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A MORFOLOGIA DO TRABALHO NO SÉCULO XXI

MORPHOLOGY OF LABOUR IN THE 21st CENTURY

André Pereira de Carvalho


Universidade Federal de Minas Gerais

ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São


Paulo: Boitempo, 2018.

Palavras-chave: trabalho; precariado; neoliberalismo; terceirização; sindicalismo; mais-valor

A nota inicial do livro O privilégio da Servidão, de Ricardo Antunes, resume os


objetivos intelectuais do autor, que busca apresentar uma perspectiva do todo, em vez de
recortes fragmentados da realidade. Isto de fato é alcançado por meio da compilação de uma
série de artigos, entre originais e republicações, com a intenção declarada de fornecer uma
obra de fôlego, que dê conta de trazer uma explicação à nova morfologia do trabalho – tema
central em suas pesquisas (cf. ANTUNES, 2013a, 2015).
A principal diferença entre esta obra e as demais já escritas pelo autor encontra-se no
enfoque dado em uma transformação recente no mundo do trabalho: a inclusão do setor de
serviços como produtor de mais-valor. Combinando uma leitura aprofundada dos estudos
teóricos de Marx sobre a produção de mais-valor com as novas tecnologias de produção (e
exploração do trabalho), Antunes aponta de que maneira o capitalismo vem expandindo sua
área de dominação e aprofundando sua capacidade de exploração do trabalho.
Para estabelecer um fio condutor entre os vinte capítulos do livro, Antunes divide a
obra em quatro partes. A primeira apresenta um panorama das relações de trabalho nos países
– tanto do norte global (os países industrializados da Europa) quanto de potências econômicas
emergentes (principalmente China e Índia) – para mostrar o processo de aprofundamento da
chamada flexibilização do trabalho (ou a destruição de direitos e garantias dos trabalhadores e
trabalhadoras).
O principal mecanismo de flexibilização do trabalho nos últimos anos tem sido a
terceirização. Esse mecanismo é responsável por disfarçar as relações “entre capital e trabalho
[…] em relações entre empresas” (ANTUNES, 2018, p. 32). Desta maneira, responsabiliza o
trabalhador e a trabalhadora por suas condições, conferindo a estes uma condição de
empresário-de-si – ou seja, um reforço no modelo toyotista de trabalho. No Brasil, isto é
perceptível pela “pejotização” – termo pejorativo que simboliza um acordo estabelecido entre
uma empresa e um trabalhador ou trabalhadora enquanto pessoa jurídica (PJ), e não pessoa
física – que impossibilita a obtenção das garantias e seguranças de um trabalho assalariado
formal. É uma tendência do mundo do trabalho e aceita em condições extremamente
desiguais, com o trabalhador ou trabalhadora tendo pouco ou nenhum poder de barganha com
o empregador.
O caráter de novidade não está na flexibilização, mas sim como sua
desregulamentação permite ao capitalismo realizar um tipo de exploração do trabalho que
Antunes aponta como sendo, em uma primeira leitura, paradoxal. O mais-valor, mecanismo
fundante da exploração do trabalho, presente nas argumentações de Marx sobre a lógica do
capital, supõe que não se retira valor de onde ele não é produzido – no caso, o setor de
serviços.
As quatro etapas do processo produtivo, como explicadas no primeiro livro de O
Capital, são a produção, a distribuição, a circulação e o consumo (MARX, 2013). A
exploração do mais-valor encontra-se na produção, na qual se pode mensurar quanto tempo de
trabalho se leva para produzir a mercadoria – logo, calcular uma taxa de lucro da produção
para ser retida pelo dono dos meios de produção. No entanto, Antunes aponta que o próprio
Marx já percebia a complexidade da produção de modo a considerar que cada uma destas
quatro etapas fosse vista e interpretada numa relação de dependência das demais. Marx já
havia percebido como o desenvolvimento tecnológico da indústria dos transportes contribuiu
decisivamente para a valorização do mais-valor por agilizar o deslocamento de mercadorias
e aumentar a taxa de lucro de uma empresa, elevando a taxa de lucro dos proprietários e,
simultaneamente, mantendo a exploração do trabalho que produziu este valor.
Ou seja, no século XIX, a tecnologia já apresentava as relações de trabalho como uma
grande teia de processos interligados. Passados 150 anos e atravessando um processo de
globalização, as relações de trabalho estão ainda mais interconectadas, e os três setores
(agricultura, indústria e serviços) agem decisivamente um sobre o outro – como na
agroindústria. Antunes toma cuidado para esclarecer que se trata do crescimento da
importância destes setores na produção de bens materiais, e não a sobreposição do trabalho
imaterial sobre o material. O trabalho produtivo, que cria mais-valor (e não apenas o que o
valoriza), ainda é central, hegemônico e determinante na sociedade capitalista.
A segunda parte do livro apresenta as maneiras pela qual o trabalho no Brasil foi
sistematicamente desregulado e flexibilizado, ao passo que a legislação trabalhista foi sendo
desmantelada, paulatinamente, seja pelos governos neoliberais de Fernando Collor (1989-
1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), seja pelo governo do Partido dos
Trabalhadores: Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016).
Sob o calor do momento, muito dos artigos foram produzidos próximos ao processo do
golpe parlamentar de 2016, articulado pelo PMDB de Michel Temer. Sendo a precarização do
trabalho um tema não apenas atual, mas também extremamente dinâmico, muitas análises
foram feitas durante processos cujos desfechos hoje conhecemos, como o PL 4.330/2004, que
permitiu a terceirização da atividade-fim. Embora com dados incompletos, percebe-se que
Antunes já se antecipava na direção para a qual a política nacional se encaminhava – não por
