo, em uma história atual que indica
desastrosamente um real desconhecimento dessas relações. Em outro sentido,
poderia motivar-nos quem sabe a desenvolver habilidades de pensar crítica e
publicamente sobre esses efeitos dos nossos passado e presente, ao se tentar

3
Cf. nota de Jeanne-Marie Gagnebin, organizadora da obra Walter Benjamin Escritos sobre mito e linguagem e no texto de
Walter Benjamin ali inserido, ‘Para a crítica da violência’ (1921), o termo originado em língua alemã de Gewald, que
provém do verbo arcaico walten, na acepção de imperar, reinar, ter poder sobre. Mas este termo indica, para Benjamin, a
importante imbricação do poder político com a violência, o pano de fundo do próprio pensamento de Benjamin, mas
visivelmente igualmente rico para a reflexão sobre a criação de Manoela Cavalinho, pelas discussões que sobre ela são
levantadas.
4
Cf. pensamento semelhante mencionado por Judith Butler. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

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ultrapassar a crise da imaginação histórica que nos abala hoje, de modo tão
profundo e, ao mesmo tempo, o da angústia da perda do futuro que nos assola.

Figura 3. Manoela Cavalinho. Epigramas. Biblioteca Pública do RS -2020

Figura 4. Manoela Cavalinho. Epigramas. Av. Sepúlveda, sn,


2021

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Os Epigramas de Manoela Cavalinho sem dúvida revolvem a ideia de história
e incitam a considerar o esquecimento, nas palavras de Huyssen, como uma
deficiência, uma falta inaceitável a ser suprida. Basta lembrarmos Benjamin, ao
considerar ele o poder que tem a memória de perturbar ou destruir5o que foi
esquecido.
E sob esse foco, o trabalho desta artista se impõe como uma urgência
histórica a ser recriada, em especial em relação à própria história da arte do país, ao
denunciar profundas inquietudes que tantos fatos omitidos nela iniciam a eclodir.
A produção desta artista possibilita, a partir do descortinar as realidades do
passado, projetar um futuro mais transparente, fortemente crítico, múltiplo e
relacional, mesmo em seus possíveis tempos imaginados. Trata-se do
oferecimento, através desses trabalhos, de uma outra modalidade de percepção e
de imaginação de espera e, quem sabe de avanço, como lembra a estudiosa
britânica Doreen Massey.6
Manoela Cavalinho sabe romper, em meio ao seu corajoso enfrentamento
das numerosas asfixias da violência encroadas nesses vários lugares, muitas
verdades que agora pulsam com vigor, desde o subterrâneo desta urbe às suas
superfícies, agora cobertas de sutis epigramas. A partir da sua arte, ela provoca
uma nova recepção da vida na própria história da arte deste Brasil, em ricas
ressignificações dos fatos. São modos de criação que revolvem, não apenas a
compreensão de fatos do passado em direção ao presente, mas também daqueles
do presente ao passado em seus ciclos anacrônicos que compõem esta memória
cultural. Seus significados provêm da habilidade da artista, em sua criação, ao
conhecer as experiências contemporâneas de seu tempo, ao torná-las efetivas
modalidades de reconfiguração da historicidade, em seus novos delineamentos.7
As atitudes artísticas de Manoela, centradas no exercício da memória
cultural, mostram-se como cerne de sua inventividade. Será que não exporiam elas,
de sua parte, também vitais transformações nas categorias políticas trazidas por
seus trabalhos?
Ao desnudar tantos dramas escondidos, ao rasgar a estabilidade e os
silêncios da cidade às margens do Guaíba como nunca antes se teria imaginado,
tencionam-se, por esses trabalhos, os espaços culturais da cidade. Ao expor suas
calçadas evocadas como frias lápides que guardam a memória de nomes daqueles
que encontraram a morte ou seus corpos dilacerados, ao apontar instituições como
trágicas casas da morte e de massacres humanos, Manoela incessantemente
delata. Diante do violento poder que sulca sem trégua os diferentes tempos da
história brasileira, em seus processos incompreensíveis e inaceitáveis, como se

5
Walter Benjamin. in: Andreas Huyssen. Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da memória.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
6
Cf. Doreen Massey. Pelo espaço. Uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2012.
7
Cf. Christine Ross. The past is the present; it’s the future too. The temporal turn in contemporary art. New York, London,
New Delhi, Sidney: Bloomsbury, 2014.

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estivesse anestesiado o exercício de pensá-los e de enfrentá-los. A arte aqui brada
contra a destruição da liberdade humana tanto exterior, como interior.

Figura 5. Manoela Cavalinho. Epigramas.Cadeia Pública de POA – 2020

Alastra-se, por meio desta importante obra, um sentido de sua imortalidade


política, espraiada na geografia desta urbe, ao indicar a sua reconstrução, pela
retomada de um pensamento vigoroso de liberdade, em particular da memória da
própria identidade histórica, longe das hipertrofias de sua destruição.
Ao ter Manoela Cavalinho optado pela performance ágil de seu próprio corpo
entre os espaços políticos desta cidade adormecida, ergue-se sua luta contra o
esquecimento, contra a anestesia do pensar, a usurpação da liberdade, também
contra a repressão. Devolve-nos, ao contrário, mesmo em meio a tempos tão
sombrios, a alma da veracidade e a atmosfera do mover-se, quando tudo parece
inerte e obscuro. Esta criadora permite com sua arte que se entreveja uma crença
em que algo possa ser realizado, em tempos de uma imaginação em espera, em
outros futuros, quem sabe, a transformarem o curso da história.

Anais do 41º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, n. 41, 2022 [2021] 63
Referências

ARENDT, Hannah. Arendt. Paris: L’Herne, 2021.

ASSMANN, Jan. La mémoire culturelle. Écriture, souvenir et imaginaire politique dans les
civilisations antiques. Paris: Flammarion, 2010.

BENJAMIN, Walter. “Para a crítica da violência”. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie (org.) Escritos
sobre mito e linguagem. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2011.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da


memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço. Uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand
do Brasil, 2012.

ROSS, Christine. The past is the present; it’s the future too. The temporal turn in
contemporary art. New York, London, New Delhi, Sidney: Bloomsbury, 2014.

Como citar:

ZIELINSKY, Mônica. Asfixias da violência histórica na geografia de uma


cidade. Denúncias de uma artista. Anais do 41º Colóquio do Comitê
Brasileiro de História da Arte: Arte em Tempos Sombrios, Evento
virtual, CBHA, n. 41, p. ------., 2022 (2021). ISSN: 2236-0719.
DOI: https://doi.org/.................................
Disponível em: http://www.cbha.art.br/publicacoes.htm

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