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CARTOGRAFIA

DO PENSAMENTO
QUEER
CARTOGRAFIA
DO PENSAMENTO

QUEER
R A FA E L L E O P O L D O
2020 © Editora Devires
Cartografia do pensamento queer
Rafael Leopoldo

Editor | Gilmaro Nogueira


Revisão | Tadeu Sarmento
Diagramação| Daniel Rebouças

Imagem de capa cedida por Mateo Maté,


intitulada “Venus de Milo Doríforo”, 2016,
www.mateomate.com
(um especial agradecimento ao artista)

Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas Lima
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB
Prof. Dr. Leandro Colling
Prof. Dr. Djalma Thürler Universidade Federal da Bahia – UFBA
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Profa. Dra. Fran Demétrio Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB Afro-Brasileira – UNILAB
Prof. Dr. Helder Thiago Maia Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
Universidade Federal Fluminense - UFF Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Prof. Dr. Hilan Bensusan Prof. Dr. Marcio Caetano
Universidade de Brasília - UNB Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima Dr. Pablo Pérez Navarro (Universidade de Coimbra - CES/
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa Portugal e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil)
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa Faculdade de Educação
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB

CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

L587c LEOPOLDO, Rafael —

Cartografia do pensamento queer/Rafael Leopoldo. 1ª


ed./Salvador - BA. Editora Devires, 2020.

280p.; 16x23 cm
ISBN 978-65-86481-16-7
1. Filosofia contemporânea. 2. Teoria queer 3. Teoria Cuir
I. Título.
CDD 159.9 CDU 308.11
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA


www.editoradevivres.com.br
Esta cartografia é dedicada a algumas autoras e autores cuir
que serão as linhas iniciais de um próximo mapa: André
Musskopf, Berenice Bento, Guacira Lopes Louro, Larissa
Pelúcio, Leandro Colling, Pedro Paulo Gomes Pereira e
Richard Miskolci.
ODE ÀS (T) ALMAS
Por Alexander Brasil

Para todas as meninas assassinadas no Brasil,


e para João W. Nery,
in memoriam.
I
Betty topava tudo.
Topava 50tinha, chupetinha, arranhão,
de quatro, de oito, de graça.
[[de graça? nunca, nunquinha!]]
Ativa. Passiva.
Totalmente liberal.
Betty topava tudo.
Maricona, mariquinha, casal pseudo-hétero,
bicha casada, bicha solteira, bicha velha, bicha nova,
travequeiro, T-Lover, pornografia, pornochanchada,
estudante bêbado, transfóbico, homofóbico, Vidafóbico,
taxista machista, fetichista, sensacionalista,
cafetina louca, mona louca, mona de porre, drogadita, drogadona.
Tudo louca, devassa, travessa!
Todas perturbadas, assanhadas, destruídas,
todas Almas, todas Vidas, todas desgraçadas, açoitadas, marginalizadas.
Betty topava tudo.
Anticoncepcional, Perlutan, Androcur,
terapeuta, fonoaudiólogo,
silicone industrial, bundão, peitão, corpão,
cirurgião clandestinão, paraguayão,
bombadeira, agulha de crochê,
IST, AIDS, HIV,
aquendar a neca, fazer a chuca,
2 anos de SUS, 5 anos de SUS, 20 anos de SUS,
nome social, nome civil, nome da puta que pariu,
Pai filho da puta, Mãe filha da puta,
Irmão filho da puta, Irmã filha da puta,
Tio filha da puta, Tia filha da puta,
Avô filho da puta, Avó filha da puta,
Primo filho da puta, Prima filha da puta,
Sobrinho filho da puta, Sobrinha filha da puta,
Orfanato filho da puta,
Mundo filho da puta.
Betty topava tudo.
Avião, Tailândia, concurso de Miss,
vagina recém-feita, marido porta afora.
Betty topava tudo.
Rejeição
Suicídio
Sujeição
Agressão
Depressão
Assassinato
Betty topava tudo.
Betty topava com a Vida,
com o Amor, com o Ódio,
com Deus, com o Diabo.
Betty topava tudo.
Betty era Vida,
Betty era Poesia,
Betty era Betty
e não João
ou Ricardo
ou Pedro Henrique
ou Leonardo
ou Maykon
ou André
ou Daniel Ricardo Martins da Fonseca
ou qualquer outro nome
que não seja o dela
aquele que ela escolheu
[[horas e horas procurando em um dicionário de nomes para bebê]]
escolher um nome é nascer de novo
então
Betty era Betty
e Betty topava tudo.
SUMÁRIO

PREFÁCIO PARA UMA CARTOGRAFIA 11


O INÍCIO DO PENSAMENTO QUEER 21
PENSAMENTO QUEER 21
TEORIA E PRÁTICA QUEER 22
ATIVISMO GAY, FEMINISTA E QUEER 31
A (IN)TRADUZIBILIDADE DO QUEER 36

A TEORIA QUEER CONHECE A PSICANÁLISE 41


TEORIA QUEER E PSICANÁLISE 41
O TRONCO E OS RAMOS 42
ESBOÇO CRONOLÓGICO 43
FREUD E A HOMOSSEXUALIDADE 46
FREUD E O CASO DORA 49

A TEORIA QUEER E O DIREITO DOS ANIMAIS 55


ANIMAL QUEER 55
ESPECISMO E ESQUIZOFRENIA MORAL 58
O LUTO E A LINGUAGEM 65
A TRISTEZA DOS ELEFANTES 67
A TRISTEZA DOS URSOS 68
A BRINCADEIRA DOS ANIMAIS 70

A TEORIA QUEER E O PÓS-ESTRUTURALISMO 75


TEORIA QUEER E A FILOSOFIA FRANCESA 75
FOUCAULT: DISCIPLINA E BIOPOLÍTICA 77
BAUMAN: A CRIAÇÃO DO PERFIL E A POBREFÓBIA 84
DELEUZE: MÁQUINA SOCIAL CAPITALISTA 89
MÁQUINA SOCIAL PRIMITIVA 90
MÁQUINA BÁRBARA DESPÓTICA 93
MÁQUINA SOCIAL CIVILIZADA 96
DERRIDA: DESCONSTRUÇÃO, SUPLEMENTO E PERFORMATIVIDADE 103
DESCONSTRUÇÃO 106
SUPLEMENTO 109

GLORIA ANZALDÚA E O NASCIMENTO DA TEORIA QUEER 117


I WAS BORN A QUEER 117
A ESCRITA XAMÂNICA DE GLORIA ANZALDÚA 120
FALANDO EM LÍNGUAS 122

A TEORIA QUEER E O PENSAMENTO HOMOERÓTICO LÉSBICO 127


O PENSAMENTO LÉSBICO: WITTIG, RUBIN E RICH 127
MONIQUE WITTIG: PENSAMENTO HETERONORMATIVO 128
GAYLE RUBIN: SISTEMA SEXO-GÊNERO 133
SISTEMA SEXO-GÊNERO 134
PARENTESCO E HETEROSSEXUALIDADE OBRIGATÓRIA 136
ADRIENNE RICH: HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA 139

A TEORIA QUEER E O PENSAMENTO HOMOERÓTICO GAY 145


O PENSAMENTO HOMOERÓTICO: HOCQUENGHEM, PERLONGHER, SÁEZ E CARRASCOSA 145
GUY HOCQUENGHEM E O PÂNICO ANTI-HOMOSSEXUAL 149
HOCQUENGHEM COMO TEÓRICO QUEER 151
O PÂNICO ANTI-HOMOSSEXUAL 153
NÉSTOR PERLONGHER E O TROTTOIR QUEER 155
POST SCRIPTUM PARA A EDIÇÃO A RGENTINA 156
O QUE HÁ DE MASCULINO NA PROSTITUIÇÃO MASCULINA? 158
JAVIER SÁEZ E SEJO CARRASCOSA: AS POLÍTICAS ANAIS 162
PSICANÁLISE E ANALIDADE 164
A AIDS E AS POLÍTICAS ANAIS 166

A TEORIA QUEER E O FEMINISMO NEGRO 171


UMA OUTRA VOZ NO FEMINISMO 171
DEMOCRACIA RACIAL BRASILEIRA 177
OS HOMENS E AS MULHERES NEGRAS NO BRASIL 179
HELEIETH SAFFIOTI E O CAPITALISMO EM SIMBIOSE 185
CAPITALISMO EM SIMBIOSE: PATRIARCADO-RACISMO-CAPITALISMO 187
OS HOMENS E MULHERES CASTRADAS 188
PATRIARCADO-RACISMO-CAPITALISMO 193
O ESQUECIMENTO DA QUESTÃO RACIAL NO FEMINISMO 197
A NEUROSE CULTURAL BRASILEIRA 199

A TEORIA QUEER E O TRANSFEMINISMO 201


TRANSFEMINISMO 201
TRANS* UM FENÔMENO CONTEMPORÂNEO 202
A QUESTÃO TRANS* E A RELAÇÃO POLICIAL-HIV/AIDS 205
O FEMINISMO ANTI-TRANS* 208

JUDITH BUTLER E O GIRO PERFORMATIVO 211


JUDITH BUTLER E A TEORIA QUEER 211
CRÍTICA A REPRESENTATIVIDADE E A IDENTIDADE 213
O FEMINISMO E O QUEER: POLÍTICA PÓS-FEMINISTA 215
AS DRAG QUEENS E O GIRO PERFORMÁTICO 220
ABERTURA PARA O CAMPO ÉTICO 227

DONNA HARAWAY E O GIRO TECNOLÓGICO 233


DONNA HARAWAY E A TEORIA QUEER 233
O CIBORGUE E A DISSOLUÇÃO DO HUMANO 235
MANIFESTO CIBORGUE E O GIRO TECNOLÓGICO 243

PAUL BEATRIZ PRECIADO E A HISTÓRIA DAS TECNOLOGIAS 245


PAUL BEATRIZ PRECIADO E A TEORIA QUEER 245
PAUL BEATRIZ PRECIADO E A PRODUÇÃO TEÓRICA QUEER 246
O MANIFESTO CONTRASSEXUAL 249
O PODER FARMACOPORNOGRÁFICO 251
O BIO DRAG E O GIRO TECNOLÓGICO 257

TEORIA QUEER E AS MASCULINIDADES 259


SEJA HOMEM! 259
JAVIER SÁEZ: MASCULINIDADE E ANALIDADE 262
A CONSTITUIÇÃO DO MASCULINO PELO CU 265
JACK HALBERSTAM: MASCULINIDADE FEMININA 266
A MASCULINIDADE EM JAMES BOND E A SENHORA M 268

POSFÁCIO 271

BIBLIOGRAFIA 273
PREFÁCIO PARA UMA CARTOGRAFIA
Por Pablo Pérez Navarro

Quantos mapas, no sentido descritivo (geográfico) serão


necessários para absorver [esgotar] um espaço social, para
codificar e decodificar todos os seus sentidos e conteúdos?
Não é certo que se possa enumerá-los. Ao contrário: o não-
enumerável se introduz aqui, uma espécie de infinito atual
como num quadro de Mondrian. Não são somente os códigos
(legendas, convenções de escrita e de leitura) que mudam,
mas os objetos e objetivos, as escalas. A ideia de um pequeno
número de mapas ou de um mapa exclusivo e privilegiado,
só pode vir de uma especialidade que se afirma isolando-se.

Henri, Lefebvre, A produção do espaço.

Argumentava Henri Lefebvre que o espaço pelo qual os nossos corpos


circulam quotidianamente não seria um simples marco neutro, apolítico ou
prepolítico, um mero cenário onde o drama social acontece. Pelo contrário,
quando o geógrafo coloca a sua atenção no espaço, descobre que este já se
apresenta sempre como um produto, como o efeito de uma ordem social que
inclui desde os processos de acumulação do capital até a história da segregação
de classe, racial e, também, genérica e sexual nos modelos de planificação
urbanística.
Conforme o ponto de vista apresentado em La production de l’espace1, o
conjunto das representações do espaço, isto é, o fluxo dos dados contidos nos
guias turísticas, nos mapas de metrô, na realidade aumentada pelo Google Maps
ou na sexualmente investida pelo Grindr, não seriam, em última instância, um

1
Lefebvre, Henri, La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 11


elemento externo ao espaço representado. Aliás, formariam parte da história da
produção desse mesmo espaço, ou talvez, dos espaços da cidade e contra-espaços
da cidade enquanto tal. O mapa, desse ponto de vista, não é só um guia para
visitantes; faz parte, acima de tudo, do processo de constituição do território.
Seria impossível adentrar nas histórias e genealogias possíveis do queer com
uma pretensão meramente descritiva, asséptica ou simplesmente academicista.
Como contar essa história sem ser afetado pela história da politização do luto e
da raiva frente às necropolíticas da indiferença durante os primeiros anos da crise
do HIV espalhada na proliferação de ativismos que se estenderiam de cidade
em cidade através dos corpos, das mortes, das décadas e dos continentes? Como
fazer um mapa neutro dos processos de ressignificação da injúria queer desde
os Estados Unidos até o ativismo transpedegouine na França, o transmaricabollo
na Espanha, a teoria transviada2 no Brasil e o cuir em tantos lugares de fala
hispânica? Uma história objetiva da resistência das periferias negras e latinas
à organização heterossexual da sexualidade, do gênero e do parentesco, desde
as houses retratadas em Paris is Burning3 até as casas refúgio do ativismo
travesti nas cidades brasileiras? Como contar, impassíveis, a fragmentação dos
feminismos brancos e heterossexuais a partir da proliferação de feminismos
negros e lesbianos, latinos e chicanos, tanto nos Estados Unidos como nos
espaços híbridos das suas fronteiras com a América Latina? Como representar,
sem politizar a teoria, a história dos processos de tradução cultural entre as
filosofias da diferença francesa, a biopolítica e a desconstrução e os estudos de
gênero? Como manter, por último, qualquer ideal de cientificidade, na hora de
transitar as ambivalências entre um impulso crítico queer voltado a desestabilizar
hierarquias intra e interdisciplinares e a progressiva assimilação do queer pelas
lógicas mercantilizadas da academia neoliberal?
As dificuldades da tarefa parecem-me ir ao encontro das promessas
e, também, dos riscos inscritos nos projetos de reinvenção da cidade. Uma
cartografia do queer seria, talvez, impossível de afrontar sem assumir os mesmos
riscos envolvidos na ocupação de um centro social, na abertura de uma casa
trans, na decisão de acampar numa praça para transformá-la em contra-cidade
de protesto. Foi pensando nestes paralelismos que não pude deixar de lembrar,
enquanto lia esta corajosa, engajada, plural, pedagógica e, antes de tudo, pessoal

2
Assim a refere Berenice Bento em Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.
3
Livingston, Jennie, Paris is Burning, Off-White Productions, 1990.

12 RAFAEL LEOPOLDO
cartografia do pensamento queer apresentada por Rafael, nessa outra ação
cartográfica que foi o mapa da Red LGBTQI do metrô de Madrid4, desenhado
por Javier Sáez em 2018.
Partindo da pergunta “e se abicharmos, sapatonarmos, transgenerizamos
o metrô de Madrid?”, Sáez reinventou o mapa oficial do Metrô incluindo nele
os nomes daquelas pessoas, referências teóricas e contrassexuais que tinham
sido importantes em sua evolução como ativista e teórico queer, como urso
em armas contra os ditados da cidadania heterossexual. O mapa resultante —
que se difundiu por redes sociais até chegar, por improváveis caminhos, a ser
exposto em tamanho gigante na câmara municipal — parecia ser o mapa de uma
contra-cidade, de uma cidade outra, uma heterotopia que, como se do Up-side
down de Stranger Things, a Casa de Campo se convertesse no Cruising Casa de
Campo e cada uma das estações de metrô tivesse sido radicalmente queerificada.
Assim, algumas destas paradas faziam referência a coletivos emblemáticos
das políticas de ação direta que caracterizaram o ativismo queer que, também, se
faz referência nestas páginas, como Act Up em Nova Iorque de finais dos anos
oitenta, junto aos que os seguiram noutros lugares no começo dos noventa,
como La Radical Gai, em Madrid. Noutras linhas do contra-metrô encontravam-
se algumas das autoras cruciais do capítulo dedicado, nesta cartografia, ao
feminismo lesbiano, como Monique Wittig, que moveu os cimentos identitários
do separatismo lesbiano ao proclamar que “as lesbianas não são mulheres”5;
Adrienne Rich, responsável por um movimento de sentido contrário, com a sua
descrição do “continuum lesbiano”; ou Gayle Rubin, autora de alguns dos ataques
mais contundentes aos movimentos feministas pela abolição da pornografia.
Não faltam, nesta interseção entre o mapa de Javier Sáez e o de Rafael
Leopoldo, nomes imensos dos feminismos negros como Angela Davis, e dos
chicanos como Gloria Anzaldúa — esperta, justamente, nas intersecções
cartográficas e fronteiriças entre sexualidades e comunidades —, junto a alguns
dos autores do que aqui, atravessando geografias e temporalidades, se enquadra
como um “pensamento homoerótico”. Aparecem, assim, paragens do livro
dedicadas a Guy Hocquenhem, autor de Le desir homossexuel, queer avant la lettre
(“se não quisermos fazer dela um marco, deveríamos pelo menos citá-la como

4
Sáez, Javier, “Por qué un Metro LGTBIQ en Madrid”, Píkara Magazine, 26 de Junho 2017 (https://www.
pikaramagazine.com/2017/06/por-que-un-metro-lgtbiq-en-madrid/).
5
Wittig, Monique, The Straight Mind and Other Essays, Boston: Beacon Press, 1992, p. 12.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 13


um texto fundamental para a produção deste novo campo de saber”6); Nestor
Perlongher, pensador argentino das relações entre masculinidades e trabalho
sexual sob o impacto da AIDS; e Sejo Carrascosa, ativista queer e coautor,
junto com o próprio Javier Sáez, de uma revulsiva análise da desconstrução de
identidades nos espaços, ou melhor, nos orifícios da abjeção corporal, chamado
Pelo cu: Políticas anais7.
Ambas cartografias partilham também algumas paradas fundamentais para
as políticas trans, entre outros caminhos pela leitura das ambivalências da figura
da stone butch na obra de Jack Halberstam. Incluem também, como não podia
ser de outra forma, algumas estações especialmente transitadas, nas quais se
entrecruzam múltiplas linhas do metrô, e que aqui se apresentam como “pontos
de virada” da teoria queer. Judith Butler, como primeira virada, pela parte do giro
performativo, e Paul Preciado, pela parte de um giro tecnológico, aqui apresentado
em interessante continuidade com a obra de Donna Haraway. No centro da
contra-cidade imaginada por Javier Sáez aparece, finalmente, outro nome que
está, também, presente nestas páginas, o de Paco Vidarte, que nos deixou pouco
depois de publicar a sua Ética bicha8, na qual ressoam décadas de luta entre as
ruas e a filosofia e que continuará a nos interpelar através das décadas com o
seu intratável desprezo pela conivência com os mil rostos da opressão.
Estas interseções falam de alguns dos referentes que, provavelmente,
aparecerão em qualquer cartografia possível do queer. Outras muitas referências
podem resultar inegociáveis, talvez, só para eles. Este último elemento, se
quisermos, subjetivo, é parte do sentido de que a representação do espaço,
seja este físico ou teórico, nunca é, simplesmente, descritiva. Qualquer mapa
é sempre uma ocasião para perguntar onde fica tal estação, tal outro parque
de cruising, tal outra autora inesquecível? O que eu nunca deixaria de incluir
em nenhum mapa? Se existisse um mapa do pensamento queer que não fosse
necessariamente exploratório, pessoal e experimental, deixaria de funcionar
como mapa para se converter num triste cânon.
Escrever é abrir-se à interpelação e, nesse sentido, implica assumir uma
dose de risco. No caso da escrita dos mapas das periferias, das margens da
cidadania de bem, a decisão está politicamente marcada. Tratando-se destas, só

6
Leopoldo, Rafael, Cartografia do pensamento queer, p. 138.
7
Sáez, Javier e Carrascosa, Sejo. Pelo cu: políticas anais. Trad. Rafael Leopoldo. Belo Horizonte: Letramento, 2016.
8
Vidarte, Paco, Ética bicha, Trad. Cardellino Soto, P. e Selenir Nunes dos Santos, M. n-1 edições, 2019.

14 RAFAEL LEOPOLDO
existe um risco maior do que conceber, imaginar, desenhar mapas: deixar que o
façam por nós. Os riscos, neste último caso, o sabemos bem, são altos. Por não
sair do metrô de Madrid, como esquecer o modo que, durante a prolongação
sul-europeia da Primavera Árabe, foi combativamente renomeada, em cada um
dos mapas de cada uma das estações do metrô, a estação de Sol por “Acampada
Sol”? Como esquecer da violência simbólica que representou, um ano depois,
que a câmara municipal vendesse os direitos de nomeação ou, na linguagem
publicitária, os “naming-rights” da estação de Sol a uma grande companhia
privada, tornando cada um dos mapas do metrô um anúncio publicitário? Talvez
seja por isso que resultou tão catártico, frente à mercantilização de um pedaço
de história de uma luta coletiva, ver o nome de Paco Vidarte ocupar, pela sua
vez, o centro do mapa.
Não é por acaso que as “teorias queer” portam, no seu próprio nome, a
história de uma luta pela ressignificação do insulto, uma luta pelos naming-
rights das sapatonas, das travestis, das soropositivas, das bichas, das raras, das
precárias. A indeterminação do referente, inscrito no insulto queer, é um dos
motivos pelos quais este não é o nome de um movimento social que possa
ser descrito, colocado no vidro do laboratório acadêmico para ser dissecado,
as suas partes expostas e classificadas. De forma similar, queer também não
assinala um conjunto delimitável de teorias que possam ser simplesmente
reunidas, resumidas e sistematizadas. Talvez, uma das melhores descrições
possíveis para aquilo que este livro trata é, justamente, a que está implícita em
seu título. Queer é o nome de um lugar, um campo de estudos, uma proliferação
de espaços de resistência. Daí que a ideia de cartografia seja, entre outras coisas,
um convite a participar desta luta pela nomeação. O convite que Rafael oferece,
aqui é, como o era o mapa de Javier Sáez, amistoso, ciente de que, “apesar do
que proclama a retórica liberal, na verdade somos redes de relações, não de
indivíduos”. Provavelmente por isso as visitas às estações do metrô, de filósofos
como Michel Foucault, Gilles Deleuze ou Jacques Derrida, transcorrem com
leveza, livres do peso da pretensão de completitude ou sistematicidade, sem
perder o alvo de tratar a relação com o pós-estruturalismo a sério e não como
uma mera referência que completa uma página por vazio tecnicismo.
A propósito desta relação, contava Judith Butler em seu prefácio de 1999
para O gênero em disputa, que entendia que o seu trabalho “terminou por ser

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 15


um de tradução cultural”9 entre o pós-estruturalismo e os estudos de gênero,
fornecendo assim uma definição eficaz não só do seu próprio trabalho, como
do campo dos estudos queer ou, ao menos, de boa parte deste. O que aqui
Rafael refere como primeiro ponto de virada do pensamento queer, o “giro
performativo” é responsável, sem dúvida, por uma parte fundamental desse
exercício de tradução cultural. Seria, de fato, impossível pensar hoje os estudos
queer sem levar em conta a trajetória filosófica do conceito de performatividade
desde o pragmatismo de J.L Austin até o próprio Gênero em disputa, passando pela
desconstrução a que Derrida submeteu esta categoria e que tanto tem impactado
na crítica queer, ao essencialismo de gênero nas margens da teoria feminista.
Três décadas têm transcorrido já desde O gênero em disputa, e algumas
mais desde as críticas de Derrida da obra de J.L. Austin. Pretendia, este último,
em seu Quando dizer é fazer10, explicar que o mais interessante que podemos
perguntar sobre algo que foi dito não costuma ser se era verdadeiro ou falso,
tampouco, em um sentido mais geral, qual é a relação de representação que o dito
mantém com o mundo tal e como este é. Muitas vezes, o mais importante que
podemos perguntar é: o que aquilo que foi dito fez? De que forma transformou
o mundo tal e como este era? O poder filosófico desta mudança de foco residiu
em iluminar todo um espaço de pensamento sobre a linguagem ao perguntar
pelo efeito transformador, performativo, das palavras, no preciso momento de
serem ditas.
Querendo ou não, o conceito de performatividade veio para politizar
a filosofia da linguagem. Porém, Austin pretendia conter a sua concessão
pragmática da linguagem num campo facilmente delimitável. Austin e,
ademais, sucessores como John Searle, pensavam que poderiam determinar,
explicar e até enumerar as condições nas quais o uso de fórmulas tipicamente
performativas como “eu os declaro marido e mulher” converteria alguém, de
fato, no momento de ser dita, em marido ou esposa. A primeira condição,
entendia Austin, é que se tratasse de um contexto “sério”, de um casamento
“real”, e que a fórmula não fosse usada como parte de uma obra de teatro, ou
no contexto de uma piada, de um jogo, talvez. A partir daqui, com Derrida,

9
Butler, Judith, “Preface 1999”, Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity, New York and
London: Routledge, p. ix, 1999.
Austin, J. L., Quando dizer é fazer: Palavras e açã, trad. Marcondes de Souza, D., Porto Alegre: Artes
10

Médicas, 1990.

16 RAFAEL LEOPOLDO
a comoção política da performatividade na filosofia chegaria mais longe11.
Identificar as regras com as quais diferenciar o uso “sério” do simples jogo? As
condições que diferenciam o ato de fala real da sua representação? Sistematizar
as propriedades dos rituais sociais que garantem que aquilo que foi dito fizesse
o que fez? O modelo filosófico com que diferenciar a moeda falsa da real, a
citação do original? Mais do que uma crítica, Derrida despregou o seu riso
sobre o muro de contenção que Austin pretendia levantar frente a algumas das
consequências da sua própria forma de entender a dimensão performativa da
linguagem. À luz desse riso, o que Austin chamava seriedade se revelava, antes
bem, como uma piada escrita sobre outra piada. O uso sério da linguagem,
como anunciou Nietzsche, apenas uma cristalização histórica de um exército
de metáforas. A norma sancionada pelos rituais sociais, uma sedimentação
contingente, provisória, dos usos ditos “ilegítimos”. Tudo casamento, uma obra
de teatro, uma teatralização da legitimidade.
Foi este o duplo impulso crítico, o do pragmatismo de Austin e o de sua
desconstrução, o que Butler dirigiu contra a gramática social do gênero para
entendê-lo como algo que fazemos além de uma expressão de algum tipo
de verdade interior, histórica e independente das relações hierarquizadas e
heterossexualizadas entre os sexos. Assim, na linha aberta pela crítica à categoria
de sexo contra a qual autoras, como Monique Wittig, tinham lançado algumas
cargas de profundidade, a teoria da performatividade veio a questionar a
concepção do sexo entendido como ancoradouro biológico ou ontológico ao
abrigo de qualquer riso desconstrutivo. Não tanto para questionar que existam,
de fato, diferenças materiais entre os corpos, relacionadas com a biologia de algo
chamado sexo, mas para assinalar que a nossa compreensão deste, incluindo
o que aprendemos através dos paradigmas médico-científicos12, não pode ser
isolada sem mais da história social das relações entre os sexos nem do marco
linguístico em que se desenvolvem tanto estas como o próprio marco científico.
Desta forma, não só o gênero, mas o sexo passava a ser considerado como
um elemento a mais nesse conjunto sedimentado das normas, nessa corrente
histórica de recitações que Gayle Rubin chamou sistema sexo-gênero, Monique
Wittig, pensamento heterossexual e Judith Butler, matriz heterossexual.

11
Refereo-me aqui a Derrida, Jaques, “Assinatura Acontecimento Contexto”, em Limited Inc., Campinas:
Papirus, 1991. p. 11-37, 1977.
12
Como argumenta a bióloga Anne Fausto-Sterling em Sexing the Body: Gender Politics and the Construction
of Sexuality, New York: Basic Books, 2000.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 17


A teoria da performatividade de gênero se converteu, assim, num
acontecimento teórico capaz de provocar efeitos de ressonância de longo alcance
e que desestabilizam, ainda hoje, estruturas teóricas heterogêneas, muito além de
qualquer limite concebível da teoria feminista e dos estudos queer. Até o ponto
onde seria difícil entender uma parte do presente político se observássemos
as reverberações desta crítica através das décadas, incluindo as sinergias e,
também, as tensões entre ambos espaços políticos e teóricos, assim como os
distanciamentos críticos a respeito da própria teoria da performatividade.
Especialmente quando pensamos — como esquecê-lo desde o Sul da Europa
onde escrevo estas linhas, ou desde o Brasil onde escreveu Rafael as suas — os
“distanciamentos críticos”, por usar aqui um eufemismo, representados pela
involução autoritária numa já bastante precária arquitetura democrática.
Ou, noutros termos, das alianças entre o fundamentalismo religioso e o
neoliberalismo contra a influência de uma ameaça chamada “ideologia de
gênero”. A pergunta insinua-se, de certo modo, incômoda: seria acaso tão
virulenta a resposta das “novas” extremas direitas na ausência desse riso,
derridiana e butleriana ao mesmo tempo, que acompanha o luto pela unidade
moral do gênero, da escola e da pátria, nos usos contemporâneos da palavra
“gênero”?
A minha impressão, reforçada por signos diversos como caricaturas
vaticanas e pentecostais do conceito de gênero13, pela imagem queimada de
Butler em sua visita a São Paulo14, com o gênero convertido em “vórtex central
do furacão eleitoral brasileiro”15 e até os gritos da ministra Damares sobre cores
e crianças, é que não. Neste sentido, quero ceder aqui, seja por um momento,
ao academicismo de pensar que o que chamamos teoria queer ou, inclusive,
chamamos pós-estruturalismo, tem tido, de fato, o impacto político de um
alcance que estamos ainda longe de poder chegar a entender. Talvez, e é por
isso que celebro especialmente a importância aqui concedida à influência do
pós-estruturalismo na teoria queer, a filosofia ocupa, ainda, um lugar crucial
não só na hora de entender o mundo em que vivemos, mas, também, na hora

Ver Richard Miskolci e Maximiliano Campana, ‘“Ideologia de Gênero”: Notas Para a Genealogia de Um
13

Pânico Moral Contemporâneo’, Sociedade e Estado, 32, 573–91, 2017.


14
Comentada por ela própria em “Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil”,
Folha de São Paulo, 21 de Novembro, 2017 (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-
judith-butler-escreve-sobre-o-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml)
Marco Aurélio, Maximo Prado e Sonia Correa, ‘Retratos Transnacionais e Nacionais Das Cruzadas
15

Antigênero’, 18, 444–48, p. 444, 2018.

18 RAFAEL LEOPOLDO
de transformá-lo naquilo que este ainda não é. O sabem bem, entre outros,
aqueles que colocam na agenda neoliberal o ataque à filosofia ou, mais em geral,
à balbúrdia dos cursos de humanidades.
Felizmente, frente a qualquer tentação de culpar retroativamente Jacques
Derrida pela atual ofensiva anti-gênero ou de reduzir a teoria queer ao âmbito
de influência de Judith Butler, este livro traz bons antídotos. Entre outros
motivos, porque nele o impulso cartográfico se confunde, por vezes, para além
de qualquer metáfora, com a dimensão geográfica. Tal é, provavelmente, um dos
pontos mais estimulantes desta cartografia do pensamento queer. A diversidade
das fontes passa por autoras e ativismos estadunidenses, sim, mas, também,
francesas, argentinas, espanholas e brasileiras. As visitas de Rafael a estas paradas
da contra-cidade queer transmitem a paixão de uma relação pessoal sem por
isso perder uma importante dimensão pedagógica, no melhor dos sentidos do
termo. O conjunto de metáforas exploradas, os giros teóricos escolhidos, junto
com as referências trazidas da cultura pop, fazem com que as paradas deste
mapa fiquem ao alcance de um público do qual só posso esperar que seja tão
amplo como a proliferação de cartografias e mapas compartilhados e como o
afã de não deixar o mundo tal e como o encontraram.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 19


O INÍCIO DO PENSAMENTO QUEER

PENSAMENTO QUEER

Estamos diante de uma Cartografia do pensamento queer, assim, a


aproximação é, sobretudo, de um determinado espaço teórico filosófico e de
um determinado espaço geográfico para a criação de um mapa possível da
teoria queer. O nosso primeiro passo para esta abordagem é repassarmos as
condições de possibilidade do pensamento queer. Mesmo que a história do
pensamento queer seja recente — o seu começo geralmente é datado no início
da década de 1990 —, é sempre possível encontrarmos referências mais arcanas.
Todavia, somente faremos um recuo histórico quando totalmente necessário
para a contextualização do estudo, neste sentido, por exemplo, é viável uma
introdução à alguns elementos do saber psicanalítico e do pós-estruturalismo.
Desta maneira, o nosso marco teórico principal é a filosofia pós-
estruturalista, já que esses pensadores é que estavam em um diálogo importante
com os movimentos minoritários e, também, com os feminismos. Filósofos
como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Guy
Hocquenghem, este último um verdadeiro queer avant la lettre, produzem
toda uma ferramenta conceitual — o conceito entendido como ferramenta,
principalmente, com Foucault — que será usada de forma potente por diversos
pensadores e pensadoras que elaboraram e elaboram a teoria queer.
Depois de posta a relação da teoria queer com o pós-estruturalismo e com
a psicanálise, atingimos uma possível abordagem do início da teoria queer.
Neste momento, regressamos, sobretudo, até a pensadora Glória Anzaldúa para
compreendê-la como um marco forte do início da teoria queer. Posicionado
este início, a nossa aproximação do queer se dá de forma temática e histórica
diante de aspectos caros a esta reflexão. Estes aspectos são quatro correntes de
pensamento que trazem consigo as suas especificidades teóricas. Ei-las: 1) o
pensamento lésbico; 2) o pensamento homoerótico gay; 3) o feminista negro;

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 21


4) e o ativismo transfeminista. Todas estas correntes são, simultaneamente,
condições de possibilidade e linhas produtivas da própria reflexão queer.
Diante deste longo percurso teórico-geográfico, compreendemos dois
pontos de virada na história do pensamento queer, os quais são verdadeiros
paradigmas nos estudos queer, uma vez que reverberam em práticas e estudos de
uma gama enorme de estudiosos e estudiosas. Trata-se, assim, de sedmentações
reflexivas, envolvendo os pontos positivos e negativos de qualquer sedmentação.
O primeiro turning point se dá com a filósofa norte-americana Judith Butler
e o seu conceito de performatividade, desta maneira, chamamos este giro de giro
performativo. O segundo turning point desencadeia-se com a filósofa norte-
americana Donna Haraway e o filósofo espanhol Paul Beatriz Preciado — todos
os dois em aliança com Michel Foucault —, e o conceito de tecnologias, assim,
vamos chamá-lo de giro tecnológico.
Imediatamente posterior à apresentação desses dois giros, o último capítulo
é, exatamente, sobre a relação da teoria queer e as masculinidades. Uma temática,
às vezes, espinhosa para o feminismo padrão, pois trata-se de refletirmos, com
afinco, sobre as masculinidades — estas que ganham ainda maior força quando
pensamos a mudança de uma masculinidade dura, tal como as masculinidades
femininas. O queer se torna mais potente tanto com o pensamento de Javier Sáez
quanto o pensamento de Jack Halberstam. Desta maneira, acreditamos percorrer
as principais linhas da teoria queer, além de, em paralelo, sermos capazes de
produzir mapas teóricos para a consolidação e reapropriação diferencial desse
pensamento.

TEORIA E PRÁTICA QUEER

Uma teoria é exatamente como uma caixa de


ferramentas. Nada tem que ver com o significan-
te.... É preciso que sirva, é preciso que funcione.
Gilles Deleuze

Em seu livro Teoria Queer e Psicanálise, o sociólogo, tradutor e psicanalista


Javier Sáez começa a sua análise da teoria queer visando à palavra “teoria”,
uma vez que, tradicionalmente, no campo da epistemologia e da filosofia, o
termo “teoria” é compreendido como um corpus de conhecimento articulado

22 RAFAEL LEOPOLDO
e sistemático para explicar um objeto determinado de estudo. Ademais, tem-se
um método claro e uma linguagem formal que deve permitir uma análise, uma
verificação das proposições. Aplicado à teoria queer, o termo “teoria”, de acordo
com Sáez, seria no mínimo inapropriado.
Talvez devêssemos salientar que a teoria queer surge com outra linguagem,
não necessariamente acadêmica, que perpassa a fala de uma mexicana nos
Estados Unidos; um estrangeiro sem papeis16 em um trabalho precário num
país europeu; um jovem pardo discriminado por sua cor de cobre na Grécia;
um homem ou uma mulher negra compreendidos como hipersexualizados por
alguns franceses; a conversa de uma butch17 num bar de lésbicas na Argentina;
uma sapata masculinizada trabalhando como caminhoneira junto a diversos
homens nas estradas do Peru; uma drag queen fazendo uma performance
na boca do lixo ou em um grande cabaré na Alemanhã; uma bicha que é
olhada com estranhamento como se não houvesse lugar para alguém mais
afeminado; um puto nas avenidas de Belo Horizonte; homens heterossexuais
com masculinidades diversas de um machismo tóxic que entendem a sua
performatividade como única e verdadeira, e que deveria ser imposta de
forma compulsória; um grupo de lésbicas que se desvincula de um feminismo

16
Na Marcha das Mulheres de 2017, que teve como grande tema uma resistência ao presidente Donald
Trump, Angela Davis (uma das maiores expoentes do feminismo negro norte-americano) reafirmou em
seu discurso que “Nenhum ser humano é ilegal”, mote que remonta ao texto de mesmo nome, escrito por
Elie Wiesel. Há grupos que já têm uma rede internacional antirracista e, principalmente, que mantêm uma
preocupação política com os imigrantes, com a deportação. Esta declaração de Davis é interessante no sentido
de compreendermos como outros elementos passam a fazer parte do discurso feminista. Cita-se também as
guerras, a questão indígena, o racismo, a islamofobia, o antissemitismo, a misoginia, a exploração capitalista,
as mudanças climáticas etc. Ou seja, com Davis já encontramos um discurso interseccional (uma contribuição
para a teoria queer que parece ser especialmente dada pelo feminismo negro e sua relação com a raça, conforme,
as contribuições de Heleieth Saffioti, por exemplo). Outra ativista que deve ser citada é Janet Mock. Trata-se de
uma ativista transexual negra que apontou que a sua liberação está relacionada com a liberação das transexuais
latinas, das trabalhadoras do sexo etc. Aqui novamente existe uma tentativa da produção de discurso
interseccional, um discurso que entende as diversas formas de dominação em simbiose. Estes dois discursos
têm por trás de si uma longa jornada de políticas moleculares, de políticas transversais e questionamentos
queer. No Brasil, também, em 29 de setembro de 2018 houve uma grande Marcha contra o Fascismo – que
ganhou diversos contornos políticos, porém, não partidários –, marcha contra o fascismo, fascismo encarnado
na figura do político Jair Bolsonaro que nadou na onda conservadora brasileira do pós-junho de 2013. Tal
manifestação das mulheres unidas contra bolsonaro contou com dezenas e milhares de mulheres na liderança e
homens nas ruas com o mote – ligado à internet – de #Elenão que, por sua vez, teve ressonâncias fora do Brasil:
#Nothim, #Élno, #Paslui etc. Todavia, logo após a eleição de Bolsonaro como presidente houve uma onda
forte de violência contra as minorias e o mote que passou a percorrer a internet foi “ninguém solta a minha
mão”, mote que cria uma clara simbiose entre os afetados negativamente pelo inicial governo bolsonarista.
A palavra inglesa butch serve para nomear tanto as lésbicas masculinas quanto os homens excessivamente
17

masculinos. Algumas variações desta palavra são: bucha (México, Porto Rico), Buchera (México), Buch (Argentina).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 23


que se foca demais na identidade da “mulher” ou até mesmo das “mulheres”
como o único sujeito político do feminismo; um feminismo negro que passa
a compreender a sua posição social como não sendo a mesma posição de um
feminismo branco de classe média; uma transexual que compreende toda a
estrutura social no simples gesto de entrar em um banheiro público, etc. Sob
esses aspectos, surgem temáticas distintas de um feminismo mainstream, de
um feminismo padronizado, como a questão do lugar, da raça, da língua, da
classe, do desejo; o que hoje são conhecidos como os marcadores sociais  — que
envolvem toda a questão da interseccionalidade, dos poderes que são exercidos
com uma determinada simbiose — mas, que, do mesmo modo, abarcam até
mesmo uma produção metodológica que focaliza o íntimo do indivíduo, o
corpo compreendido como corpo político (e indiquemos que a política precede
a ontologia), o corpo compreendido como um campo de batalha, o corpo
entendido como um espaço tecnológico, como espaço biotecnológico. São estes
elementos que vão reverberar em várias metodologias queer, numa outra forma
de produção teórica: uma produção epistemológica claramente aberrante e
incômoda. Esta epistemológica queer parece fazer problemas, ou, encrespar a
todo o momento, já que parte de uma situação política onde há um desajuste
com a norma, seja ela uma norma social, ou ainda, uma norma epistêmica.
Não obstante, voltando para a questão do termo “teoria”, poderíamos
salientar também uma ambiguidade neste conceito, posto que a teoria queer
estaria mais relacionada com uma prática queer. Retornemos, então, para a
relação entre a teoria e prática, agora discutindo outras questões.
Geralmente, esta relação é tomada de dois modos: 1) primeiro, pensando
a prática entendida como a aplicação de uma teoria e; 2) segundo, pensando
a teoria como surgida e inspirada de alguma prática. Quando toda teoria está
paralisada, é preciso que a prática chegue com a força de uma represa que se
rompe para desestruturar tudo e mostrar novos caminhos já nos escombros. O
mesmo poderíamos dizer de quando há práticas labirínticas que tão somente
rodam sem sair do lugar, sendo essencial que a teoria chegue com a força
necessária para derrubar os muros. Trata-se de um uso estratégico da teoria ou da
prática quando as coisas começam a coagular. Não obstante, podemos encontrar
mais problematizações sobre a teoria com os filósofos Michel Foucault e Gilles
Deleuze, que nos oferecem uma terceira via mais factível para a compreensão
do pensamento e das práticas queer.