coincidência, pois toda sua análise da primeira parte do livro trata de um processo global de
perda de direitos dos trabalhadores e o aumento da exploração do trabalho e do mais-valor.
O encaminhamento dado no livro do autor é embasado em dados de pesquisas
empíricas, tanto pelas coautoras e coautores de alguns de seus capítulos, quanto pela série de
livros organizados, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil (2006, 2013b, 2014). Tais
dados apontam situações que demonstram como os avanços da tecnologia são empregados
enquanto ferramentas de aumento das condições de exploração. O telemarketing, por
exemplo, é um tipo de trabalho que abrange dois dos aspectos mais contemporâneos desse
tipo de exploração denunciada por Antunes: é um tipo de serviço tipicamente moderno (em
seu sentido de contemporaneidade) e que explora o trabalho imaterial (tipicamente
relacionado ao valor de uso, e não ao valor de troca).
Os serviços terceirizados, regulamentados por lei, são os que mais frequentemente
burlam as leis e que menos garantias de trabalho oferecem. Seu aumento não é acidental, pois
Antunes aponta como o processo nacional de superexploração está fortemente ligado ao
capitalismo global: com países que possuem direitos trabalhistas ainda mais
desregulamentados (como Índia e China), os demais buscam explorar ainda mais sua mão de
obra, a fim de se manterem competitivos (ou, no caso de muitas empresas, transferir suas
fábricas para estes países). Seus dados levam a perceber que só existe desvantagem para o
trabalhador, cujos salários diminuem ao mesmo tempo em que a carga de trabalho aumenta –
e com ela, as chances de acidentes fatais.
Para os trabalhadores se auto-organizarem e resistirem às pressões do capitalismo em
desregulamentar as conquistas trabalhistas, existem os sindicatos. Mas segundo a leitura
crítica de Antunes sobre duas das principais centrais sindicais, a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical, há um deslocamento do eixo das lutas sindicais: do
confronto direto (como piquetes e greves) por melhorias estruturais e permanentes, para a
manutenção do capitalismo em troca de pequenos benefícios superficiais, sem alterar as
razões da desigualdade. Isso fica evidenciado no título do capítulo 12, “Do sindicalismo de
confronto ao sindicalismo negocial”, que serve de índice para essas avaliações.
A terceira parte do livro dá sequência a estas considerações, enfatizando a
transformação política ocorrida no Brasil com o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a
conjuntura que levou a um golpe parlamentar, e as consequências destes para os trabalhadores
e trabalhadoras. Mais uma vez, Antunes faz questão de deixar claro que este tampouco foi um
processo unicamente brasileiro, tendo em vista que houve a ascensão de uma política de
centro-esquerda na América Latina no começo do século XXI, na qual países como Brasil,
Argentina, Bolívia, Paraguai, entre outros, elegeram presidentes e presidentas com propostas
mais associadas à esquerda (principalmente quando comparadas aos governos neoliberais que
os haviam antecedido).
Não obstante, Antunes faz duras críticas ao governo do PT, pelo fato de não haver
realizado uma transformação das políticas neoliberais em curso. Para o autor, o que ocorreu
foi uma conciliação de classes através de um agente extremamente hábil na mediação entre as
mesmas: Lula. Ao mesmo tempo em que perdia apoio de parte da parcela trabalhadora que o
apoiou para a presidência, o presidente Lula recebe o apoio de outra categoria, os
despossuídos de bens materiais e pauperizados, alvo de benefícios de políticas
assistencialistas (principalmente o Bolsa Família). O autor destaca o quanto os lucros dos
bancos, dos especuladores e dos rentistas da dívida pública aumentaram durante esse período
– pois, para manter a governabilidade, concessões ao mercado foram feitas, e o ônus recaiu
sobre o trabalhador.
Se o capital auferiu lucros exorbitantes neste período, pode-se indagar, portanto, por
que haveria necessidade de um golpe parlamentar e da deposição de uma presidenta que
assumiu, assim que reeleita, uma postura radicalmente contra sua própria plataforma de
campanha, onde defendia os direitos dos trabalhadores. Antunes argumenta que, após a crise
de 2008, o capital já não queria oferecer um mínimo de concessão aos trabalhadores.
Embora o governo PT tenha representado os interesses do grande capital especulador e
financeiro, chegou a um ponto no qual não havia mais interesse (ou necessidade) em uma
representação, mas uma atuação direta do capital sobre a organização política e econômica
brasileira. No pouco tempo que lhe coube (2016-2018), o governo brasileiro, encabeçado pelo
presidente Michel Temer, aprovou uma série de medidas parlamentares, sem respaldo popular,
sem discussões públicas prévias, afetando diretamente a população mais necessitada de
políticas públicas, como a PEC 55, que congela gastos públicos em determinadas áreas por 20
anos.
A quarta e última parte do livro, mais curta (composta apenas por dois capítulos), é
menos uma conclusão do que vimos, e mais uma proposta de ação. Desde a nota inicial,
Antunes deixa clara sua posição de não fazer deste livro um mero recurso para o produtivismo
acadêmico, e sim uma proposta política, embasada na discussão estabelecida até este capítulo.
Primeiramente, são elaborados dez desafios para a reorganização sindical frente aos
problemas levantados ao longo do livro. Todos os itens são, de alguma maneira, proposições
ou alternativas a aspectos discutidos em capítulos prévios, o que legitima o argumento do
autor de que, mesmo muitos dos capítulos sendo republicações, compõem uma obra coesa. O
tratamento dado para os capítulos se encaixarem no formato do livro contribui com uma
leitura contínua, embora vejamos, por vezes, análises e dados já citados em capítulos
anteriores.