24 RAFAEL LEOPOLDO
Gilles Deleuze escreve a respeito de uma “ação de teoria” e “ação de prática”,
no sentido em que há uma multiplicidade de pedaços ao mesmo tempo teóricos
e práticos que, por sua vez, estariam longe de um corpus teórico, de uma
totalidade, de uma vontade metafísica de criação de sistemas fechados (como,
por exemplo, o sistema kantiano ou o sadeano). Deleuze e Foucault negam
também uma consciência representativa do intelectual: não se trata mais do
intelectual “maldito”, do intelectual “geral” que desvelaria um sistema e mostraria
para os demais as desigualdades. Ao contrário, eles entendem que as massas
têm um saber e que podem dizê-lo, sendo o intelectual entendido, logo, apenas
como o intelectual específico. Para Deleuze, Foucault teria ensinado com a sua
vida e os seus livros a “indignidade de falar pelos outros” (Deleuze, 2002, p.
268). Na corrente dessa afirmação, pensamos que a teoria queer está muito
mais próxima de uma ação de teoria que de um sistema fechado em si mesmo.
A própria filosofia de Deleuze, juntamente com Guattari, é sistemática; mas é
um sistema aberto, uma filosofia a-centrada, uma filosofia rizomática, de modo
que confiamos que o pensamento queer esteja mais próximo desta abertura,
deste a-centramento, deste rizoma, que de um sistema fechado, centrado
e arborescente, e com um desejo metafisico de chegar numa completude
apaziguadora.
A propósito, a palavra inglesa “queer”, primeiramente, possuía uma acepção
de insulto, e servia para nomear o extravagante, no sentido do que vaga fora
da normalidade. Trata-se dos e das incontáveis, dos e das descartáveis, dos
zeros econômicos, do subalterno, do imigrante, da louca, do louco, do mojado,
da chicana, do refugiado, do ladrão, do bêbado, do indigente, do pedinte, do
enfermo, do homossexual, da bicha, da lésbica, da sapatona, da travesti, da
transexual, do homem afeminado, da vida nua, do pobre, do estigmatizado, da
“ralé” e dos “batalhadores” (para pensarmos nos escritos de Jessé Souza e sua
obra A ralé brasileira), do “refugo humano” (para pensarmos nos termos do
sociólogo Zygmunt Bauman em sua obra Vidas desperdiçadas), dos de existência
“precária” (para pensarmos em Judith Butler, e sua obra Vidas Precárias), mas,
também, de nenhum deles, pois, como coloca Paul Beatriz Preciado, essa palavra
aparece como uma falha na representação linguística: nem isso, nem aquilo,
mas “queer”. Este é o primeiro espaço da palavra “queer”, o primeiro lugar do

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 25


seu jogo de linguagem18; o queer entendido como o abjeto, mas, acima de tudo,
como uma falha representacional.
Deste modo, encontramos uma perturbação, uma vibração no campo da
visibilidade, como se existisse algo de indiscernível no outro, que nos obrigasse
a marcá-lo de forma violenta mediante a injúria, tornando-o discernível como
sujeito abjeto, como sujeitado à violência do outro. Esse sujeito abjeto também
é rechaçado, principalmente, do espaço social e do espaço público. Algo de
inusitado acontece com o termo queer, porque ele foi apropriado de forma
diferente por aqueles que sofriam tais injúrias. O termo queer passa então para
um segundo espaço, para um segundo contexto e, sobretudo, para um segundo
jogo de linguagem. Essa apropriação da palavra queer se situa no contexto da
grande crise do HIV/Aids, no início dos anos 80 — mesmo que os elementos
do pensamento queer possam ser compreendidos em uma datação bem anterior
— onde houve forte estigmatização de determinados grupos sociais e um
ressurgimento forte de certos arcaísmos.
A AIDS se popularizou como a doença dos “quatro agás”: 1) homossexuais;
2) haitianos; 3) hemofílicos; 4) e usuários de heroína. Destes “quatro agás”,
três já eram caracterizados por uma marginalidade social, à exceção dos
hemofílicos, que acabavam sofrendo com a AIDS devido a transfusões de
sangue contaminado. Os outros grupos eram considerados responsáveis por
buscarem a enfermidade e a morte, posto que usavam o seu corpo de forma
distinta de uma heteronormatividade19, diversa de uma concepção religiosa.

18
Usamos neste momento o termo “jogo de linguagem” fazendo referência a um conceito da filosofia
da linguagem. Trata-se de, neste domínio, pensarmos a pragmática da linguagem – esta pragmática vai
influenciar John Austin e, ademais, a teoria queer, quando Judith Butler faz uma análise dos atos de fala
– o seu uso em diferentes contextos. Os “jogos de linguagem” remetem, sobretudo, ao filósofo Ludwig
Wittgenstein e suas Investigações filosóficas, e têm relação com suas elaborações sobre os problemas filosóficos
e linguísticos. Para Wittgenstein, não deveríamos procurar um uso geral da linguagem ou um uso abstrato,
mas olhar os casos concretos, valorizar a experiência da linguagem. A partir deste ponto, vamos salientar
dois momentos da palavra queer: 1) um uso primário, onde ela produzia o ser abjeto, ainda que com
uma determinada falha representacional; 2) e um uso secundário, onde ela foi reapropriada e positivada.
Vemos a linguagem no seu uso público – tanto a filosofia da linguagem de Wittgenstein como de Austin são
dialógicas –, e não em seu uso solipsista, individualista, ou ainda, estritamente mental (para uma introdução
a respeito da filosofia da linguagem ver, por exemplo, “As armadilhas da linguagem”, de Marcondes, 2017).
19
O termo heteronormatividade evidencia uma tendência de considerar as relações heterossexuais como uma
norma, e as demais formas de relações como desvios da norma. Todavia, esse termo colocaria em pauta a
heterossexualidade não como apenas uma questão sexual, mas como um regime político e normativo, onde
quem não estivesse nessa matriz heterossexual seria o indivíduo abjeto, o rechaçado. É claro que quem está
nessa matriz heterossexual tem determinados privilégios, de modo que bastaria que pensássemos os benefícios
sociais que produz uma união estável via casamento como a proteção do patrimônio nesse núcleo social.

26 RAFAEL LEOPOLDO
Pelo uso não “natural” do corpo (em se tratando dos homossexuais), houve
também a concepção de que a AIDS era uma “praga divina”, que limparia a
impureza da prática homoafetiva. Já os haitianos, por sua vez, tornaram a AIDS
endêmica segundo o senso comum, mesmo que a causa dessa endemia, em
grande parte, seja o turismo sexual norte-americano e uma política religiosa
contra o uso de preservativos, o que somente agravava a situação. Lembremos,
por exemplo, da política norte-americana do presidente Bush e o seu slogan na
África, chamado ABC, Abstinence, Be faithful and Condoms, “abstinência, ser fiel
e camisinha”. Em comparação, a política da ONU era mais efetiva, com a sigla
CNN, Condoms, Needles and Negociation, “camisinha, seringas e negociação”.
Quanto aos usuários de heroína, além do problema da AIDS, tais estigmas
estavam envoltos na própria concepção negativa que se tem do corpo do viciado,
onde ele é visto como execrável, corpo que deve ser eliminado ou reconstituído
de acordo com a norma, muitas vezes por uma internação obrigatória ou, quiçá,
uma internação compulsória20.
Diante de toda esta visão negativa que recai sobre esses grupos sociais
citados, também há uma resposta como, por exemplo, a criação, nos Estados
Unidos, do Gay Men’s Health Crisis, que tenta dar apoio à comunidade gay e às
pessoas afetadas. Outro grupo a ser aludido é o ACT UP, grupo de combate a
AIDS, que luta, entre tantos tópicos, pelo barateamento do valor dos remédios
e por um maior investimento em pesquisas a respeito da doença, além de
apresentar uma política contra o machismo e o racismo. O ACT UP tornou-
se referência para o movimento queer, pois apresenta uma micropolítica,
uma política molecular, um ativismo médico tão útil ao contexto da época,
que reverbera na atualidade em muitos grupos que foram criados a partir
desta experiência pioneira. Eles se apropriam dessa palavra para usá-la como
ferramenta de ruptura com a norma; uma ferramenta de ruptura a uma
sociedade normalizadora. A palavra queer passa, então, de um insulto — o
seu uso primário — para uma afirmação política — o seu uso secundário —;
torna-se uma resistência a um processo de forte normalização. Nota-se que,
neste momento, o jogo de linguagem mudou.

20
Em São Paulo, esse debate sobre a internação compulsória diversas vezes considera a medida
reativa, principalmente, ao que corresponde à área da Cracolândia. A argumentação principal é
que os “usuários de droga” – termo bem genérico – não teriam controle sobre seus próprios atos,
sendo necessário um “tratamento externo” (internação) para evitar determinada deterioração do
sujeito e, sobretudo, uma deterioração do ambiente social que muitas vezes envolve um processo de
gentrificação, relacionado à produção de um espaço limpo daquilo que se considera um dejeto social.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 27


Voltando o olhar para o contexto dos anos 80, podemos ver que a temática
queer não aborda somente o movimento homossexual, lesbiano, gay, etc. No
exemplo desse período, notamos, principalmente, um processo contínuo de
marginalização de determinados grupos. A teoria queer tampouco é uma teoria
homossexual, gay, lesbiana, dentre outros, ainda que aborde estes temas de forma
privilegiada. Até mesmo historicamente, esse saber surge contra um desgaste
e uma falta de representação de determinados grupos que se denominavam
gays e lésbicos. A “cultura gay” do final dos anos 80 já se encontra mais estável
e imiscuída ao mercado, pois já havia acontecido uma reestruturação, uma
axiomatização das manifestações dos anos 60 — os anos rebeldes, os anos loucos
— e dos anos 70 — os anos de chumbo, os anos em que o céu brilhava como uma
tevê sem sinal — ao redor do mundo. Desta maneira, um dos sentidos do queer,
no contexto norte-americano, é ser uma micropolítica pós-gay e pós-lesbiana,
entendendo este “pós” não como o que vem “depois”, mas, sobretudo, como
uma crítica forte a essas identidades.
Nas décadas de 80 e 90, encontramos fortemente o neoliberalismo e a
globalização — ambos irmanados frente ao comunismo e, posteriormente,
ao terrorismo islâmico; os mesmos inimigos da New Right21, “nova direita”,
norte-americana. Nesse período, havia uma tentativa forte de entrar em uma
sociedade heterocentrada mudando o seu comportamento, configurando-se
mais como uma tentativa de aceitação dentro de um sistema heterocentrado e
cisgênero, do que uma crítica profunda a estes sistemas ao se colocar como uma
diferença. Lembremos, também, que na década de 80, encontramos a criação de
uma subjetividade envolta no consumismo, na mídia de massa e no espetáculo:
a sociedade do espetáculo.
A respeito desta nova cultura gay, Javier Sáez afirma que “a grande maioria
das pessoas que formavam esta cultura gay eram homens brancos, de classe
média ou alta, com profissões liberais ou empregos estáveis, ou seja, uma espécie

21
A “nova direita” surgiu nos Estados Unidos na década de 70. Ela emerge de grupos fragmentados, como:
os entusiastas do livre mercado, os anticomunistas, antifeministas etc. Esse movimento, inicialmente
fragmentado, ganha uma determinada força política quando faz aliança com o protestantismo conservador,
com o conservadorismo econômico e social. Na década de 80, já encontramos uma “nova direita” forte
nos Estados Unidos e, ainda, uma “nova direita cristã”. A característica comum dos grupos de direita,
dos conservadores e direitistas, é um trabalho de identificação interna do grupo por meio de uma crítica
externa, de um inimigo ou vários. Tem-se uma crítica forte ao comunismo, ao feminismo, aos movimentos
pró-aborto e às políticas LGBT* em geral. Mais adiante, vemos essa direita incorporar o terrorismo como
novo alvo da agenda direitista. Dessa maneira, salientamos: mesmo que haja uma absorção da cultura gay
nos anos 80, há um forte movimento contrário, com políticas abertamente antigay e anti-minoritárias.

28 RAFAEL LEOPOLDO
de nova burguesia gay” (Sáez, 2008, p. 30. Itálico nosso), e havia uma gama de
pessoas que não se identificavam com suas premissas, como, a título de exemplo,
uma variedade de lésbicas, sapatonas, travestis, transexuais, negros, latinos,
desempregados, dentre outros — todos geralmente com problemas de inclusão
social e um grande número de grupos de pessoas com uma sexualidade diversa
da relação “homem gay com homem gay” que, ademais, não se identificavam
com essa nova cultura que se estabelecia diante de um novo sistema econômico.
Enfatizar esse dado é importante a medida em que o pensamento queer
vai perpassar essa recente configuração que envolve o feminismo, as diversas
desistências, esses sujeitos que não se veem representados e que, por sua vez,
vão interpelar esses saberes que já estavam impregnados com uma crítica social.
Leandro Colling afirma que pensamento queer é um “racha” com o feminismo.
Diaríamso também que é um racha com o movimento gay e sua ossificação,
embora conserve muito dos seus elementos e tente novas conexões com ele,
outras formas de aliança. Sobre este aspecto, é sintomático que o livro “Problemas
de gênero: feminismo e subversão de identidade”, de Judith Butler (considerado
um dos livros capitais para a teoria queer) tenha a problemática da “mulher”
como sujeito do feminismo já no primeiro capítulo. O pensamento queer vai,
de diversas formas, aprofundar determinadas críticas do feminismo (às vezes,
surgindo de forma interna), apontando para o fato de que há saberes vindos de
alhures, de outras partes, de outros lugares, de outros espaços, das margens, das
fronteiras e com saberes fronteiriços. Esse sujeito sem identidade (ou que tenta
se des-identificar), sem visto permanente, e que entra no território feminista
aprofundando-o, é o queer.
Em outras palavras: um número considerável de pessoas não se identificava
com o estatuto da cultura gay. Paul Beatriz Preciado chega a alegar que a teoria
queer é pós-identitária, ao passo em que se coloca em uma posição crítica frente
às normas heterocentradas, chamando atenção à normalização e à exclusão
que acontece até mesmo dentro do seio da cultura gay e lésbica. O queer, ante
isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um
questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de
naturalização e normalização. Pensando nesse dado, é preciso que determinados
grupos escutem essa outra voz que é o queer, essa voz que, inexoravelmente,
chegou em dado momento a interpelá-los, não se tornando apenas uma temática
de seus colóquios. O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e
propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 29


Todavia, as micropolíticas não podem se deixar criticar, de modo que, na
teoria queer, há certa lembrança da Revolução Cultural Chinesa22 no sentido de
que é preciso explodir o próprio quartel, não só criticar o fora, mas o dentro;
as próprias entranhas devem ser questionadas, modificadas e transfiguradas.
Trata-se de operar a si mesmo na total adversidade, como fez o médico Leonid
Rogozov, em 1961.
Outro fato é que estamos aqui expandindo o termo queer para uma variedade
de invisíveis sociais, ou ainda, para a criação de um simulacro, a criação da
diferença. Atingiremos até mesmo a uma perspectiva menos antropocêntrica,
ao pensarmos o animal queer, pois de fato há uma animalidade queer enjaulada,
uma animalidade queer encarcerada, uma animalidade queer aprisionada. A
fim de radicalizarmos, há uma vida secreta dos objetos e seus poderes mágicos
que é deixada de lado — para uma recuperação desses elementos vamos até
a técnica xamânica; para escutarmos os chamados (como já salientou Glória
Anzaldúa) de toda cultura ameríndia, que poderia ser elucidativa neste ponto.
Sobre todas as práticas de si ameríndias, ver Leopoldo e Starling, até chegarmos
ao hilozoísmo, que é ignorado por uma história que valoriza a matéria e a
forma, ou melhor, o sujeito despótico transformando a matéria subserviente, o
sujeito despótico diante do corpo dócil — lembraremos mais à frente da análise
que Michel Foucault faz destes corpos emudecidos, destes corpos docilizados,
e uma ortopédica — o sujeito despótico diante da matéria servil, a matéria
transfigurável e inanimada.
Tentemos fazer esta aproximação ao queer sem perder a particularidade
da experiência do ser humano e não humano, de cada subjetividade e da
própria experiência queer. Deste modo, agora voltaremos cuidadosamente
à particularidade dessa palavra, para pensarmos sua (in)traduzibilidade e o
surgimento dos grupos e do pensamento que se autodenominam queer, apesar
de todo o excesso de significação que a palavra carrega. Talvez por causa de
tal excesso, ela ainda continue possuidora de determinado vigor, até em países
em que a língua materna não seja o inglês e o verbete perca um pouco de seu
conteúdo, do peso forte da sua injúria. A ideia é que, participando de outros
jogos de linguagem, o termo se adorne com outros elementos, travestindo-se

22
Reafirmamos que se neste momento ativamos a Revolução cultural chinesa o intuito é tão-somente
remontarmos determinada crítica a si mesmo, criticarmos as nossas próprias linhas duras e fazer uma apologia
a um fervor revolucionário. Todavia, deixamos de lado a violência deste movimento e as suas neuroses.

30 RAFAEL LEOPOLDO
de outra forma. Quem sabe essa palavra fique ainda mais interessante quando
perde o rumo da sua casa, tornando-se um pouco mais drag queen; arrastando-
se, naturalmente, por outros caminhos e por outras relações.
De qualquer maneira, voltamos agora para outros aspectos do ativismo gay,
do feminismo e do queer; logo depois, seguiremos aos seus desdobramentos,
principalmente, no que concerne ao saber filosófico e suas relações com a
produção deste mapa que nos é proposto.

ATIVISMO GAY, FEMINISTA E QUEER

Gay é uma palavra respeitosa, tolerável.


Queer não, queer é um insulto.
Javier Sáez

Para sugerir um preâmbulo à teoria queer, precisamos de um ponto inicial


que não seja escolhido a esmo e, mais crucial ainda, que não seja de todo
arbitrário. Em nosso caso, este início tem uma data e um lugar muito precisos,
ainda que, mais à frente, deixemos esta estreia mais complexa, salientando outros
ambientes, teóricos e práticos, na produção acadêmica, e também na militância,
na micropolítica, no espaço molecular e nas políticas transversais. Por ora, trata-
se de salientar o dia 28 de junho de 1969, em Nova Iorque. Imaginemos aqui
em um bar de gays, bichas, travestis e drag queens (além de outros e outras que
seriam considerados estranhos): o Stonewall Inn.
O Stonewall Inn foi oficializado como um monumento histórico no dia 24 de
junho de 2016. Estranhamente, esta oficialização vem junto com uma perda de
potencialidade que havia naquele bar. O escritor e artista chileno Pedro Lemebel
afirma que essa “Lourdes Gay”, esse “Altar sagrado” que é o Stonewall Inn, não
teria as cores de um arco-íris, mas seria demasiado branca. Para entendermos
essa branquitude, bastaria entrar no bar e compreender que “a maioria é clara,
loira e viril, como nessas cantinas de filmes de cowboy. E se por causalidade
há algum negro ou alguma bicha latina, é para que não lhes digam que são
antidemocráticos” (Lemebel, 2000, p.64). Lemebel já procurava, neste momento,
outros lugares, outros bares, outros territórios existenciais, buscando diferentes
potencialidades, distintos ambientes em que a alma latina aparecesse com todo
seu território musicalizado e o seu refrão.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 31


Todavia, iniciarmos por esse ambiente tem suas vantagens. Salientaremos
dois motivos para nosso ponto de partida ser um lugar que foi um espaço de
contestação e hoje é um cartão-postal, que foi um espaço de alegria e hoje
contém tristes adornos mercantis, que foi o espaço de uma revolução molecular
e hoje é berço de um turismo23 gay, um turismo no sentido que Hakim Bey dá
à palavra turismo; vinculando-a ao afã do mercado e à impossibilidade de uma
experiência. De todo modo, voltamo-nos para estes dois motivos que seriam
positivos para uma cartografia do pensamento queer: 1) a libertação gay; 2)
a saída de um referencial médico-psiquiátrico do final do século 19. A partir
daqui, podemos adentrar no assunto pensando eventos mais próximos e, de
fato, uma história recente do pensamento queer. No mesmo ano da revolta de
Stonewall Inn, por exemplo, já estamos imiscuídos na Era farmacopornográfica
(que será abordada quando analisarmos o pensamento de Paul Preciado e o giro
tecnológico no pensamento queer). Assim, cabe esmiuçar os pontos apresentados
para a nossa aproximação da ponderação queer.
O primeiro ponto é analisar por que, a partir dos conflitos no Stonewall
Inn, houve a “libertação gay” como, também, a criação de uma determinada
“identidade gay”. Este evento deve ser entendido. O segundo ponto diz respeito
ao fato de que, quando pensamos este conflito como um marco, podemos sair
da referência a uma “homossexualidade” que remonta, principalmente, ao
discurso médico-psiquiátrico do final do século 19. Neste sentido, para não
fazermos um percurso a respeito da questão médica, da questão psiquiátrica
e psicanalítica, vamos pensar o ano de 1969 — juntamente com todas as suas
revoluções moleculares e o surgimento da era farmacopornográfica — como o
nosso primeiro marco (que não se trata do único). Entendemos o pensamento
queer como rizomático e não como uma estrutura arborescente. Tomando as
revoltas de Stonewall Inn, estamos mais perto do queer que é pós-homossexual
— pensemos na questão médica e psiquiátrica, — e pós-gay — e sua relação
com o mercado e o neoliberalismo, o capitalismo e sua axiomática, que codifica

23
Ver, por exemplo, o texto de Hakim Bey chamado Superando o turismo onde o autor aponta que o
turismo procura cultura, exatamente, porque a própria educação se tornou uma preparação para o
trabalho e o consumo. Hakim Bey relaciona o turismo com a guerra, com o terrorismo, com a Era da
mercadoria, mas, ele propõe a Era do presente, da reciprocidade, do dar e receber. Seria melhor, então,
procurar outros lugares como no caso de Lemebel, procurar outros bares, o não-oficial, o não-
monumento, o não apropriado pela máquina social capitalista no seu processo de axiomatizar os fluxos.
Trata-se, então da arte da viagem dos sufis, os místicos do Islã, os não guerreiros, o puro nomadismo.

32 RAFAEL LEOPOLDO
todo o socius como uma mão que libera o fluxo, embora, com a outra, axiomatize
dentro do capitalismo.
Torna-se notável, também, a carga semântica da palavra “homossexual”,
da palavra “gay”, e outras que serão usadas no decorrer deste livro. E se não
empregarmos uma mesma palavra para a experiência homoerótica é porque, ao
colocá-las em determinados contextos, produzimos deslocamentos históricos
que sugerem mutações importantes dessa experiência que é definitivamente
multifacetada.
No dia 29 de junho de 1969, entram no Stonewall Inn alguns policiais
uniformizados e outros não. Estas batidas eram comuns nas décadas de 50
e 60, pois havia ainda, além do preconceito, todo um sistema jurídico anti-
homossexual. Assim, os policiais acostumavam sempre anunciar que estavam
tomando o local. Contudo, cansados de tanta opressão, alguns frequentadores
começam a revidar as batidas policiais que se tornavam cada vez mais comuns
e agressivas. Portanto, a primeira revolta e forma de política nesse ambiente
se trata de um questionamento visceral do poder policial24, do poder estatal.
Na porta do Stonewall Inn as pessoas passam gritando gay power. O confronto
direto entre gays, lésbicas, travestis, drags, transgêneros e a polícia era quase
inevitável e, nesta precisa conjuntura, inicia-se a revolta de Stonewall Inn. No
dia seguinte, mais pessoas vão ao bar. No terceiro dia, cerca de 100 mil pessoas
tomam as ruas de Nova Iorque. Neste momento, temos o marco do movimento
gay norte-americano que vai reverberar nas políticas LGBT* e na constante
reinvindicação por direitos.
Contudo, ainda que a revolta de Stonewall Inn seja um catalisador do
movimento gay, ela não é suficiente para a compreensão de uma “identidade gay”.
Para sermos mais precisos, no contexto norte-americano, salientemos diversos
outros movimentos sociais dos anos 60 como, por exemplo, a contracultura,
o movimento afro-americano, o movimento psicodélico, os hippies, o
antimilitarismo, a nova esquerda, e, ademais, os feminismos em sua importante
pluralidade. Todos estes movimentos formam um cenário onde é possível uma

24
Compreendemos a revolta de Stonewall Inn como, primeiramente, uma revolta contra o poder policial. Vamos
evocar mais à frente tanto o filósofo Michel Foucault e sua análise das prisões quanto a filósofa feminista Angela
Devis e, também, a sua abordagem da questão carcerária é importante de ser lembrada, assim, compreendemos
como a questão policial, a questão estatal desde o início envolve a teoria queer, perpassa as políticas moleculares,
a transversalidade. Todavia, é claro que a revolta de 1969 não vai ter como eco tão-somente a questão carcerária,
por isso, enfatizamos, principalmente, a formação de uma identidade gay, de um modo gay de se viver.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 33


articulação entre as pessoas e a criação de um discurso mais político. Javier
Sáez aponta que estes movimentos nos Estados Unidos, na Europa, na Austrália
e na América Latina vão “afirmar a identidade gay como algo positivo e vão
denunciar aquelas instituições que haviam marginalizado e patologizado a
homossexualidade: médica, psiquiatria, psicanálise, direito, religião” (Sáez, 2004,
p.28-29). Neste momento, há um distanciamento da conotação do homossexual
para a entrada do gay como uma identidade positiva.
Não obstante, poderíamos citar um duplo acontecimento com relação a
esses movimentos de libertação, especialmente, ao que concerne à comunidade
gay — que tem relação com a crítica queer. O primeiro evento é que, diante
do relativo sucesso da comunidade gay no final dos anos 70, começa a surgir
quase que um gay way of life no sentido de uma prática de vida cada vez mais
padronizada que determina, além de tudo, o surgimento de bairros gays. O
segundo acontecimento diz respeito ao fato de, quando o capitalismo passa
a captar esses fluxos, a codificar esses espaços, surge uma série de produtos e
mercadorias para o consumo de gays e de lésbicas, todo um pink money para
incrementar este gay way of life. E tanto a produção de um estilo de vida quanto
a sua comercialização refletem em alguns coletivos, em algumas militâncias. Essa
axiomatização determinada pelo capital não produz somente uma integração
via capitalismo, mas leva consigo uma forma de eclipsar um conjunto de outros.
É como se a luta pela libertação gay perdesse a sua força ao aderir ao mercado,
ao entrar em uma sociedade heteronormativa e cisnormativa.
Esta nova cultura gay passa a se constituir de homens e mulheres brancas, de
classe média e com os seus empregos estáveis. Entretanto, é necessário lembrar
de algo fundamental posto no segundo tomo d’O anti-Édipo, de Gilles Deleuze
e Félix Guattari, onde asseveram que o homem branco ocidental não existe de
forma individualizada, ou seja, podemos encontrá-lo somente como um fato
majoritário, como um modelo da maioria. Deste dado compreendemos que cada
um é, de certo modo e grau, uma minoria. Não obstante, não se trata de dizer que
tudo é a mesma coisa, mas, sobretudo, de declarar que é o ser — ser branco, ser
mulher, ser negro, ser índio, etc — que abarca um modelo majoritário, por isso,
na filosofia deleuzo-guattariana é tão importante o devir — o devir mulher, o
devir negro, o devir índio, etc. O devir muda a perspectiva do próprio ser, isto é: a
do fato majoritário. A filósofa Márcia Tiburi (2018), ao discorrer sobre o homem
branco, por exemplo, afirma que se trata de “uma metáfora do poder, do sujeito
do privilégio, da figura autoritária alicerçada no acobertamento das relações

34 RAFAEL LEOPOLDO
que envolvem os aspectos gênero e raça, sexo e classe, idade e corporeidade”
(p. 41). São estas noções que tomamos aqui como referência ao homem branco.
De qualquer forma, lembremos que uma mulher ou um homem branco
podem ser reprimidos pelo patriarcado; no entanto, eles podem exercer,
de forma consciente ou não, um poder racializado sobre os demais grupos.
Lembremos que esta mulher e este homem branco podem reprimir ou serem
reprimidos de acordo com o lugar, com o espaço em que eles vão estar, que
pretendem perpassar. Por exemplo, se um indivíduo branco de classe média
no Brasil pode exercer um papel opressor sobre uma gama de outros tipos, este
mesmo indivíduo pode sofrer preconceito por sua origem latino-americana nos
Estados Unidos ou na Europa. Com esses dados, afirmamos que, mesmo esse
indivíduo branco pode sofrer preconceitos; contudo, neste momento, trata-se
de compreender que há uma variedade de pessoas que não se reconhecem como
gays padronizados ou num feminismo ossificado. Falamos dos já citados zeros
econômicos, do subalterno, do imigrante, do mojado, da chicana, da bicha, da
sapatona, da butch, da lésbica negra, da transexual, do transexual, dentre tantos
outros e outras.
Há um rol de pessoas em uma situação econômica diversa daquela
comunidade gay e, ainda mais, de uma sexualidade que não se refere tão somente
à relação “homem gay com homem gay” em uma relação estável e monogâmica.
Estes que estão fora dessa comunidade gay são, de fato, o queer naquele momento
— aqueles que estão envoltos não só em uma luta por libertação sexual, mas,
sim, em uma luta devido à sua posição geográfica, linguística, social, econômica;
à sua própria vida, enfim, em cada um dos seus elementos. A produção queer
vai ler os seus próprios corpos políticos dentro da sua complexidade.
E se mesmo diante dessa inclusão dos gays no capitalismo e num sistema
heterocêntrico, eles não estão livres dos preconceitos, dos olhares de condenação,
da censura externa e, às vezes, de uma censura interna; se não estão livres (ainda)
das injúrias que escutam, das piadas contadas de forma que chegam à exaustão;
se não estão livres da homofobia generalizada que perpassa os mais próximos
(os familiares) até os mais distantes (o olhar do desconhecido), e se tudo isso
ainda acontece hoje com os gays de classe baixa de forma feroz e, até mesmo,
com o gay de classe média de forma mais amena e velada; se todos esses casos são
assíduos e comuns, então passemos a conceber, passemos a imaginar, passemos
a pensar, passemos a refletir de forma mais aguda sobre o que é o queer e o seu
rechaço, o que é o queer e tudo que ele envolve. No entanto, pensemos não

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 35


somente no rechaço que ele pode causar, mas em sua força produtiva, em sua
força combativa, na guerrilha do dia a dia, em sua agressividade estética, em sua
performance ao ar livre e, principalmente, em seu poder de ser esse simulacro,
de ser essa diferença. Não por acaso, o ator drag queen será um corpo muito
mais político que o corpo gay no final da década de 60, no final dos anos loucos.
Os corpos invisíveis já estavam se construindo nos ambientes mais escuros, os
corpos invisíveis já brilhavam nos bares mais sujos.

A (IN)TRADUZIBILIDADE DO QUEER

Sorry. Ser bicha não basta para ser “queer”: é


necessário submeter a sua própria identidade à
crítica.
Paul Beatriz Preciado

Para especularmos o problema que encontramos na palavra “queer” e sua


(in)traduzibilidade, gostaria de propor primeiro alguns aspectos do que é o
próprio ofício do tradutor. Todos estes aspectos são relacionados à própria
etimologia da palavra “tradução”. Levamos em conta uma possível interpretação
do significado etimológico, tanto na derivação latina da palavra quanto em sua
significação quando pensamos o árabe.
Outro dado passível de reflexão é que a tradução não envolve tão só a
substituição de uma palavra por outra palavra correlata, fazendo a ponte entre
duas línguas diferentes. Um fator crucial para a tradução é a cultura. O contexto
cultural será importante no que diz respeito à palavra queer, pois ela pode tanto
ter uma força como insulto em um contexto quanto, também, perder o seu peso
em outro ambiente. Quem sabe seja viável multiplicar a experiência do queer
com as palavras que lhes são caras, que lhes atravessa e transmuta o corpo, que
produz efeito, que tenha uma verdadeira — e sentimental — significação, uma
inscrição na própria pele.
Tomemos uma escritora que pode ser facilmente considerada como queer:
Gloria Anzaldúa. Esta autora se compreende como mestiça, entre a fronteira do
México e o Texas, e, em sua obra, passa a escrever tanto em inglês quanto em
uma variedade do espanhol — estamos diante da problemática da língua maior

36 RAFAEL LEOPOLDO
e da língua menor, como abordam Deleuze e Guattari. Não obstante, traduzir
Gloria Anzaldúa exigiria o conhecimento das variações do inglês e do espanhol
usuais da autora, mas, ainda, a força, o peso das palavras e, para completar, a
gama de fatores culturais que envolvem sua produção. Cito-a, porque ela tece
alguns comentários úteis sobre o termo “queer” que abordaremos mais adiante,
além de representar, nesta pesquisa, o tópico de todo um capítulo sobre o começo
da teoria queer. Por ora, retornemos à nossa palavra principal e às duas imagens
da tradução que sugerimos. Trata-se de dois pontos de explicação a respeito
do assunto.
Quando nos deparamos com o termo “queer” visualiza-se, de imediato,
um enigma de tradução. Existem muitas formas de compreender o que é uma
tradução e uma que pensamos ser interessante aqui, nesta nossa dobra teórica, é
aquela que remete à própria etimologia da palavra. A palavra “tradução” vem do
latim transfere, que significa “cruzar uma fronteira”. Podemos pensar o tradutor
como um traficante semiótico, um mojado bilíngue, uma chicana poliglota, um
sans-papier multilíngue. Esta é uma imagem espacial que nos sugere o tradutor
como aquele que leva e traz significados por entre as fronteiras. O tradutor é
aquele que perpassa uma língua e outra, traficando significados. Esta imagem
seria falsa se produzisse uma ideia de que o objeto linguístico seria o mesmo nos
dois lados da fronteira. Exatamente por isso, é crucial dizer que, ao atravessar
a fronteira, o objeto linguístico perde ou ganha um determinado valor, como
toda mercadoria traficada não é a mesma ao longo do seu percurso.
No entanto, se formos a outras fontes, em outros lugares, para pensar
a tradução, encontraríamos outra possibilidade interpretativa da função do
tradutor e sua relação com o texto e o contexto. No árabe, a palavra para tradução
é tarjama, que deriva da palavra biografia. Lembremos que os árabes foram
os tradutores da cultura grega, ou seja, eles tiveram uma relação forte com a
preservação de toda a cultura ocidental e o seu desdobramento. Com eles, temos
outra imagem do que é a tradução. Neste momento, o tradutor não é aquele que
leva algo de um lugar a outro, mas alguém que conta uma história, uma história
de vida, a vida grafada no papel (bio-grafia). Gostaríamos de pensar, além disso,
em uma zoografia da reflexão transviada; com ela, estaríamos mais próximos de
uma política cuir dos trópicos, mais próximos de uma grafia, também, do não-
humano, dos cheiros, dos fluídos, dos poros, dos gritos, dos grunhidos que o
queer faz transbordar, que o “querer” (como parece preferir Richard Miskolci) faz
transbordar. De qualquer forma, quando meditamos a fundo nesta etimologia,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 37


salta aos olhos a compreensão do papel do tradutor como uma pessoa mais ativa
no seu processo, que remonta aos contadores de histórias. Trata-se, talvez, de
contar mil e uma histórias, e — por que não? — de ser possuído por mil e um
espíritos: produção de mapas teóricos.
Nessas duas imagens, seja na que remete à sua etimologia no latim ou ainda
à biografia na cultura árabe, o que pretendemos salientar é a não-neutralidade
do tradutor, já que alguma coisa muda, mesmo que tentemos nos ater a uma
fidelidade canina, uma fidelidade de Argos. Tomemos outro exemplo, agora o
da ativista Zoe Leonard. Ela tem um texto chamado “I want a dike for president”,
datado de 1992. Gostaríamos de pensar na tradução da palavra “president”. Javier
Sáez elaborou uma tradução deste texto para o espanhol da seguinte forma
“Quiero una bollera para presidenta”, e no decorrer dele usa tanto o feminino
quanto o masculino. Também encontramos traduções do artigo citado no Brasil.
Na tradução de Yuri Kotke — e de alguns outros — o título é “Eu quero um
presidente sapatão”. Interessante é que esta tradução é anterior ao governo da
primeira presidenta no Brasil, Dilma Rousseff, que em seus pronunciamentos
adotou a palavra presidenta (no feminino), o que causou um irônico desconforto
em algumas pessoas, desconforto misógino, desconforto machista e, também,
um desconforto linguístico. Outras traduções também são conhecidas, por
exemplo a intitulada: “Quero uma sapatão para presidenta”. Neste momento, o
texto de Zoe Leonard ganha ainda mais força no contexto brasileiro, sobretudo
quando focalizamos o machismo que a presidenta sofreu em seu governo, até
ele ser interrompido pelo golpe branco (a respeito de uma análise do golpe, ver,
sobretudo, Souza, 2016), causando seu impedimento como chefe de Estado.
Neste caso, podemos ver como um contexto cultural pode influenciar na
tradução e produzir outros efeitos que não estão ligados ao seu lugar de origem,
ao passo que, seu contexto e a potencialidade do objeto semiótico traficado
ainda permanecem, mesmo que em outro ambiente.
A palavra “queer” também tem seus contextos, suas mudanças, suas
modificações, suas deformações, sua força e, até mesmo, a sua perda de força,
de vitalidade, tal como a sua ossificação. Se, originalmente, o termo era usado —
desde o século 18 — como um insulto, como uma injúria, como um xingamento,
parece concreto afirmar que isso perdure até os dias de hoje. Havia nesse
termo uma forte carga pejorativa. Reafirmamos um ponto que Paul Beatriz
Preciado apresenta sobre a palavra queer. Para Preciado, essa palavra não seria
necessariamente um adjetivo, mas apontaria uma falha na representatividade:

38 RAFAEL LEOPOLDO
nem isso nem aquilo, mas “queer” — o estranho, o raro. Desta forma, o queer não
teria um conteúdo específico, mas reuniria em si todos os abjetos, os rechaçados,
os desalmados, etc.
Todavia, este mesmo termo é ressignificado por aqueles que são chamados
de queer, é ressignificado pelo ativismo. A palavra queer passa a afirmar uma
diferença que não queria ser integrada — diferente de alguns movimentos que
lutavam e lutam por esta integração à norma heterocentrada e ciscentrada —,
uma diferença que se coloca com orgulho. O sentido da palavra queer sofre
outras mudanças com suas viagens, seja quando encontra outras pessoas do
outro lado do continente, seja como uma palavra estranha que designa uma
teoria ainda mais esquisita, ou ainda, ao entrar nas portas das universidades e
percorrer as salas, os corredores, etc. Aqui nos debruçamos somente da palavra,
pois o queer, enquanto referência a uma subjetividade, já existia em tantos
outros lugares sem que fosse preciso classificá-lo com uma palavra estrangeira,
exótica. Há uma série de outras palavras que caracterizam a existência queer,
mas é a palavra inglesa que ganhará os contornos de uma produção teórica,
funcionando como o catalisador de um discurso.
Quando a palavra queer atravessa as fronteiras com uma tradução ou ainda
até mesmo com uma tentativa de tradução, ela perde parte do seu significado;
o que era excesso de significação que não conseguia capturar, transforma-se
em uma falta de significação devido à perda da própria história da palavra,
ou por causa da perda de sua carga como uma injúria. Não é estranho que o
queer ganhe até mesmo um ar de respeitabilidade quando chega ao mundo
acadêmico, pois a palavra já foi esvaziada do seu conteúdo. Com certeza, é mais
fácil se identificar como queer do que bicha, travesti, transexual, transgênero,
sadista, masoquista, fetichista, sapatona, puto, ou ainda, não se identificar com
nenhuma categoria. Partindo deste dado, compreendemos como também é
louvável as tentativas de subverter o próprio termo queer à procura de um
“estudo transviado”, de uma “teoria torcida”, de um “estudo cuir/kuir”, de um
estudo do “querer” dentre outras tentativas de tradução (ou mudança de grafia),
outras tentativas de atravessar fronteiras, outras tentativas de recontar histórias.
No capítulo sobre Gloria Anzaldúa e o nascimento do queer veremos
a relação que esta autora teve com as lesbian writers, as escritoras lésbicas,
pois Anzaldúa é mestiça e, para ela, a categoria lésbica não diz muita coisa.
O que Anzaldúa escutava estava num outro contexto, dizia respeito de uma
identificação com a marimacha, jota, loquita, culera, etc., mas, não com a palavra

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 39


lesbian. Para Anzaldúa, são as palavras em espanhol que têm maior significado,
que evocam mais sentimentos; porém, ela afirma que se fosse escolher uma
palavra da língua inglesa não seria, por exemplo, a palavra lesbian (lésbica),
mas o dike (sapatão) ou ainda o queer (raro, esquisito).
Talvez este seja um ponto importante ao tratarmos da teoria queer:
a necessidade de evocarmos palavras com significação: estudos torcidos,
estudos veados, estudos transviados, estudos lésbicos, estudos sapatão, teoria
sapa, estudos da ralé, estudos de novas masculinidades, estudos andrógenos,
teoria bicha, teoria urso, teoria bambi, práticas sádicas, práticas masoquistas,
práticas dos párias, práticas dos putos, estudos dos enfermos, dos doentes, dos
epilépticos, dos desalmados, etc. Este fundo obscuro do intraduzível do queer
talvez seja ainda potente e interessante para surgir o múltiplo. Se aqui adotamos
o termo consolidado, “teoria queer”, “pensamento queer” é tão somente por se
tratar da produção de um mapa, uma cartografia, ou ainda, de uma pesquisa
introdutória e pedagógica, generalista e temática a respeito do tema. Esperamos
que surjam as variações e suas especificidades, pois essa produção cartográfica
mostra em seu caminho e em suas vielas uma não neutralidade e uma postura
filosófico-política.

40 RAFAEL LEOPOLDO
A TEORIA QUEER CONHECE A PSICANÁLISE

TEORIA QUEER E PSICANÁLISE

Está escrito no frontão do consultório: deixa tuas


máquinas desejantes à porta, abandona as tuas
máquinas órfãs e celibatárias, teu gravador e teu
pequeno velocípede, entra e deixa-te edipianizar.
Deleuze e Guattari

A teoria queer tem um longo diálogo com a psicanálise e a psicanálise com


o pensamento queer, com o extravagante, com o que vaga fora, com o raro, com
o estranho, com o diferente. Além disso, a psicanálise resvala em alguns autores
que vão exercer uma grande influência na teoria queer, como Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Félix Guattari e Jacques Derrida. Sublinhamos estes autores
para nos mantermos só no âmbito da filosofia francesa e dos filósofos que serão
abordados com maior afinco no decurso deste livro. Desta forma, fazemos um
retorno ao saber psicanalítico, tanto no que concerne ao seu pensamento quanto
à sua institucionalização. Ademais, focaremos no poder conservador e libertário,
no poder reacionário e revolucionário da teoria e da institucionalização da
prática e da teórica psicanalítica.
A respeito desses dois polos na obra de Sigmund Freud, em seu livro O
anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, os filósofos Deleuze e Guattari afirmam
que “havia tudo isso em Freud — fantástico Cristóvão Colombo, genial leitor
burguês de Goethe, de Shakespeare, de Sófocles, Al Capone disfarçado” (Deleuze
& Guattari, 2010, p. 161). Neste sentido, há em Freud o elemento explorador-
nomádico, como o sedentário-institucionalizado, e estes elementos reverberam
tanto no decorrer dos ramos da psicanálise como na crítica da teoria queer ao
saber psicanalítico.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 41


Devido a estes dois polos, conservador e libertário, que, por sinal,
encontramos em qualquer grande autor e, também, pela sequência de autores
e autoras que vão dialogar com a psicanálise, é que adentramos, brevemente,
na história da psicanálise e enfatizamos a sua relação com a homossexualidade.
Esta relação percorre tanto o nível teórico quanto a sua institucionalização
e é na institucionalização desse saber que encontramos com maior força e vigor,
um determinado rechaço à homossexualidade, seja no que concerne à teoria,
seja na própria vinculação ou rechaço dos homossexuais na prática psicanalítica.

O TRONCO E OS RAMOS

O filósofo e psicanalista Renato Mezan possui um belo estudo sobre a


história da psicanálise chamado O tronco e os ramos: o tronco como uma
metáfora ao pai da psicanálise, Sigmund Freud, e os ramos como metáfora
às diversas escolas psicanalíticas que remontam ao pai da psicanálise. Neste
livro de Mezan, encontramos alguns dados que podem servir para aclarar a
institucionalização da psicanálise e os seus ramos, as teorias pós-freudianas.
Um primeiro ponto a ser realçado é que a teoria psicanalítica pode ser muito
libertadora e este saber tem um papel crucial com relação à homossexualidade e a
perversão, por exemplo. Todavia, encontramos, também em Freud, determinadas
ambiguidades sobre a homossexualidade mesmo quando ela já tinha um
arcabouço teórico que poderia livrá-lo de um pensamento heterocentrado.
Pensamos aqui, principalmente, no Caso Dora, que nos servirá de exemplo
para mostrar que Freud também oscila no que se refere à sua teoria. Ainda
assim, os elementos do Caso Dora são reelaborados e a sua postura é, sobretudo,
libertadora para a sua época; muitas vezes, até mesmo para a nossa.
Em linhas gerais, exporemos um breve esboço cronológico para a
compreensão de como se dão os diversos ramos do tronco freudiano, salientando
o papel que Freud tem diante da homossexualidade no âmbito teórico e político.
Principalmente, no âmbito político, com a sua participação no jornal Die Zeit,
uma carta a Ernest Jones sobre a admissão ou não de homossexuais na prática
psicanalítica e, por fim, uma carta a uma mãe americana, na qual ela pede
conselhos a Freud. No âmbito teórico, repensar o destino da pulsão como a

42 RAFAEL LEOPOLDO
ideia de perversão. A respeito de um possível heterocentrismo em Freud, o já
citado Caso Dora pode resultar um estudo positivo.
Na obra freudiana encontramos uma potencialidade libertadora sem
precedentes para pensar a homossexualidade, o que não vai reverberar de forma
aguda nos pós-freudianos e no processo de institucionalização da psicanálise.
Lembremos, por exemplo, que a filha de Freud, Anna Freud, vai tentar corrigir/
curar os homossexuais, e desta posição escutaremos alguns ecos, até mesmo na
atualidade, quando a homofobia se mescla com o saber da psicanálise, ainda que
— e vale a pena reafirmar —, encontremos na própria obra freudiana todos os
elementos para nos distanciar de uma visão tão tacanha que tenta, por exemplo,
aplicar uma “cura gay”.
Esses apontamentos são extremamente úteis para que, na clínica, haja
uma relação positiva com homossexuais, travestis, lésbicas, transexuais, etc.
Compreender essa multiplicidade queer e relacioná-la com o saber psicanalítico
tem uma veemência importante para uma mudança positiva do sujeito com
relação à compreensão de si mesmo, dando uma eficácia à análise e ao processo
de final de análise, da criação de novas narrativas de si, ou ainda, de um novo
conto familiar.

ESBOÇO CRONOLÓGICO

Antes de seguirmos em um esboço cronológico da psicanálise, gostaria


de frisar o que Mezan chama de tríplice diáspora, que são três diferentes
dispersões: geográfica, doutrinária e institucional. Esta diáspora psicanalítica
é fundamental para a compreensão não só da história, mas de algo tão essencial
quanto as apropriações, modificações e transformações na teoria psicanalítica e,
principalmente, no nosso caso, a institucionalização que envolveu a participação
ou não de homossexuais na prática psicanalítica.
A primeira é a dispersão geográfica, e diz respeito a uma psicanálise que
surge na Europa, solo onde é criada, embora necessitasse de migrar por conta
da perseguição nazista. Então a psicanálise translada, conhece outros espaços,
aprende novas línguas, vê-se de frente a outras culturas. Mezan comenta sobre a
psicanálise e sua atualidade que: “seus centros principais estão hoje na Inglaterra,
na França, na América Latina, e (não se sabe por quanto tempo) nos Estados

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 43


Unidos” (Mezan, 2014, p. 23). A diversidade dos fatores culturais afeta, por sua
vez, a própria teoria psicanalítica e este é um dos motivos de uma dispersão
doutrinária.
A segunda dispersão, a dispersão doutrinária, nos remete às várias
escolas da psicanálise onde parece imperar o choque entre as doutrinas —
uma lógica bélica e religiosa, no lugar do diálogo produtivo. Este choque só
coloca em maior evidência a variedade de psicanálises. O que nos direciona
para a terceira dispersão, a dispersão institucional, onde são compostas outras
institucionalizações que não somente a Associação Internacional de Psicanálise
(IPA), fundada por Freud. Sabemos que, mesmo que Freud tivesse uma posição
favorável aos homossexuais como praticantes da psicanálise, a IPA vai apresentar
uma posição muitas vezes homofóbica.
Diante do contexto apontado a respeito da IPA, afiançamos, nesta
conjuntura, a importância da posição de Lacan, que não discriminava seus
pacientes e formava alunos homossexuais. Por sua vez, sabemos que Lacan vai
ser expulso da IPA, embora tenha sido por outros motivos, como o tempo não
cronológico que usava em suas sessões. É claro que estas outras instituições
também são setores de uma tentativa de legitimidade de uma “verdadeira”
psicanálise. Lacan, por exemplo, tentava retornar a um Freud mais visceral do
que o freudismo da IPA. Trata-se de uma diáspora no sentido grego do termo
— dispersão de sementes — e juntamente nestas sementes podemos visualizar
os diversos grupos, as diversas escolas psicanalíticas e as diversas instituições.
Posta a questão da tríplice diáspora, há o delineamento cronológico em
quatro grandes períodos: o primeiro é de 1895-1918; o segundo é de 1918-1939;
o terceiro é de 1940-1975; e o quarto período é de 1975 até os dias atuais. Para
tornar esta periodização ainda mais concisa, centralizar-nos-emos na relação
que se tem a cada período com Freud.
No primeiro período (1895-1918) estamos completamente envoltos
do pensamento de Freud. O Pai da Psicanálise escreve os textos que ainda
hoje fundamentam a disciplina. Tem-se, em certo nível, a elaboração da
metapsicologia, de uma teoria do desenvolvimento, uma psicopatologia e
teoria do processo analítico. Em torno de Freud se reúne o grupo de discípulos
que formam o núcleo do movimento — grupo que se consolidaria via
institucionalização. Este processo de institucionalização se estabelece com a
fundação, em 1911, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) e é nela que a

44 RAFAEL LEOPOLDO
questão da homossexualidade vai reverberar. Veremos mais adiante a posição de
Freud frente a este assunto e de alguns pós-freudianos. Com relação aos grupos,
os seus componentes permanecem principalmente como alunos do mestre Freud,
não chegando a compor uma produção que se iguale à dele. Neste período, a
marca é a filiação direta com o mestre e o não surgimento de contrapontos que
possam gerar grandes tendências ou novas escolas psicanalíticas.
No segundo período (1918-1939), a forte figura de Freud se mantém, mas
já existem fatores que tornam possível a criação de grupos autônomos. Mezan
aponta que “a novidade desta segunda fase é que as discussões não terminam
necessariamente em dissidências formais nem em expulsões espetaculares,
mas na formação de correntes de opinião, que serão as bases das escolas
propriamente dita” (Mezan, 2014, p. 50. Itálico do autor). Mezan é honesto
em colocar o caso de Wilhelm Reich — autor importante para o pensamento
deleuzo-guattariano e para a libertação sexual — e Otto Rank, que estão em um
conflito “insanável” com Freud. Para o autor, estes casos seriam uma exceção.
Ainda neste segundo período, dentro da própria teoria freudiana, começa-se
a mostrar relações complexas, de um Freud se colocando contra um Freud,
revendo a sua própria teoria, nuançando-a. Essa diversidade interna dentro
da teoria possibilitará o surgimento de escolas psicanalíticas. Tem-se agora
uma maior institucionalização dos grupos; com eles um processo multiplicador
da psicanálise que não depende mais de Freud. Mezan aponta que “a rede de
transferência deixa de ter o seu pivô em Freud para se refratar por diversos
focos, dando origem a uma geração de analistas para quem ele se apresentava
mais como um autor do que como um objeto pessoal de amor ou de rivalidade”
(Mezan, 2014, pp.50-51).
O terceiro período (1940-70/7) é considerado a era das escolas. Neste
momento, formam-se núcleos de teorização divergentes, tem-se uma
cristalização da diversidade da fase anterior em torno dos seus principais
autores e, junto a eles, novos processos de institucionalização dessas escolas.
Há poucas citações recíprocas, não parece existir uma verdadeira tentativa de
interlocução entre as escolas, mas segue-se a lógica do choque, da disputa. Este
período é principalmente marcado pela psicologia do ego, das escolas com
tendências kleinianas, escolas das “relações de objeto” e o lacanismo. Sobre
Lacan, poderíamos citar uma passagem de sua biografia, escrita por Elizabeth
Roudinesco: “Em 1960, ele [Lacan] era ortodoxo porque preconizava um retorno
à linha correta da doutrina original contra toda tentativa de ultrapassagem do

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 45


freudismo, era elitista porque sonhava reconstituir, em torno de si, uma escola
dos eleitos semelhante ao primeiro círculo vienense: uma escola animada por
uma mística da causa” (Roudinesco, 1993, p.344. Itálico da autora). É necessário
esclarecer que não somente Lacan era ortodoxo, elitista ou ainda formador da
escola dos eleitos, porque cada escola parece seguir estes três elementos, cada
qual mais freudiano do que Freud e ao mesmo tempo com diferenças capitais.
No quarto período (1975/80 até hoje), assoma-se, de acordo com Mezan,
uma primeira e grande dificuldade: caracterizá-lo. Apesar disto, o autor não
deixa de expor duas vertentes; a primeira, procura prolongar a era das escolas
e; a segunda, tem em comum mais uma postura diante das doutrinas do que
uma ligação estritamente doutrinal. Em outras palavras, na primeira encontra-se
uma espécie de ortodoxia e, na segunda, uma maior mobilidade. Na primeira,
a tentativa de manter as raízes, de aprofundá-las junto às escolas; na segunda
outros desbravamentos, sem a procura de grandes sínteses.
Uma vez delimitado esse esboço de um cronograma da história da
psicanálise, voltamo-nos para Freud e sua relação com a homossexualidade,
ou, para sermos mais precisos, as homossexualidades, no plural. Isto, pois seria
um erro crer que não haja diferenças na dinâmica pulsional mesmo dentro
da homossexualidade, ou ainda, de apontar um “homossexual típico” ou um
“heterossexual típico”, quando não há nada típico na sexualidade.

FREUD E A HOMOSSEXUALIDADE

Não existe um sujeito homossexual, assim como não


existe um heterossexual ou um bissexual. Existem
moções pulsionais e movimentos identificatórios
que se deslocam, mais ou menos livremente, e que
se manifestam nas escolhas objetais que sustentam
as diversas expressões da sexualidade.
Paulo Ceccarelli

O pacato neurologista de Viena, Pai da Psicanálise, traz um saber realmente


selvagem sobre a sexualidade e, tão logo, à homossexualidade. Para uma primeira
aproximação da relação de Freud com a homossexualidade, poderíamos pensar
em três dados, em três manifestações postas em prol da homossexualidade sem

46 RAFAEL LEOPOLDO
nenhum equívoco, sem nenhuma ambiguidade. A primeira manifestação se
trata de uma opinião pública no jornal vienense Die Zeit, onde Freud faz um
pronunciamento a respeito da homossexualidade (este acontecimento data
de 1903). A segunda manifestação é uma carta para Ernest Jones, referente à
admissão ou não de homossexuais na Associação Internacional de Psicanálise
(IPA) (carta datada de 1921). A terceira manifestação é a conhecida carta a uma
mãe americana a quem Freud responde uma questão sobre a homossexualidade
(esta manifestação é datada de 1935). Acreditamos que estes três exemplos são
esclarecedores sobre a inclinação positiva de Freud sobre a questão, num largo
período.
O primeiro ponto, a participação de Freud no jornal Die Zeit se dá devido
a uma personalidade ser “acusada” de práticas homossexuais. A resposta de
Freud foi a seguinte:

A homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. (...). Eu tenho


a firme convicção de que os homossexuais não devem ser tratados como
doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isto nos obrigaria a
qualificar como doentes um grande número de pensadores que admiramos
justamente em razão de sua saúde mental (...). Os homossexuais não são
pessoas doentes (Freud, 1903 apud Menahen, 2003, p. 14).

De forma límpida, temos aqui a posição de Freud diante de um caso de


homossexualidade e é claro que esta posição política tem o seu fundamento no
próprio saber psicanalítico; funda-se no saber teórico.
Como segundo ponto, temos a resposta à uma carta a Ernest Jones a respeito
de aceitar ou não homossexuais na Associação Internacional de Psicanálise (IPA)
— lembremos que Jones era, nada mais, nada menos, que o presidente da IPA,
e sua posição é contrária à admissão de homossexuais naquela instituição. Eis
a resposta de Freud e Otto Rank:

Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos


homossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos com você.
Com efeito, não podemos excluir estas pessoas sem outras razões suficientes
(...) em tais casos, a decisão dependerá de uma minuciosa análise de outras
qualidades do candidato (Lewis, 1988, p. 33).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 47


Notamos, então, um resultado bem claro: por si só, a homossexualidade
não seria motivo para admissão ou demissão na Sociedade; isso dependeria,
exclusivamente, da análise das qualidades, como de resto ocorria com qualquer
candidato.
O terceiro ponto é uma resposta a uma mãe americana que solicita
conselhos para o seu filho homossexual — carta que a filha de Freud, Anna
Freud, se recusava a publicar —, e na qual o Pai da Psicanálise argumenta que
“a homossexualidade não é, certamente, nenhuma vantagem, mas não é nada
de que se tenha que envergonhar; nenhum vício, nenhuma degradação, não
pode ser classificada como doença; nós a consideramos como uma variação
da função sexual” (Jones, 1979, p. 179). Javier Sáez, que compreende bem esta
posição freudiana diante da homossexualidade, aponta o seguinte paradoxo:

Um dos grandes paradoxos da história da psicanálise é que as instituições


psicanalíticas se desenvolveram em direção oposta ao potencial crítico
contido no pensamento freudiano. A clínica freudiana institucional derivou
numa prática e uma teorização cada vez mais moralizante, heterocentrada e
normalizadora, a qual logicamente produziu um rechaço e uma crítica cada
vez maior por parte dos coletivos de gays e lésbicas em todo mundo. Essa
tradição homofóbica marcou grande parte dos estudos queer (Sáez, 2004,
p. 38).

Mesmo diante da posição freudiana a respeito da homossexualidade,


grande parte dos ramos pós-freudianos vão produzir um saber cada vez mais
homofóbico que, por certo, será alvo da teoria queer.
A respeito dos elementos teóricos viáveis de se pensar na obra freudiana
temos, por exemplo, a compreensão que, tanto a heterossexualidade quanto a
homossexualidade são destinos pulsionais ligados a resoluções edipianas. No
livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o autor já faz uma distinção entre
o instinto dos animais e a pulsão sexual humana que não teria um objeto fixo.
Em seu artigo A invenção da homossexualidade, o psicanalista Paulo Ceccarelli
afirma que:

O objeto da pulsão é diversificado, anárquico, plural e parcial; exprime-se


de várias formas: oral, anal, escopofílica, vocal, sádica, masoquista, dentre
outras. Com isso, Freud divorcia a sexualidade de uma estreita relação com
os órgãos sexuais, passando a considerá-la como uma função abrangente em
que o prazer é sua finalidade principal, sendo a reprodução secundária. Além

48 RAFAEL LEOPOLDO
disso, ao postular que a sexualidade vai além dos órgãos genitais, o autor leva
“as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito
que o dos adultos”. Nessa perspectiva, em que as pulsões parciais integram
o psiquismo humano, o conceito de normalidade perde o seu sentido,
tornando-se uma ficção: não existe diferença qualitativa entre o normal e
o patológico. A diferença reside nas pulsões componentes dominantes na
finalidade sexual (Ceccarelli, 2008, p. 75).

Vê-se, portanto, que a sexualidade iria além de um mero instinto sexual


reprodutivo, mas envolveria a pulsão do sujeito.
Adiante, Freud propõe outra forma de compreensão da perversão, pois a
sexualidade humana seria em si perversa, no sentido de que não visa à reprodução.
É necessário recordar que, se a perversão é tudo aquilo que não envolve uma
relação que teria um vínculo com a ideia de reprodução, até mesmo um simples
beijo seria perverso. O que Freud pondera é que a sexualidade acompanha
o sujeito desde a infância. Na criança, por exemplo, haveria uma perversão
polimorfa onde todo o seu corpo é sexualizado. Apenas com o tempo é que o
corpo vai criando as zonas erógenas, especializando esses lugares como eróticos,
como o pênis ou a vagina; todavia, tantos outros lugares podem ser erotizados.
Diante de autores da teoria queer, veremos como esse processo de erotização
do corpo é um processo político, onde somos levados a erotizar algumas
partes e outras não. Por exemplo: damos um maior valor ao pênis e à vagina e
descartamos uma erotização anal. Javier Sáez e Sejo Carrascosa, em seu livro
Pelo cu: políticas anais, farão um percurso neste sentido, mostrando de que
maneiras o ânus foi privatizado, tirado do campo social, além de como o cu se
tornou o lugar de injúria, dos xingos, da passividade, do que é abjeto. A partir
deste dado, temos uma proposta de recuperar uma sexualidade que é perversa
e polimórfica.

FREUD E O CASO DORA

A psicanálise é uma teoria feminista frustrada.


Gayle Rubin

Faremos um apontamento sobre o Caso Emma, de 1895, para refletir sobre


o abandono da teoria da sedução e a descoberta do complexo de Édipo. Do

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 49


mesmo modo, é interessante sondá-lo, porque sua estrutura é basicamente a
mesma do Caso Dora, de 1905, onde Freud já havia “abandonado” a teoria da
sedução. Desta forma, comecemos afirmando, com Haute & Geyskens, que “o
Caso Emma se torna um modelo clínico exemplar para a teoria da sedução. De
acordo com esta teoria, a histeria é causada por memórias de sedução sexual
durante a infância” (Haute & Geyskens, 2012, p. 34).
O Caso Emma pode ser resumido da seguinte forma: Emma tinha como
sintoma uma compulsão de não conseguir entrar sozinha em lojas. Ela associava
esta compulsão com uma cena que lhe ocorrera quando tinha 12 anos de idade.
Emma havia entrado em uma loja e viu dois funcionários rindo juntos; numa
espécie de susto, ela sai correndo, e deixa o estabelecimento. Para Freud, essa
primeira cena não é suficiente para explicar a compulsão nem o sintoma. É a
atitude exagerada de Emma (juntamente com a permanência desta atitude) que
dá o caráter psicopatológico à reação.
A análise de Freud remete Emma a uma segunda cena. Freud salienta que,
quando ela tinha 8 anos de idade, estivera duas vezes em uma loja que vendia
doces. Na primeira vez que esteve no estabelecimento, o proprietário, rindo,
agarra-lhe sobre o vestido. Haute e Geyskens escrevem que ela sofre algumas
“apalpadelas inconvenientes do dono de uma confeitaria” (Haute & Geyskens,
2010, p. 181. Itálico nosso). Mesmo com esse ataque, Emma volta uma segunda
vez para a mesma loja, o que lhe pareceu indício de que desejava provocar um
novo atentado. Uma observação importante é que, neste momento, para Freud,
a infância é assexual.
Na primeira cena, Emma não tem capacidade física ou conhecimento sobre
a sexualidade, nem está realmente preparada para uma reação ao abuso dos
vendedores. Para Freud, o que é provocado na criança é um estado de angústia.
Porém, quando o trauma é revivido na puberdade, quando o indivíduo tem
conhecimento da sua sexualidade, o trauma de infância produz, retroativamente,
uma excitação sexual que não pode ser sentida como tal, manifestando-se como
um sintoma de angústia ou conversão. Antônio Teixeira faz um comentário a
respeito dessas interconexões de cenas:

O que interessa a Freud não é o sentido da loja em si, nem tampouco do riso
dos vendedores, tomado isoladamente, mas a rede de conexões que faz com
que Emma seja afetada por essas representações. Assim, do mesmo modo
que se pode dizer, na esteira de Deleuze, que o cavalo domesticado tem mais

50 RAFAEL LEOPOLDO
parentesco — ou seja, mais afetos em comum — com o boi do que com o
cavalo selvagem, vale acrescentar que a confeitaria, na constelação afetiva
de Emma, tem mais parentesco com um lugar de assédio sexual do que com
qualquer outro estabelecimento de vendas (Teixeira, 2010, pp. 10-11).

Interessante comentário de Teixeira, apontando a “constelação afetiva”


de Emma, da qual podemos compreender as conexões que a paciente faz
interligando os seus afetos, não mais com uma simples confeitaria, mas, sim,
um espaço traumático, um espaço de assédio.
O Caso Dora, de 1905, também é constituído por duas cenas. Dora estava
envolvida no imbróglio do encontro de duas famílias: a sua e a dos K. O pai de
Dora tinha um caso com a Senhora K. Este fato é importante para o caso clínico
de Freud e suas interpretações edipianas. O Senhor K, por sua vez, não deixava
de apresentar alguns “agrados” à jovem Dora. Ela acusa seu pai de fazer vista
grossa às investidas do Senhor K, pois ele está em um affaire com a mulher dele,
de modo que Dora se sente, no mínimo, usada. Quando o pai de Dora entra em
contato com Freud, ela lhe fala sobre o Sr. K, que havia declarado seu amor à
jovem em uma excursão a um lago (“cena do lago”). Dora reagira com horror.
Freud escreve que tal evento não seria traumático, nem motivo suficiente
para desencadear os vários sintomas dela. No desenvolvimento do tratamento,
Freud chega a outro momento, a outra cena. Quando Dora tinha 14 anos, o
mesmo Sr. K, havia tentado beijá-la, encostando seu corpo bruscamente no dela.
Freud deduz que ela tenha sentido o pênis ereto do Sr. K. Ela, por seu lado, teria
sentido nesse momento uma forte repugnância e certo nojo, certo asco. O que
Dora apresenta é um comportamento histérico: o que deveria ser sentido com
prazer seria compreendido como desprazer e repugnância.
Na primeira cena (que, cronologicamente, é a cena da loja), Dora ainda
não teria os signos da excitação sexual masculina, não teria a aparelhagem
para entender o que lhe acontecia (de forma parecida25 com o Caso Emma).
Na segunda cena, onde o Sr. K declara o seu amor para Dora no passeio pelo
lago, ela já possui os elementos para um entendimento do fator traumático.
Quando os dois estão no lago, vem à tona na consciência de Dora a cena na
loja, e o nojo, a repugnância, que ela havia sentido. Neste caso, o trauma é uma

25
De forma parecida e não igual, porque existem diferenças grandes entre os dois casos, uma a ser posta é
que em 1905 Freud já tinha a noção de sexualidade infantil no seu arcabouço teórico.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 51


atualização, e a transformação de uma disposição “orgânica”. Quando pensamos
na etiologia da histeria e da neurose sobre o olhar da teoria da sedução, o fator
disposição parece não ter uma relevância, só reaparecendo quando se pensa que
a natureza do trauma, passividade (histeria) ou atividade (neurose obsessiva)
da criança, não determinam a severidade. A disposição tem um grande papel
na patogênese, mas não na etiologia da histeria ou da neurose obsessiva. Essa
mudança pode ser vista no Caso Dora de forma exemplar, onde não é a natureza
do trauma (passividade ou atividade) que determina a natureza da neurose
(histeria ou neurose obsessiva), mas, sim, a disposição que determina a forma
como o trauma é experimentado.
Freud chama o Caso Dora — com um determinado desdém — de um
caso de pequena histeria, por não apresentar sintomas muito graves. Haute &
Geyskens, diferentemente, não deixam de explicar que essa obra “tem um papel
central no desenvolvimento na teoria psicanalítica de Freud e da histeria. Este
texto marca o ápice da preocupação de Freud com a histeria, uma preocupação
que conduz à descoberta da psicanálise em 1880 e 1890” (Haute & Geyskens,
2012, p. 14). Para estes dois autores, Freud interpreta a psicanálise como uma
pato-análise, ou ainda, uma antropologia clínica. Significa dizer que a patologia
indica uma forma exagerada de tendências que moldam a nossa existência e
a psicopatologia “não aparece como o negativo de uma suposta normalidade.
Em vez disso, ela mostra-nos elementos estruturantes da condição humana”
(Van Haute & Geyskens, 2012, p. 14). Neste sentido, Freud quebra a visão da
antropologia filosófica tradicional, que considera a psicopatologia na perspectiva
de um negativo do que seria o psicologicamente saudável.
Ainda em seu texto Uma psicanálise não Edipiana?, na parte intitulada
“Sintoma, Trauma e Fantasia na análise freudiana de Dora”, Haute & Geyskens
enfatizam:

No seu estudo sobre Dora, Freud não precisa do Complexo de Édipo para
entender a histeria. A combinação de disposição, complacência somática,
trauma e fantasia, tal como nos descrevemos, já é suficiente. E ainda, a maioria
dos comentários, vindo das mais diversas tradições psicanalíticas, não apenas
dá uma explicação edipiana para a “petite hystérie” de Dora, mas também,
injustificadamente, atribui esta explicação a Freud (Haute & Geyskens, 2012,
p. 54).

52 RAFAEL LEOPOLDO
A análise dos dois autores denota-nos outros elementos que não são o
complexo de Édipo. Estes elementos geram, para Freud, uma explicação do Caso
Dora. Se pensarmos na evolução da etiologia das neuroses, podemos voltar a
um momento em que Freud aborda o método catártico e a disposição à histeria,
juntamente com a etiologia, como pensadas na teoria da sedução. Adentramos,
deste modo, no método catártico como um meio de expurgação e a disposição à
histeria com as suas três características: 1) uma grande sensibilidade corporal; 2)
uma inclinação a evitar a sexualidade; 3) e, por último, os devaneios. Na etiologia
pensada no período da teoria da sedução, a histeria e a neurose obsessiva se
dão pela natureza do trauma. Trata-se da passividade ou atividade sexual da
criança com relação ao seu abusador. Esses elementos seriam suficientes para a
análise de Dora. Porém, seria injusto a este caso dizer que a temática edipiana
não estaria ali. Mas devemos nos perguntar: qual é a função de Édipo no Caso
Dora? Essa resposta nos coloca diante de uma possível psicanálise edipiana ou
ainda uma psicanálise não edipiana.
A pergunta sobre o Édipo no Caso Dora envolve mais do que o interesse
por uma análise meticulosa do texto freudiano; esta pergunta é aqui revelada,
porque, em determinado momento da psicanálise, o complexo de Édipo terá
um papel quase normativo, tornando-se o grande folclore da psicanálise. E a
filosofia e a teoria queer não deixarão de interrogá-lo. Talvez, a crítica mais
forte venha do livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari chamado, exatamente,
de O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. De qualquer modo, a teoria queer
também vai interpelar a psicanálise.
Em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade,
Judith Butler nos escreve sobre uma “matriz heterossexual” da psicanálise
freudiana. A autora não cita o Caso Dora, mas textos, como Luto e melancolia
e O eu e o id, para pensar a questão/problema de gênero. Voltamos para Hauter
& Geyskens, na tentativa de mostrar uma ambiguidade de Freud com relação
à homossexualidade, ao menos apontar que Freud não se livra totalmente
do pensamento de sua época ao pensar que garotas são feitas para garotos (e
vice-versa). Ora, para uma leitura do Caso Dora, esses aspectos deveriam ser
salientados, uma vez que estamos diante de um autor que apresenta aspectos
tanto reacionários quanto revolucionários.
Abordemos essa temática, já que diversos autores indicam que Freud
não mede esforços para que Dora tenha uma relação com o Sr. K, deixando
em segundo plano o desejo de Dora pela Sra. K; ou seja, que Freud,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 53


“preconceituosamente”, levaria Dora para uma relação heterossexual. Este ponto
nos leva diretamente à Édipo, porque:

Outro aspecto do modelo metapsicológico então vigente [no estudo do Caso


Dora]: a versão direta do complexo de Édipo, ou seja, o desejo pelo genitor
de sexo oposto e a hostilidade frente ao do mesmo sexo. Freud a assinala
no comportamento dos irmãos nas disputas familiares, cada um agindo
segundo este roteiro, e nela se baseia para a direção geral da sua leitura do
caso, que procura por todos os meios levar Dora a aceitar: na qualidade de
substituto paterno. Herr K. é o principal objeto do desejo dela. À sua argúcia,
contudo, não escapa a “corrente ginecofílica” dos investimentos amorosos
da jovem – sua atração homossexual por Frau. K. – mas no decorrer do
tratamento literalmente não sabe o que fazer com tal descoberta. É plausível
supor que foi refletindo sobre sua omissão deste aspecto – que, no entanto,
não lhe era desconhecido, pois a bissexualidade é um tema frequente na
correspondência com Fliess – e que tenha sido levado a construir a versão
completa do complexo, a qual inclui a ambivalência em relação aos dois
genitores (Mezan, 2014, pp. 397-398).

Em confluência com diversos comentadores de Freud, Renato Mezan


relata que, no Caso Dora, existe o esforço de Freud em levá-la a aceitar os
investimentos amorosos do Sr. K. Encontramos aqui um dado heteronormativo,
ainda que Freud tivesse ao seu lado uma ferramenta teórica importante —
decorrente de suas conversas com o seu amigo Fliess — para tratar do conceito
de bissexualidade. O Caso Dora o levaria a uma reformulação do complexo de
Édipo, da sua versão direta à sua versão completa, encontrada na obra O eu e
o id. Este é um ponto considerável, pois mostra como o pensamento de Freud
sempre esteve em ebulição; sempre foi um pensamento convulso e, portanto,
incessantemente passível de ser reestruturado.
Ao criticar o papel do complexo de Édipo no Caso Dora, Haute & Geyskens
estão à procura de uma psicanálise não-edipiana, uma vez que o complexo de
Édipo torna-se o folclore da psicanálise e tem um efeito normalizador. Frisamos
essa interpretação do Caso Dora para explicitar possíveis conflitos internos na
obra de Freud. Outro dado importante posto por Mezan é que este caso levaria
à reformulação do próprio conceito de complexo de Édipo, culminando na sua
versão completa, onde encontramos maiores possibilidades de identificação.

54 RAFAEL LEOPOLDO
A TEORIA QUEER E O DIREITO DOS ANIMAIS

ANIMAL QUEER26

Agarrados desesperadamente à necessidade que te-


mos de dominar o meio ambiente e os outros seres,
acabamos por esquecer que somos também parte
dessa natureza.
Natália Coeli

Neste capítulo, seguiremos um caminho menos antropocêntrico e, para


usarmos um antigo termo, anti-humanista — nos atentaremos também aos
animais não humanos. A ideia é compreender o animal não humano como um
animal queer, posto que há uma sucessão de animais que sofrem diariamente
em espaços mínimos até o momento do seu abate ou a exaustão do seu corpo.
Trata-se de discorrer que a política queer não é um humanismo, e que, pelo
contrário, poderia estar muito mais próxima de um animalismo.
Não cremos que a relação entre a teoria queer e o direito dos animais
ainda esteja estabelecida. Pensamos que tanto o ativismo queer quanto o
ativismo pelo direito dos animais ainda não foram relacionados de uma forma
contundente; todavia, poderíamos encontrar algumas autoras e autores que
serviriam de vínculo para este encontro, como Deleuze, Derrida, Haraway, Paul
Preciado27. Cabe ainda abordar o livro A política sexual da carne: a relação entre

26
Grande parte deste capítulo se encontra no livro Teoria queer e micropolítica, onde comecei a trabalhar
a questão animal juntamente com os alunos do ensino médio, na rede pública de Minas Gerias.
Posteriormente, trabalhei na disciplina de “Filosofia: ética e antropologia”, na Pontifícia Universidade de
Minas Gerais. Parte daquele trabalho pode ser visto como um prelúdio, como um ensaio à elaboração
da Cartografia do pensamento queer. Este capítulo, ademais, é dedicado a Natália Coeli (e sua produção/
preocupação sobre o direito dos animais, principalmente, a sua breve história do especismo) e ao
MMDA (Movimento Mineiro pelo Direito dos Animais e o seu ativismo com relação aos não-humanos).
27
Todos estes autores e autoras vão de certa forma trabalhar com a fronteira entre o humano e o não humano,
ainda que haja diferenças teóricas grandes, como no caso da crítica de Donna Haraway elaborada ao conceito

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 55


o carnivorismo e a dominância masculina, de Carol Adams, que faz uma crítica
interessante, de um ponto de vista do feminismo.
Mesmo diante da importância do livro de Carol Adams, não gostaríamos de
seguir a via desta autora. A proposta deste capítulo é pensarmos, em primeiro
lugar, a relação com o animal não humano e o nosso especismo e esquizofrenia
moral; depois, pensar o animal como um ser que faz o trabalho de luto e, por
último, o animal como um ser que brinca — trata-se de refletir sobre a linguagem
do animal não humano. Em linhas gerais, a sugestão medular é pensarmos o
animal como uma singularidade.
Com estes breves elementos poderíamos compreender a situação queer do
animal não humano e ainda reforçar alguns elementos positivos da animalidade,
deixando entrevisto a possibilidade de outras relações com eles. Novamente,
afirmamos que esta relação não está de fato estabelecida na teoria queer, já que
não temos os autores que fizeram esta associação de maneira mais consistente;
voltaremo-nos, assim, à outra possível abertura neste caminho, afinal, não
é somente a espécie humana que é violentada corporalmente e socialmente:
sabemos que toda sorte de sujeitos também possuem a sua existência minada.
Há, atualmente, um tipo de zooliteratura que trabalha esta temática — do
animal acuado, do animal minado —, mas, tomemos como exemplo a torção
que Adriane Garcia faz da história infantil d’Os três porquinhos:

Decepcionados com
Um mundo onde
Ou você come
Ou é comido
Os três porquinhos
Deliberaram
Sair da pocilga

À noite
Entraram na casa
E assaram os donos:

As maçãs nas bocas.

de devir-animal de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

56 RAFAEL LEOPOLDO
Esta zoopoética nos leva a uma multiplicidade de interpretações. Dentro
do livro Fábulas para adulto perder o sono, há uma relação com a carência, a
falta, a fome; de tal maneira descortinada, que estes porquinhos encontram-se
configurados nesta relação social precária: ou vítima ou carrasco. Todas as duas
posições são complicadas — é urgente sair da posição de vítima ou de carrasco;
porém, ao menos, há um exercício de mudança de perspectiva, um exercício
essencial para conhecermos outros corpos, outras vozes, outros grunhidos.
Nesta zoopoética, mais do que pensar uma relação senhor e escravo, talvez
soasse de melhor tom pensar que tanto os porcos quanto os humanos sofrem
com suas maçãs na boca. Aqui nos encontramos em um outro registro onde —
como assinalaria Deleuze — o homem que sofre é um bicho, o bicho que sofre
é um homem. Estamos, neste momento, em uma identidade profunda com este
animal queer. Aproximemo-nos, então, desta animalidade.
A nossa aproximação se dá com o que compreendemos como um animal
queer. Refletimos numa existência tornada abjeta: o animal queer é aquele que,
em determinada ocasião, teve a sua possibilidade de vida limitada. Porém,
não deixaremos de adentrar em uma relação mais positiva com os animais
quando nos ocuparmos tanto Peter Singer quanto Francione, ou ainda, a cultura
ameríndia. Outro avizinhamento do queer e da animalidade diz respeito à ligação
da sexualidade com a gastronomia — lembremos aqui que a questão animal
também envolve a questão alimentar —; por exemplo, quando escutamos “somos
o que desejamos” e “somos o que comemos”. Estes dois ditos remetem a uma
produção de uma determinada subjetividade. Claro que ambos os temas já
são, por si só, muito extensos: a temática do desejo e a temática gustatória
reverberam na nossa literatura e merecem uma análise ainda a ser feita tanto
para a compreensão de uma heterossexualidade compulsória quanto para o
entendimento de um carnivorismo compulsório; tanto para a compreensão
de uma saída do armário quanto para o entendimento de uma narração de
si mesmo com práticas alimentares diversas, ou seja, a saída do armário do
carnivorismo.
Se o animal já é queer devido a uma existência minorada, podemos ainda ver
outras relações entre a teoria queer e os animais e, também, o veganismo como
um dos discursos contrários a determinadas práticas hegemônicas. Entretanto,
diante de diversos caminhos, iniciamos este apontamento remontando a
um livro que se tornou clássico no que concerne aos direitos dos animais, o
continuamente revisitado Libertação Animal, do filósofo Peter Singer.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 57


ESPECISMO E ESQUIZOFRENIA MORAL

Em seu livro Libertação Animal, Peter Singer argumenta sobre um princípio


ético que se estenda aos animais não humanos, mostrando as práticas cruéis que
os animais sofrem e escrevendo uma breve história do especismo28. Tomemos
estes pontos, do último ao primeiro. Sobre o último aspecto, qualquer breve
história do especismo (ver, por exemplo, Singer, 2010; Coeli, 2012) remontaria
à história do orgulho humano e de sua vontade de se distanciar da natureza e
dominá-la. A história escrita por Singer não é diferente.
O autor percorre rapidamente algumas partes históricas, como o período
cristão, o Renascimento (com o seu humanismo), o Iluminismo e, por último,
o especismo. No aspecto que faz referência à crueldade praticada contra os
animais, Singer faz um grande catálogo destas ações: desde o experimento
de animais para pesquisas científicas ao cardápio de um jantar. Desta forma,
podemos ver quão queer são os animais, uma vez que sofrem uma ininterrupta
coação das possibilidades mínimas de vida.
É sobre este sofrer que Singer aborda o princípio ético e expõe um princípio
de igual consideração de interesses como um preceito moral básico. Para embasar
tal argumentação, o autor volta ao advogado e filósofo Jeremy Bentham, que
afirma não ser a razão (a capacidade de raciocínio) e nem a linguagem (sistema
de símbolos) que deveria ser o fundamento para uma igualdade ou distinção
entre o humano e o animal, mas, sim, a capacidade de sofrer, ou seja, sua
“senciência”.
A capacidade de sofrer e de ter prazer seriam pré-requisitos para um ser
ter algum interesse: “a capacidade de sofrer e de sentir prazer, entretanto, não
apenas é necessária, mas também suficiente para que possamos assegurar que
um ser possui interesses — no mínimo, o interesse de não sofrer. ” (Singer, 2010,
p. 13). No intuito de aclarar ainda mais a concepção deste princípio ético, cito
Gary Francione na afirmação:

28
O especismo é definido como uma atitude tendenciosa de membros da própria espécie, contra os
de outras. Lembremos do “racismo” como uma atitude de enaltecer uma raça contra outra, ou do
“sexismo” como enaltecimento de um gênero contra o outro e, por analogia teríamos o especismo,
que envolve a ideia de que o humano seria uma espécie mais elevada por ter determinados atributos –
polegar articulado, cultura, linguagem, etc. Estes atributos o fariam melhor que as demais espécies,
um tipo de mestre e possuidor dos demais não humanos. O especismo se relaciona a uma ideia antiga
chamada “antropocentrismo”: o ser humano no centro de tudo, seja da cultura ou do universo.

58 RAFAEL LEOPOLDO
Se for para levarmos os interesses dos animais a sério, então só podemos fazer
de uma maneira: aplicando o princípio da igual consideração aos interesses dos
animais em não sofrer. Não há nada de exótico ou particularmente complicado
quanto ao princípio de igual consideração. De fato, esse princípio faz parte
de todas as teorias morais e, como princípio do tratamento humanitário,
é algo que a maioria de nós já aceita. Para colocar a questão em termos
simples, devemos tratar casos semelhantes semelhantemente. Embora possa
haver muitas diferenças entre os humanos e os animais, há pelo menos uma
semelhança muito importante que todos já reconhecemos: a capacidade de
sofrer que todos compartilhamos (Francione, 2013, pp. 159-160).