Dentre as propostas, podemos encontrar a incorporação, pelos sindicatos, dos


trabalhadores e trabalhadoras precarizados (empregos intermitentes, por demanda, zero hour
contract), minorias sociais (que são alvos mais fáceis para uma maior exploração do trabalho,
como mulheres, imigrantes e negros), e trabalhadores de categorias recentes que não têm
histórico de sindicalismo (como telemarketing e indústria hoteleira). Essas propostas
mostram o quanto o sindicalismo é, para Antunes, uma via de organização dos trabalhadores e
trabalhadoras, ao buscar arregimentá-los, fortalecendo e unificando a categoria.

Ao mesmo tempo, mostra atenção para com as novas lutas sociais emergentes, ao
apontar as diferenças de exploração entre diferentes categorias sociais (como mulheres e
homens, brancos, negros e indígenas, etc). A incorporação destas parcelas ainda mais
vulneráveis é necessária para não tornar a luta sindical corporativista, e sim classista.

Por fim, afirma que o horizonte da luta é a superação do tripé “capital, trabalho e
Estado” (ANTUNES, 2018, p. 299). Estudando criticamente os insucessos das experiências
chinesas e soviéticas rumo a uma sociedade socialista, o autor aponta que não se pode separar
a luta social da luta política, que esta é uma distinção elaborada pelo capital. Essa articulação
implica realizar, de um lado, a luta econômica por meio dos sindicatos, e de outro, a luta
política por meio dos partidos.

O trabalho é um espaço privilegiado de luta não por uma razão apriorística metafísica,
mas porque é nele que se origina e se concentra a exploração do ser humano. Através de um
“resgate do sentido de pertencimento de classe”, das lutas no mundo do trabalho, é possível
alcançar os meios para a “construção de uma alternativa socialista de fato” (ANTUNES,
2018, p. 304). E esta proposta vale a pena ser considerada.

Referências

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do


mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2015.

___________. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São


Paulo: Boitempo, 2018.

___________. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2013a.

___________ (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 1. São Paulo: Boitempo,


2006.

___________ (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 2. São Paulo: Boitempo,


2013b.

___________ (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, v. 3. São Paulo: Boitempo,


2014.

MARX, K. O Capital: Crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do


capital. São Paulo: Boitempo, 2013

André Pereira de Carvalho é doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Minas


Gerais.

E-mail: andreu.pereira@gmail.com

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