Nesta perpectiva, poderíamos inferir que, se os animais humanos ou não


humanos sofrem e/ou sentem prazer, logo, eles têm interesse por não sofrer,
interesse pela vida29. E, mesmo que saibamos que os animais não humanos
sofram, grande parte dos indivíduos continuam com práticas cruéis contra
eles. Essa atitude configura-se em uma esquizofrenia moral nos seus aspectos
sociais e psicológicos.
Em sua obra Introdução aos direitos animais, Francione parece dar um
largo passo à frente na questão animal, ao fazer seu apontamento a respeito da
esquizofrenia moral. Para o autor, a esquizofrenia moral se daria, basicamente,
entre uma atitude humanitarista30 em relação aos animais e, sincronicamente,
a vontade de tê-los como propriedade privada, reduzindo-os a mercadorias, a
uma mera coisa.
Um dos grandes méritos de Francione é compreender o especismo à luz da
propriedade privada e suas consequências. O autor lembra-nos que os animais
são nossa propriedade, que este é o status dos animais. O valor do animal é
atribuído pelo seu proprietário, seja ele indivíduo, corporação ou governo. Essa

29
Bentham e Singer escrevem somente sobre um interesse por não sofrer e, não sobre um interesse pela vida.
Estes filósofos acreditam que a maioria dos animais não tem uma existência mental contínua nem projeção
para o futuro, e valorizam apenas o ser humano como produtor de uma autobiografia. Contudo, se seguirmos
a lógica do argumento a respeito do interesse de qualquer animal não sentir dor, chegaríamos à conclusão que
eles têm um interesse pela vida, já que se evita a dor no intuito de viver. Até mesmo o sentido de unidade mental
é questionável: podemos compreender nossas subjetividades como traumáticas, mais do que subjetividades
contínuas e projetivas. Uma subjetividade traumática pressupõe ruptura. Um exemplo na literatura é a novela
A Metamorfose, de Franz Kafka, onde o personagem principal acorda como um inseto. Poderíamos nos
voltar a tantos outros traumas que produzem quebras no sentido autobiográfico do sujeito. A neurologista e
filósofa Catherine Malabou é exemplar nesta temática com a sua obra Ontologia do acidente: ensaio sobre a
plasticidade destrutiva, pois propõe, até mesmo, a total perda de continuidade, de uma plasticidade destrutiva.
30
Uma atitude humanitarista envolve basicamente uma consideração moral para com os animais não humanos,
trata-se de não impor um sofrimento desnecessário a eles.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 59


ideia de posse dos animais não seria algo recente em nossa história. Francione
faz alguns comentários sobre as palavras gado e dinheiro:

A condição (ou status) dos animais como propriedade não é nova; tem estado
conosco por milhares de anos. De fato, a evidência histórica indica que a
domesticação e a posse de animais estão intimamente relacionadas com o
desenvolvimento das próprias ideias de propriedade e dinheiro. A palavra
cattle (gado), por exemplo, vem da mesma raiz que a palavra capital, e as
duas são sinônimas em muitas línguas europeias. A palavra espanhola para
propriedade é ganadería; a palavra para gado é ganado. A palavra latina para
dinheiro é pecunia, que deriva de pecus, que quer dizer “gado” (Francione,
2013, p. 118).

Além disso, temos também o adjetivo em espanhol ganadera que significa


pecuária. Mais do que observações etimológicas, Francione faz uma análise de
uns dos maiores teóricos da propriedade privada, o filósofo John Locke.
Primeiramente, Francione leva em conta que Locke era adepto das crenças
judaico-cristãs sobre a criação do universo. A leitura mais comum do Gênesis,
o primeiro livro da Bíblia, nos leva a uma concepção de superioridade do ser
humano em detrimento dos demais seres, uma vez que este livro narra que
Deus disse: “façamos o homem a Nossa imagem e semelhança; que ele tenha o
domínio, sobre os peixes do mar, as aves do ar e os animais domésticos, sobre
toda a terra e todas as coisas rastejantes sobre a terra”. Contudo, essa mesma
passagem sugeriria que os recursos da Terra seriam comuns para todos os seres
humanos; logo, se tudo era comum aos homens, não poderia haver alguém que
clamasse uma propriedade privada. A questão que surge é: como um indivíduo
poderia usar um recurso sem afetar o direito de outro indivíduo usar o mesmo
recurso? Locke responde esta pergunta com a ideia de um “direito natural” à
propriedade privada baseado no trabalho.
Na intenção de refletir sobre um direito natural, concluímos que algum
recurso natural tornaria próprio do indivíduo, quando este se juntasse ao seu
trabalho. Aqui se tem uma junção do trabalho com a natureza. Por exemplo,
um indivíduo trabalha a madeira e a transforma em uma mesa. Esta mesa seria
propriedade de quem a construiu devido ao trabalho empregado nela. Desse
modo, este indivíduo poderia reivindicar a posse dela, o seu uso agora é exclusivo
do proprietário e outros devem respeitá-lo.

60 RAFAEL LEOPOLDO
A mesma lógica é aplicada aos animais. Deus teria dado-nos pleno poder
sobre os animais que, por sua vez, não variariam, em grau de diferença, dos
demais recursos naturais. Um indivíduo pode, por exemplo, usar um cavalo
como animal de carga e este trabalho (que é feito no “recurso natural”) é tirar
o animal da natureza, dando-lhe a condição de propriedade. Para Francione, é
esta condição de propriedade que é incompatível com a atitude humanitarista
e fonte de nossa esquizofrenia moral. De acordo com isto, não seria possível
pensar no interesse do animal, uma vez que o interesse do proprietário sempre
é maior — prioritário — e a propriedade sempre será uma coisa, seja ela um
objeto, um animal ou ainda um ser humano.
Refletindo acerca da análise do Francione, é possível acrescentarmos outro
nível de explicação sobre a esquizofrenia moral. Francione se voltou, a todo
momento, para o social, para mostrar como a atitude humanitarista e o status
dos animais como propriedade privada são incompatíveis; todavia, podemos
regressar a Gregory Bateson e sua etiologia da esquizofrenia para acrescentar
alguns dados psicossociais.
Nos anos 50, Bateson criou o conceito de “duplo vínculo” para esquadrinhar
a esquizofrenia. O duplo vínculo parte de um indivíduo frente a duas mensagens
contraditórias que se excluem mutuamente; diante das duas mensagens, o
resultado seria uma punição. A mensagem de duplo vínculo recebida a todo o
momento com relação aos animais é que devemos amá-los; porém, ao mesmo
tempo, devemos usá-los como objetos, isto é, humanitarismo e animais como
propriedade privada. Esta é uma relação muito sutil, já que os animais estão
ao nosso redor, geralmente, desde o nascimento. Quanto a estas observações,
gostaria de introduzir dois pontos: 1) a herança cultural indígena com relação
aos animais; 2) e, mais modernamente, a configuração dos quartos de bebês.
A respeito do primeiro ponto, podemos voltar à grande obra de Gilberto
Freyre, Casa-grande e senzala, onde se entrelaçam uma gama enorme de fontes
para pensar os animais no Brasil. Aqui tento me limitar a poucas citações, como
esta, que apresenta a nossa herança, a nossa relação com os animais e a floresta:

Permanecera, entretanto, nos descendentes dos indígenas, o resíduo de todo


aquele seu animismo e totemismo. Sob formas católicas, superficialmente
adotadas, prolongaram-se até hoje essas tendências totêmicas na cultura
brasileira. São sobrevivências fáceis de identificar, uma vez raspado o verniz
de dissimulação ou simulação europeia: e onde muito se acusam é em jogos

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 61


e brinquedos de crianças com imitações de animais – animais verdadeiros
ou vagos, imaginários, demoníacos. Também nas histórias e contos de bichos
– de uma fascinação especial para a criança brasileira. Por uma espécie de
memória social, como que herdada, menos intelectualizada pela educação
europeia, se sente estranhamente próximo da floresta viva, cheia de animais
e monstros, que conhece pelos indígenas e, em grande parte, através das
experiências e superstições dos índios (Freyre, 1977, p. 130).

Gilberto Freyre aponta, nesta espécie de “memória social”, uma herança


que teríamos com relação aos animais e à floresta viva. Tal relação, é claro, é
fruto de nossa matriz cultural indígena e do seu desdobramento no nosso dia
a dia. Ao escrever sobre os animais, Freyre cita uma canção de ninar do Norte:

Durma, durma, meu filhinho


Lá no mato tem um bicho
Chamado carrapatu.

Há, na cultura brasileira, tantas outras músicas infantis usadas no ninar das
crianças; se coloco esta para exemplificar é para nos encaminhar ao segundo
ponto: a configuração dos quartos de bebês, o complexo mundo da criança nos
seus primeiros dias.
Este elemento é interessante, pois a maioria dos quartos são rodeados por
animais — expressando o nosso animismo indígena e nosso totemismo — , a
galinha, o cachorrinho, o porquinho, a vaquinha, o cavalinho, o elefantinho, o
ursinho, etc. Os brinquedos que envolvem o mundo infantil também contêm
uma porção de animais, o leãozinho de pelúcia, o cachorrinho de plástico, a
galinha, dentre outros; além de haver uma enorme quantidade de desenhos
infantis que, desde cedo, usam animais na tentativa de acalmar o choro ou
ensinar a fala. Há o contraponto, o animal triturado como comida, o animal
triturado na papinha do bebê, o leite da vaca que sofre de mastite devido ao
excesso de peso e de hormônios e o brinquedo que também é uma posse da
criança, etc. Neste momento, mesmo que a criança não tenha consciência destas
questões, já encontramos o poder da tradição que está em todo o quarto. Somado
a isso, este é o duplo vínculo que parece digno de acréscimo aqui, principalmente
quando pensamos a atitude especista e a esquizofrenia moral.
Para Francione, a “cura” para a esquizofrenia moral é o humanitarismo, sem
que esta atitude se desvincule do fato de não entendermos mais os animais como

62 RAFAEL LEOPOLDO
uma propriedade. Daí, decerto tivéssemos uma só mensagem e uma relação
mais afetuosa com os animais. Para Francione, somente este caminho pode
gerar uma ética em relação aos animais, porque um humanitarismo vinculado
ao entendimento do outro como propriedade privada (já vimos na história)
chama-se “escravidão”. Sendo um autor norte-americano, Francione escreve
sobre a experiência dos Estados Unidos, mas parece pertinente que pensemos
os nossos brasis, pois aqui o negro, que era escravo e propriedade, veio da
seguinte forma:

Arrastado pelo pombeiro – mercado africano de escravos – para a praia, onde


seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam
em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, era deitado no
meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu
tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais
hedionda. Escapando vivo à travessia, caia no outro mercado, no lado de cá,
onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela
grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora
de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares,
para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito
horas por dia, todos os dias do ano (Ribeiro, 2006, p. 107).

No coração deste negro não residiria a vontade de receber 100 chibatadas


pedagógicas, para que só assim aprendesse a ficar em seu lugar e a tirar do seu
coração o sonho da fuga, ou ainda, receber “pias chibatadas” que faria com que
ele ganhasse a morte e, então, como uma espécie de premiação, conhecesse o
Deus branco. A fuga, no coração do negro, é querer não ser propriedade de
ninguém. Esta fuga, muitas vezes, se deu pela via do suicídio. Em sua obra O
abolicionismo, Joaquim Nabuco questionou “Quem pode, assim, condenar o
suicídio do escravo como covardia ou deserção?” A resposta é ninguém. Ninguém
poderia, já que a morte seria melhor do que uma vida do berço ao túmulo
debaixo do chicote do feitor.
Uma analogia que não é rara, entre os ativistas dos direitos dos animais, é
comparar a situação dos escravos negros, índios, pardos, etc., aos animais não
humanos, porque estes últimos ainda estariam em uma situação de escravidão,
atados pescoço a pescoço, em espaços mínimos. Antes da escravidão negra
tínhamos também a escravidão indígena e, por sua vez, os índios eram uma

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 63


“mercadoria” mais barata do que a negra. Eram conhecidos como os “escravos
dos pobres”.
Darcy Ribeiro apresenta um comentário interessante em sua obra O povo
brasileiro, sobre o período da colonização do Brasil, interligando o ser humano
indígena à condição de bicho, e ambos à condição de propriedade privada: “para
os colonos, os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de
bicho que de gente, só os recomendava à escravidão” (Ribeiro, 2006, p. 49). Em
outro ponto, Ribeiro afirma que:

No caso dos paulistas juntavam tantos índios que tiveram de desenvolver uma
nomenclatura para escriturá-los como peças dos seus inventários. Assim é
que falam de peças de serviços, gente roja, serviços obrigatórios, gente do
Brasil, servidores. Tudo isso para que as mencionadas peças sucedessem
de pai a filho como propriedade privada, sem falar em escravidão (Ribeiro,
2006, p. 92).

Novamente a pergunta que ecoa é: qual seria a cura possível para a


esquizofrenia moral? Se pensarmos em Singer e sua Liberação Animal, estaríamos
no âmbito de praticar um humanitarismo, procurar cada vez mais um bem-estar
para os animais não humanos; ainda assim, seria possível utilizá-los para as
diversas empreitadas da espécie humana, estaríamos dentro de uma mensagem
plurívoca e obscura, porque o animal não humano é cuidado com zelo para que
seja ao final sacrificado.
No entanto, se pensarmos juntamente com Francione e nos defrontarmos
com a questão do humanitarismo versus a propriedade privada, vemos que,
quando há as duas opções em um mesmo âmbito, geralmente, o que prevalece
é o interesse do proprietário, o que prevalece é o interesse do dono e não da
propriedade.
Para Francione, a cura desta esquizofrenia moral seria a adoção de uma
ética de igual consideração de interesses e a abolição da propriedade privada.
É possível pensar que, neste momento, a mensagem de duplo vínculo estaria
desfeita. Agora seria uma mensagem unívoca e clara.

64 RAFAEL LEOPOLDO
O LUTO E A LINGUAGEM

Fonte: 19thcenturyart-faco [Site]. Edwin Landseer. Nesta pintura, temos a representação de um


animal deitado junto a um caixão. Trata-se neste momento de compreendermos que os animais
não humanos enlutam. Como visto nesta pintura, um luto que não envolve tão-somente uma
mesma espécie. Entendemos que o luto, que seria uma característica tão humana, perpassa tantos
outros, perpassa profundamente o animal não humano.

Pensando na condição queer que os animais têm em nossa sociedade


(condição de coisa, de objeto, de mercadoria, de propriedade privada),
vamos nos voltar para dois elementos que nos auxiliarão na compreensão da
complexidade do animal não humano: o luto e a linguagem. O luto, como
sabemos, teve uma grande elaboração teórica via pensamento queer com a
filósofa Judith Butler e o seu livro Quadros de guerra: quando a vida é passível
de luto? — em que a autora entende o luto como um afeto político e nos indaga
diante de quais pessoas sentimos o luto e diante de quais pessoas deixamos de
praticar e de senti-lo. Tal questão elaborada por Butler é interessante e comporia
uma relação com os animais se nos perguntássemos: por que os animais não
são dignos de luto? Todavia, não é este aspecto que versaremos a respeito do
tema. Trata-se de mostrar de que jeito esta característica, que pareceria demais
humana, também está no cerne do coração do não humano e, até mesmo, de

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 65


um luto entre espécies. Os animais enlutam, entristecem e, de maneira mais
cruel, nós, Humanos — lembremos que Bruno Latour usa o termo “Humano”
com maiúscula para designar o período moderno do pensamento ocidental —
provocamos o luto nos animais.
Estes dois aspectos — luto e linguagem — podem ser vistos como um
contraponto à lógica cartesiana que enxerga o animal como uma máquina, e
poderiam servir, também, como um argumento que chega a contrapelo diante
da visão do animal como um robô que não sentiria dor. Afirmamos, então, o luto
dos animais e a linguagem dos animais, a especificidade do sofrimento diante
do outro e a especificidade da linguagem. Neste segundo ponto, caminhamos
nos vestígios de Gregory Bateson e Marck Bekoff. Ambos apresentarão um
tópico importante para relacionar a linguagem com o jogo, com a brincadeira,
deixando a questão animal mais lúdica.
Mais do que perpassar algum caso sobre o luto animal ou fazer apontamentos
sobre a linguagem, trata-se de deixar implícita uma linha entre a filosofia e
a etologia, desde seus aspectos políticos (por exemplo, o desdobramento da
etologia nos direitos dos animais), até seus aspectos científicos (a tentativa de a
etologia traçar uma continuidade mental entre diferentes espécies), remontando
e apontando para questões filosóficas das diversas disciplinas que estudam a
mente.
O filósofo francês, Jacques Derrida, já observava quão absurdo era o
conceito de “animal”, porque nesta palavra estaria tanto a formiga quanto o
elefante — e entre estes dois animais há um mundo de diferença. Pensando na
diferença é que podemos falar sobre o luto, porque o luto de uma formiga é, de
fato, distinto do luto de um elefante. Este elefante que comumente dizem não
esquecer nada. Poderíamos falar, entretanto, de luto até mesmo das formigas?
Talvez, já que o biólogo E. O. Wilson observou que, quando uma formiga morre,
o corpo dela é ignorado pelas outras por alguns dias, mas depois carregado para
um lugar que seria equivalente a um cemitério.
Ainda sobre o último tipo de luto citado, sabemos que aproximadamente
dois dias após a morte de alguma formiga, tem-se a liberação de ácido oleico
do corpo dela. Este ácido desencadearia nas outras a reação de carregar o corpo
da formiga falecida. Este comentário, é claro, é um exemplo extremo, porque
não esperamos que o mesmo aconteça com outros animais. Podemos pensar
na complexidade de um chimpanzé, de um elefante, inclusive dos animais

66 RAFAEL LEOPOLDO
domésticos, como determinados porcos, cachorros, coelhos, gatos, etc. Deste
modo, é fácil deduzir que os animais humanos ou não humanos expressam o
seu luto de formas distintas e não caberia buscar uma unidade, uma igualdade
desta expressão, mas, sim, captar as diferenças.
Até dentro de uma mesma espécie o luto é sentido e demostrado de formas
diversas e este é um dos motivos da complexidade ao estudar o tema. Basta que
pensemos sobre o luto humano e a sua variedade de expressão, para concluirmos
que no mundo do não humano também há uma variedade imensa, apesar de
ainda não estarmos nem perto de compreendê-la.

A TRISTEZA DOS ELEFANTES

Em sua obra A vida emocional dos animais, Marc Bekoff comenta que os
elefantes têm uma profunda curiosidade com os mortos e se preocupam com
o sofrimento e com a morte. A antropóloga, Barbara J. King, escreve um livro
inteiro sobre o luto dos animais e não deixa de declarar como os elefantes são
paradigmáticos a respeito do sentimento de luto. Um livro sobre o luto também
é um livro amoroso, posto que, somente pode haver um verdadeiro trabalho de
luto sob aquilo que se amou.
Para exemplificar a “curiosidade” dos elefantes para com a morte, em seu
livro, Bekoff aborda um experimento que foi feito com elefantes selvagens. O
experimento consistiu em mostrar para dezenove grupos de elefantes objetos
diversos; entre eles, ossadas e presas de elefantes. Estes últimos objetos eram
os que mais chamavam a atenção dos grupos de elefantes e, mesmo diante de
crânios de outros animais, como de búfalos e rinocerontes, os elefantes gastaram
um maior tempo olhando a ossada de sua própria espécie.
O experimento que fora feito com os elefantes é reflexivo, pois estamos ante
a afirmação sólida de que estes animais possuem uma real preocupação com
a morte. Ainda mais intrigante que um grupo de elefantes olhando a ossada
de sua própria espécie, é perceber um luto interespécie, e é um luto deste tipo
que Barbara King aborda em seu livro How animal grieve, traduzido no Brasil
por “O que sente os animais?” (título que, a propósito, seria mais fielmente
traduzido do inglês como “Como os animais enlutam?” , ou ainda, “Como os
animais sentem o luto?”).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 67


King escreve sobre a história de Tarra e Bella; a primeira, um elefante de
corpo volumoso, cinzento, de orelhas enormes e tromba a balançar; a segunda
uma cadela vira-lata, com um corpo muito menor, branca e travessa. As duas
passam a conviver e sem uma interferência humana. A autora comenta que “a
confiança que Bella, a cadela, tinha em sua amiga ficava evidente ao permitir
que Tarra acariciasse sua barriga com a pata enorme” (King, 2013, p. 134). Esta
amizade improvável durou cerca de oito anos, mas terminou devido a morte de
Bella, atacada por animais selvagens, muito provavelmente coiotes. A elefante,
Tarra, teria sido a primeira a encontrar Bella. Tarra carregou a amiga morta para
o celeiro onde as duas, às vezes, ficavam juntas. Os funcionários do santuário
que fizeram o enterro de Bella escreveram o seguinte em seu site:

“Tarra optou por não participar do enterro. Ela estava perto, a menos de cem
metros de distância, atrás de algumas árvores. Mas não veio. Já se despedira.
Aquilo era para os humanos. No dia seguinte, funcionários que cuidavam dos
animais fizeram uma dolorosa descoberta: Tarra visitara a sepultura de Bella
em algum momento durante a noite ou de manhã cedo. Eles encontraram
fezes por perto e uma pegada de elefante bem em cima da sepultura de Bella.”

Depois de tanto tempo de amizade, mesmo entre um elefante e uma cadela,


a resposta do luto é algo bem provável e é este o sentimento que pareceu estar no
corpo de Tarra. Primeiro Tarra sentiu a falta de Bella, sofreu esta falta quando ela
não mais aparecia por alguns dias, logo depois sentiu a perda diante da morte.

A TRISTEZA DOS URSOS

No segundo tópico deste capítulo, quando falávamos sobre o especismo e


a esquizofrenia moral, um dos problemas destacados era a relação ambivalente
com os animais. Quando bebês, muitas crianças tiveram ao seu lado um ursinho
de pelúcia, como também, é bem possível, viram vários programas televisivos
com ursos dotados de um grande carisma. Quiçá, tal fato seja um dos motivos
de soar tão chocante ler a respeito de “fazendas de ursos”. O conceito de fazenda
de ursos está por toda a Ásia. São locais onde ursos são mantidos em cativeiro,
porque sua bile contém um composto considerado valioso para a medicina:
a substância chamada ácido ursodeoxicólico, ou UDCA, considerada útil no
combate a doenças de fígado, febre alta, etc.

68 RAFAEL LEOPOLDO
Esta substância não é oriunda apenas do urso. Muitos animais a produzem,
e há também um composto sintético, denominado ursodiol, que é usado para
o tratamento de cálculo biliar. Contudo, a autora Else Poulsen formula que a
produção de um composto sintético foi uma espécie de “tiro pela culatra” para
o bem-estar dos animais, já que houve uma maior divulgação deste “produto”
e ainda levou a procura do artigo genuíno por certos grupos abastados, não
dando fim às fazendas de ursos.
Barbara King escreve que “na China, os ursos pretos asiáticos tornam-se
nada mais do que máquinas de bile vivas” (King, 2013, p. 145). A situação de
alguns ursos nestas fazendas baseia-se em estarem deitados em um engradado
de tela de arame, em formato de caixão, com espaço livre apenas para moverem
as patas e apanhar comida. O urso medicado para ficar meio inconsciente é
amarrado com cordas e um cateter de metal fica permanentemente preso
a vesícula biliar e “com o passar do tempo, alguns ursos simplesmente
enlouquecem. Incapazes de se libertar, eles batem a cabeça nas barras” (King,
2013, p. 146).
É impossível remontar as condições de uma fazenda de urso em poucas
palavras, mas estes apontamentos são necessários para falarmos de um caso em
particular: uma notícia de Marc Bekoff a respeito de uma ursa que teria matado
o seu filhote e se matado em uma fazenda de urso chinesa, no qual King tece um
comentário oportuno ao provável “suicídio”. Teria acontecido o seguinte: o filho
da ursa é capturado por um funcionário e quando começa a coleta da bile do
filhote ele grita de agonia. A mãe ursa em desespero e, de alguma forma, liberta-
se de sua jaula. Neste momento, ela abraça o seu filhote até o estrangulamento;
depois, corre de encontro a uma parede onde bate, intencionalmente, a sua
cabeça e morre.
A descrição do acontecimento com a mãe ursa e seu filhote é lacunar, porém
não invalida as questões que fazem surgir:

Alguns animais podem fazer uma escolha consciente de se matar? Uma


testemunha citada numa notícia de jornal alegou que a mãe matou seu filhote
“para salvá-lo de uma vida infernal”. Será que alguns animais raciocinam até
o nível necessário para motivar uma ação dessas? Será que os ursos executam
o que, a rigor, é um assassinato misericordioso? Sabemos que o outro lado

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 69


do amor é a tristeza; o outro lado da alegria compartilhada é a solitária dor
da perda (King, 2013, p. 147).

O biólogo, Richard Dawkins, na obra O gene egoísta, já apontava para o


comportamento altruísta de diversos animais, por exemplo, aves que se colocam
à frente de um predador para serem devoradas e salvarem os demais. Contudo,
para este autor, a atitude altruísta na verdade seria uma tentativa de preservação
dos genes. Dawkins não entra no nível psicológico que pode acometer os
animais, pensando apenas nos efeitos de uma ação. A despeito disto, é difícil
não pensarmos no nível psicológico (o que fez o urso agir de determinada forma)
de um urso que vive nas condições de uma fazenda de urso.
É sabido que os elefantes podem sofrer de transtorno do estresse pós-
traumático. Da mesma forma, não deveríamos descartar que diversos
outros animais poderiam sofrer de males parecidos, apresentando um rol de
comportamentos anormais. Neste momento, não quero entrar no detalhe da
total intencionalidade da ursa que, muito provavelmente, tentou salvar o seu
filhote de uma vida horrível, de uma dor assombrosa. Basta reconhecer que em
muitos lugares os animais estão longe de possuir uma saúde física e psicológica.
No caso das fazendas de animais, estes dois âmbitos da saúde animal são
fortemente atacados, de modo que o comentário de Barbara King a respeito deste
caso é que também causamos o luto animal, produzimos condições na natureza
e em cativeiro para esta tristeza, esta desolação; e, no caso desta ursa, causamos
este comportamento anormal. Por outro lado, se fosse visível algum lampejo de
consciência nesta ursa, possivelmente a atitude não resultaria tão anormal, pois
parece lógico que, talvez, fosse melhor o sacrifício a uma existência repleta de
sofrimentos inimagináveis.

A BRINCADEIRA DOS ANIMAIS

Marc Bekoff não deixa de discorrer sobre a questão da brincadeira n’A


vida emocional dos animais, mas o seu foco é diferente do nosso. Quando
Bekoff escreve sobre a brincadeira, está concernido na questão da moralidade,
na compreensão de que os animais têm determinados costumes, códigos de
condutas, e tudo isso é possível deduzir no brincar dos animais. A moralidade
não apareceria somente no ser humano, teria, portanto, uma origem muito mais

70 RAFAEL LEOPOLDO
antiga. Por sua vez, quando falamos sobre a brincadeira dos animais, estamos
voltados para a questão da linguagem, na produção da linguagem por meio da
brincadeira dos animais, sendo possível afirmar a mesma coisa que dizíamos
a respeito da moralidade na esteira de Bekoff: a linguagem tem raízes deveras
mais antigas. Desta forma, mesmo que o foco seja diferente, entrevê-se um
ponto em comum, um continuum que mostra toda a nossa animalidade — no
melhor sentido desta palavra.
O capítulo 4, d’A vida emocional dos animais, é chamado de “Justiça,
empatia e respeito às regras no mundo selvagem: a descoberta da honra entre os
animais”. Este título oferece indícios manifestos do que se seguirá no desenvolver
do texto do autor. Bekoff aponta que:

Não estou dizendo que o comportamento moral dos animais seja idêntico ao
comportamento moral humano. Mas propriamente, a minha teoria é de que
o fenômeno ao qual nos referimos como “moralidade” é uma necessidade
biológica diversificada para a vida social. Assim como as emoções são uma
dádiva dos nossos ancestrais, o mesmo ocorre com os ingredientes básicos da
moralidade, ou seja, a cooperação, a empatia, a equidade, o senso de justiça
e a confiança (Bekoff, 2007, p. 106).

Diante da argumentação de que, da mesma forma que recebemos


determinadas emoções de nossos ancestrais teríamos recebido a dádiva da
moralidade, torna-se necessário fazer uma distinção básica entre moral e ética.
A palavra moral vem do latim mos e significa “costumes”. Estaríamos dentro
de um conjunto de costumes existentes em uma dada relação social, um conjunto
de normas estabelecidas. Contudo, a palavra ética, em seu sentido, vem do grego
ethikos, “modo de ser”, “comportamento”, e se aplica à disciplina filosófica que
investiga a diversidade de sistema morais. Deste modo, podemos entender que
os animais não humanos têm um comportamento moral, códigos de conduta
morais, mas não fazem uma ética, próxima da nossa reflexão sobre o costume.
Bekoff afirma que “os seres humanos têm ética e consciência espiritual, e os
animais demonstram códigos morais de comportamento” (Bekoff, 2007, p. 109.
Itálico do autor). Pensando nestas relações, na ética e nos comportamentos, é
que nos faremos uma pergunta a respeito do brincar: por que e como os animais
brincam? A iniciativa deste questionamento pode nos iluminar na compreensão
tanto do animal humano quanto do não humano.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 71


A resposta à pergunta anterior é cedida por Marc Bekoff, de maneira
simplíssima. Ele responde que eles brincam porque é divertido. O mesmo
desfecho poderia ser dado às brincadeiras das crianças, ou ainda, ao brincar
do adulto. Sigmund Freud e o saber psicanalítico não aceitariam a obviedade
desta resposta, mas ela, em determinado nível, é verdadeira, visto que existe
diversão na brincadeira, independente de diversos fatores psicológicos que
envolvem o brincar do animal, o brincar da criança ou o fantasiar do adulto.
Bekoff, com o seu viés científico, levanta dois pontos para argumentar sobre o
divertimento dos animais: os neurônios-espelho e a química do cérebro (ou a
neuroquímica da alegria).
Na primeira argumentação, considera-se que na brincadeira há uma forte
relação com o outro. Por isso, são citadas as pesquisas sobre os neurônios-
espelho: porque o autor afirma que os indivíduos poderiam sentir as emoções
uns dos outros e este sentimento faria com que houvesse uma atmosfera de
brincadeira entre os animais. A neuroquímica da alegria também iria para o
mesmo caminho: a ciência poderia confirmar hoje tal diversão que vemos no
brincar dos animais. Se prestarmos um pouco de atenção (evito aqui citar as
substâncias químicas que produziriam a alegria), veríamos que a ideia geral é a
de que animais e seres humanos têm muitas substâncias químicas em comum
que desempenham um papel na produção das emoções, na produção da alegria
e do prazer.
A respeito do como os animais brincam, Bekoff pesquisa principalmente
os canídeos. Com eles, o início da brincadeira se dá com a curvatura do corpo.
Isso afirma que eles estão para começar um jogo. Na brincadeira, encontramos o
comportamento predatório, o comportamento anti-predatório, o acasalamento
e outras condutas dos animais, mas, de forma diferente. Por apresentar estas
condutas na brincadeira, muitas vezes, podemos interpretá-la de forma errada,
interpretar um beliscão como uma mordida. Dois animais que brincam com um
comportamento predatório podem diminuir a intensidade de uma mordida ou
aumentá-la, quase dizendo “te mordo, mas é somente uma brincadeira”, ou seja,
a brincadeira é similar a um combate, mas não é a mesma coisa que o combate.
Esta mordida, por sua vez, não se diferencia somente quantitativamente, mas,
também, qualitativamente, visto que há uma dramatização dos atos, há um
estilo nos gestos. A brincadeira não é um “como se” estivesse lutando, a luta é
análoga, porque o que está na brincadeira não é o mesmo, mas algo diferente e
este diferente está na arena do que se entende por jogo, existe algo a mais, uma

72 RAFAEL LEOPOLDO
mais-valia energética, uma mais-valia de vida, uma intensidade, um entusiasmo
corporal. Os animais dizem, a todo o tempo, por meio das suas ações: “isso é
um jogo”.
Gregory Betson pensa a afirmação “isso é um jogo” de uma forma bem
curiosa: ao dizer “isso é um jogo” ele também diz “isso não é uma mordida”. A
mordida de brincadeira se coloca no lugar de outra ação, como, também, põe
a sua função normal em suspenso. Brain Massumi, em sua obra What animals
teach us about politcs (“O que os animais nos ensinam sobre política”) afirma
que, com a mordida de brincadeira de um lobo, este animal diz o seguinte:
“isto não é uma mordida; isto não é uma luta; isto é um jogo; eu estou aqui me
colocando num registro existencial diferente que, no entanto, significa o seu
análogo suspenso” (Massumi, 2014, p. 4. Itálico nosso). Esta função normal
em suspenso é a criação de uma outra atmosfera, de um outro ambiente;
trata-se do espaço da brincadeira, do espaço do lúdico. Quando pensamos na
curvatura de um cão que começa a brincar, ele coloca um outro animal nesta
atmosfera da brincadeira. Tem-se, desta forma, um outro registro existencial,
onde vigora a gestualidade lúdica. Há, neste ambiente, uma liberação de uma
trans-individualidade, que transforma ambos na brincadeira, que muda os gestos
para um ato performativo, para um determinado poder de variação gestual que,
por sua parte, abre as portas para a improvisação das formas gestuais que nos
levam em direção à inventividade. Pensar a variação gestual, a improvisação
e a inventividade, é vital para que saiamos de uma perspectiva cartesiana da
animalidade, da compreensão do animal como um robô, onde somente vigoraria
uma existência instintual (e instinto entendido como um sistema arco-reflexo,
e não em sua variação continua, em sua criatividade).
Nesta atmosfera da brincadeira dos animais, neste ambiente do lúdico
é que Betson nos ensina dois pontos a respeito do animal e da linguagem:
1) o primeiro ponto é que o gesto lúdico é uma forma de abstração, ou seja,
reflexividade; pode-se colocar, em outras palavras, que se trata de um elemento
de metacomunicação (quando o animal faz uma diferenciação entre a mordida
predatória e a mordida lúdica, o gesto de combate e o gesto brincalhão, tem-se
uma abstração da própria ação, uma metacomunicação); 2) o segundo ponto é
que esta abstração gestual se apresenta no condicional, pois as ações dos animais
não denotam o que elas deveriam denotar, há uma mais-valia lúdica.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 73


É a partir destas nuances que se pode dizer que existe uma linguagem
no mundo animal. E é esta linguagem que é vista no brincar animal e que é a
condição para a linguagem humana. Massumi ainda nos agrega com observações
instigantes:

A linguagem humana é essencialmente animal, pelo ponto de vista das


capacidades lúdicas que ela carrega, tão intimamente interligada com a
sua potência metalinguística. Pense no humor. Por que não considerar a
linguagem humana uma reprise da brincadeira dos animais, em uma maior
potência? Ou dizer que é na linguagem que o humano encontra o seu mais
alto grau de animalidade? Não foram Deleuze e Guattari que insistiram que
é na escrita que o humano “devém-animal” mais intensamente, isto é, entra
mais intensamente em uma zona de indiscernibilidade com a sua própria
animalidade? (Massumi, 2014, p. 8).

Trazer estes pontos à tona é evidenciar outras questões a respeito da


animalidade, principalmente, como nós convivemos como a nossa própria
animalidade, com este continuum entre o animal e o animal que somos.

74 RAFAEL LEOPOLDO
A TEORIA QUEER E O PÓS-ESTRUTURALISMO

TEORIA QUEER E A FILOSOFIA FRANCESA

Para esquadrinharmos o início da teoria queer, temos que evocar alguns


elementos que formam sua própria condição de aparecimento. Pensando nos
Estados Unidos e na Europa, já é notável um conjunto de mudanças sociais
nos anos 60 — mudanças sociais que também se envolvem de certa maneira
com a América Latina — como a contracultura, o movimento afro-americano,
os hippies, o movimento antimilitar, a nova esquerda, os feminismos. Além
disso, salientamos a criação de uma identidade gay nos anos 70/80. Todavia, no
âmbito da filosofia, no período dos anos 60 e 70, encontramos diversos autores
importantes que, geralmente, estão sobre a rubrica do pós-estruturalismo.
Dando um passo atrás e pensando no que se define como estruturalismo,
encontramos diversos filósofos que estudaram o conceito de estrutura. Tal
conceito foi utilizado em contraponto ao existencialismo (principalmente de
Jean-Paul Sartre), ao subjetivismo idealista, ao humanismo personalista, ao
historicismo; tais correntes abarcando ideias como a total liberdade do sujeito
(o indivíduo condenado a ser livre), construtor do seu futuro (o indivíduo como
um projeto), a sua responsabilidade na feitura da história, no desenvolvimento
do ser humano, dentre outras coisas. O estruturalismo ia contra tal concepção
de homem; contra este conjunto de ideias, pois valorizava a preocupação com
estruturas profundas da relação ao indivíduo. Haveria quase uma onipresença
de estruturas psicológicas, sociais, econômicas e epistêmicas, de modo que
dificilmente se poderia falar de um “sujeito”, de um “eu”, de uma “consciência”,
ou ainda, de um “espírito livre”.
No estruturalismo, o homem, o sujeito, o eu, a consciência, parecem ser
muito pouco. O que está em jogo não é o ser, mas a relação; não é o sujeito,
mas a estrutura. Os homens não seriam constituídos fora da estrutura que os
constituem, daí a necessidade de estudar os elementos-chave das estruturas

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 75


que organizam determinado campo de conhecimento. O conhecimento destas
estruturas produziria um saber mais científico, estabelecendo um funcionamento
universal de certos componentes do social e do humano. Os autores que estão
sob a categoria de pós-estruturalismo, de alguma forma, fazem uma crítica a
este tipo de conhecimento de mundo. Seja a própria noção de estrutura, seja
a sua tentativa titânica de produzir um saber científico ou algum outro dado
do pensamento estrutural. Os autores aqui abordados são: Foucault, Deleuze,
Guattari e Derrida. Todos eles têm uma relação com o pensamento queer, mas,
de forma tangencial, abordaremos também o pensamento de Bauman, de Bigo
e de Mathiesen, que atualizaram alguns dos debates propostos, principalmente,
por Foucault.
Não obstante, os filósofos já citados estão, juntamente com os estruturalistas,
numa perspectiva do esgotamento da questão de um pensamento centrado
no indivíduo, o indivíduo aqui entendido como o proposto por Descartes,
aquele que não se divide, centrado em si mesmo e no seu eu/saber solipsista.
Com o esgotamento do existencialismo, uma filosofia totalmente centrada no
sujeito parece ter terminado, daí o surgimento de novas abordagens, como a de
Foucault, Deleuze, Guattari e Derrida. Um dado comum entre eles: trata-se de
uma profunda desconfiança do eu, da representação, da identidade e a teoria
queer não vai ser alheia a estas mudanças — principalmente a filósofa Judith
Butler abordará estes pontos em seu livro, Problemas de gênero — e muitos
elementos destes filósofos serão incorporados pelo pensamento queer.
Quando pensamos a teoria queer e o pós-estruturalismo, não fazemos
uma mera incorporação do pós-estruturalismo no pensamento queer. Como
afirma Paul Beatriz Preciado, em seu prólogo ao livro O desejo homossexual,
de Guy Hocquenghem, não há primeiro uma teoria pós-estruturalista que se
queeriza ao ser repensada por bichas, sapatas e transexuais, mas, tanto Foucault,
Deleuze, Guattari e Derrida são herdeiros do feminismo e dos movimentos
homossexuais, tal como estes mesmos movimentos são herdeiros da filosofia
pós-estrutural. Nesse sentido, há uma interpolação dos saberes, que envolvem
tanto a filosofia quanto o feminismo, ou ainda, este novo saber que vem surgindo
molecularizado, seja em linhas de fugas institucionais ou nas tensões sociais
vividas por aqueles que resistem e re-existem.

76 RAFAEL LEOPOLDO
FOUCAULT: DISCIPLINA E BIOPOLÍTICA

Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo francês de grande influência


para as humanidades. Ativista político, teórico social, crítico cultural, historiador
criativo e filósofo, Foucault abordou temas inusitados para a maioria dos
filósofos, por exemplo, a loucura, a sexualidade, as prisões, etc. Estes tópicos já
o colocariam como um pesquisador atípico na história da filosofia e na produção
do pensamento filosófico. Ademais, sua vida privada não deixou de causar
interesse, pois Foucault foi um homossexual e faleceu de AIDS, experimentou
drogas, esteve envolvido com práticas sexuais não hegemônicas e procurou
determinadas experiências-limite.
Numa tentativa pedagógica de compreender a obra foucaultiana, acostumou-
se a dividi-la em três grandes áreas: 1) a dimensão do saber; 2) a dimensão do
poder; 3) e a dimensão ética. Neste primeiro tópico, vamos abordar a dimensão
do poder, principalmente, como é constituído o sujeito moderno via disciplina,
via docilização dos corpos, e como o poder é exercido no sujeito. O outro ponto
é pensar não mais o poder diante de um indivíduo, mas, sobretudo, diante da
espécie. Aqui encontramos em Foucault a categoria do biopoder (posteriormente
interessante para a compreensão do racismo europeu31), do sujeito como alguém
precário e da administração contínua da vida. Estes dois elementos da filosofia
de Foucault têm uma grande potencialidade para o pensamento queer e serão
utilizados por alguns pensadores e pensadoras de forma constante — Haraway
aponta o conceito de biopolítica em seu manifesto e Preciado o retoma quando
pesquisa o poder farmapornográfico. Haraway e Preciado trazem uma nova
formulação deste conceito e ambos fazem parte de um giro tecnológico no
pensamento queer —, mesmo quando ele não é citado literalmente.
Para um desenvolvimento destes dois primeiros tópicos, o livro-chave é o
clássico Vigiar e punir: o nascimento das prisões; nele, a questão da disciplina
é focada de forma ímpar, tendo como exemplo paradigmático as prisões; o
segundo livro é a obra Em defesa da sociedade, e sua elaboração do conceito
de biopoder, biopolítica, na “aula de 17 de março de 1976”. Saímos de uma

31
Michel Foucault tem uma análise complexa do racismo europeu na era da biopolítica; todavia, o racismo
brasileiro se configura de uma forma distinta do europeu. Para uma aproximação entre eles ver o capítulo
sobre a teoria queer e o feminismo negro, onde é abordado a questão da problematização a respeito do mito
da “democracia racial brasileira”.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 77


elaboração sobre o homem-corpo para uma análise do homem enquanto espécie;
saímos da análise de um corpo individual em ambientes fechados por meio do
micropoder para a análise do corpo enquanto espécie por meio do biopoder, por
meio da biopolítica. Então, regressemos para o primeiro tópico, o surgimento
do sujeito moderno por meio da disciplina.
Por mais que o livro de Foucault se chame Vigiar e punir: o nascimento
das prisões e nos induza a pensar que esta obra seja apenas um apanhado das
técnicas de vigilância e punição no ambiente prisional ou ainda uma história
do surgimento da prisão; o livro diz respeito, sobretudo, a uma determinada
genealogia do sujeito moderno como assujeitado, como um corpo dócil
passível de uma constante disciplina diante das diversas técnicas de poder. A
análise de Foucault engloba três figuras de punição: 1) a tortura soberana; 2) a
reforma humanista; 3) e, por último, a detenção normalizadora. Retomemos
a argumentação foucaultiana neste último elemento para fazermos alguns
apontamentos a respeito do sujeito como um objeto e a tecnologia disciplinar
— uma nova técnica de poder.
Na detenção normalizadora, não havia, como na tortura soberana, uma forte
punição corporal — os suplícios, o carnaval de mil mortes, toda uma tecnologia
da tortura e do sofrimento, a figura do sujeito ao olhar do povo que o condena.
Também, não se trata exatamente de uma reforma humanista e sua tentativa
de afetar mais a alma que o corpo do sujeito, a tentativa de uma mudança
moral. A detenção normalizadora propõe uma modificação tanto do corpo
quanto da alma, por meio de técnicas de administração de poder e saber que
produzem o corpo dócil, onde há todo tipo de inscrição, onde a lei é incorporada.
Em sua análise da prisão, Foucault nos dá o exemplo tão conhecido do
panoptismo, o qual ajuda na compreensão sobre a vigilância e a tecnologia
disciplinar. Em um outro momento, a respeito do perfil e pobrefóbia, vamos
abordar as variações do panoptismo, com a ideia de pós-panóptico em Bauman,
de banoptismo em Bigo e de sinóptico em Mathiesen e todos estes componentes
tornarão mais complexa a análise de Foucault, levando-as para um contexto
ainda mais atual. De qualquer maneira, voltemo-nos para uma primeira
aproximação do pan-óptico.
O panóptico — o olho que tudo vê — é uma referência ao projeto arquitetônico
de uma prisão do filósofo e jurista Jeremy Bentham. Neste projeto, haveria uma
torre central em que seria possível ver os presos em cada uma de suas celas,

78 RAFAEL LEOPOLDO
sem que estes soubessem quem estivera vigiando-os. Deste modo, geraria um
sentimento de constante vigilância, de uma vigilância ininterrupta. Se quando
os presos eram trancafiados em masmorras o intuito era trancar, privar de
luz e visibilidade, agora, com o panoptismo, a ideia é trancar, dar luz e gerar
visibilidade, no entendimento de que “a visibilidade é uma armadilha” (Foucault,
2009, p. 190. Itálico nosso), visto que quanto maior o campo de visibilidade do
prisioneiro, maior seria o saber e o poder sobre aquele corpo. Neste momento,
é importante observar que o panoptismo não é somente uma estrutura física,
mas, também, uma tecnologia de poder que induz um estado consciente de
permanente visibilidade.
Entendido como uma tecnologia, o panoptismo poderia colonizar outros
ambientes, já que se apresenta como ramificável e flexível. Esta compreensão
já está nas próprias cartas de Bentham (carta 19, 20 e 21), ou seja, a própria
estrutura panóptica (o princípio da inspeção) poderia ser utilizado nos hospícios,
hospitais e escolas. Logo abaixo, encontramos um exemplo de um desenho
arquitetônico de forma panóptica feita pelo arquiteto Willey Reveley:

Fonte: Wikipedia [Site]. Willey Reveley. No livro Vigiar e Punir encontramos algumas imagens
que mostram a estrutura panóptica. Sabemos que não se trata de apenas uma estrutura, mas,
sim, de um princípio de vigilância que coloniza diversos ambientes. Quando compreendemos
o panóptico como uma tecnologia e não tão somente como uma estrutura física, passamos a
entendê-lo melhor, já que ele pode ser visto em diversos lugares diferentes da prisão.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 79


Jacques-Alain Miller (2008) aponta que os dois princípios fundamentais
da construção panóptica são “posição central da vigilância e sua invisibilidade”
(p. 90), dois pontos que podemos contemplar na figura. A respeito do primeiro
ponto, a posição circular é a mais econômica; economia com relação ao pessoal,
pois, com a arquitetura central, é possível utilizar somente um inspetor. O
segundo ponto, por outro lado, é onde se mostra a característica mais astuciosa
do dispositivo de vigilância, que é ver sem ser visto. Neste sentido, o panóptico
é a imitação de Deus, o olhar do inspetor (existente ou não) tem uma aparente
onipresença. Se seguirmos os passos não só de Foucault, mas da análise de Miller,
chegamos à conclusão de que este Olhar é uma imitação de Deus, a produção
de um Deus artificial. Deveríamos acrescentar que este Deus, talvez, não seja
nem bom nem justo — ao menos para os insurgentes, para os opositores —, mas
compõe toda a mitologia da disciplina e do controle.
Reafirmamos: a tecnologia disciplinar usada nas prisões não é uma forma
de poder exclusiva daquele ambiente. Na análise de Foucault, a cada momento,
essa tecnologia vai colonizar outros lugares, como as fábricas, as escolas, os
hospitais, etc. Nosso trabalho aqui é uma análise dos ambientes fechados, dos
arquipélagos carcerários, uma análise da toupeira — para usarmos uma imagem
de Deleuze. Com isto, fica claro que a disciplina é uma tecnologia, não uma
instituição. Diante destes fatores, uma pergunta vem a calhar: como funciona
a tecnologia disciplinar? Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, em sua obra Michel
Foucault: uma trajetória filosófica, nos oferecem uma resposta bem lúcida para
esta pergunta, e ainda fazem a distinção entre outros modos de poder:

A disciplina opera primeiramente sobre o corpo, pelo menos nos estágios


iniciais de seu desdobramento. Obviamente, a imposição de uma forma
social de controle sobre o corpo se encontra em todas as sociedades. O que
distingue as sociedades disciplinares é a forma que esse controle assume. O
corpo é abordado como um objeto a ser analisado e separado em suas partes
constitutivas. O objetivo da tecnologia disciplinar é forjar um corpo dócil
“que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado
e aperfeiçoado” (Dreyfus e Rabinow, 2010, p. 201-202).

A disciplina e a tecnologia disciplinar se caracterizariam, então, por


submeter um corpo, por transformá-lo e aperfeiçoá-lo.
Um filme que pode cair bem à guisa de exemplo para a disciplina é o Tempos
Modernos, de Chaplin. Nele, temos o Vagabundo que, entre tantos outros, entre

80 RAFAEL LEOPOLDO
milhões de outros, passa a lutar contra a pobreza, contra o desemprego; envolve-
se com as greves e fura-greves, e encontra, nas grandiosas máquinas, o ambiente
cinza das fábricas. Nesta película, o personagem principal faz tantos movimentos
repetitivos que, ao sair da fábrica, não para de fazer o mesmo movimento em
outros ambientes; do que podemos compreender que, na disciplina, há uma
anatomia-política, o corpo é aproveitado em cada detalhe, ele é dividido, o
uso do braço, o uso das mãos, o uso dos dedos, o uso das pernas, etc. Essas
unidades, tomadas separadamente, sofrem uma submissão, são transformadas
e aperfeiçoadas para uma determinada função.
Trata-se, ademais, de compreender o sujeito como um objeto que pode ser
moldado. Os movimentos automatizados são, cada vez mais, especializados e
geradores de um controle, também, do tempo, do espaço, da arquitetura. Reside
nisso, inclusive, o cômico do filme de Chaplin, o fato do personagem extrapolar
até mesmo o tempo designado na fábrica e passar a repetir este movimento
incessantemente: a máquina técnica acoplada à máquina social.
Com este movimento da tecnologia disciplinar moldando o indivíduo,
ela estaria, também, fabricando-o por meio de uma normalização técnica.
Novamente: esta tecnologia perpassa diversos âmbitos, a ponto de Foucault
cunhar o termo “sociedade disciplinar”. Agora, se este conceito dá conta do
micro, do indivíduo, dos ambientes fechados, certamente não dá conta do
macro, ao passo que o conceito que vai ampliar a análise de Foucault do social
é, exatamente, o de biopoder, o de biopolítica. Não há somente uma análise
do indivíduo enquanto um corpo disciplinado, mas, também, o corpo enquanto
espécie. Adentremos, então, na ideia de biopolítica.
Foucault vai assinalar que, já na segunda metade do século 18, surge algo
novo, uma outra tecnologia de poder, que não exclui a primeira, a tecnologia
disciplinar, que então debatíamos. Essa nova tecnologia não se aplica ao corpo
individual, mas ao corpo enquanto espécie, não mais uma anatomia política,
mas uma biopolítica. Contudo, do que se trata este novo poder, este biopoder?
Para Foucault:

Trata-se de um conjunto de processos, como a proporção dos nascimentos


e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc.
São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que,
justamente na metade do século XVIII, juntamente com uma porção de
problemas econômicos e políticos (os quais não retomo agora), constituíram,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 81


acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa
biopolítica (...) [Mas a biopolítica vai introduzir também] mecanismos muito
mais sutis, economicamente muito mais racionais do que a grande assistência,
a um só tempo maciça e lacunar, que era essencialmente vinculada à Igreja.
Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança
individual e coletiva, de seguridade, etc. (Foucault, 2010, p. 204-205).

Desta maneira, a biopolítica gera um saber sobre a população e os fenômenos


de massa; pensemos na natalidade, na morbidade, na incapacidade biológica,
etc. para, deste saber, gerar um campo de intervenção:

Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a
vida; vai ser preciso estimular a natalidade. E trata-se sobretudo de estabelecer
mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo
aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer
uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar
mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma
população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de
vida: mecanismos, como vocês veem, como os mecanismos disciplinares,
destinados em suma a maximizar forças e a extraí-las, mas que passam por
caminhos inteiramente diferentes (Foucault, 2010, p. 207).

Leva-se em conta, portanto, a vida, o processo biológico do corpo


enquanto espécie. Assegura-se sobre este corpo uma determinada disciplina,
um regulamento. Dentro desta regulamentação, um dos pontos do pensamento
de Foucault que penso ser crucial refere-se à “seguridade social”, ou seja, um
conjunto de políticas sociais que deveriam amparar o cidadão em um momento
derradeiro, como o desemprego, a doença e a velhice. Creio que este poder, se
pensarmos na biopolítica, seria um dos mais importantes na atualidade, posto
que pode levar os indivíduos a viverem num constante temor, num constante
estado de medo de cair na total precariedade.
Um dado pertinente para a teoria queer é como essas duas tecnologias
(a disciplinar e a biopolítica) se entrecruzam no que tange à sexualidade. A
sexualidade vai ser envolvida pela disciplina, pois exige um controle, uma
individualização, uma forma de vigilância contínua — Foucault cita, por
exemplo, o controle da masturbação das crianças como um controle disciplinar
—, bem como a sexualidade devido ao processo de procriação, que tende a se
tornar um problema que concerne ao biopoder, não mais limitado ao corpo de

82 RAFAEL LEOPOLDO
um indivíduo, mas à população. Diante deste entrecruzamento, Foucault faz um
comentário significativo sobre aqueles que estão fora da norma, os desviantes.
O filósofo aponta que eles serão punidos imediatamente, por exemplo, a criança
que se masturba ficaria doente para a vida toda, a sexualidade devassa teria seus
efeitos, também, na população. Pensemos, neste instante, nas teorias do século
19, como as da hereditariedade, da degenerescência.
Quando conjectura a ideia de biopoder, Foucault não chama a sociedade
de uma sociedade disciplinar apenas, mas, também, de uma sociedade de
normalização. Não se trata apenas da colonização de diversos ambientes feita pela
tecnologia disciplinar, mas de uma biopolítica normalizadora, regulamentadora
— o duplo jogo da disciplina e da normalização. Neste ponto da argumentação,
Foucault vai apontar outro dado que inclui os estudos queer: o racismo. A
questão, para Foucault, é que em uma sociedade biopolítica basta fazer viver,
assim, haveria a premência de como exercer o poder de fazer morrer — este
poder se dá com a ativação do racismo.
O racismo que funciona fragmentando um contínuo biológico, racismo
que funciona por uma “ética guerreira” que proclama que para você viver o
outro tem que morrer, racismo que funciona mesclando a ética guerreira com
o biológico, afirmando que há espécies inferiores e superiores, racismo que
funciona defendendo que há indivíduos anormais, degenerados, devassos e
que eles deveriam ser eliminados para o bem de uma determinada espécie,
racismo que funciona pela lógica de que a morte do outro é a segurança da
minha vida, mas, também, é o que vai gerar uma vida mais saudável, uma
população mais pura, racismo que funciona na tentativa da eliminação do
inimigo-biológico entendido, por vezes, como uma raça inferior. O racismo seria
o próprio mecanismo para ativar a função assassina do Estado, ativar a função
do soberano, ativar a função de multiplicar os riscos, de rejeitar, de expulsar,
etc. O racismo biológico perpassa o imaginário Europeu, e é sempre ativado
nas empreitadas de colonização, no genocídio, do mesmo modo que também
aparece como um bacilo da peste em certos partidos políticos na atualidade do
Norte Global.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 83


BAUMAN: A CRIAÇÃO DO PERFIL E A POBREFÓBIA

Diante de uma análise da disciplina e da biopolítica, gostaríamos de voltar


para alguns autores que, a partir de Foucault, verificaram variações a respeito do
panoptismo, até chegarmos na vigilância, na criação de perfis e, por meio destes
dados, no banimento que, por muitas vezes, reflete um padrão normalizador e
uma exclusão das minorias. Poderíamos dizer que há uma pobrefóbia na criação
do perfil, um fascismo suavizado por meio das tecnologias de vigilância.
Os autores que serão cotejados neste momento são, novamente, Foucault,
incluindo Bauman, Bigo e Mathiesen. Destacamos, principalmente, a obra
Vigilância líquida, de Bauman, que perpassa estes temas com um determinado
vigor. Trabalhemos, assim, o pós-panóptico, o banoptismo e o sinóptico, três
variações da interpretação foucaultiana da temática.
Na obra Vigilância líquida, há um capítulo chamado “A vigilância líquida
como pós-pan-óptico” onde encontramos as variações sobre o tema do
panoptismo (pós-panóptico, banóptico e sinóptico) e uma tentativa de refletir
sobre uma sociedade pós-disciplinar. Porém, quais são as armas teóricas no
diálogo de Bauman e Lyon? A primeira mutação no conceito é feita por Bauman.
O sociólogo entende que vivemos em um mundo “pós”- panóptico. Em relação
a este prefixo, é necessário contrastar dois pontos:

1. Bauman parece compreender o pan-óptico não como uma tecnologia de


vigilância, mas fortemente como um aparato físico de vigilância. O panoptismo,
para o autor, estaria dentro de sua conceituação de uma “modernidade dura”
em contraponto a uma “modernidade líquida”. Assim, o “pós” de Bauman
faz referência a outras formas de panoptismo que seriam de aplicabilidade
mais barata que o panóptico foucaultiano, que, por sua vez, seria de difícil
aplicabilidade e restrito a determinados ambientes.

2. É vital observar que este “pós” no conceito de Bauman não significa um “fim”,
porque para o autor o panoptismo estaria armado de formas que Foucault nem
imaginaria. Todavia, este panóptico não teria a mesma centralidade em nossa
sociedade, mas estaria vinculado a partes “não administrativas” da mesma, como
os campos de confinamento, as prisões, as clínicas psiquiátricas, etc. A citação
destes ambientes por Bauman confirma o seu entendimento do panoptismo como
um espaço físico e não, necessariamente, como uma tecnologia de vigilância e
poder.

84 RAFAEL LEOPOLDO
Bauman entende que, na atualidade, o panóptico não possui uma
centralidade e coloca-o como um aparato de vigilância de uma minoria.
Esta minoria, para Bauman, diz respeito a categoria utilizada em livro Vidas
desperdiçadas de “lixo humano” ou ainda de “refugo humano”.
A categoria do “lixo humano” ou do “refugo humano” corresponde aos
excluídos e aos restos da máquina social capitalista. O sociólogo chega a
relacionar essas minorias com a compreensão de um homo sacer, como analisado
por Giorgio Agamben. O conceito de Agamben refere-se a uma vida desprovida
de valor, seja na perspectiva humana ou na perspectiva divina. Um indivíduo
que não se define por leis positivas e nem por ser um portador dos direitos
humanos que precederia as normas jurídicas.
Para Bauman, o homo sacer seria a principal categoria do “refugo humano”,
aquele que não é e nunca será útil para a sociedade. O panoptismo teria o poder
de vigilância destes sujeitos, mas o pós-pan-óptico parece estar noutro âmbito.
Poderíamos envolver este pós-pan-óptico numa forma de “subjetivação”, mesmo
que o autor não use esta palavra com frequência. A imagem oportuna para este
processo de subjetivação é o “homem-caramujo” com o seu “panoptismo-pessoal”
em suas costas.
Bauman quando argumenta sobre o homem-caramujo, sobre este novo
panoptismo-pessoal, ele cita o livro Discurso da servidão voluntária, de Étienne
de la Boétie. A servidão voluntária apareceria de forma exemplar no ambiente
empresarial, onde há a luta para se obter o sucesso a partir de uma ferrenha
disciplina, obediência, conformidade, respeito à ordem, etc. A noção de
disciplina de Foucault mostra que, se o corpo ganha em utilidade, perde em
poder político, já que ele estará sempre submisso. Bauman vê nessa disciplina
uma tentativa de vários indivíduos de serem vencedores no ambiente de trabalho.
Deleuze, por sua vez, já salientava que “muitos jovens pedem estranhamente para
serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles
descobrirem a que estão sendo levados a servir, bem como seus antecessores
descobrirem, não sem dor, a finalidade das disciplinas” (Deleuze, 2013, p. 230).
O indivíduo assimilaria essas linhas duras de uma sociedade de controle. Na
empresa, os líderes, os gerentes passariam para os demais a lógica da vigilância,
do panoptismo-pessoal, do do it yourself (“faça você mesmo”), e as relações de
poder seriam verticais e horizontais e:

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 85


o propósito é aproveitar o total da personalidade subalterna e todo seu
tempo de vigília para as finalidades da empresa. Trata-se de um expediente
considerado, e não sem motivo, infinitamente mais conveniente e lucrativo
que as medidas pan-ópticas, sabidamente caras, incontroláveis, restritivas e
trabalhosas. A servidão, com a vigilância do desempenho 24 horas por dia,
sete dias por semana, está se tornando plena e verdadeiramente, para os
subordinados, uma tarefa do tipo “faça você mesmo” (Bauman, 2015, p.61).

Aproveitar a personalidade subalterna, preferencialmente 24 horas por dia,


7 dias por semana, juntamente, com uma vigilância que poderíamos chamar de
24/7. A conclusão lógica é o fim do sono no capitalismo tardio, como apontado
por Jonathan Crary.
Diante deste processo de trabalho e vigilância, o indivíduo não precisaria
do antigo panóptico — que, para Bauman, seria caro e dispendioso —, pois ele
já teria em si mesmo o seu panoptismo-pessoal — autovigilância e a vigilância
do outro. Nesta circustância, é o que havíamos chamado de um processo
de subjetivação, uma subjetivação policial de uma contínua autovigilância,
juntamente com as características do sujeito empreendedor de si, do empresário
de si mesmo. Esta é, basicamente, a leitura que Bauman faz de um panoptismo
nas sociedades pós-disciplinares, embora haja outras variações a respeito
do panóptico. Trata-se do ban-óptico, que será pormenorizado no próximo
parágrafo.
Dando continuidade, a segunda variação sobre o tema do panóptico é
o “ban-óptico”. O banóptico, por sua vez, não é um conceito cunhado por
Bauman, mas por Didier Bigo. Penso que esta seja a variação mais fundamental,
ao menos, para pensarmos desde os estudos de vigilância e (in)segurança na
América Latina, com toda a lógica de medo com relação à pobreza, até a tentativa
absurda de eliminar o pobre e não a miséria. É claro que se há um dispositivo de
banimento, todos os indivíduos que estão fora da norma são, de alguma forma,
alvos deste aparelho de controle.
O banóptico seria um dispositivo com três critérios: 1) excepcionalismo;
2) criação de perfil e contenção de estrangeiros, mas, também, de todos os
zeros econômicos; 3) um imperativo normativo com relação à mobilidade.
Consideramos que tal estrutura diria respeito tanto à disciplina quanto ao
biopoder (no seu componente racista). Em determinado momento do livro
Em defesa da sociedade, Foucault afirma que o racismo ativa o poder de matar,
ativa o poder soberano; porém, ele nuança o conceito de morte dizendo que:

86 RAFAEL LEOPOLDO
é claro, por tirar a vida, não entendo simplesmente o assassínio direto, mas
também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte
política, a expulsão (Foucault, 2010, p. 216).

É neste cenário que Bigo chega a mencionar a existência de um soft fascismo,


em seu texto Globalized (in)security: the field and the ban-opticon.
A análise de Bigo seria facilmente aplicável às minorias, aos marginais,
porque diz quem é bem-vindo e quem é malquisto; diz para quem as portas vão
estar abertas e para quem as portas estarão fechadas. Bigo cria categorias de
pessoas; é dessas categorias que se relaciona a mobilidade: quem deve passar e
quem deve ficar em determinado espaço.
Um exemplo claro: pensar em determinados indivíduos categorizados como
perigosos, que por conta disso têm sua mobilidade reduzida, pois estariam entre
aqueles que não podem atravessar certas fronteiras. Ele se daria com os párias
da sociedade. Um exemplo bem brasileiro é a criação de algumas dificuldades
de acesso para a população mais baixa, até mesmo voltadas para o ambiente
público. Traça-se um perfil, colocam-se imperativos normativos e limita-se a
mobilidade. Outro dado expressivo advém do período do lulismo, quando a
classe baixa teve um maior acesso ao consumo. A partir deste momento, houve
um rechaço da classe média e dos mais abastados a essa inclusão (ver, ademais,
Souza, 2016).
Uma diferença deste banóptico, com relação ao foucaultiano, é a sua
conexão mais essencial com a insegurança e não com a disciplina. Isso se dá
— se pensarmos o contexto norte-americano e europeu —, principalmente,
devido aos atentados de 11 de setembro de 2001 e à criação sinóptica de uma
paranoia, de um medo constante, de uma política segregativa. Cria-se a falácia
de que quanto maior a vigilância, maior a segurança. Claro que a cada nova
ação terrorista (da “Al Qaeda” ao “Daesh”) o medo é reativado, procurando-se,
geralmente, aumentar a vigilância da população, classificando uma soma de
indivíduos como possíveis terroristas.
Depois dos atentados de 13 de novembro de 2015, em Paris, houve nos
Estados Unidos uma recusa mais contundente dos refugiados sírios, usando-
se de um populismo securitário extremamente falacioso. Já nos anos seguintes
(2015-2016), o que vimos surgir nos Estados Unidos foi uma política e um
discurso racista e de ódio instaurado por Donald Trump que, por sua vez,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 87


teve a adesão de grande parte da população norte-americana. No entanto, de
qualquer maneira, se voltarmos à questão francesa podemos compreender nisso
o funcionamento de um banoptismo eletivo (a redundância é necessária, porque
parte dos terroristas são franceses). Têm-se, minimamente, duas perdas com
relação à liberdade; a primeira, no próprio atentado; e a segunda, associada à
privacidade (e este é o aspecto mais óbvio). Outra mutação a ser comentada é na
subjetividade, posto que em meio à insegurança, pede-se e forma-se, geralmente,
uma subjetividade policial.
Na América Latina, poderíamos relacionar o banoptismo também com
a insegurança, mas as nossas inseguranças são outras e não fazem referência
direta32 a um terrorismo internacional. Nossas precariedades e medos são em
níveis diferentes; cito com ênfase a delinquência, o tráfico de drogas e a violência
urbana, a falta de um bem-estar social. Bauman corrobora com Bigo e diz que
em determinado momento usa-se o banóptico para excluir o lixo humano;
depois, o panóptico para vigiá-los. Os dois podem facilmente se embrenhar
em um processo de exclusão contínua. Parafraseando Foucault: banir e vigiar.
Encontramos neste dispositivo um processo de exclusão, banimento e vigilância
de uma variedade enorme de outros.
A terceira e última variação sobre o panoptismo é o “sinóptico”. O sinóptico,
por sua parte, é um neologismo do sociólogo Thomas Mathiesen, que contrasta
o panóptico com a mídia de massa. O panóptico seria a tecnologia de vigilância
mediante a qual poucos observam muitos, enquanto o sinóptico seria uma
tecnologia através das quais muitos observam poucos. Para tornar mais gráfico,
pensamos que o panoptismo é cinza, como os ambientes fechados e o sinoptismo
é multicolor e desinibidor, como o espetáculo no seu circo, no seu teatro e no
seu anfiteatro, por fim: panis et circenses. Para Bauman, o sinóptico do tipo de
Mathiesien é um pan-óptico significante modificado, a vigilância sem vigilantes,
dizendo o mesmo com outras palavras: o sinóptico é o pós-pan-óptico do
próprio Bauman, que pode afirmar que:

32
De forma indireta, o terrorismo tem os seus ecos no Brasil. Cito três exemplos: 1) na tentativa de produção
de leis especificas antiterroristas, mesmo que estas leis possam ter o intuito de criminalizar os movimentos
sociais – esta atitude pode ser vista com clareza em junho de 2013 – , ou apenas deixe brechas para isso; 2)
uma maior produção de segurança e vigilância em grandes eventos de cunho internacional; 3) a cada ato
terrorista se tem a criação do estigma de que cada membro da cultura islâmica seja um terrorista e, geralmente,
há reações violentas contra esta cultura, principalmente, contra as mulheres, que são de fácil identificação
devido a vestimenta característica.

88 RAFAEL LEOPOLDO
Se o sinóptico substitui o pan-óptico, não há necessidade de construir
grandes muralhas e erigir torres de vigilância para manter os internos do
lado de dentro, ao mesmo tempo contratando um número incalculável de
supervisores para garantir que eles sigam a rotina prescrita; com o custo
adicional de aplacar o ódio latente e a falta de disposição para cooperar
que a rotina monótona em geral alimenta; assim como de precisar fazer
um esforço contínuo para matar no nascedouro a ameaça de uma rebelião
contra a indignidade da servidão. Agora, espera-se que os objetos de
preocupação disciplinares dos gerentes se autodisciplinem e arquem com
os custos materiais e psíquicos da produção da disciplina. Espera-se que eles
mesmos ergam as muralhas e permaneçam lá dentro por vontade própria.
A recompensa (ou a promessa) substitui a punição, e tentação e sedução
assumindo as funções antes desempenhadas pela regulação normativa; o
sustento e o aguçamento dos desejos tomam o lugar do policiamento, caro
e gerador de discórdias; portanto, as torres de vigilância (tal como toda a
estratégia destinada a estimular a conduta desejável e eliminar a indesejável)
foram privatizadas, enquanto o procedimento de emitir permissões para a
construção de muralhas foi desregulamentado. Em vez de a necessidade
caçar suas vítimas, agora é tarefa dos voluntários caçar as oportunidades
de servidão (o conceito de “servidão voluntária” cunhado por Étienne de la
Boétie teve de esperar quatro séculos até se transformar no objetivo comum
da prática gerencial) (Bauman, 2014, pp. 72-73).

Mais uma vez, há neste momento a ideia de Bauman de um pós-pan-óptico


e do indivíduo entendido como um homem-caramujo, que leva consigo o seu
panoptismo-pessoal. Esse elemento já citado diz respeito ao que chamávamos de
um processo de subjetivação por meio da ininterrupta vigilância e dos campos
de visibilidade, que são campos de saber-poder que relacionamos, também, com
uma concepção atual de pensar o indivíduo neoliberal como capital humano,
o já citado empreendedor de si. Talvez o termo empresário de si seja enganoso:
nele não encontramos o grande temor que gera a constante insegurança social, a
empresa que a qualquer segundo pode entrar em bancarrota e o sujeito-empresa
que também entra nesta falência, neste breaking down financeiro e emocional.

DELEUZE: MÁQUINA SOCIAL CAPITALISTA

Se anteriormente deslindávamos a obra de Michel Foucault, podemos


afirmar que ela foi mais absorvida pelo pensamento queer e pelas humanidades
em geral. Todavia, quando pendemos para a obra de Deleuze e Guattari, apesar

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 89


de sua grande influência em diversos pensadores, é contundente observar que
esta não foi realmente assimilada em toda sua potencialidade.
O encontro de Deleuze e Guattari acontece em decorrência do Maio de 68
e é deste episódio que surgirá, a posteriori, o livro O anti-Édipo: capitalismo e
esquizofrenia, quase como uma continuação do evento de 68. Na tentativa de
continuar este diálogo, ambos tentaram se encontrar na clínica La Borde. Ocorre
que Deleuze era avesso a multidões, enquanto Guattari parecia viver dentro
delas. O trabalho do livro que pretendemos analisar aqui deu-se, principalmente,
via troca de cartas entre os autores. É o resultado deste encontro, destas cartas,
que examinaremos com mais detalhes, levando em conta, sobretudo, O anti-
Édipo; ainda que em tantos outros livros de Deleuze e Guattari encontremos
elementos relevantes para o pensamento queer. Neste momento, percorremos
a crítica deleuzo-guattariana ao capitalismo, perpassando as três máquinas
sociais: selvagem, bárbara e capitalista.

MÁQUINA SOCIAL PRIMITIVA

Com o objetivo de pensar a fundo a máquina social primitiva, convém,


inicialmente, nos perguntarmos: o que é uma máquina social? A priori, a
máquina social não é uma “máquina técnica”: uma ferramenta, uma máquina
manual, entendida como algo que prolonga a força humana. A máquina social é
composta por peças humanas e as integra; tem-se nela um modelo institucional
que abrange todos os níveis de ações, além da formação de uma memória.
Deleuze e Guattari têm uma afirmação bastante conhecida, talvez uma das mais
citadas, na qual diz que as máquinas não são uma metáfora em seu pensamento:
“A máquina social é literalmente uma máquina, independente de qualquer
metáfora, uma vez que apresenta um motor imóvel e executa diversos tipos de
cortes: extrações de fluxo, separação de cadeia, repartição de partes” (Deleuze
& Guattari, 2010, p. 188). Parece-nos visível, agora, a definição do conceito.
Diante disso, surge outra questão: quais os elementos de uma máquina social dita
primitiva? Este é o momento em que se inicia a abordagem d’o corpo pleno da
terra — principal característica da máquina territorial. Para Deleuze e Guattari,
“Ela [a Terra] é a superfície na qual são registrados os objetos, os meios e as
forças de trabalho, sobre a qual se distribuem os agentes e os produtos” (Deleuze
& Guattari, 2010: 187). A máquina territorial seria a primeira forma de socius

90 RAFAEL LEOPOLDO
que codifica os fluxos de produção, os meios de produção, os seus produtores e
os consumidores. Desta maneira, “o corpo pleno da deusa Terra reúne sobre si
as espécies cultiváveis, os instrumentos aratórios e os órgãos humanos” (Deleuze
& Guattari, 2010: 188). A respeito deste último ponto, os órgãos humanos, há a
produção de uma memória de palavras e a codificação dos fluxos, o investimento
sobre os órgãos e a marcação dos corpos.
A máquina territorial primitiva funciona por meio da codificação dos
fluxos; esta codificação, por sua vez, investe os órgãos e marca os corpos —
este investimento de determinados órgãos e não outros será um dos temas da
teoria queer, em sua análise do corpo como uma estrutura política. O socius
primitivo consistiria em tatuar o corpo, excisar, incisar, recortar, escarificar,
mutilar, cerrar, iniciar. É diante deste processo que se dá uma memória ao
homem, embora não se trate mais de uma memória biológica, mas, sim, uma
memória de palavras. A memória diz respeito a uma recordação dos signos,
não a uma memória de efeitos. O terrível alfabeto é o signo escrito na própria
carne por meio da crueldade. Para Nietzsche, a crueldade está na essência de
toda cultura e, lendo-o, Deleuze e Guattari observam que “a crueldade nada tem
a ver com uma violência qualquer ou com uma violência natural, com que se
explicaria a história do homem; ela é o movimento da cultura que se opera nos
corpos e neles se inscreve, cultivando-os” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 193).
Daí se tem uma teoria do surgimento da linguagem, porque os signos marcados
na própria pele, por meio da crueldade, poderiam ser chamados de escrita e esta
inscrição no corpo é o que leva o homem a ser capaz de linguagem. Primeiro,
há o signo escarificado na própria carne, toda uma mnemotécnica da crueldade
e então a linguagem, uma memória de palavras. Em seu artigo “Da tortura nas
sociedades primitivas”, Clastres nos diz que o próprio corpo é uma memória,
aonde, a propósito, o antropólogo escreve sobre diversos rituais de passagens e
da crueldade que existem em cada um deles. Em alguns destes rituais, não basta
cortar com a fina lâmina: a intenção é dilacerar o corpo com a faca mais cega.
A dor, a tortura, o sofrimento provocado é essencial nos rituais de passagem.
A sociedade marca a pele do indivíduo. Clastres faz uma afirmação que nos
recoloca em toda a problemática da criação de uma memória via marca:

Ora, uma cicatriz, um sulco, umas marcas são indeléveis. Inscritos na


profundidade da pele, atestarão para sempre que, se por um lado a dor
pode não ser mais do que uma recordação desagradável, ela foi sentida num
contexto de medo e de terror. A marca é um obstáculo ao esquecimento, o

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 91


próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma
memória. (...) A marca programa com segurança o seu pertencimento ao
grupo “És um dos nossos e não te esquecerás disso”. (...) A lei que aprendem
a conhecer na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és
menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei, inscrita sobre
os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão,
o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia.
A lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que
todos se lembrarão (Clastres, 2003, pp. 197-199).

Diante da influência nietzschiana e dos diálogos com Clastres, Deleuze e


Guattari desenvolvem uma profusão temática sobre a criação de uma memória
no socius primitivo, no corpo pleno da Terra. Contudo, entre Nietzsche e Deleuze
e Guattari existem diferenças no que consiste esta marca, esta inscrição corporal;
exponho somente o desenvolvimento, a leitura, as apropriações do pensamento
dos filósofos franceses.
A respeito da composição da máquina primitiva é posto que tal máquina
funciona por meio da declinação das alianças e das filiações, ou seja, declina-
se linhagens sobre o corpo pleno da terra, antes que se tenha as condições
para o surgimento de um Estado. Para pensar na “recusa”, no “rechaço”, na
“declinação” de um Estado, remontamos ao ensaio Sociedade contra o Estado
de Clastres, porque é neste ensaio que tem-se, de forma contundente, a ideia
de que na sociedade primitiva não falta uma economia, não falta um Estado,
ao contrário: ela é contra uma economia, é contra um Estado. Um exemplo é
que, para Clastres, a economia indígena é de subsistência, uma subsistência
não entendida como uma falta do que seria uma economia do excesso, mas
principalmente uma:

Recusa de um excesso inútil, da vontade de restringir a atividade produtiva


à satisfação das necessidades. E nada mais. Tanto mais que, para examinar as
coisas de mais perto, há efetivamente produção de excedentes nas sociedades
primitivas: a quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho,
fumo, algodão etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do
grupo, estando essa produção suplementar, evidentemente, incluída no tempo
normal de trabalho. Esse excesso, obtido sobre o trabalho, é consumido,
consumado, com as finalidades propriamente políticas, por ocasião das
festas, convites, visitas de estrangeiros etc.(...) As sociedades primitivas são,
como escreve Lizot a propósito dos Yanomami, sociedades de recusa do
trabalho: “O desprezo dos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por
um progresso tecnológico autônomo é certo”. Primeira sociedade do lazer,

92 RAFAEL LEOPOLDO
primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de Marshall
Sahlins (Clastres, 2003, p. 208).

Para Clastres, o primitivo é marcado mais por uma positividade do que uma
carência, do que a falta de determinados elementos que estariam na sociedade
civilizada. A visão de que o primitivo “carece” de algo ou que estaria em um
estado “embrionário” seria uma compreensão ingênua e etnocêntrica, pois no
povo primitivo faltaria o que a sociedade “civilizada” produziu em seu processo
histórico, como se a sociedade civilizada fosse um telos a todas as outras. Em
síntese, o primitivo é entendido tanto por Clastres quanto por Deleuze e Guattari
como uma recusa de determinada economia e de um Estado.
Diante da argumentação de Clastres, vislumbra-se outra pergunta: como
Édipo se configura na máquina social primitiva? Édipo, na máquina social
primitiva, é este pesadelo em preto e branco, o déspota de pés inchados, chegando
e sobrecodificando o código primitivo. Em meio a esse pesadelo ainda é possível
divisar algumas sombras, algumas silhuetas, algumas nuances que os seguem;
estas imagens obscurecidas são os contornos dos vários grupos perversos;
são os doutores; são os escribas; os funcionários, os burocratas e também
os padres; estes mesmos, que em determinado momento Foucault relaciona
com os psicanalistas33. Pode-se dizer que o primitivo tem esse desconforto de
um mau sonho profético. O sonho que talvez o déspota venha a chegar ao
socius primitivo, sobrecodificando cada uma de suas peças, montando uma
megamáquina, uma máquina de captura.

MÁQUINA BÁRBARA DESPÓTICA

Na máquina bárbara despótica há a paranoia, o terror e toda uma nova


organização sombria que veremos. A máquina se modifica e outras peças
fazem parte dela, outros elementos se tornam constitutivos. Há uma particular
reorganização da maquinaria antiga sobre os novos elementos do socius bárbaro.
Surge, então, o questionamento: como funciona a máquina despótica? Estamos
frente a uma inovação de maquinaria, novas conexões e outros fluxos. Tem-se

33
É possível pensar na escuta do padre como na escuta psicanalítica, o momento da confissão do pecador ou do
paciente, do analisado. Além disse se refletirmos na arquitetura há o deslocamento do confessionário para o divã.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 93


um novo corpo pleno como socius. O corpo pleno não é mais a Terra como na
máquina primitiva, mas, sim, o corpo do déspota. Juntamente com o déspota,
avista-se um grupo perverso e, com ele, é evidente que também existe uma leva
de fiéis burocratas.
Como já afirmado, na formação bárbara despótica, o corpo pleno não é
mais o corpo pleno da Terra, mas o corpo pleno do déspota. A respeito deste
corpo pleno, podemos, primeiramente, caracterizá-lo, relacionando-o com o
conceito de Marx de “produção asiática”. Num segundo momento, é possível
fazer uma relação com o significante, destacado de uma cadeia para se tornar
despótico (e aqui há o primeiro paralogismo da psicanálise, o paralogismo
da extrapolação). Ainda nesta caracterização há dois tópicos importantes:
o tópico da “megamáquina”34 (máquina estatal sobrecodificadora) e o de
uma determinada forma de desterritorialização produzida pela maquinaria
estatal. Com esses quatro pontos (produção asiática, significante despótico,
megamáquina e desterritorialização), há, enfim, uma caracterização factível
do corpo pleno do déspota.
Sobre o supracitado devir do corpo do déspota, em seu primeiro aspecto,
Deleuze e Guattari o correlacionam com o conceito de “produção asiática”, que
os filósofos franceses leem da seguinte maneira:

É assim que Marx define a produção asiática: uma unidade superior do Estado
instaura-se sobre a base de comunidades rurais primitivas que conservam a
propriedade do solo, ao passo que o Estado é o seu verdadeiro proprietário
em conformidade com o movimento objetivo aparente que lhe atribui o
sobreproduto, que lhe reporta as forças produtivas nos grandes trabalhos,
e faz com que ele próprio apareça como a causa das condições coletivas da
apropriação (Deleuze & Guattari, 2010, p. 256).

Da mesma forma que a produção asiática é uma “unidade superior do


Estado” instaurada sobre as bases das comunidades rurais primitivas, o
déspota, por sua vez, é uma unidade superior do Estado sobre a máquina social

34
A megamáquina ou máquina de captura como posta no segundo tomo d’O Anti-Édipo é caracterizada
por três pontos. Primeiro pelo fato do déspota cobrar o aluguel, da terra da qual ele é o único proprietário.
O segundo ponto é a questão de ser projetado quem captura a mais-valia de produção. E o terceiro ponto é
que o conquistador captura o tributo, as taxas, via proprietário ou a circulação do dinheiro. Ainda é importa
salientar que esta é a primeira megamáquina, a primeira máquina de captura, pois no capitalismo surgirá
uma segunda máquina.

94 RAFAEL LEOPOLDO
primitiva. Ele é o que sobrecodifica o socius primitivo. Têm-se, assim, dois pontos:
substituição da máquina territorial, com a formação de um novo corpo pleno,
mas também, se mantém várias territorialidades da máquina primitiva que
servem como peças da produção bárbara despótica.
O corpo pleno do déspota torna-se uma quase-causa, porque ele é a fonte
do movimento aparente, onde toda a produção é registrada, parece que tudo
depende da máquina despótica e relaciona-se a ela. Contudo, ainda sobre
o déspota, Deleuze e Guattari acrescentam algo considerável: “Em vez de
desligamentos móveis da cadeia significante, um objeto destacado saltou para fora
da cadeia; em vez de extração de fluxos, há convergência de todos os fluxos para
um grande rio que constitui o consumo do soberano: mudança radical de regime
no fetiche ou no símbolo” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 258. Itálico nosso).
Todos os fluxos para um grande rio. Um objeto é destacado. Um objeto salta
para fora da cadeia significante. Este é o paralogismo da extrapolação, no qual
o objeto salta para fora da cadeia e torna-se significante despótico, de tal modo
sobrecodificando os outros elementos da cadeia. Há uma notória mudança e não
é somente no nível de uma pessoalidade, não se trata apenas do soberano, mas,
sim, de uma máquina social que neste momento é uma megamáquina estatal.
Deleuze e Guattari usam a figura da pirâmide e exemplificam esta
megamáquina: o déspota no cume, seguido do aparelho burocrático e, na base,
os trabalhadores. Desta forma, concretiza-se a pseudoterritorialidade, como se
o Estado estivesse se territorializando via uma fixação de residência; porém,
o que existiria, em verdade, é uma efetiva desterritorialização, pois há uma
substituição dos signos da terra pelos signos abstratos, além do próprio Estado
que se faz proprietário da própria terra.
Apesar disto, ainda ressoa outra questão: como Édipo devém se torna possível
na máquina bárbara despótica (pensando que Édipo estará sempre atrelado ao
capitalismo)? Neste momento, já temos a resposta para esta pergunta. Se, em
um primeiro momento, na máquina primitiva selvagem, Édipo era visto como
um pesadelo, como uma sombra; agora no socius bárbaro ele devém possível
como aquele que opera a sobrecodificação dos códigos. Contudo, não estamos
ainda dentro de um Édipo como entendido pela psicanálise (o complexo de
Édipo dentro do familismo), porque o desejo ainda não está atuando sobre um
triângulo familiar (nem esta tríade ainda está formada). Neste caso, o desejo se
processa como um investimento libidinal da máquina de Estado. Mais alguns
pisares são necessários para que Édipo Rei chegue com a sua marcha firme, ainda

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 95


é mister que vejamos as engrenagens da máquina capitalista civilizada, com o
seu arranjo e o seu desarranjo, ouvir o seu atrito, perpassar pelos seus fluxos
descodificados, sua desterritorialização, sua diferença de dinheiro e capital (os
signos impotentes e os signos potentes), mas, também, o seu completo cinismo,
suas subjetividades capitalísticas. Desta forma, voltamo-nos para a máquina
social capitalista civilizada.

MÁQUINA SOCIAL CIVILIZADA

Os fluxos descodificados perpassam os diversos socius, mas


predominantemente estão no socius capitalista. No capitalismo é que a
descodificação se instaura em sua maior radicalidade. Sempre houve desejos
descodificados, desejos de descodificação que cruzam toda a história, não tão
fortes quanto na máquina capitalista. Deleuze e Guattari nos dão o exemplo de
Roma e do Feudalismo. Em primeiro lugar, os autores salientam a descodificação
dos fluxos monetários por formação de grandes fortunas, assim como a
descodificação dos fluxos comerciais por desenvolvimento de uma produção
mercantil. A descodificação dos produtores por expropriação e proletarização.
Em segundo lugar, em relação ao Feudalismo, pode-se citar a propriedade
privada, a produção mercantil, a extensão do mercado, o desenvolvimento das
cidades, o aparecimento da renda senhoril em dinheiro. Não obstante, nada
disso chega a configurar precisamente a economia capitalista, isto é, não temos
ainda a máquina capitalista civilizada, na qual o dinheiro gera dinheiro, na qual
há uma descodificação generalizada dos fluxos, um forte poder de destruição/
criação, um cinismo, um poder axiomático.
Resumidamente, para que haja a formação do capitalismo é necessária a
conjunção de diversos fluxos descodificados. O fluxo de propriedade que se
vende, o fluxo de dinheiro, o fluxo de produção e de meios de produção, o fluxo
de trabalhadores que se desterritorializam (aqui pensamos nos trabalhadores
livres). E é dessa conjunção, e são desses encontros, das reações de uns sobre os
outros, que nasce o capitalismo. Nasce um novo socius e o desejo recebe um novo
nome. Diante desses fatores, podemos afirmar que o capitalismo não se define
simplesmente por fluxos descodificados, mas por uma descodificação generalizada
dos fluxos e, também, por uma nova desterritorialização. É a singularidade desta
conjunção que faz o capitalismo. Sobre estes dois pontos, Javier Sáez aponta que:

96 RAFAEL LEOPOLDO
A essência do capitalismo se encontra em dois fenômenos complementares:
desterritorialização e descodificação. Ambos foram analisados por Marx. O
capital se apropria cada vez mais dos territórios; apropria-se do campo, do
artesanato, do comércio e finalmente da indústria. O capital desterritorializa
tudo. Mas, ao mesmo tempo descodifica tudo: a religião, a moral, as crenças;
tudo sucumbe ao impulso do capital. Este impulso anulador de códigos e
apropriador de territórios é universal no capitalismo. O capitalismo é, por
isso, o universal de toda sociedade (Sáez, 2004, pp. 80-81. Itálico do autor).

Desterritorialização e descodificação, mas descodificação generalizada dos


fluxos e a conjunção dos fluxos desterritorializados. Como frisado, a conjunção
do capitalismo passa para um primeiro nível, diferente do que acontecia na
máquina primitiva selvagem e na máquina bárbara despótica. Quando há
esta passagem para o primeiro nível, tem-se o “produzir por produzir”. Dessa
forma, a produção não está mais conectada ao gozo, a sua única condição é
conectar-se ao capital como o novo corpo pleno desterritorializado, juntar-se ao
investimento de dinheiro, ao fluxo, ao dinheiro que gera dinheiro. O gozo parece
fazer parte do próprio luxo, mas de um luxo como investimento. O dinheiro
produz dinheiro, o dinheiro devém capital e compra o trabalhador. Há dois
elementos que são conectados no capitalismo: trabalhador desterritorializado e
dinheiro descodificado. O primeiro como fluxo de produção e o segundo como
fluxo de dinheiro. Dentro de cada um deles, é possível delimitar as seguintes
características:

É que um desses elementos depende de uma transformação das estruturas


agrárias constitutivas do antigo corpo social, enquanto o outro depende de
uma série totalmente distinta, a que passa pelo mercador e pelo usurário,
tal como eles existem marginalmente nos poros desse antigo corpo. E mais:
cada um destes elementos põe em jogo vários processos de descodificação e
de desterritorialização com origens muito diferentes. No caso do trabalhador
livre, temos a desterritorialização do solo por privatização; a descodificação
dos instrumentos de produção por apropriação; a privação dos meios de
consumo por dissolução da família e da corporação; por fim, a descodificação
do trabalhador em proveito do próprio trabalho ou da máquina. No caso do
capital, temos a desterritorialização da riqueza por abstração monetária; a
descodificação dos fluxos de produção pelo capital mercantil; a descodificação
dos Estados pelo capital financeiro e pelas dívidas públicas; a descodificação
dos meios de produção pela formação do capital industrial etc. (Deleuze &
Guattari, 2010, p. 299).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 97


São diversos encontros, diversas reações, diversas conjunções para formar o
capitalismo. Porém, o efeito da conjunção é certamente o controle mais profundo
da produção pelo capital. Existem peças para a montagem da máquina capitalista,
e ela está montada quando o capital se apropria da produção. Encontramos a
produção de produções, produção de registro e a produção de consumo, tudo
relacionado aos fluxos descodificados que fazem do capital o novo corpo pleno
social; tudo parece produzido pelo capital como quase-causa. A propósito, pode-
se observar, também, uma nova-nova filiação e nova-nova aliança na máquina
civilizada capitalista. Duas novas relações na máquina capitalista, porque há
outra forma de filiação e de aliança. Se agora o corpo pleno é o corpo pleno
do capital, a filiação e a aliança não transpassam mais por pessoas, mas pelo
dinheiro, uma vez que as subjetividades são funções do capital. Tem-se o capital
de filiação e o capital de aliança. Com o primeiro, há a noção de que o dinheiro
engendra dinheiro, o valor gerando mais-valia e de que este é o novo socius. Essa
nova-nova filiação, por sua vez, gera uma nova-nova aliança, outras relações do
capital comercial e do capital financeiro.
Da relação investigada acima, Deleuze e Guattari tiram uma importante
conclusão sobre os bancos: “Se é verdade que, em sua essência, ele [o capitalismo]
é capital filiativo industrial, ele só funciona pela sua aliança com o capital
comercial e financeiro. De certa maneira, é o banco que sustenta todo o sistema,
e o investimento de desejo” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 305. Itálico nosso).
Diante da conexão dos bancos com o desejo, Buchanan afirma que Deleuze
e Guattari declaram que são os bancos que controlam o desejo na sociedade
contemporânea, à medida que o autor pode complementar, argumentando
que “isto não é menos verdade hoje do que em 1972 quando O anti-Édipo
foi publicado; de fato, não é exagero dizer que é mais verdade hoje do que foi
anteriormente” (Buchanan, 2008, p. 109).
Não há um poder externo que governa o fluxo de código, mas o fluxo de
capital é que governa a vida. Com isso, é possível dar um passo ainda mais firme
neste socius e apontar dois tipos de dinheiro: os signos monetários impotentes
e os signos de potência do capital. Sobre o primeiro tipo de moeda, o sociólogo
Maurizio Lazzarato, em seu ensaio A fábrica do homem endividado, afirma
que “moeda como poder aquisitivo é para Deleuze o fator mediante o qual se
reterritorializam e se fixam os fluxos de trabalho no consumo, na família, no
emprego e nas obrigações (trabalhador, professor, homem, mulher etc.), que são
outras tantas assignações da divisão do trabalho” (Lazzarato, 2013, p. 96). Por

98 RAFAEL LEOPOLDO
outro lado, sobre o segundo tipo de moeda, Lazzarato coloca que “o capital tem
um poder sobre o fluxo de poder aquisitivo dos trabalhadores, antes de tudo,
porque é amo e senhor de um fluxo de financiação: amo e senhor do tempo,
das escolhas e das decisões” (Lazzarato, 2013, p. 97).
Aqui, Lazzarato acompanha a lógica deleuzo-guattariana de separar duas
moedas, uma das quais relacionada ao salário, a um “poder de compra”35, a um
poder de consumo. Esse é o dinheiro que se encontra no bolso de um indivíduo,
que ele é capaz de usá-lo de alguma forma. Não obstante, há outra moeda com
o poder de mudar as relações, uma moeda com o poder de destruir e construir.
Neste âmbito, já não se trata do salário, do dinheiro com o fluxo no trabalho,
na família, no emprego; estamos em um nível maior, porque a moeda também
é capital e tem o seu poder de destruição/criação. E estes elementos, dívida e
finança, não são “patologias” do capitalismo, mas uma forma de a máquina
funcionar, funcionar em um “desequilíbrio funcional”, a máquina funciona
desarranjando-se, rangendo. Ironicamente, Deleuze e Guattari escrevem que:
“as contradições nunca mataram ninguém. E quanto mais isso se desarranja,
quanto mais isso esquizofreniza, melhor isso funciona, à americana” (Deleuze
& Guattari, 2010, p. 202).
Esses desarranjos, para Lazzarato, são “dispositivos estratégicos” que
determinam a destruição do antigo regime e a criação de um novo sistema.
E o sistema financeiro está no centro de uma nova política de destruição e
criação onde o econômico e o político se mesclam, sobrepõem-se. O dinheiro
como capital se torna um fluxo criador, há signos poderosos, signos potentes.
O poder capitalista não é somente uma mera acumulação de capital: é o
poder de reconfigurar relações, ou seja, poder de subjetivação. Embora hajam
outras características do capitalismo, como o seu cinismo e o seu poder de
axiomatização, e, por último, a sua relação entre o capitalismo e a psicanálise, a
chegada de Édipo, rei no socius (que será interiorizado), a subjetividade edipiana,
o sujeito que é, também, escravo de si e tem o seu desejo trapaceado.
O capitalismo trabalha com o cinismo, porque o dinheiro não serve
mais apenas como troca, agora é o dinheiro em si mesmo que serve como
descodificação dos códigos. Este é o poder do capitalismo, uma radical

35
Expressão irônica, porque este “poder de compra” somente expressaria uma impotência da reprodução de
determinadas relações de mercado. O dinheiro não daria realmente o poder, ou seja, a potência de mudar
relações. Os signos potentes, o capital, é que tem o poder de criação e destruição.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 99


descodificação, uma profunda esquizofrenização dos fluxos. O capitalismo se
torna cínico, porque nele não é necessário crença, ideologia ou nenhum valor,
apenas produção por produção, fluxo descodificado, fluxo de investimento.
Deleuze e Guattari poderiam ter citado Oscar Wilde quando este afirma que
o cínico é o homem que sabe o preço de tudo e o valor de nada. Assim sendo,
pensando na descodificação e na axiomática, tudo pode ser capitalizado,
transformado em produto, transmutado em marketing36; pode-se pensar na
arte, na vanguarda, no rock and roll, no movimento punk, no movimento gay,
feminismo e até mesmo no queer.
Javier Sáez notabiliza esse poder do capital com relação à teoria queer em
seu livro Teoria Queer e psicanálise, como também no livro com Sejo Carrascosa
Pelo cu: políticas anais, afirmando, em consonância com Paco Vidarte, que Queer
is Business! (“Queer é negócio!”) Assevera-se isto, pois não há mensagem que
transgrida o capitalismo; tudo pode circular desde que faça parte de um fluxo
de dinheiro, fluxo de capital. Eis o motivo de o capitalismo ser cínico, apesar
de deixar passar os fluxos descodificados, termina por axiomatizá-los. Segundo
Deleuze e Guattari:

A verdadeira axiomática é a da própria máquina social, que substitui as


antigas codificações, e que organiza todos os fluxos descodificados, inclusive
os fluxos de código científico e técnico, em proveito do sistema capitalista e
a serviço dos seus fins. (...). Em suma, onde os fluxos são descodificados, os
fluxos particulares de código que tomaram uma forma tecnológica e científica
são submetidos a uma axiomática propriamente social muito mais severa do
que toda as axiomáticas científicas, mas também muito mais severa do que
todos os antigos códigos ou sobrecodificações desaparecidas: a axiomática
do mercado capitalista mundial (Deleuze & Guattari, 2010, pp. 310-311).

A axiomática é organizadora dos fluxos descodificados. Ora, os fluxos


descodificados não estão somente nos exemplos anteriormente citados, as
ciências humanas, mas, também, nas ditas ciências duras, para finalmente
reverberarem densamente em todo o campo histórico e político. Desenrolando-
se entre as ciências humanas e as ciências duras há o exemplo de toda uma vida:

36
Poderíamos ver o livro da Naomi Klein, No Logo, como uma crítica do cinismo produzido pelas grandes
marcas. Ou ainda com Noam Chomsky e o seu livro Media Control como análise deste cinismo aplicado às
propagandas de guerra. Por último, ainda deveríamos lembrar do livro Quadros de Guerra, de Judith Butler
para entendermos como uma teoria queer aborda a questão da Guerra, das imagens propagadas e a questão
de quem é merecedor ou não do luto.

100 RAFAEL LEOPOLDO


Gregory Bateson começa por fugir do mundo civilizado tornando-se etnólogo,
seguindo os códigos primitivos e os fluxos selvagens; volta-se depois para
fluxos cada vez mais descodificados, os da esquizofrenia, de onde extrai uma
interessante teoria psiquiátrica; depois, ele ainda vai em busca de um além, de
um outro muro para atravessar, vira-se para os golfinhos, para a linguagem
dos golfinhos, fluxos ainda mais estranhos e desterritorializados. Mas, no fim,
o que há no fluxo de golfinho senão as pesquisas fundamentais do exército
americano que levam de volta à preparação da guerra e à absorção da mais-
valia? (Deleuze & Guattari, 2010, p. 314).

Aqui podemos ver claramente de que forma o capitalismo funciona por


descodificação e axiomatização: com o cinismo que somente a abstração do
capital poderia gerar, a quantidade genérica (quantidade geral), o dinheiro
engendrando dinheiro, o fluxo sem gozo.
A máquina capitalista civilizada se faz de tal maneira cínica, que é possível
entrever com transparência espantosa o capitalismo em países de regimes
democráticos ou em países de regimes totalitários, porque, mesmo que o
Estado capitalista seja o regulador dos fluxos descodificados, eles estão em uma
axiomática, em outras palavras, em uma produção de axiomas para os diversos
fluxos.
Com estes apontamentos, vemos o inquietante funcionamento do
capitalismo, principalmente no que concerne à sua radical descodificação, pois,
ao mesmo tempo em que o capitalismo tem como tendência a descodificação, a
esquizofrenização, ele passa a inibi-la. Encontramo-nos diante da problemática
do limite do capitalismo. Têm-se, então, na argumentação deleuzo-guattariana,
quatro limites do capitalismo: limite relativo, limite absoluto, limite exterior e
limite interior. Um limite relativo, a saber, pois, ainda que sejam liberados todos
os fluxos, o mesmo torna-se relativo devido à sua imparável axiomatização. O
limite absoluto, por sua vez, é a esquizofrenização, entendida como os fluxos
em estados livres. Contudo, este fluxo é o limite exterior do capitalismo, como
algo que ele evita, uma coisa a ser inibida. O último limite, por fim, é o limite
interior, visto que, para o capitalismo, é necessário algo que neutralize o limite
exterior absoluto, a esquizofrenia como processo, como fluxo esquizo, fluxo livre.
Este limite interior é delegado à família, ou para colocarmos de outra forma: o
capital delega a formação de sujeitos para a família, de sorte que a reprodução
humana é, pela primeira vez, segregada da produção social, pois se dá via capital
(nova-nova filiação e nova-nova aliança).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 101


Há uma nova configuração da família como efeito do fluxo de capital, dado
que a família é subordinada a uma formação social autônoma de reprodução
econômica, ou seja, a reprodução social é governada pelo mercado. Crê-se já
pré-formada a configuração do material para engendrar as imagens, as pessoas.
Entende-se que o indivíduo se torna uma função derivativa do capital. Com isso
haveria imagens de primeiro grau, ou algo como funções psicossociais. Essas
funções correspondem ao político, ao proprietário, ao militar, ao sacerdote,
dentre outros. No entanto, as pessoas privadas são imagens de segunda ordem,
são imagens de imagens, simulacros, que representam a imagem de primeira
ordem das pessoas sociais, isto é, são derivadas de derivadas, o lastro se torna
ainda maior. Depois, há ainda as imagens de terceira ordem, por exemplo,
funções estruturais, complexo materno, complexo paterno, falo, etc.
A família passa a aplicar, a desenvolver os fatores dominantes em sua forma
de reprodução. O pai, a mãe e o filho devêm simulacros do capital. O pai como o
“senhor capital”, a mãe como a “senhora Terra” e o filho como o “trabalhador”. A
família passa a ser a aplicação da axiomática social. Desta forma, tem-se Édipo em
sua totalidade, Édipo como o limite interior deslocado, Édipo como a territorialidade
íntima e privada do capitalismo em seu esforço de reterritorialização
do capitalismo, da reprodução das imagens em seus diferentes graus.
Com a argumentação deleuzo-guattariana é possível entender a família
como aplicação da axiomática do capital, como uma reprodução de um
fluxo econômico que se tornou autônomo. Por conseguinte, podemos falar
de uma subjetividade capitalística e como sinônimo poderíamos chamá-la de
subjetividade edipiana. Baremblitt concebeu uma longa argumentação a respeito
da formação destas subjetividades, que merece ser citada:

Não é o filhote humano que se edipianiza para tornar-se primeiro filho


incestuoso e parricida reprimido, depois aluno de escola primária, para
depois entrar na latência, depois ser adolescente, membro ou líder de
gangue, grupo esportivo, etc. e, finalmente, adulto dominante, como dizem
Deleuze e Guattari: camponês, operário, empregado, latifundiário, industrial
ou financeiro etc. O processo é o inverso, e é assim porque os múltiplos
componentes e processos de uma formação histórica, em especial seu corpo
pleno, precisam fabricar as subjetividades conscientes e inconscientes que lhe
são funcionais. O que fica recalcado e deslocado nos modos de produção da
subjetividade capitalista é “o sujo segredinho” que “explica”, nas subjetividades
capitalísticas, o egocentrismo, os colossais desvios e roubalheiras, as guerras,
os genocídios que lhe são característicos. (...) A rigor é o capitalismo que se

102 RAFAEL LEOPOLDO


produziu e se reproduz por meio dessa subjetividade, dessa família e essa
educação, assim como as produziu como são (tanto “fracassadas” quanto
“vitoriosas”). A partir da axiomática do capital, as diferentes apresentações
da subjetividade edipiana se “deduzem” do equivalente geral-dinheiro como
se fossem derivações de primeiro, segunda, terceira ordem (Baremblitt, 2010,
p. 132).

Com a privatização da família e a reprodução humana segregada da


reprodução-social/campo-social, algumas consequências são originadas.
Destas consequências, reforçamos a família ser governada pelo capital-
dinheiro, ao mesmo tempo ela se torna um microcosmo do capitalismo. O desejo
dentro da estrutura familiar (enclausurado nela) já não sabe mais o que desejar.
Ele devém desejo de pai e mãe, dentro do complexo de Édipo. Neste momento,
encontramos Édipo como Freud o encontrou, mas, também, um sujeito que
tem o seu desejo trapaceado e, mais recentemente, — com o ranger da máquina
capitalista — nos deparamos com estas subjetividades capitalísticas onde o
sujeito é aquele escravo de si. Resulta inegável, assim, que a máquina capitalista
parece introduzir no coração de cada trabalhador um empresário burguês (daí
também a impossibilidade de uma luta de classes); já não é mais necessário
um senhor externo, posto que este sujeito se tornou mais escravo do que os
últimos escravos.

DERRIDA: DESCONSTRUÇÃO,
SUPLEMENTO E PERFORMATIVIDADE

Se demonstramos, anteriormente, que a recepção de Foucault já está


colocada nas humanidades, à medida que a de Deleuze e Guattari ainda está
apenas começando, poderíamos sustentar que, com Derrida, é possível constatar
um pensamento ainda mais marginal. Trata-se de um pensador ainda não
incorporado pela teoria queer.
Se o diálogo entre o que há de queer em Derrida e a teoria queer está
apenas nas preliminares, em outros aspectos ele já é um cânone com todas as
implicações positivas e negativas que isso traz à tona. Tomemos, por exemplo,
como François Cusset, em seu livro Filosofia francesa: a influência de Foucault,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 103


Derrida, Deleuze e cia, aponta a influência de Derrida no contexto norte-
americano:

Como um pensamento tão pouco demarcável, tão difícil de transmitir quanto


o seu, um pensamento que não se saberia onde situar, em algum ponto entre
ontoteologia negativa e a exploração poético-filosófica do inefável, um
pensamento que, de todo modo, mantém-se distante, pode ter-se tornado o
produto mais rentável que já existira no mercado dos discursos universitários?
Como esse obscuro encaminhamento de ideias pode ter sido encampado,
co-pacificado, digerido e servido em doses individuais em um campo literário
americano que desde então se sentiu encorajado a voar e, não contente de ter
embalado esse pensamento exigente em manuais de graduação, transformou-o
em um programa de conquista epistêmico-político sem precedentes? Como
se explica que um francês que lê um livro de Derrida, no país da filosofia no
ensino médio, dez americanos já o tenham feito, apesar de uma formação
filosófica precária como a sua? E, para concluir, o que justifica que a palavra
“desconstrução”, que Derrida tirou de Ser e tempo de Heidegger (traduzindo o
termo Destruktion) para esboçar uma teoria geral do discurso filosófico, tenha
sido incorporado a tal ponto na linguagem corrente nos Estados Unidos, que
pode ser vista em slogans publicitários, na tela dos jornais de TV, ou como
título de um filme de sucesso de Woody Allen, Desconstruction Harry (1977)?
Eis os desafios para o historiador das transferências culturais – e um exemplo
típico imaginado para uma “geopolítica da tradução” que ainda está para ser
feita (Cusset, 2008, p.107).

Na América Latina, que recebe Derrida tanto pela via francesa como a
norte-americana, este espraiamento de Derrida pelo marketing, pela publicidade,
pela TV, pelos filmes e pela música, também é visto de forma muito clara.
De qualquer forma, salientamos esse comentário de Cusset para esclarecer
que, se há uma posse de Derrida em determinadas áreas, no pensamento queer
ele ainda começa a ser digerido de maneira vagarosa. Não obstante, sobre o
comentário de Cusset, a respeito de como esse autor francês se tornou tão
popular nos Estados Unidos, creio ser necessário reafirmarmos o papel da
tradução da obra De la grammatologie, de 1967, feita por Gayatri Spivak.
Gayatri Spivak é a autora do conhecido ensaio Can subaltern Speak?37 (“Pode

37
Este texto de Gayati Spivak foi importante para pensar o “lugar de fala”, para pensar o saber do “subalterno”,
principalmente, no contexto norte-americano. Um tema relacionado a este que vamos abordar é a questão
da “representatividade”; todavia, este se tornou um debate tão viciado dentro do feminismo e em grupos
periféricos que seria viável toda uma genealogia dos conceitos principais como “lugar”, “fala”, “representação”,
para que a discussão fosse retomada sem o cancro paralisador do debate. De forma irônica, o que era

104 RAFAEL LEOPOLDO


o subalterno falar?”), que dialoga com Foucault-Deleuze (que para a autora
ignorariam a violência epistêmica do imperialismo e a divisão de trabalho
internacional) e, de forma mais intensa e complexa, com a obra de Derrida.
Trata-se de uma relação complicada, pois, com Spivak, não veremos uma mera
adesão ou uma negação da obra do filósofo francês, mas uma imbricação com
o texto de Derrida.
Gayatri Spivak serve de detonador da obra derridiana nos Estados Unidos.
Ao conhecer a obra De la grammatologie a autora começa o árduo trabalho de
tradução, convencendo a editora de John Hopkins a publicá-lo, em 1976. Spivak
escreve um longo prefácio a esta obra, dando grande atenção ao conceito de
“desconstrução”. A tradução feita pela crítica é sintomática no sentido de que
o feminismo e o pensamento queer sempre estiveram muito perto da obra de
Derrida, já no início da sua recepção norte-americana, pois os textos de Spivak
interpelam a filosofia do pensador francês.
Não obstante, mesmo enfatizando que a obra de Derrida ainda não é
tão pungente no pensamento queer, vamos abordá-la de forma tangencial,
demarcando alguns conceitos-chave da sua obra. Nossa aproximação se dá
por via de três conceitos: 1) desconstrução; 2) suplemento; 3) e, por último, o
conceito de performatividade.
Diante de cada um desses conceitos, tentaremos expor algum elemento
que envolva o pensamento queer, por exemplo: no caso da desconstrução,
reafirmar o seu uso popular e como este conceito possui um teor filosófico mais
duro; com a ideia de suplemento, lembramos a noção de que não há um ponto
originário; assim o suplemento serve para a compreensão da masculinidade e
da feminilidade e, mais ainda, da hipermasculinidade e da hiperfeminidade,
que se apresentam com um vigor que envolve o queer; e com o último conceito,
a performatividade, abordaremos mais do que a perspectiva de Derrida, mas,
sobretudo, a questão dos Atos de fala, de Austin, que influencia Derrida e,
especialmente, a filósofa Judith Butler e sua compreensão do gênero como atos
performativos. Este último conceito será apresentado com maior vigor em um
capítulo póstero dedicado a Judith Butler. Não vamos remontar novamente à
questão da performatividade, mas, sim, à questão da performance e, acima de

potencialidade de ouvir outras vozes se tornou, muitas das vezes, a impossibilidade do diálogo, já que se
tomou vulgarmente que o lugar de fala produz a autenticidade e a verdade da fala, assim, criando não um
lugar de fala, mas, sim, um lugar autoritário e antipolítico (ver, por exemplo, Tiburi, 2018). Retomamos este
debate quando pensamos o feminismo negro e a pensadora Lélia Gonzalez.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 105


tudo, dar maior visibilidade à argumentação sobre as Drag Queens, essencial
para pensarmos a questão da identidade. Desta forma, não se trata aqui de uma
introdução aos conceitos de Derrida; para sermos mais precisos, é apenas a
tentativa de uma aproximação tangencial, focando a teoria queer como elemento
catalisador.

DESCONSTRUÇÃO

O primeiro conceito que analisaremos ou que chegaremos perto de forma


adjacente é o de “desconstrução”. Esta formulação difunde-se por diversos
lugares que hoje são alheios ao ambiente filosófico, ou ainda, que tocam na
temática, mas não da mesma forma que o filósofo francês sugeriu. Diante dos
múltiplos usos da palavra “desconstrução” explanaremos alguns que pareçam
interessantes à título de exemplo.
Um primeiro dado é que a palavra “desconstrução” já foi absorvida
totalmente pelo marketing. Diante disso, reproduziremos, a priori, o seu uso
no cinema que, talvez, tenha acontecido (de forma mais popularizada) com
o diretor nova-iorquino Woody Allen e o seu filme38 Desconstruindo Harry.
Sempre adequado, também, relembrar a diretora argentina Lucrécia Martel,
com a película Mujer sin cabeza. Logo após o seu lançamento, este filme foi
categorizado como um filme de “desconstrução” da personagem principal. Fato
é que ambos os filmes citados, remontam, sobretudo, ao diretor sueco Ingmar
Bergman, que produz o efeito de uma decomposição cinematográfica do sujeito.
Trata-se, desta forma, de um desfazer do sujeito, de uma determinada destruição.
A desconstrução como uma destruição do outro, seja do sujeito ou seja de um
dado argumento, é uma das utilizações da palavra que possui uma distância
bastante longa daquela proposta por Derrida.
Uma segunda aproximação poderia ser aquela, muito comum nesta
década, de evocar o termo “desconstrução” no sentido de que tal pessoa é
“desconstruída”. Tomemos dois exemplos, o primeiro de uma música popular
brasileira, produzida pela cantora Pitty, e o segundo a respeito do que se quer
dizer quando adjetiva-se alguém como “desconstruído”, tendo em vista o filósofo
Moysés Pinto Neto, pesquisador da obra de Derrida. Veremos que os dois

38
Para uma análise de filmes queer ver o trabalho do historiador e teórico queer Fabrício Marçal Vilela.

106 RAFAEL LEOPOLDO


exemplos a seguir se interligam, a palavra surge como uma espécie de “viver
sem preconceito”, ou ainda, de se refazer, de desfazer a linha social dura que
percorre o próprio corpo.
Com relação à compositora baiana, nos referimos a sua música
“Desconstruindo Amélia”. Nesta, a cantora cria um diálogo com a palavra
“Amélia” que significa “mulher meiga e serviçal” e, especialmente, um diálogo
com o samba “Ai, que saudades da Amélia”, de Mário Lago e Ataulfo Alves. A
música “Ai, que saudades da Amélia” foi lançada em janeiro de 1942, e já foi
regravada por inúmeros artistas. Retrata essa mulher meiga e serviçal, de fato
diferente da Amélia desconstruída de Pitty.
Já nos anos 40, o samba cantava a saudade da Amélia-Serviçal. A cantora
Pitty, por sua vez, mostra em sua letra a “desconstrução” da Amélia: não mais
a meiga e serviçal, não mais a prendada e do lar, mas, sim, a mulher que “vira a
mesa”, a mulher que “resolve mudar”. Eis outra maneira bem comum de emprego
da palavra “desconstrução” e a quais significados ela foi associada: no presente
caso, a uma determinada mudança da mulher ou de um homem, diretamente
relacionada ao que se considera como um status quo, tal como a determinados
preceitos e preconceitos sociais.
Por último, nesses paralelos da palavra “desconstrução”, lembremo-nos
do comentário de Moysés Pinto Neto, que reconhece a desconstrução como
um “viver sem preconceito”. Moysés Pinto Neto afirma que dizer que alguém
é “desconstruído” é dizer, de modo similar, que tal pessoa está morta, porque,
para Derrida, a desconstrução também seria um lançar-se na morte. Quando é
elaborada a figura do “desconstruído” como algo finalizado, teríamos, de fato, a
morte. Desta forma, não há lugares estáticos como construído e desconstruído,
entendidos como dois polos dialéticos.
Mudemos o percurso para outro filósofo, sob o olhar de Javier Sáez, que
comenta a obra de Derrida, definindo parcialmente a desconstrução e fazendo
uma relação crítica com a teoria queer.
No livro Teoria queer e psicanálise, Javier Sáez comenta sobre a dificuldade
de abordar a obra de Derrida, nos dando uma definição aproximativa do
conceito de desconstrução e, ainda, indicando o uso desse conceito pela teoria
queer. Sáez afirma que:

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 107


A desconstrução é uma forma de intervenção nos axiomas hermenêuticos
usuais da identidade total da obra. Ela produz uma instabilidade na
segurança dos métodos, na história das ideias, nas fontes da significação. A
desconstrução atua nos sedimentos das arquiteturas conceituais. Sua origem
está diretamente relacionada com o contexto do estruturalismo dos anos 60.
(...) Esta relação da desconstrução com o estruturalismo será elaborada nos
Estados Unidos como uma espécie de “método analítico”, esquecendo sua
relação com os próprios acontecimentos históricos e a destituição do sujeito
que implica a própria desconstrução. Deste modo, veremos entre muitos
autores dos estudos de gênero e da teoria queer um uso bastante ligeiro da
desconstrução, no sentido de usá-la como um dispositivo metódico para
ler ou escrever, ao estilo de “vamos desconstruir a identidade de gênero”.
Na realidade, seria mais adequado interpretar o fenômeno queer como
um acontecimento que teve o seu lugar, onde algo “se” desconstrói como
acontecimento histórico, onde estão funcionando estratégias móveis sem
um sujeito transcendental ou intelectual que determina o processo (Sáez,
2004, pp. 84-85).

O modus que Sáez utiliza para aclarar o conceito de Derrida não está
distante do apontado por Moysés Pinto Neto: um “viver sem preconceito”. Ou
ainda: um viver desfazendo os preconceitos. Porém, como Sáez alude, esse não
é o todo da desconstrução. Recordemos dos dados complementares: a nossa
aproximação da ideia de desconstrução e sua relação com o queer.
O primeiro dado se dá com a já citada Spivak e sua relação complexa com o
texto de Derrida. Uma informação a ser grifada é que ele — um filósofo europeu39
— articula como o sujeito-europeu tem uma determinada disposição a construir
o Outro como o marginal, o extravagante e o exótico. Este dado é elementar
para fazermos uma crítica profunda ao racismo europeu e ao eurocentrismo,
vislumbrando outras epistemologias.
Outro dado importante a ser enfatizado é que o conceito de desconstrução
teria uma extrema validade para refletir determinados binarismos como homo/
hetero, homem/mulher, natureza/cultura, etc. Lembremos que a interpelação de

39
Muitas vezes o pensamento descolonial tenta evitar tudo que vem de fora, por exemplo, um pensador como
Derrida, pelo fato de ser europeu. Todavia, este rechaço mais parece uma xenofobia epistêmica – que é algo
bem europeu – do que realmente a produção de um pensamento que combate a colonialidade. Talvez, mais
do que um descolonialismo xenofóbico fosse melhor repensarmos um canibalismo produtivo, uma antropofagia
como filosofia. Claro que com este apontamento sobre a descolonialidade não há uma generalização do
pensamento descolonial, ou ainda, das Epistemologias do Sul – que são extremamente necessárias e devem ser
intensamente proliferadas –, mas, trata-se de apontar um rechaço que é infundado e prejudicial ao próprio
pensamento, é prejudicial às relações dialógicas (para uma introdução ao pensamento descolonial ou ainda
sobre a questão da pós-colonialidade ver, por exemplo, Castro-Gomez, 2020).

108 RAFAEL LEOPOLDO


Derrida da linguagem e da ideia de desconstrução envolve o romper com certas
hierarquias; desloca-se o telos, desloca-se a finalidade de uma posição. Coloca-se
destaque no que foi então marginalizado. Este deslocamento, por sua vez, não
visa criar um novo centro, a nova posição de um significante despótico, mas,
sobretudo, criar estratégias para a não existência de um elemento centralizador
— neste momento, onde não haveria um centro o conceito de suplemento se
torna útil. Portanto, passemos para este segundo conceito e um ponto de vista
sucinto do suplemento.

SUPLEMENTO

Quando retomamos o livro de Javier Sáez, Teoria queer e psicanálise, há uma


análise concisa do conceito de suplemento. O autor afirma que “o que assinala a
lógica do suplemento é precisamente que não há original, que se dá uma carência
radical originária dentro da metafísica da presença” (Sáez, 2008, p. 87). Para
Sáez, este suplemento será chave para interpretar a questão da performance.
Com este conceito entendemos, por exemplo, a hipermasculinidade da estética
butch, os grupos leather, ou ainda, a hiperfeminilidade de algumas práticas drag
queen, de algumas travestis, que nos mostram a ausência de um original — lição
de Derrida que não será esquecida pela filósofa Judith Butler — ou a própria
condição do feminino e do masculino.
Sáez nos lembra que Derrida faz uma análise do privilégio do logos, da
lógica da verdade na tradição ocidental — o logocentrismo. Porém, Derrida
não se mantém tão somente nesta esfera e apresenta o “falo”, desenvolvido
teoricamente por Lacan como significante chave na organização do complexo
de Édipo. O filósofo e vários grupos feministas vão compreender esta noção
de “falo” como algo próprio da ordem do masculino, como uma manifestação
da razão patriarcal. O autor francês chega a cunhar o termo “falogocentrismo”,
juntando a lógica logocêntrica com a lógica falocêntrica, que credita um único
sistema onde se coloca o logos paterno e o falo como significante privilegiado.
O que Sáez procurou enfatizar em sua análise de Derrida foi a sua relação
com a psicanálise. Claro, há tanto um desdobramento no feminismo — onde
o conceito de falogocentrismo é fecundo — quanto na teoria queer, que vai
revisitar a obra de Derrida revendo os seus conceitos mais radicais. Todavia, o
conceito de Derrida que terá uma maior influência na teoria queer segue sendo o

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 109


de performatividade — que é diferente de performance — e é esta teorização que
retomaremos de forma bastante livre, no intuito de trazer à baila determinadas
questões necessárias para o pensamento queer.

PERFORMATIVIDADE

O conceito de performatividade ganha popularidade — e com a grande


popularidade uma espécie de confusão teórica — no feminismo e na teoria
queer com a filósofa Judith Butler. Entretanto, como a performatividade envolve
primeiro a filosofia da linguagem, voltamo-nos para John Langshaw Austin.
Austin é quem introduz o termo “performativo” no campo da linguística.
A obra de Austin intitulada Quando dizer é fazer reúne várias conferências
ministradas em Harvard, em 1955. Nestas conferências, o autor desenvolveu sua
teoria dos Atos de Fala (Speech Act Theory), e aplicou o termo “performatividade”.
Porém, antes de esquadrinhar o que é a linguagem em seu uso performativo,
talvez seja peremptório, por exemplo, nos conscientizarmos brevemente de
outra compreensão da linguagem que é criticada pelos autores que endossarão
um uso mais público da linguagem, uma função mais dialógica e, ainda, a
performatividade da linguagem.
Desde o início da filosofia, é possível testemunharmos problemas que
envolvem a linguagem. Quando pensamos a filosofia grega antiga, encontramos,
sobretudo, Platão e Aristóteles. Um dos principais diálogos de Platão sobre o
assunto é o famoso texto chamado Crátilo. Nele surge a pergunta se a linguagem
poderia ou não ajudar no conhecimento humano da realidade. Crátilo é
conhecido como um diálogo aporético, um diálogo que termina em um impasse,
um diálogo cujas alternativas apresentadas não são satisfatórias; porém, as
questões colocadas e o seu forte teor filosófico vão influenciar demasiadamente
o tema da linguagem.
Um dos pontos do diálogo platônico é a questão entre o naturalismo e o
convencionalismo da linguagem. Danilo Marcondes, em sua obra “As armadilhas
da linguagem”, afirma:

O naturalismo defende que há uma relação natural entre o signo e a coisa


significada. O signo possuiria uma natureza comum a coisa que significa,

110 RAFAEL LEOPOLDO


contribuindo para o conhecimento desta. Mas o naturalismo se revelaria
insustentável por uma série de argumentos examinados ao longo do diálogo,
como a variação linguística, ou seja, o fato de as palavras serem diferentes
em línguas diferentes, mesmo se referindo às mesmas coisas. Além disso,
as tentativas de representar por meio de sons as características das coisas
significadas esbarrariam em um grande número de contraexemplos. A
relação palavra/coisa não se sustentaria enquanto imitação (mímesis)
sonora das características da coisa. Já o convencionalismo, como alternativa
ao naturalismo, consistiria em uma tese mais fraca ainda sobre a relação
entre palavra e coisas, relação que considera meramente convencional, não
havendo, por conseguinte, nada em comum entre ambas (Marcondes, 2017,
p. 29).

A partir do diálogo de Platão, Marcondes conclui que a linguagem não seria


tão categórica para o autor, já que não haveria contribuição cognitiva por parte
do signo para o conhecimento da realidade que se refere. De qualquer forma, o
debate sobre naturalismo e convencionalismo se torna uma herança para todo
o pensamento que se encaminha à filosofia da linguagem. Além do mais, a
pergunta inicial, a respeito da importância da linguagem, não será esquecida,
e terá um valor preponderante na virada linguística. É, sobretudo, por causa
desse evento que o feminismo e a teoria queer se vincularão, apropriando-se
de determinados conceitos.
Não obstante, continuamos ainda no solo da Grécia antiga, agora, pensando
em Aristóteles e a sua obra Da interpretação, que conterá ecos no pensamento de
Santo Agostinho com o seu livro De magistro (Do mestre); ecos que encontrarão
ouvidos atentos na modernidade. A respeito da teoria da linguagem exposta
por Aristóteles, Danilo Marcondes sintetizou-a bem:

A palavra falada seria símbolo da afecção da alma, expressando


convencionalmente o que está na interioridade. E a palavra escrita seria
símbolo da palavra falada, expressando, também convencionalmente, por
escrito, o que proferimos oralmente. As palavras escritas e as proferidas
variam conforme a cultura, “não são as mesmas para todos”, devido à sua
convencionalidade. Entretanto, as afecções da alma são iguais para todos
porque a mente humana é uma só, não depende de variações culturais. Para
Aristóteles, aquilo que percebemos é resultado da maneira como nossa mente
é afetada pelo real, pelas coisas, que “são as mesmas para todos”. Na concepção
do realismo aristotélico, existe uma realidade única e predeterminada que
constitui o mundo da experiência humana. Assim, existiria uma natureza
humana universal que moldaria o modo pelo qual percebemos essa realidade.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 111


As “afecções da alma”, uma primeira versão do conceito ou ideia, resultariam,
pois, da relação entre a mente e a realidade e, nesse sentido, não seriam
convencionais, expressando uma semelhança e tendo algo em comum com
a realidade (Marcondes, 2017, p. 31).

Neste fragmento, podemos compreender a solução aristotélica para o


convencionalismo — para o problema colocado por Platão no diálogo Crátilo.
Trata-se de superar o convencionalismo da linguagem procurando as “afecções
da alma” correspondentes aos signos linguísticos que dão o seu conteúdo
cognitivo.
Na solução aristotélica, fora introduzido entre o signo linguístico e a
realidade a “afecção da alma”, ou ainda, para simplificarmos: entre o signo
linguístico e a realidade empreendeu-se o “conceito”. Desta maneira, um signo
linguístico (que é convencional) para ter determinado significado deveria ser
associado a determinado conceito (que não é convencional) e esta relação se
daria pela apreensão da realidade por nossa mente, realidade que é externa e
objetiva.
Esta elaboração de Aristóteles será definida posteriormente como mentalista
ou ideacional, porque a relação entre a palavra (signo linguístico) e a coisa
(realidade externa) é intermediada pela mente que, para Aristóteles, faz parte
da razão humana e é universal. É em contraponto a uma postura mentalista que
a filosofia contemporânea desenvolve uma pragmática da linguagem, ou ainda,
uma concepção performativa da linguagem. Se, em um primeiro momento,
compreendemos a linguagem como descritiva e representativa, neste segundo
momento, pensamos a performatividade como uma ação. Promovemos um salto
para o pensamento contemporâneo para entendermos esta outra concepção de
linguagem que tanto ressoa no pensamento queer.
Apesar disso, faz sentido questionar ainda o que modifica essa nova
compreensão da linguagem em comparação a que apresentamos na figura
de Platão e Aristóteles. Talvez, uma mudança mais lúcida de uma concepção
pragmática da linguagem diga respeito exatamente à valorização do uso
prático da linguagem. Assim, tomemos um exemplo trivial: quando alguém
diz “eu prometo” não estaria expressando uma intenção de prometer, ou
ainda, descrevendo uma atitude mental; mas, sim, realizando uma promessa,
ou seja, praticando uma determinada ação. Em seu caráter performativo, a
linguagem realiza atos. Neste momento, o significado da palavra não se daria,

112 RAFAEL LEOPOLDO


por exemplo, pela “afecção da alma” e sua relação com um objeto real, mas
devido às possibilidades de uso da palavra; a dimensão representacional da
linguagem é deixada de lado em prol da ação que a linguagem pode realizar.
Agora estamos, de fato, muito próximos de uma concepção de linguagem usada
por Judith Butler e demais teóricos do pensamento queer.
Refletindo numa pragmática da linguagem, um dos dados fundamentais é
que “quando a linguagem é usada em um sentido performativo, não descrevemos
simplesmente o real, nós o constituímos” (Marcondes, 2017, p. 68). Desta forma,
somos conduzidos para uma distinção importante que Austin elabora entre
uma linguagem constatativa e uma linguagem performativa. Uma linguagem
constatativa evoca sentenças que descrevem fatos e eventos, enquanto uma
linguagem performativa é usada para realizar (to perform) algo.
Javier Sáez, em seu livro Teoria queer e psicanálise, nos apresenta dois
exemplos, tanto para os constatativos quanto para os performativos. Uma
sentença constatativa poderia ser “amanhã é segunda-feira”; uma sentença
performativa é “eu os declaro marido e mulher”. Na primeira sentença é possível
compreendê-la como verdadeira ou falsa, enquanto a segunda sentença produz
o acontecimento. No primeiro caso, pode ser que hoje seja realmente segunda-
feira, portanto, uma sentença verdadeira; ou pode ser que seja outro dia da
semana, resultando em uma sentença falsa. Contudo, quando a segunda sentença
é dita por uma pessoa autorizada e em determinado contexto não se trata de ser
verdadeira ou falsa, mas, sim, de produzir um acontecimento — ela efetua, na
realidade, o que está nomeando. Para Austin, um performativo é feliz ou infeliz,
dependendo das circunstâncias e das consequências do ato.
Se, a princípio, refletíamos sobre dois exemplos, tendo em vista a obra
de Javier Sáez, agora, apresentaremos um terceiro exemplo a respeito da
performatividade e da violência. Esta conexão entre performatividade e violência
que se exibe no discurso de ódio é reveladora, dado que as minorias são atacadas
por estes discursos. Trata-se de compreendermos como a violência simbólica
toma a forma de uma violência real. Quando pensamos o acirramento das
eleições de 2018, que teve no segundo turno os candidados Jair Bolsonaro (e
o seu militarismo representado pelo gesto de se fazer uma arma com a mão)
e Fernando Haddad (o humanismo professoral representado pelos livros e os
lápis), testemunhamos um crescimento da violência no país, principalmente,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 113


pelo discurso político racista, misógino e LGBT*fóbico do bolsonarismo40. Segue
o gráfico do site de jornalismo investigativo Apública (“Agência pública”) que
trabalha juntamente com a Open Knowledge Brasil e a Brasil.oi:

Na matéria d’A pública consta que estes ataques violentos aconteceram desde
o dia 30 de setembro de 2018, assim, trata-se de apenas 10 dias de análise. A

40
Durante a campanha e logo após o anuncia da vitória do presidente Jair Bolsonaro houve um aumento da
violência contra as minorias, assim, não foi estranho o ressoar do grito “Ninguém solta a mão de ninguém”
como uma forma de aliança entre as pessoas. Esta frase remonta, por sua vez, a época da ditadura e a
Universidade de São Paulo, USP. Quando a universidade era invadida pelos militares os estudantes buscavam
as mãos uns dos outros e, então, diziam “ninguém solta a mão de ninguém”. Depois quando as luzes voltavam
os estudantes faziam uma contagem para saber se todos ainda estavam ali e, claro, que nem sempre estavam
todos lá. De qualquer maneira, esta frase foi reavivada diante do discurso de ódio do bolsonarismo como
forma prática de resistência desinibição da violência, contra a brutalidade. Thereza Nardelli também utilizou a
frase numa imagem – que viralizou na internet – mostrando uma mão segurando a outra e uma rosa no meio.

114 RAFAEL LEOPOLDO


análise d’A pública continuará e será apresentada tanto em seu próprio site
quanto no site Vítimas Da Intolerância.
O discurso político violento de Jair Bolsonaro tem ressonâncias no real.
Porém, este político é cínico ou não conhece o poder do próprio discurso,
quando afirma que não pode responder pelos atos dos seus correligionários
e que dispensa os votos de quem pratica violência. Ele não compreende o ato
perlocucionário da fala que provoca efeito em outra pessoa, influenciando seus
pensamentos e suas ações, produzindo uma transformação, determinando
efeitos que, no caso do discurso político de ódio, é a própria violência.
Lembremos, ademais, que Jair Bolsonaro se reconhece como admirador
de Donald Trump e se o presidente norte-americano tem em seu slogan “Make
America Great Again”, Bolsonaro, por sua vez, apresenta uma mescla de fascismo
e sedução neopentecostal com o slogan “Brasil acima de tudo. Deus acima de
todos”. O primeiro bordão poderia remeter diretamente ao contexto histórico
da Alemanha de Hitler e a reforçada frase “Deutschland über alles” (“Alemanha
acima de todos”); já a segunda frase, novamente, trata-se de compor uma aliança
com a Bancada BBB, ou seja, a bancada do boi (ruralista), da bala (segurança
pública) e da bíblia (bancada evangélica).
Assim, se retomamos esta admiração de Bolsonaro por Trump é para
enfatizarmos que, já no político norte-americano, há toda uma espetacularização
da política, todo um discurso negativo, um discurso político da violência e contra
uma cadeia de minorias. Este showbiz e o discurso que o acompanha — em
ambos os políticos — ganham uma materialidade, todavia. Esta materialidade,
infelizmente, é o próprio corpo das minorias sendo aviltadas pelo presidente
brasileiro, eleito no dia 28 de outubro de 2018. Há, também, o já tão vilipendiado
corpo da natureza, quando pensamos a sua política com relação à Amazônia,
principalmente, as queimadas de agosto de 2019; situações que parecem
transformar ainda mais o mundo numa espécie de câmara de gás e um lugar
cada vez mais desertificado.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 115


GLORIA ANZALDÚA E O
NASCIMENTO DA TEORIA QUEER

I WAS BORN A QUEER

“Não saia no sol”, minha mãe me dizia quando eu


queria brincar lá fora. “Se você ficar mais escura, eles
vão lhe confundir com um índio. E não suje a sua
roupa. Você não quer que as pessoas lhe digam que
é uma mexicana suja.
Gloria Anzaldúa, La Prieta

A escritora Gloria Evangelina Anzaldúa (1942 – 2004) percorreu uma


diversidade enorme de saberes em sua produção teórica. Ela desfez fronteiras e
criou novas alianças. Caminhou, por exemplo, entre a poesia, a prosa, o ativismo,
a política chicana, o feminismo, o lesbianismo, a ficção, inovou na forma
narrativa com sua autohistoria-teórica, além de, ademais, ter sido responsável
por alguns posicionamentos teóricos assumidos pelo pensamento queer que são,
infelizmente, negligenciados por grande parte dos teóricos e teóricas.
Poderíamos elencar muitos motivos para este descuido teórico a respeito
de Anzaldúa; porém, enfatizamos que, ao menos, a exposição da teoria queer
(de produção estrangeira) no Brasil segue de forma ainda tacanha. A tradução
da obra de Anzaldúa, também, se trata de um texto com as suas dificuldades
para quem possui o português como língua materna, pois ela incorpora tanto
o inglês quanto o espanhol e algumas de suas variações. Trata-se de um texto
híbrido, que engloba a própria vivência da autora41, seja geográfica (México-
Texas) ou linguísticas (espanhol-inglês) e suas reverberações na subjetividade.

41
O silêncio em relação a tradução das obras de Gloria Anzaldúa é impressionante até mesmo nos países que
tem como língua materna o espanhol. Basta salientarmos que a tradução de Borderlands somente surgiu no

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 117


Por outro lado, a produção teórica queer talvez seja demasiadamente
centrada na Europa e nos Estados Unidos. Quando alguém problematiza as
fronteiras de uma forma provocativa e instigante, esta voz que fala em línguas
é silenciada, transformada apenas num murmúrio. Por último, no Brasil não
há uma política efetiva para a consolidação do ensino de filosofia — e muito
menos um saber que é militante em sua origem — no ensino básico e médio;
aliás, parece haver um esforço titânico de nossa classe política para retirar este
saber de todos os níveis do ensino brasileiro, inviabilizando e silenciando uma
determinada produção reflexiva e o conhecer de outras vozes que não seja a
voz unívoca excludente, a voz unívoca e segregativa.
A despeito disto, mesmo diante desta negligência, Anzaldúa se configura
como uma autora chave para o pensamento queer. De fato, Anzaldúa nasceu
queer: seja por ser mestiça ou por sua própria constituição física e a constante
luta com a saúde. Esses dois dados são importantes no que diz respeito à própria
elaboração do seu pensamento, da sua autohistoria-teórica.
A respeito do primeiro aspecto, poderíamos citar dois dos seus livros. O
primeiro chamado This Bridge Called My Back: Writting by Radical Women
of Color (1981) e, porventura, o livro mais conhecido da autora, Borderlands/
La Frontera: The New Mestiza (1987). Com o livro de 1981, Anzaldúa põe em
xeque o próprio feminismo. É vital lembrarmos que a teoria queer coloca outros
indivíduos à tona, não somente o feminismo branco de classe média na luta por
direitos e pela inclusão num sistema heterocentrado. No Brasil, por exemplo,
nesta mesma década, teremos a produção de Lélia González levantando questões
do feminismo negro em pauta de forma contundente. Na teoria queer surgem
estas outras vozes, outros escritos; o que Anzaldúa exprime é a diversidade de
etnias, a posição econômica, sexual, o próprio contexto social e cultural que
deve ser analisado, pois as lutas podem ser outras, possuir outros matizes.
No livro de 1987, Anzaldúa deixa perceptível a questão do contexto, do
lugar, problematiza a sua própria história, faz teoria dela, de sua localização
geográfica na fronteira entre o México e o Texas — em suma, tudo é vital para
o próprio desenvolvimento teórico e sua escrita. A respeito do tópico quanto
à saúde da autora, é preciso mencionar que ela sofria de um raro desequilíbrio
hormonal que, por sua vez, a levou à menstruação quando ainda era criança. Em

ano de 2006 com o trabalho de Carmen Valle e a editora Capitan Swing. No Brasil encontramos a tradução
de alguns artigos espalhados por algumas revistas acadêmicas.

118 RAFAEL LEOPOLDO


sua infância, Anzaldúa era marcada pela noção de normalidade e anormalidade.
Ela sentiu não só o preconceito por sua cor de pele, por falar o espanhol, mas,
também, compreendeu a diferença em sua composição física. É igualmente
interessante percebermos que haverá no pensamento queer um giro tecnológico
que tomará a questão hormonal com um fervor teórico e existencial para uma
nova concepção do que é o gênero, não o compreendendo somente como um ato
performativo, mas, envolvendo um determinado naturalismo. Anzaldúa sentia
o efeito hormonal, não da mesma forma que as lésbicas radicais vão utilizá-lo,
em doses certas para uma experiência de transexualidade; Anzaldúa o tem
mormente como uma doença, com seus efeitos deletérios em sua vida.
Depois desse preâmbulo sobre a estudiosa, voltamo-nos, primeiramente, a
dois elementos de sua obra. Trata-se de dois pequenos textos de nossa autora. O
primeiro texto é intitulado Metaphors in the Tradition of the Shaman e envolve o
processo de escrita e o xamanismo, a escrita como uma verdadeira mudança no
sujeito. O segundo texto é intitulado Speaking in Tongues: a letter to third world
women writers e nele já podemos encontrar uma crítica ao feminismo branco
dominante. As diversas críticas que o feminismo vai sofrendo é que dão lugar,
em grande parte, à teoria queer. Destas outras vozes, surgem uma variedade
de questionamentos que, em última instância, dão forma a uma nova crítica
social surgida das bordas, das margens, das fronteiras e por sujeitos fronteiriços,
sujeitos de cobre.
Por último, talvez não seja exagero dizer que Gloria Anzaldúa, para além do
esforço considerável em juntar diversos grupos sociais e saberes, nasce queer e
gera, com vários outros autores e autoras, a possibilidade da própria teoria queer,
na medida em que critica de forma sagaz o próprio feminismo, um feminismo
que tentava se enquadrar numa sociedade heterocentrada.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 119


A ESCRITA XAMÂNICA DE GLORIA ANZALDÚA

Fonte: Cláudia Andujar [Site]. Cláudia Andujar tem um grande trabalho fotográfico com o
povo Yanomami. No que envolve o pensamento filosófico brasileiro, tivemos recentemente a
publicação do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, do xamã Davi Kopenawa
e do antropólogo Bruce Albert. Nele encontramos toda uma potencialidade de pensamento não
ocidental que poderia nos remeter a elementos do pensamento queer. Quando ponderamos sobre
Gloria Anzaldúa e sua escrita xamânica, mais atual seria pensar A queda do céu como um diário
ameríndio de intoxicação voluntária, assim, poderíamos fazer referência a toda uma crítica queer
do poder farmacológico, ou melhor, da farmacopornografia para usarmos um conceito de Paul
Beatriz Preciado.

O texto Metaphors in the Tradition of the Shaman é uma reflexão sobre a


publicação do seu livro Borderlands/La Frontera. Deste pequeno texto podemos
refletir em dois pontos do pensamento de Anzaldúa. O primeiro corresponde
a composição do seu livro, e o segundo diz respeito à própria literatura como
uma espécie de cura: sí, la imaginación es muy poderosa. O primeiro nos fala de
um chamado que envolve uma herança cultural e o segundo sobre a metáfora
como possibilidade de adoecimento, mas, também e, muito certamente, de cura.
Diante das entrevistas, Gloria Anzaldúa acaba se indagando sobre o que
exatamente ela escreveu e o porquê daquela escrita. Ela responde que se dá conta
que estava tentando praticar o mais antigo “chamado/calling” do mundo —
xamanismo —, embora de uma nova forma. De acordo com a autora:

120 RAFAEL LEOPOLDO


A palavra xamã em sânscrito é saman e significa poesia/canção[song]. Nas
sociedades sem escrita o xamã e o poeta eram a mesma pessoa. O papel
do xamã era então preservar e criar uma identidade grupal ou cultural
mediando entre a herança cultural do passado e as situações do dia-a-dia
do presente onde as pessoas estão. De forma retrospectiva eu vi que esta
era, em parte, a minha intenção inconsciente na escrita de Borderlands/La
Frontera (Anzaldúa, 2009, p.121).

Desta forma, como asseverado, o que levou a autora a escrever foi um


determinado chamado que envolve, se acompanharmos a analogia com o
xamanismo, toda uma herança cultural, e centralizá-la é basilar para os estudos
queer. Anzaldúa prossegue com a analogia com o xamanismo trabalhando a
ideia da metáfora e a de cura.
Por estas vias, Anzaldúa olha para o que machuca, o que hace daño, o que
é enfermo; para a desinformação, a interpretação errada como uma forma de
metáfora. A cura — la curación — consistiria em remover alguma coisa, extrair
a velha metáfora, restaurando um equilíbrio físico e mental. Para Anzaldúa, em
toda cultura há um sistema de crenças e de metáforas que resistem a mudanças.
Um exemplo empregado pela autora é que “todos os mexicanos são preguiçosos
e indolentes”. Porém, mesmo que a metáfora seja uma mentira ela resiste, e vai
persistir até ser substituída por uma nova, uma em que acreditaremos de forma
consciente e inconsciente.
Nós conservaríamos e criaríamos o nosso eu por meio da metáfora e, o
mais importante, nós nos compartilharíamos por meio dela — fluxo de palavras,
sensações, sentimentos, esperanças, tudo isso seriam metáforas que poderiam ser
ativadas. Anzaldúa propõe usar a metáfora como um xamã usa as suas ervas, as
suas pedras de cura. É necessário causar a mudança, seguir a tradição xamânica:
“se tivermos sorte, nós criaremos, como um xamã, imagens que induzem a um
estado alterado de consciência que conduz a uma auto-cura” (Anzaldúa, 2009, p.
122. Itálico nosso). Isto posto, poderíamos inferir que numa escrita xamânica
o vital seria criar imagens e metáforas que produziriam a capacidade de uma
auto-cura/self-healing: curar a depressão do espírito, a alma atormentada e,
claro, aqueles que estão de alguma maneira fora da norma já sentiram este
deslocamento e a necessidade de se reestabelecerem.
A teoria queer parece, pela primeira vez, se trajar com um cocar e abrir
um campo ainda não explorado: a perspectiva da antropologia, capaz de nos
envolver com a questão indígena não somente no nível de uma analogia com

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 121


o xamã, mas da compreensão de como são os índios — os involuntários da
pátria. Outro tema que Anzaldúa não deixa de abordar é o canibalismo, tema
vital para a cultura latino-americana que ganha contornos fortemente filosóficos
com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e sua obra A inconstância da
alma selvagem. A autora, em seu poema a “Canção do canibal” escreve que: “o
canibalismo é uma benção”.

FALANDO EM LÍNGUAS

Não deixem a tinta coagular em suas canetas.


Não deixem o censor apagar as centelhas,
nem mordaças abafar suas vozes.
Ponham suas tripas no papel.
Gloria Anzaldúa, Speaking in Tongues

O gênero literário de Speaking in Tongues: a letter to Third World Women


Writer é a carta. A autora queria escrever com determinada proximidade,
intimidade, a partir da impossibilidade de usar algum gênero acadêmico que
é marcado, geralmente, por uma vontade de neutralidade, por uma espécie
de frieza quase laboratorial na escrita e, muitas vezes, a neutralidade da
terceira pessoa que esconde as características de quem produz dado tipo de
conhecimento.
De qualquer forma, Anzaldúa começa a sua carta da seguinte maneira
“Queridas mujeres de color, companheiras de escrita...” e em outro momento
“Minhas queridas hermanas, o perigo que nós encaramos como escritoras de
cor não são os mesmos que as mulheres brancas enfrentam”. Este texto seria
frutífero para pensarmos tanto o valor da escrita quanto o surgimento da teoria
queer. No primeiro caso, ponderarmos o valor da escrita em um determinado
contexto. A carta de Anzaldúa é enviada para as mulheres do terceiro mundo.
Outro elemento notável é que as mulheres de cor enfrentam outros problemas,
distintos das mulheres brancas e, claro, é necessário se perguntar o porquê da
própria escrita. No segundo caso, é possível nortear o surgimento da teoria
queer por meio deste texto, posto que a teoria queer aparece criticando um
certo feminismo que procurava — e procura? — uma aceitação social em uma
estrutura heterocentrada.

122 RAFAEL LEOPOLDO


Sobre a questão inicial, lembremos que o texto Speaking in Tongues data de
1979 e é publicado apenas em 1981, sendo posterior o texto Metaphors in the
Tradition of the Shaman (citado anteriormente) e escrito na década de 9042. Em
função disso, regressemos para a motivação de uma escrita no texto Speaking
in Tongues, onde ainda não era utilizada a analogia com o xamã e a ideia da
metáfora enquanto doença e cura
Anzaldúa escreveria para manter o espírito de revolta, para se manter viva,
colocar ordem no mundo, para se descobrir, criar autonomia, gravar o que os
outros tentam apagar, reescrever histórias — poderíamos dizer que se trata de
criar outras metáforas curativas — sobre ela e a respeito das pessoas a que são
endereçadas essa carta: las mujeres de color, las hermanas, a chicana, as lésbicas,
as sapas, a mãe solteira, etc. Anzaldúa convida todas essas mulheres para a
escrita, mesmo em uma situação adversa:

[E]screva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila


do sistema de saúde, no trabalho ou durante a refeição, entre o dormir e o
acordar. Eu escrevo sentada no vaso. (...) [E]screva enquanto lava o chão ou as
roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo (Anzaldúa, 2009, p.31-32).

Neste texto de Anzaldúa a escrita também é uma forma de reconciliação,


de ser julgada como o “outro”, o feminino, a pessoa de cor, etc. Então, a escrita
poderia reconciliar este eu que fora exilado, que se tornou estranho a si mesmo.
A escrita ajudaria a sobreviver.
De qualquer forma, é necessário recordar que parte do movimento gay-
lesbiano dos anos 80 termina gerando demandas para entrar em uma ordem
social heterocentrada, para que possa adquirir determinados privilégios,
direitos, e fazer parte de uma normalidade que, por sua vez, gera o seu oposto:
a anormalidade, o patológico. Ao se colocar com alguns marcadores sociais
específicos, Anzaldúa se distancia do feminismo branco da classe média e suas
demandas.
A respeito desta temática, em seu livro Teoria queer e psicanálise, Javier
Sáez afirma que a teoria queer iria, além de assumir valores tradicionais, como a

42
Ainda a respeito do xamanismo, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, já nas décadas de 80 e 90,
ajuda a produzir uma verdadeira “virada ontológica” na antropologia; seus trabalhos têm ecos importantes
na produção filosófica.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 123


família, o casal, o amor, a procriação, o matrimônio, a fidelidade, a estabilidade;
trata-se de algo oposto, pois “as políticas queer pretendem aproveitar o potencial
subversivo das sexualidades marginais para questionar a própria ordem social e
política, reivindicando a liberdade no uso dos corpos e dos gêneros, desafiando
o sistema que separa a sexualidade normal de uma desviada” (Sáez, 2004, p.133).
É pensando nessa ruptura que é concebível comentar outro argumento do texto
de Anzaldúa, pois as ervas do escrito xamânico têm uma direção bem clara.
Se a escrita é compreendida como uma cura, se ela ajudaria a sobreviver,
a carta enviada de Anzaldúa se direciona, estritamente, para as escritoras do
terceiro mundo, ainda que os perigos que uma mulher de cor encontre não
sejam os mesmos de uma mulher branca. Deste ponto, o próximo passo é uma
crítica ao próprio feminismo:

Para a mulher do terceiro mundo que, na melhor das hipóteses, tem um pé no


mundo literário feminista, é grande a tentação de acolher novas sensibilidades
e modismos teóricos, as últimas meias verdades do pensamento político, os
semi-digeridos axiomas psicológicos da new age, que são pregados pelas
instituições[establishment] feministas brancas. Seus seguidores são notórios
por “adotar” as mulheres de cor como sua “causa” e ainda esperam que nos
adaptemos a suas expectativas deles e a língua deles (Anzaldúa, 2009, p. 28).

Daí ser necessário adotar uma visão do feminismo que não torne as
mulheres de cor invisíveis, pois elas falam de outro lugar e com outras línguas.
É por isso que, por exemplo, Anzaldúa nega o termo “lésbica/lesbian”, já que
lésbica seria uma palavra cerebral, de uma mulher branca de classe-média,
representante da cultura dominante de língua inglesa. Como Anzaldúa se
identifica como uma trabalhadora chicana, mestiça, a própria palavra lésbica
não teria nenhuma relação com ela; porém, outras palavras são substanciais
como: loquita, jotita, marimacha, pajuelona, lambiscona, culera, etc. Estas são
as palavras que têm significado para Anzaldúa e que ressoam na sua mente. Em
outro texto, chamado To(o) Queer the writer — loca, escritora y chicana, a autora
afirma que se fosse escolher uma palavra do inglês seria a “dike” ou “queer”,
isto é, “sapatão” ou esta outra palavra tão difícil de ser traduzida que é o: queer!
Anzaldúa toma para si mesma a palavra queer, fazendo parte da ressignificação
que já abordamos. Neste momento, o termo é retomado; porém, de uma forma
ativa, a enunciação está na ponta da caneta, na ponta da língua de mil vozes e
mil dialetos de Anzaldúa.

124 RAFAEL LEOPOLDO


Este aspecto do pensamento de Anzaldúa vai refletir fortemente na teoria
queer e sua relação com um feminismo mainstream. Autoras que seguiram os
passos de Anzaldúa se recusaram a ser relegadas à margem da própria produção
teórica, mero exemplo de um feminismo paternalista e dogmático que usa a
experiência de outras minorias como um simples experimento para agregar a
diversidade às suas teorias, sem o verdadeiro compromisso de ouvir as outras
vozes.
Depois de Anzaldúa, a teoria queer tenta se afastar da fetichização e de
toda uma axiomática a partir da qual o saber menor e uma vivência queer
poderiam ser expostos e que o próprio feminismo pode importá-lo como
adorno, despotencializando a vivência de uma gama de outros — o queer não
quer, como o feminismo, entrar em um clube social heterocêntrico, até porque
muitas pessoas não experimentaram os direitos civis como as feministas brancas
de classe média ou a comunidade gay aburguesada.
Os direitos civis para muitos são um problema quando pensamos que estão,
com efeito, encarnados de individualismo, encarnados com o capitalismo e
com um forte colonialismo. O estado civil protege o direito de alguns e anula
o de tantos outros e outras. Pensemos no mojado que se refere ao imigrante
mexicano e, mais amplamente, aos latino-americanos que trabalham por menos
de um salário mínimo, mas, também, aprofundemos nas tribos indígenas, nos
africanos transportados como escravos e tantos outros empobrecidos à mercê
da gentrificação, do banoptismo, da criação contínua de muros. A democracia
e os direitos têm um significado bem diferente dependendo do lugar em que se
esteja. Para o Norte Global a democracia e os direitos têm um gosto de liberdade
e, para o Sul Global, têm no seu sabor uma mescla de colonialismo e patriarcado.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 125


A TEORIA QUEER E O
PENSAMENTO HOMOERÓTICO LÉSBICO

O PENSAMENTO LÉSBICO: WITTIG, RUBIN E RICH

Neste capítulo, vamos abordar três autoras do feminismo lésbico: Monique


Wittig, Gayle Rubin e Adrienne Rich. Cada uma delas vai debater o feminismo,
mas, também, criticá-lo de alguma forma. O recorte histórico que fazemos a
partir dessas autoras passa por alguns textos escritos, principalmente, na década
de 80. Claro que a discussão vai muito além desse curto intervalo de tempo, mas
realçá-lo nesse período é importante para a nossa cronologia. Ademais, trata-
se de enfatizar que elas têm atrás de si a questão filosófica dos anos 60 e 70, ou
seja, do estruturalismo e do pós-estruturalismo, bem como um diálogo com o
marxismo — o marxismo será a linha vermelha que atravessará todas as três
autoras — e com a psicanálise. A respeito deste contexto histórico e da relação
do ativismo com o pensamento filosófico, podemos afiançar que o feminismo
dos anos 70 e 80 é uma leitura feminista de Marx; e a teoria queer que começa
a ser produzida nos anos 80 e 90 é uma leitura feminista do pós-estruturalismo,
principalmente, dos livros de Michel Foucault.
Nos anos 60 e 70, no debate intelectual francês — e na Alemanha com a
Escola de Frankfurt — começa-se a criticar o pensamento marxista e juntá-lo
ao pensamento freudiano: empreitada de diversos intelectuais que atrelam a
análise da sociedade e a análise do sujeito, às estruturas sociais e ao sujeito
desejante. Muitos filósofos vão se debruçar no debate sobre o marxismo e
expandi-lo com o pensamento de Freud e, juntamente, com a recepção francesa
de Freud via Jacques Lacan43. Citar essa ligação entre o marxismo e a psicanálise

43
Freud já tinha um contato com a filosofia. Jacques Lacan, por sua vez, vai aprofundar este diálogo com
o saber filosófico. Destas relações, surge uma produção muito peculiar no pensamento brasileiro que é a
filosofia da psicanálise.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 127


é indispensável, neste momento, porque todas as três autoras alvos deste capítulo
têm uma relação com o marxismo, uma espécie de adesão crítica. Como salienta
Deleuze e Guattari n’O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Contudo, no
seio de uma teoria há elementos revolucionários, reformistas e reacionários,
de modo que não diz respeito a um simplório “pegar ou largar tudo”; trata-se
de compor e de recompor — sempre montar um quebra-cabeça torcendo as
peças — e é isso que estas autoras estão a fazer tanto nas searas do marxismo
quanto da psicanálise.
Há uma variedade de elementos que as unem e que as diferenciam. No
decorrer do texto, a tentativa será a de registrar algumas peculiaridades, algumas
contribuições específicas de cada uma. Não obstante, deveríamos salientar outros
dados que perpassam uma problemática comum a elas. Um destes pontos em
comum é o radicalismo de seu pensamento, a separação entre o feminismo e
o lesbianismo; isto é significativo, uma vez que esta radicalidade talvez seja
o que possibilitou a criação de soluções criativas e, às vezes, quase utópicas,
para a opressão feminina. Lembremos que cada uma das autoras possuem um
envolvimento com a literatura, sendo que tanto Monique Wittig como Adrienne
Rich têm uma obra literária e uma reflexão sobre a própria escrita e sua função
— Gloria Anzaldúa é outra autora que deve ser recordada no que diz respeito
aos tópicos da linguagem e do ativismo. Desta forma, pensando nas similitudes
e nas diferenças, tracejaremos parte da reflexão destas autoras; vital para o
pensamento queer.

MONIQUE WITTIG: PENSAMENTO HETERONORMATIVO

Toda obra importante é, no momento da sua pro-


dução, como o cavalo de Troia. Toda obra com uma
nova forma funciona como uma máquina de guerra,
pois sua intenção e seu objetivo são destruir as velhas
formas e as regras convencionais.
Monique Wittig, O Cavalo de Troia

A filósofa e escritora francesa Monique Wittig (1935 – 2003) se autointitulava


uma feminista radical. Sua obra se envereda tanto pela escrita de romances — que
também influenciaram muito o feminismo — quanto na elaboração teórica de

128 RAFAEL LEOPOLDO


um ativismo lesbiano. Exemplificando o ativismo, ela se envolveu em grupos
como o Mouvement de Libération des Femmes (foi uma das fundadoras), Gouines
rouges e o grupo radical Féministes Révolutionnaires.
No presente prisma, abordaremos alguns textos da autora que tangem o seu
livro The straight mind and others essays (“Pensamento heterossexual e outros
ensaios”). Este livro é dividido em duas partes, a primeira parte tem um caráter
teórico filosófico-político e a segunda parte remonta de forma mais aguda a
tarefa da escrita, da literatura. Centraremo-nos, inicialmente, neste primeiro
conjunto de artigos que datam do início dos anos 80 até o final dos 90, sem
deixar de citar alguns textos anteriores a esta datação.
O primeiro conjunto de textos é responsável por nos alçar à principal
contribuição teórica de Wittig para a teoria queer, que é a compreensão da
heterossexualidade não como uma prática sexual, mas como um regime político.
Javier Sáez, teórico queer, que traduziu a livro The straight mind..., para o
espanhol já o denomina como um texto que se converteu em um clássico e é
um dos precursores fundamentais da teoria queer. De fato, encontramos neste
livro uma grande potência subversiva que tentaremos expor e analisar de forma
concisa no vigente tópico.
Os principais textos que usamos como referências são: A categoria de
sexo; Não se nasce mulher; O pensamento heterossexual; A propósito do contrato
social. Porém, já comunicamos que o intuito não é retroceder a argumentação
de cada um deles, mas identificar elementos que compõem o conceito de um
pensamento heteronormativo, a compreensão da heterossexualidade como um
regime político, por sua vez, estritamente ligado à produção capitalista. A crítica
de Wittig envolve, desta forma, um determinado marxismo crítico e percorre
outros elementos filosóficos, como uma aproximação do que Foucault entende
como biopolítica.
Nestes textos há algumas referências diretas; porém, há uma variedade de
saberes que a autora conversa sem citar os seus nomes. O diálogo da autora
entrecruza o ativismo da sua época, a história do feminismo e, ademais, a
história do próprio materialismo, posto que ela se inscreveria num materialismo
feminista. Há um diálogo com Hegel, Karl Marx, Friedrich Engels, Jean-Paul
Sartre, Michel Foucault, Gilles Deleuze e, também, com o estruturalismo/pós-
estruturalismo e a linguística; a psicanálise principalmente na sua vertente
lacaniana, e uma importante interlocução com o pensamento contratualista

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 129


que lhe conduzirá até a ideia, o conceito, de um “contrato heterossexual”. Talvez,
estas sejam as principais alusões mencionadas diretamente e indiretamente
nestes textos escolhidos. Em todo caso, retomemos o nosso tópico principal
na tentativa de ressaltar alguns elementos do pensamento heterossexual nos
textos destacados.
Numa primeira aproximação da ideia de um pensamento heterossexual, o
texto “A categoria de sexo” poderia ser facilmente evocado, já que, em seu início,
temos alguns elementos importantes para a autora, e que vão reverberar em
outros artigos. Já elucidamos que a autora faz parte de um materialismo feminista,
assim, não é estranho que encontremos no texto um vocabulário marxista, além
de, a propósito, uma negação à maioria das formas de abstração. Wittig quer
compreender a sociedade em termos “dialéticos materialistas”, colocar em foco
os “termos contraditórios”, entender “as contradições”, etc. A teórica soergue
as lutas de classe para uma luta de classe entre homens e mulheres e aponta
que as mulheres estariam totalmente dominadas pelos homens e os homens
saberiam, perfeitamente, deste poder. Diante deste ponto é que a filósofa faz uma
ponderação intrigante, porque até então o feminismo não havia questionado de
forma tão contundente a própria estrutura da heterossexualidade — e, como
sabemos, dificilmente o pensamento dominante se questiona ou considera a
necessidade de fazê-lo.
Monique Wittig afirma que o pensamento dominante — e nesta óptica
estamos usando-o como sinônimo para o pensamento heteronormativo —
ensina que:

1.Antes de qualquer pensamento, antes da sociedade, encontramos a categoria


inata do “sexo” como diferença constitutiva.
2.Esta noção de “sexo” seria algo natural, seja se pensarmos por meio da biologia,
dos hormônios, da genética ou até mesmo da sociológica com um enfoque
científico.
3.Por sua vez, o “sexo” iria refletir numa divisão de trabalho naturalizada, numa
criação de um tipo de família também naturalizada. Trata-se da divisão do
trabalho relacionada ao ato sexual.

130 RAFAEL LEOPOLDO


Aqui podemos conceber a primordialidade da categoria de “sexo” para o
pensamento de Wittig, pois é esta categoria que funda a sociedade heterossexual,
sociedade que toma posse da produção e da sua mulher fabricada.
A categoria de sexo estabelece a naturalidade das relações sociais e, por
sua parte, fabrica um determinado tipo de mulher. Esta mulher fabricada, por
exemplo, tem que exercer a função da reprodução que é, meramente, reproduzir
o sistema de exploração social. O âmbito desta reprodução se dá por meio do
contrato do matrimônio — tema recorrente do feminismo — que assinala para
a mulher determinadas obrigações. Este ambiente do matrimônio é o espaço
da casa, o lugar doméstico onde se pode cuidar dos filhos e das tarefas do lar.
Daí a necessidade de desfazer a categoria de sexo.
Por outro lado, Wittig, em seu artigo “O pensamento heterossexual”, de 1978,
vai apontar que este pensamento dominante não é produzido exclusivamente
pela categoria de sexo. Mesmo que seja um ponto importante, este pensamento
alcança, por exemplo, determinadas disciplinas, teorias, e uma gama de ideias
preconcebidas. Este conjunto de ideias, por sua vez, tem a característica de
tentar/produzir uma universalização.
Já no artigo “Não se nasce mulher”, de 1981, Wittig despende um indiscutível
esforço teórico na tentativa de desfazer a noção de sexo, embora nos ofereça,
igualmente, outros elementos com os quais refletimos, ainda de forma mais
contundente, sobre o pensamento heterossexual. A autora também realiza uma
crítica ao feminismo que se ancora no fundamento biológico e se contrapõe
com uma crítica materialista feminista onde não haveria uma “naturalização
da história”, mas, sim, a compreensão dos fenômenos sociais que compõem a
opressão. O “mito da mulher” seria tão somente mais uma forma de opressão.
Wittig como uma feminista radical, como uma lésbica radical, vai rechaçar a
heterossexualidade, negando-se em se converter em um homem, mas, também,
em uma mulher. Nega-se o poder econômico, ideológico, político do homem,
mas, também, a mulher fabricada como objeto no berço do capitalismo.
Trata-se de destruir os homens enquanto classe social que, por sua vez,
faria desaparecer a mulher enquanto outra classe social. Neste momento, a
autora é bem hegeliana, apontando não haver senhores sem escravos com a
eliminação de um polo. Destruir “Mulher” com um maiúsculo é dar vazão “às
mulheres”, o mito da mulher serviria somente para mascarar a exploração d’as
mulheres concretas. Esta temática que Wittig levanta no seio do feminismo

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 131


foi anteriormente pensada por Jean-Paul Sartre quando tentava introduzir, no
marxismo, a questão do sujeito. Wittig trata do mesmo tema, a mulher enquanto
classe e as mulheres enquanto subjetividade. Outra feminista que vai trabalhar
essa crítica é Gayle Rubin, para quem seria necessário assimilar não apenas as
classes sociais, mas as mulheres e a própria sexualidade, e mais ainda: toda a
relação que diz que uma estrutura biológica produz um sistema de sexo e gênero,
ou que diz que de uma estrutura biológica se culturalizam os corpos e se criam
toda uma obrigatoriedade heterocentrada de gênero.
Para Wittig, determinada identificação entre as mulheres é necessária.
Somente com ela haveria uma consciência de classe e, se não há esta consciência,
só haveria sujeitos alienados. Trata-se de saber como as mulheres se fizeram
feministas ou lésbicas, como os problemas subjetivos são também problemas
sociais, coletivos, enfim, problemas de classe. A sexualidade que poderia parecer
somente um aspecto da subjetividade faria parte, também, de uma instituição
violenta — lembremos que Foucault aborda toda a questão da natalidade como
um biopoder, como uma biopolítica.
A autora quer destruir a categoria de sexo (homem e mulher) para criar
uma nova definição de pessoa, de sujeito. O lesbianismo estaria numa posição
privilegiada neste momento, já que o que constitui a mulher é sua relação de
servidão a um homem e a lésbica estaria fora da categoria sexual homem-
mulher; é oriundo daí o famoso mote de Wittig: “as lésbicas não são mulheres”.
As lésbicas não seriam mulheres, porque não fariam parte da relação homem-
mulher.
De qualquer forma, mesmo que as lésbicas tenham uma posição privilegiada
na categorização do sexo, elas não estariam totalmente fora de uma dominância
do pensamento heterossexual, já que outra característica deste pensamento é
que ele se funda na necessidade do outro. E este outro não é somente a mulher,
mas uma vastidão de outros que inclui até mesmo as lésbicas. O outro seria o
diferente, o outro seria, do mesmo modo, o “dominado”. Novamente Wittig
afirma a necessidade de dissolver categorias como homens e mulheres, pois
continuar com elas é manter o regime heterossexual, é perpetuar o que a autora
compreende como um contrato heterossexual.

132 RAFAEL LEOPOLDO


GAYLE RUBIN: SISTEMA SEXO-GÊNERO

O sonho que me parece mais atrativo é o de uma


sociedade andrógena e sem gênero – mesmo que não
sem sexo – em que a anatomia sexual não tenha
nenhuma importância para o que é, o que se faz e
com quem faz amor.
Gayle Rubin

Gayle Rubin é uma antropóloga norte-americana conhecida pelo seu


ativismo e sua produção teórica sobre teses da sexualidade. Sua grande
contribuição para a teoria queer se dá, principalmente, com a publicação de
seu longo ensaio “The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex”
(“O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”), de 1975,
onde relata os conceitos de “sistema sexo-gênero” e de “heterossexualidade
compulsória”. Estes dois conceitos estão interligados, já que a sua compreensão
do sistema sexo-gênero é aplicada à ideia de parentesco, onde ela retira o
pressuposto de uma heterossexualidade compulsória. É esta relação contígua
que sondaremos na tentativa de explanar e expor este conceito tão caro ao
pensamento queer.
Rubin é uma das primeiras autoras a tratar da questão de gênero e relacioná-
la com a opressão das mulheres. Neste ensaio, ela aborda a temática de como o
sistema sexo-gênero pode se transformar num sistema opressivo. A autora revê
alguns dos seus conceitos num segundo artigo chamado “Thinking sex: notes
for a radical theory of the politics of sexuality” (“Pensando o sexo: notas para
uma teoria radical das políticas da sexualidade”). Priorizaremos este primeiro
ensaio devido a seu caráter pioneiro sobre a questão de gênero e sua complexa
análise de diversos saberes.
Neste ensaio, a antropóloga coteja alguns autores e autoras privilegiados no
diálogo com a teoria queer, mas, também, outros pensadores e pensadoras menos
abordados, o que torna o seu texto ainda mais multifacetado e interessante.
Algumas de suas fontes mais conhecidas: Friedrich Engels, Karl Marx, Sigmund
Freud, Jacques Lacan, Michel Foucault, Bronislaw Malinowski, Marcel Mauss,
Lévi-Strauss, Marshall Shalins, Marilyn Strathern, Jack Goody, Monique Wittig,
dentre outros nomes de peso. É notório que o seu trabalho dialoga com a
filosofia, a psicanálise, a antropologia e o feminismo, dentre outros saberes para,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 133


enfim, construir uma teoria sobre a opressão da mulher tendo como principal
fonte metodológica inspiradora Friedrich Engels, pois se trata essencialmente
de um estudo do parentesco, assunto privilegiado da antropologia.

SISTEMA SEXO-GÊNERO

A teoria de Gayle Rubin acerca da opressão da mulher é conhecida sobre


a rubrica de um sistema sexo-gênero, isto é, o conceito de heterossexualidade
obrigatória, ou ainda, heterossexualidade compulsória. No entanto, para
compreendermos as minudências deste conceito seria necessário regressarmos à
leitura que Rubin faz de Marx, Engels, Lévi-Strauss, Freud e Lacan. Adentramos,
em parte, na exegese de Rubin para chegarmos ao seu pensamento a respeito
da opressão das mulheres e sua análise da questão do gênero, para, então,
nos debruçarmos numa análise mais apurada de algumas noções caras ao
pensamento queer.
Podemos compreender Marx e Engels como o foco indutor do ensaio
de Rubin; são estes autores que mostram de forma exemplar a influência do
capitalismo, da economia e da família na opressão que as mulheres sofrem,
contribuindo muito para o feminismo. Todavia, tomemos estes autores, Marx
e Engels, juntamente com o marxismo, de forma bastante crítica, já que eles
teriam dado uma maior atenção à noção de classe e de economia, em detrimento
da sexualidade.
Para a também feminista Monique Wittig, seria necessário não só
contemplar a questão de classe ou a “A mulher” em sua generalidade, mas,
sobretudo, as mulheres reais e outras relações que poderíamos chamar de
microrrelações. Rubin, por outro lado, opta por dar um maior valor à própria
sexualidade.
Assim, a antropóloga se volta para uma obra de Engels considerada útil
para o feminismo: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”.
Neste estudo, Rubin encontra no conceito de produção um duplo, que envolve
tanto a produção material quanto a produção familiar. O feminismo destaca
esta segunda produção, porque o grupo humano tem que se reproduzir de uma
geração para outra e cada grupo tem um sistema de sexo-gênero.

134 RAFAEL LEOPOLDO


O conceito de sistema de sexo-gênero nos remete à ideia de que há uma
sexualidade biológica que sofre uma espécie de culturalização: processos em
que a sexualidade biológica é transformada em produto da atividade humana.
É evidente a abrangência deste conceito de Rubin; com ele poderíamos retratar
tanto uma sociedade primitiva quanto o nosso capitalismo tardio e sua produção
de sexo-gênero. Rubin aplica este conceito à ideia antropológica do parentesco —
que vamos abordar mais a frente — afirmando que “um sistema de parentesco é
uma imposição de fins sociais sobre uma parte do mundo natural” (Rubin, 1993,
p. 10), ou seja, as formas de organização social são elaborações culturais impostas
a uma parte do mundo natural. Para Rubin, alguns outros nomes foram dados
para este conceito, como, por exemplo: 1) modo de reprodução; 2) e patriarcado.
Todavia, em cada um deles encontraríamos uma série de problemas, de modo
que seria pertinente escanteá-los por hora, em prol de uma terceira conceituação.
O primeiro termo, modo de reprodução, proposto inicialmente como
uma tentativa de ampliar a explicação do social, não poderia ser utilizado com
exatidão, pois o conceito de Rubin quer ir além de uma produção material, ou
um conceito que se limite a uma produção estritamente biológica.
O segundo termo, o patriarcado, se introduz para fazer uma distinção entre
forças que mantêm o sexismo e outras forças sexuais. Este, inclusive, possui
a problemática de estar ligado demais ao capitalismo e à figura do pai — o
patriarca. Como antropóloga, Rubin não esquece que existem grupos opressivos
que não assimilam a figura paterna, mas, sim, um ideal de masculinidade
coletiva.
A este respeito, o termo cunhado por Rubin teria a vantagem de não conter
as limitações dos conceitos anteriores, além de deixar claro que o sistema de
opressão não é inevitável; ele indicaria que é produto de sistemas de relações
sociais bem específicas.
Independente do conceito a ser utilizado, o ideal seria uma compreensão
da organização social e da reprodução das condições do sexo e do gênero. Nesta
tentativa, Rubin passa para uma análise do parentesco, que seria composto de
formas empíricas e observáveis do sistema de sexo-gênero. É a partir desta
análise que se pode compreender a heterossexualidade obrigatória, compulsória.
Ela seria, portanto, uma continuação do projeto de Engels, cuja obra, já
supracitada, faz um estudo da família por via do parentesco, levando em conta
a obra de Lewis Henry Morgan. Rubin, desta forma, se volta para uma análise

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 135


do parentesco já amadurecida, que é pensar a obra As estruturas elementares do
parentesco, de Lévi-Strauss.

PARENTESCO E HETEROSSEXUALIDADE OBRIGATÓRIA

O primeiro argumento introduzido por Rubin é que, na perspectiva da


antropologia, o parentesco não se resume a uma listagem de parentes biológicos.
Este, sem dúvida, teria uma importância fundamental. Nas sociedades que
ela chama de “pré-Estado”44 — que diz respeito às sociedades primitivas —,
o parentesco organizaria a vida social, as atividades econômicas, a política e,
também, a vida sexual. Rubin vai embarcar na questão do parentesco, tendo
em vista que na descrição de Lévi-Strauss:

Não encara o sujeito humano como abstrato, sem gênero. Pelo contrário,
o sujeito humano, no trabalho de Lévi-Strauss, é sempre o masculino ou
feminino e os destinos sociais divergentes dos dois sexos podem, portanto,
ser traçados. No momento em que Lévi-Strauss vê a essência do sistema de
parentesco consistindo na troca das mulheres entre homens, ele constrói uma
implícita teoria da opressão sexual (Rubin, 1993, p.7. Itálico nosso).

É esta teoria da opressão sexual que Lévi-Strauss teria construído, sem que
visse ou demonstrasse suas implicações, as quais Rubin tenta abordar. Neste
momento não vamos reaver a argumentação de Lévi-Strauss sobre a “troca de
mulheres”, tampouco toda a reelaboração feita por ela, porém, alguns pontos são
essenciais para cursarmos de algum modo a crítica da autora. Creio que um dos
elementos principais é uma pergunta que ela faz: “o parentesco é organização, e
organização confere poder. Mas quem é organizado?” (Rubin, 1993, p.9 Itálico
nosso). A resposta a este questionamento nos dirige a uma teoria sobre a
opressão considerando o parentesco.
Para Rubin, a troca de mulheres implicaria numa distinção entre o presente
e o ofertante. Se as mulheres são os presentes, os homens são os que trocam entre
si as mulheres — são os parceiros de troca — e isso é que lhes confere o poder

44
Rubin aborda o mundo primitivo, mas não deixa de apontar que o tráfico de mulheres e a troca de mulheres
não aconteceu somente neste período. Poderíamos, até mesmo, encontrar resquícios desta troca no ato comum
no noivo pedir a filha ao sogro e este entregar a noiva.

136 RAFAEL LEOPOLDO


da organização social. Rubin aponta que “se as mulheres estão à disposição dos
homens para doação, elas não estão em posição de dispor de si mesmas para
se dar” (Rubin, 1993, p. 9). A troca de mulheres seria um sistema que mostra
que elas não têm um direito pleno sobre si mesmas, daí a compreensão de que
em Lévi-Strauss haveria uma elaboração sobre a opressão das mulheres que,
ademais, deveria ser levada em conta pelo feminismo.
Se avançarmos no labirinto conceitual que Rubin vai tecendo, também
é mister que pensemos sobre a sua ponderação a respeito de outra obra de
Lévi-Strauss. Trata-se do texto chamado A Família. Neste livro, “ele levanta a
questão das pré-condições necessárias para os sistemas de casamento operarem.
Indaga ainda sobre quais são os tipos de pessoas requeridos pelos sistemas de
parentesco, mediante uma análise da divisão sexual do trabalho” (Rubin, 1993,
p.11). Esta divisão de trabalho por sexos nunca foi um dado óbvio, mesmo
que por muito tempo tenhamos visto homens e mulheres ocuparem sempre
os mesmos cargos como se houvesse quase uma naturalização em relação ao
trabalho e o sexo da pessoa. Sobre esta pauta, a autora afirma que:

Embora toda sociedade disponha de algum tipo de divisão das tarefas por
sexo, a atribuição de qualquer tarefa específica para um sexo ou outro varia
enormemente. Em alguns grupos, a agricultura é trabalho das mulheres, em
outros, trabalho dos homens. Há sociedades em que as mulheres carregam
os fardos pesados, e outras em que são os homens. Existem até exemplos de
mulheres caçadoras e guerreiras e de homens realizando as tarefas relativas
aos cuidados às crianças. De uma pesquisa sobre a divisão do trabalho por
sexo, Lévi-Strauss conclui que ela não é uma especialização biológica, mas
que deve haver algum outro propósito. Este propósito, segundo ele defende,
é assegurar a união dos homens e das mulheres, fazendo com que as menores
unidades economicamente viáveis, contenham pelo menos um homem e uma
mulher. (Rubin, 1993, p. 12)

Nesta citação, temos dois dados interessantes a serem comentados, pois


aludem aos conceitos de sistema sexo-gênero e à elaboração do conceito de
heterossexualidade obrigatória.
O primeiro ponto é a respeito da divisão do sexo e do trabalho. Trata-se de
reafirmar que esta divisão varia enormemente. Hoje vemos até com maior clareza
este fato (sem recorremos aos dados antropológicos), pois as mulheres já ocupam
posições que, até pouco tempo, eram limitadas ao ethos masculino, por exemplo,
a presidência de um país, vários cargos de chefia em grandes empresas; além, é

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 137


claro, de trabalhos mais precários que envolviam tão somente o masculino, como
o trabalho na construção civil, o trabalho como caminhoneira, o trabalho como
catadora de lixo, dentre outros. É possível fazer até uma extrapolação desses
casos se pensarmos em novas configurações de trabalho, onde poderíamos citar
facilmente o grande envolvimento das mulheres como motoristas de Uber e
empresas similares.
O segundo dado é a respeito do motivo, da razão de uma divisão do trabalho
com relação ao sexo. O motivo — de acordo com o antropólogo — seria a
união de homens e mulheres criando as menores unidades economicamente
viáveis. É neste momento que Rubin cunha a ideia de uma heterossexualidade
compulsória, já que:

A divisão do trabalho por sexo pode, deste modo, ser vista também como
um “tabu”: um tabu contra a mesmice entre homens e mulheres, um tabu
dividindo os sexos em duas categorias reciprocamente exclusivas, e um tabu
que exacerba as diferenças biológicas entre os sexos e que, em consequência,
cria o gênero. A divisão do trabalho pode também ser vista como um tabu
contra arranjos sexuais diferentes daqueles que envolvem pelo menos um
homem e uma mulher, impondo assim um casamento heterossexual. (Rubin,
1993, p. Itálico nosso)

Da sexualidade natural haveria então um sistema sexo-gênero que trabalha


sobre ele, que o culturaliza. Esta culturalização separaria as pessoas em dois
gêneros, o homem e a mulher. Por sua vez, esta divisão também refletiria na
divisão de trabalho, com determinados trabalhos para os homens e determinados
trabalhos para as mulheres. Por último, depois de estabelecer esta grande
diferenciação, impõe-se o casamento heterossexual o que, no que lhe concerne,
excluiria uma gama de outras relações possíveis. É interessante observar que,
para Rubin, há uma opressão das mulheres, mas esta relação também “oprime
todo mundo pela sua insistência numa divisão rígida da personalidade” (Rubin,
1993, p. 12).
Se até o momento estamos focando na mulher como sujeito, e, em
consonância, com uma variedade de outros que são caracterizados como queer,
no capítulo “A teoria queer e as masculinidades” vamos ver como, até mesmo
esta divisão rígida da personalidade é ruim para a constituição do masculino e
como não é fácil Be a man (“ser um homem”) e se constituir como tal.

138 RAFAEL LEOPOLDO


ADRIENNE RICH: HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA

Continuo a acreditar que as feministas heterosse-


xuais irão extrair força política a favor de mudança
ao tomarem uma posição crítica diante da ideologia
que demanda heterossexualidade, mas também acre-
dito que as lésbicas não poderão negar que podem
ser afetadas por essa ideologia
Adrienne Rich

Adrienne Rich (1929 – 2012) tem uma grande influência na teoria queer.
Primeiro, ligou-se à poesia, depois desenvolveu, também, um trabalho teórico,
e se engajou no ativismo lésbico norte-americano. O seu trabalho possui poucas
traduções, tanto no que concerne à língua portuguesa quanto ao espanhol.
Talvez, a melhor apresentação que temos da autora em português seja feita por
Juraci Andrade de Oliveira Leão, na sua tese de doutorado chamada Escrita,
corpo e ação: a poética e a política de Adrienne Rich. Esta tese é interessante,
pois, além de uma apresentação de Rich, faz uma análise cuidadosa da poesia
da autora, do seu desenvolvimento poético em relação à sua militância, de um
longo processo onde ela vai se descobrindo como poeta e, mais à frente, exibir
o surgimento da temática do feminismo e do lesbianismo em sua trajetória.
Nesta apresentação de pensamento, citaremos o ensaio teórico chamado
Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, traduzido por Carlos
Guilherme do Valle e publicado na revista Bagoas. Escolhemos esta tradução
e esta edição da revista Bagoas, porque nela, Rich escreve uma espécie de
preâmbulo ao seu artigo, ou seja, há uma contextualização de um artigo que
já se tornou um clássico menor para o feminismo e influencia, de certa forma,
a teoria queer. Nesta contextualização feita pela própria Rich, ela afirma que:

Durante o período de três anos em que escrevi “Heterossexualidade


compulsória” – com uma energia mesclada de esperança e desejo –, as
pressões para o conformismo tornaram-se mais intensas em uma sociedade
com atmosfera crescentemente conservadora. As mensagens da Nova
Direita dirigidas às mulheres têm sido, precisamente, as de que nós somos
parte da propriedade emocional e sexual dos homens e que a autonomia
e a igualdade das mulheres ameaçam a família, a religião e o Estado. As
instituições nas quais as mulheres são tradicionalmente controladas – a
maternidade em contexto patriarcal, a exploração econômica, a família

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 139


nuclear, a heterossexualidade compulsória – têm sido fortalecidas através
da legislação, como um fiat religioso, pelas imagens midiáticas e por esforços
de censura. (Rich, 2010, p 19).

Este contexto da ascensão de uma Nova Direita e os valores que esta direita
tenta conservar, ou melhor, resgatar, necessita ser endossado, visto que sempre
há determinados avanços, ainda que estes nunca sejam seguros, e possam sofrer
alguns retrocessos. Rich caracteriza o seu artigo como uma forma de resistência,
e é esta resistência que abordaremos focando brevemente dois pontos: 1) a
heterossexualidade como um sistema político; 2) e a existência lésbica.
Estes dois conceitos são importantes na produção intelectual da autora,
creio que, principalmente, o segundo. Se a ideia de uma heterossexualidade
compulsória oferece uma crítica ao sistema heterossexual que até então não era
tratada com acuidade, ela vai, a cada momento, tornando-se mais comum até
se firmar como um vocabulário ordinário da teoria queer. Todavia, a concepção
de um continuum lésbico, de uma existência lésbica remonta não tão somente
a uma crítica ao heterocentrismo, mas, também, a um trabalho histórico, a um
trabalho genealógico de retornar a outras formas de existência, ou seja, a outras
subjetividades que não atravessariam tão fortemente a matriz heterossexual.

HETEROCENTRISMO E EXISTÊNCIA LÉSBICA

Javier Sáez, em seu livro já transcrito Teoria queer e psicanálise, afirma que
nos anos 60 houve um distanciamento do feminismo e do lesbianismo. Rich vai
tentar desfazer esta distância na década de 80, mesmo criticando fortemente o
feminismo. Ao criticá-lo, a autora pensa que o feminismo poderia criar novos
caminhos. Outro dado que Sáez coloca é que:

Rich vai adicionar uma preocupação que vai ser logo chave para entender a
aparição da cultura e do discurso queer: a questão da raça e da classe social
como elementos que devem se incorporar aos estudos de gênero. Rich
lança uma grave acusação ao mundo acadêmico da investigação feminista,
assinalando o preconceito racista e homofóbico que excluía as lésbicas de cor
ou outras etnias (mexicanas, judias, indianas etc.) do marco da análise sobre
a opressão das mulheres. (Sáez, 2008, p. 119).

140 RAFAEL LEOPOLDO


Rich, desta forma, teria incluído alguns outros elementos ao feminismo,
como a questão da raça, do preconceito, das lésbicas de cor e outras etnias,
mas, sobretudo, ela volta à temática do problema da heterossexualidade
compulsória, o que até aquela ocasião parecia ser um debate não negligenciado
pelo feminismo.
Rich vai julgar uma espécie de naturalização da heterossexualidade e estudá-
la como uma instituição política. Sáez assinala que Rich denuncia a seguinte
situação relacionada a esta instituição política centrada na heterossexualidade:

Rich denuncia a promoção do amor heterossexual desde as instituições, a


cultura, a família e a sociedade como uma forma de doutrinamento que vai
levar as mulheres a aceitar sua opressão e a violência que se exerce contra
elas: a necessária busca do homem, para o destino universal do matrimônio
conduz, muitas mulheres, a posições intoleráveis como ser objeto de troca nos
casamentos arranjados, ser violentadas, ser humilhadas ou marginalizadas no
lugar de trabalho, ser maltratadas ou confinadas no lar (Sáez, 2008, p. 119).

Diante desta análise a autora vai valorizar outros modelos de amor como,
por exemplo, o amor lésbico, a solidariedade, os laços de amizade, modelos
estes que se distanciam de alguma forma da matriz heterossexual. Para este
resgaste, cremos também ser necessária a percepção de um continuum lésbico,
de uma existência lésbica.
O primeiro ponto a respeito da palavra e do conceito de uma existência
lésbica trata de afastar o conceito de “lesbianismo”. Para a autora, o termo
“lesbianismo” tem um cunho mais clínico e estaria limitado a uma relação
sexual entre mulheres. Por sua vez, a expressão existência lésbica remeteria a
dois pontos principais: 1) a uma reconstituição, valorização histórica; 2) e a
uma recusa, uma resistência.
Desta forma, se pensarmos o primeiro ponto, a existência lésbica nos
encaminharia a uma presença histórica da lésbica, a criação de múltiplos
significados, a invenção de alianças, a feitura de amizades, a produção de
vínculos diferenciados de uma matriz heterocentrada. Rich entende que:

o termo continuum lésbico possa incluir um conjunto – ao longo da vida


de cada mulher e através da história – de experiências de identificação da
mulher, não simplesmente o fato de que uma mulher tivesse alguma vez tido
ou conscientemente tivesse desejado uma experiência sexual genital com

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 141


outra mulher. Se nós ampliamos isso a fim de abarcar muito mais formas
de intensidade primária entre mulheres, inclusive o compartilhamento de
uma vida interior mais rica, um vínculo contra a tirania masculina (Rich,
2012, p. 36).

Rich parece clamar pela feitura de uma produção lésbica que possa
criar alianças. Não a lésbica entendida como uma “versão feminina da
homossexualidade masculina”, ou ainda, a lésbica constituída por um “ódio
aos homens” — estes aspectos são outras formas de apagar as particularidades
da experiência lésbica.
A existência lésbica se torna em si uma recusa. Aqui adentramos em
nosso segundo ponto, a compreensão deste conceito como uma resistência
ao patriarcado. Este continnum lésbico ganha esta força no pensamento de
Rich, porque ele seria já um contraponto às relações heterossexuais viciadas.
A heterossexualidade compulsória feminina teria o perigo de apagar a própria
experiência lésbica e, principalmente, a própria paixão física. De acordo com
Rich:

A identificação entre mulheres é uma fonte de energia e de poder feminino


potencial, contido e minimizado pela instituição da heterossexualidade.
A negação da realidade e da visibilidade da paixão das mulheres por
outras mulheres, da escolha das mulheres por outras como suas aliadas,
companheiras de vida e de comunidade, ao se obrigar que tais relações sejam
dissimuladas e até desintegradas sob intensa pressão tem representado uma
perda incalculável do poder de todas as mulheres em mudar as relações
sociais entre os sexos e de cada uma de nós libertar. Hoje em dia, a mentira
da heterossexualidade compulsória feminina aflige não apenas a produção
acadêmica feminista, mas toda profissão, todo trabalho de referência, todo
currículo, toda tentativa de organização, toda relação ou conversação por onde
ela se apresenta. Cria, especificamente, uma profunda falsidade, hipocrisia
e histeria no diálogo heterossexual, pois toda relação heterossexual é vivida
através do nauseante estroboscópio da mentira. Ainda que escolhamos nos
identificar, ainda que nos achemos categorizadas, ela vibra amplamente e
distorce nossas vidas (Rich, 2012, pp. 40-41. Itálico da autora).

Rich ilustra, assim, toda uma energia perdida com a ideia de uma
heterossexualidade compulsória, onde a sexualidade deveria estar num roteiro
já escrito, dentro de padrões já estabelecidos, dentro desta obrigatoriedade na
heterossexualidade. A existência lésbica, neste contexto, seria a recusa desta

142 RAFAEL LEOPOLDO


mentira, a recusa à heterossexualidade compulsória, a recusa a tão somente
uma forma de existência e de sexualidade, a recusa a determinadas formas de
relação. Em outras palavras, a existência lésbica seria uma resistência contínua.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 143


A TEORIA QUEER E O
PENSAMENTO HOMOERÓTICO GAY

O PENSAMENTO HOMOERÓTICO:
HOCQUENGHEM, PERLONGHER, SÁEZ E CARRASCOSA

Neste capítulo, na pretensão de aclarar a teoria queer e o pensamento


homoerótico, vamos abordar quatro autores que desenvolvem questões,
sobretudo, a respeito do homoerotismo45. Aqui, há uma maior coesão temática
que cronológica, sem deixar de lado uma sequência entre os autores e uma
influência teórica comum a todos eles. Sobre esta tentativa de coesão, trata-se
de mostrar as facetas do homoerotismo no contexto de uma libertação, de uma
nova possibilidade enunciativa, de uma compreensão do pânico que se tem
relativo à homoafetividade, aos tipos de desejos homoafetivos. Além disto, trata-
se, também, de nos levar a refletir sobre um estudo etnográfico que remonte
a toda uma experiência bem particular de determinadas pessoas, ou ainda, de
uma forma mais geral, salientar uma genealogia da passividade, uma genealogia
da analidade que é um lugar especial, principalmente, quando voltamos o nosso
olhar para o homoerotismo, mas que percorre igualmente a heterossexualidade,
e a noção mesma de feminino e masculino.
A respeito de uma cronologia, nos anos 60 e, em menor grau, nos anos
70, é possível afirmar que havia uma certa libertação da sexualidade e da
homoafetividade, no entanto, esta libertação sofre um grande retrocesso nos
anos 80 com a epidemia do HIV/Aids e uma nova forma — ou a retomada de
um arcaísmo LGBTTQfóbico — de julgar a homoafetividade atrelada a uma

45
A respeito dos termos usados neste capítulo, em determinado momento usamos a palavra gay,
homoafetividade, homoerotismo e homossexualismo. O intuito neste livro é distanciar desta última acepção,
a ideia de homossexualismo, pois como é sabido esta palavra envolve o ambiente médico, a concepção da
relação homoerótica como uma doença; todavia, como até mesmo autores gays utilizam este termo, voltaremos
a ele por uma questão histórica.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 145


doença. O papel que a AIDS toma nos anos 80, a maneira como ela muda uma
configuração de pessoa, como ela muda o espaço, como ela muda formas de
se relacionar, como ela até mesmo desmonta as estruturas familiares (já que o
aidético é compreendido como um pária e, geralmente, culpado da sua doença,
quando não aquele que a desejou por meio das suas relações sexuais ou atitudes
comportamentais que saíram pela tangente dum comportamento dito como
normal); tudo isto será reiterado nesta época, indicando um contraponto: as
políticas anais, como uma posição ativa diante da doença.
A maioria dos religiosos compreendiam a epidemia da AIDS como um
castigo a determinados grupos que não utilizam os seus corpos como na
composição esperada da família nuclear. No entendimento religioso, este castigo
seria um mando de Deus para endireitar os corpos deambulantes, os corpos
nomádicos, o trottoir queer de uma multidão de diferenças. Seria a natureza
fazendo o seu trabalho de uma limpeza social que tantas vezes foi deixada a
cargo da polícia. É interessante notar que diante de doenças ou de alguma
catástrofe natural que atinge, também, a comunidade LGBT*, a ideia de uma
“punição divina” é sempre retomada por alguns grupos conservadores. Os
exemplos, além do caso da AIDS, seriam inúmeros, os arcaísmos são retomados
e reavivados com uma frequência aterradora. Por isso é difícil pensar em uma
progressão contínua de determinados direitos, ou ainda, em uma minoria que
se sinta segura com os direitos que já tem; visto que essa situação pode mudar
de forma muito veloz, sobretudo quando há alguma crise econômica.
A grande influência teórica que perpassará todos os autores selecionados
aqui é a de Michel Foucault e sua compreensão de um poder difuso, elaborada,
especialmente, na obra Vigiar e Punir; e Gilles Deleuze e Félix Guattari, e toda sua
elaboração teórica produzida n’O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Claro
que os estudos que veremos fazem referência a uma gama de outros autores, mas
estes são os principais. Tanto Guy Hocquenghem, Néstor Perlongher e Javier
Sáez e Sejo Carrascosa vão retornar à conceituação de Michel Foucault a respeito
do poder como, ademais, a elaboração deleuzo-guattariana vai ser retomada
de forma bastante contundente. Todos estes autores tomam, por exemplo,
elementos do capítulo d’O anti-Édipo sobre a antropologia e o capitalismo, mas,
também, percorrem ideias como a de “desejo”, “molar” e “molecular”, “território”
e elementos sobre a homoafetividade que é possível encontrar de forma bem
explicitada na obra deleuzo-guattariana que vai além d’O anti-Édipo. A respeito
do contexto histórico, Hocquenghem e Perlongher estão mais próximos do

146 RAFAEL LEOPOLDO


Maio de 68 — que é uma grande influência para os autores —, mas tanto Sáez e
Carrascosa não deixam de citar grupos que tiveram influência do Maio francês
como, inclusive, participaram dos seus próprios coletivos em um forte ativismo
espanhol.
O primeiro filósofo a ser abordado é Guy Hocquenghem, e sua obra
O desejo homossexual. Esta obra foi publicada no início dos anos 70 e nela
encontramos uma forte crítica a uma sociedade falocrata, a uma sociedade
capitalista e centrada na família nuclear que reproduz toda uma subjetividade
capitalista, uma subjetividade edipiana e um capitalismo que não só libera os
fluxos, mas, também, um capitalismo segregativo. Diante d’O desejo homossexual
vamos compreender como este desejo pode ou não entrar no campo social,
como ele é aceito via sublimação e negado como um desejo efetivo, um desejo
“pré-pessoal”, a nível “molecular” e lembremos que tais conceituações são
deleuzo-guattarianas. Outro dado fundamental é a explicação de um pânico
anti-homossexual, pois por meio desta explicação podemos absorver em parte
o motivo de tanta violência contra determinadas minorias. Creio também
que o texto de Hocquenghem deva ser retomado como aquela obra que abre
possibilidades de enunciação, uma obra terrorista, como afirma Paul Beatriz
Preciado. Este livro é o que vai permitir um grupo de outros a se afirmarem
como bicha, gay, marica, plumado, etc.
O nosso segundo pensador é o argentino radicado no Brasil, Néstor
Perlongher. Perlongher é conhecido pelo seu ativismo, principalmente na FLH,
Frente de Libertação Homossexual, criada em 1971 e encerrada em 1976. Ele é
totalmente ligado ao ambiente de libertação que envolvia tanto os anos 60 e parte
dos anos 70, na Argentina e no resto do mundo. Todavia, o que nos interessa é
sua experiência nos anos 80 no Brasil, posto que neste cenário estamos diante
da pandemia da AIDS que ia se desenhando, e ele veio a falecer desta doença.
Perlongher produz trabalhos importantes sobre a AIDS, bem como sobre a
prostituição viril, a prostituição masculina, sempre tateando reflexões no terreno
da homossexualidade. A respeito desta última temática, o que vamos analisar
é sua dissertação de mestrado46 em Antropologia Social, chamada O negócio
do michê: prostituição viril em São Paulo, que foi publicada também em forma

46
Pode soar estranho um comentário a respeito de uma dissertação de mestrado, embora essa dissertação
tenha sido defendida em 1986, numa época ainda em que o mestrado era entendido como um processo de
formação e não, como nos dias atuais, como processo de produção hipervalorizado que eclipsa a formação
intelectual e qualquer intuito criativo. Perlongher, ademais, já tinha todo um desenvolvimento intelectual como

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 147


de livro na Argentina com título La prostitución masculina — a principal fonte
consultada devido ao seu Post Scriptum onde há uma ponderação como a AIDS
afetou o seu trabalho. O que o autor faz é produzir um belo trabalho etnográfico
em São Paulo. Tem-se nesta etnografia de Perlongher um trottoir queer das
ruas de São Paulo e seus matizes bem delineados. Este trabalho pode nos dar
tanto uma apreciação do pensamento de Perlongher quanto uma perspectiva da
sexualidade marginal que envolve o período de 1959 a 1984 no Brasil, além disso,
encontramos neste mesmo projeto uma gama de elementos que vão reverberar
no pensamento queer consolidado nos anos 90.
Os dois últimos autores, Javier Sáez e Sejo Carrascosa, já estão num contexto
de produção intelectual mais próximo de nós, porém, ambos pensadores
na escrita conjunta do livro Pelo cu: políticas anais irão grifar questões que
perpassam tanto a filosofia de Hocquenghem quanto os trabalhos de Perlongher
— os dois autores são citados por Sáez e Carrascosa de forma taxativa. Os
autores de “Pelo cu: políticas anais” viveram a década de 80, perderam amigos e
companheiros, e isto está refletido tanto na prática dos autores, via seu ativismo,
como na sua produção teórica. Podemos citar o capítulo intitulado “O cu e a
Aids”, que traz uma longa ponderação sobre a AIDS envolvendo o homossexual
como estigma, as políticas internacionais e ainda a visão religiosa sobre o
assunto, como, além disso, um desdobramento para as políticas anais.
No que concerne ao ativismo dos autores, tanto Sáez quanto Carrascosa
participaram efetivamente de campanhas e de práticas de um ativismo contra
a AIDS, e de um ativismo anal, onde os próprios termos das propagandas
esclarecendo a questão do HIV/Aids fossem modificadas para serem realmente
fundamentadas. Tratava-se de criar novos termos, de afirmar um orgulho passivo
mesmo diante de tanto preconceito contra qualquer tipo de passividade.
De qualquer forma, se nos anos 60 e 70 havia uma acentuada tentativa de
libertação sexual, de libertação da homossexualidade, se havia uma tentativa
de expansão das experiências, das vivências e da produção teórica, já na década
de 80, por sua vez, com a epidemia da AIDS — e juntamente a ela um vasto
conservadorismo — houve um grande retrocesso diante da homossexualidade47.

ativista, poeta e pesquisador na Argentina. Estas características e o encontro com a antropologia brasileira
fazem com que esta produção acadêmica de Perlongher seja de fato diferenciada.
47
Já na década de 2000 até a atualidade é possível compreender que a juventude não tem a vivência dos anos
80 e passaram a não se cuidar com relação a Aids, o que gera o seu retorno, principalmente, nas camadas mais
frágeis e sem um olhar atento do Estado. No Brasil parece que as campanhas somente surgem quando alguma

148 RAFAEL LEOPOLDO


Não obstante, os homossexuais já não se contentavam com uma existência
no armário, uma existência nas bocas do lixo, ou ainda, de um gay ghetto48 à
americana e partiram para o espaço público mesmo frente ao risco de vida que
isso acarreta até os dias de hoje.
São estes autores que examinaremos para traçar alguns elementos deste
pensamento homossexual, deste pensamento homoerótico, criando alguns
contornos para compreendermos no que estes pensadores estavam envolvidos,
principalmente, na década de 70 e 80 e como isto vai se valer de outras tessituras,
vai solicitar outras maneiras de fazer política e teorizar um pensamento que
percorre a homoafetividade.
Sáez e Carrascosa, em seu livro já citado, puderam fazer um longo caminho
trilhado — dos gregos até o tema da AIDS — sobre a questão da passividade
e o horror que geralmente se tem a ela. Também refletem de forma bastante
particular na existência homoerótica. Vasculharemos alguns constituintes
deste pensamento, destas práticas e todas as veredas percorridas que já estão
na história recente do pensamento queer.

GUY HOCQUENGHEM E O PÂNICO ANTI-HOMOSSEXUAL

Neste tópico regressaremos ao filósofo e ativista Guy Hocquenghem e


sua obra O desejo homossexual, produzida no início dos anos 70, logo após
o Maio de 68. Esta rememoração se faz necessária, pois este texto pode ser
considerado como a primeira obra do pensamento homoerótico e é exatamente
com Hocquenghem que os termos mudam. Entender a homossexualidade em
outros termos, sem sua abordagem como um pecado no discurso religioso, ou
como uma doença no discurso psiquiátrico, ou como uma criminalidade no
discurso jurídico, ou ainda, como uma doença no discurso médico. Ora, trata-
se de uma “existência homossexual” — para parafrasearmos o feminismo que

doença afeta as classes médias, se elas tão-somente afetam a população mais pobre não haverá nenhuma
campanha efetiva. Um exemplo recente se deu com no caso da Zika.
48
Nestor Perlongher na sua pesquisa no Brasil faz uma distinção entre a boca e o gay guetto. Creio que
a principal diferença é que gay gueto envolveria uma determinada territorialidade fixa, determinadas
posições econômicas e políticas como, por exemplo, vários bairros em San Diego, na Califórnia onde há
uma preponderância da comunidade gay. Por sua vez, a boca evoca uma maior noção de marginalidade e o
território não seria fixo, mas um ponto de fluxo que se associa a diversas atividades ilegais. De qualquer forma,
há o que poderíamos chamar de subguetos que seriam pequenos territórios comerciais, políticos e de troca.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 149


se vincula a uma “existência lésbica” — e de, diante dessa existência, mostrar
como ela pode ser potente, intensiva e, até mesmo, desestruturadora. Deriva
daí determinado medo em relação à homossexualidade, determinada paranoia,
determinado pânico anti-homossexual.
Hocquenghem é um homossexual que aborda a homossexualidade nos
seus próprios marcos, não mais uma homossexualidade apequenada, assustada,
sempre menor e impotente, mas, sim, positivada. Com Hocquenghem, o desejo
homossexual não é mais patológico; desejo pré-pessoal, no entanto. É diante
desta obra e desta afirmação d’o desejo homossexual que se abre toda uma
possibilidade de enunciação para o queer, as bichas, as travestis, as sapatas,
as transexuais, etc. Uma enunciação, agora tomando esses termos como algo
positivo. O desejo homossexual é uma das chaves para a saída do armário, é um
verdadeiro coming out grupal, é um apropriado desbunde coletivo, linha de fuga
em massa. O que é muito necessário não só na década de 70, mas, também,
nos anos 80, quando o surgimento da AIDS “serviu para que a homofobia
adormecida nos países ocidentais (devido às consequências da liberação sexual
nos anos 60 e 70) se recolocasse com uma crueldade somente comparável com a
Inquisição, o genocídio hispânico na América ou a Shoah” (Sáez e Carrascosa,
2016, p. 145).
Este empenho teórico e militante de Hocquenghem é admirável, no sentido
de uma despatologização da homossexualidade. Quando ele aborda essa temática
o campo se abre para outras tentativas de despatologização, por exemplo, a da
transexualidade49. Esse é um dos inúmeros pontos que tornam aquela obra dos
anos 70 demasiadamente atual. Poderíamos citar outros pontos que envolvem o
pensamento queer como: a questão da dificuldade de se ter uma categoria sexual
bem definida; a ideia de que não há um “homossexual”, mas “singularidades”;
o questionamento da categorização de “passivo” e “ativo”; e a atribuição da
passividade à mulher e a atividade ao homem, dentre outros. Estes são alguns
temas que tocam a obra de Hocquenghem e ecoam no texto de diversos autores
e autoras da teoria queer. A obra “O desejo homossexual” é considerada por
alguns como a primeira obra queer e, se não quisermos fazer dela um marco,
deveríamos ao menos nomeá-la como um texto fundamental para a produção

A transexualidade está como uma doença tanto na OMS (Organização mundial de Saúde) e no DSM (Manual
49

Diagnostico das Desordens Mentais). A inclusão da condição transexual acontece no DSM III em 1980. No
DSM IV a transexualidade aparece, novamente, mas sobre agora a rubrica de um “transtorno de identidade
de gênero”, pois se trataria de uma “desordem” entre o corpo anatômico e o sentimento de identidade sexual.

150 RAFAEL LEOPOLDO


deste novo campo de saber, destas novas práticas que estavam acontecendo nas
universidades, nas fábricas e nas ruas, lugares estes constantemente ocupados
e alvos de protestos.
Ao raciocinarmos a respeito de Hocquenghem e o queer, apontamos
alguns elementos do seu contexto histórico e sua influência teórica para
que possamos compreender o motivo da sua obra estar tão envolvida com o
pensamento queer. Para adentrarmos em algumas das categorias da escritura
do autor, da sua literatura terrorista, vamos nos embrenhar em duas questões
principais: 1) a primeira sobre a paranoia anti-homossexual, o pânico diante
da homossexualidade; 2) e a segunda sobre pensar a homossexualidade e a
perda da identidade, ou melhor, como há uma desestabilização da identidade
do outro frente ao desejo homossexual. Todos esses dois elementos se mesclam,
já que o desejo homossexual é visto como algo que pode desestruturar o social
e também desestruturar uma certa identidade que se pensava ser de mármore,
mas que, porém, se mostra fragilíssima diante do outro.
O mote da analidade é palestrado pelo autor com muito vigor, mas
abordaremos a questão não pensando na obra de Hocquenghem, mas no texto
de Javier Sáez e Sejo Carrascosa, Pelo cu: políticas anais. São eles que levarão o
pensamento de Hocquenghem para lugares ainda mais inesperados e continuarão
a produção das políticas anais. Com eles encontramos três elementos principais:
1) uma genealogia da analidade; 2) uma forma de subjetivação; 3) e uma ética da
passividade, uma analética. Perpassaremos alguns elementos desta elaboração
teórica dos autores no decorrer do livro, especialmente, quando pensarmos as
políticas anais e uma determinada forma de constituição da masculinidade —
no capítulo sobre masculinidades e a teoria queer — que não se constitui tão
somente via compreensão das genitálias.

HOCQUENGHEM COMO TEÓRICO QUEER

Provavelmente ainda não haja uma apresentação melhor ao texto, O desejo


homossexual, de Guy Hocquenghem, que o epílogo escrito por Paul Beatriz
Preciado. Neste excerto encontramos uma teoria literária, uma política anal,
um método anal, a apresentação das políticas de identidade e de normalização,
o papel da educação e da homossexualidade e, por último, uma utopia anal.
Paul Beatriz Preciado sistematiza a obra de Hocquenghem de forma tão

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 151


criativa quanto a própria obra do seu autor. O epílogo de Preciado nos remete
à etimologia da palavra “epílogo” onde o piloro é um guardião. No caso de
Preciado, o guardião do tesouro teórico de Hocquenghem torna ainda mais
potente a obra do autor. O texto de Hocquenghem e o epílogo de Preciado que
vão reverberar, por exemplo, nas políticas anais de Javier Sáez e Sejo Carrascosa,
onde a questão da analidade ganha o seu ápice: “abra seu cu e abrirá sua mente”
(Sáez e Carrascosa, 2016, p. 23). De qualquer forma, voltamo-nos a outras esferas
desta obra.
O texto O desejo homossexual, de 1972, é considerado por alguns a primeira
obra da Teoria queer, ou ainda, a obra precursora que aclarará grandes rasgos
do pensamento queer. Lembremos de dois fatos importantes que perpassam a
relação entre Hocquenghem e a teoria queer. Trata-se do contexto histórico-
cultural e sua influência teórico-filosófica. A respeito do contexto histórico-
cultural, acreditamos que Hocquenghem situa-se em um nível de produção
teórica e ativismo pós-Maio de 68, sob a influência teórica de Deleuze e Guattari.
Todavia, a relação com esses autores não é pura filiação teórica. Hocquenghem
é criativo demais e leva vislumbres d’O anti-Édipo para caminhos não traçados
pelos autores franceses.
Paul Beatriz Preciado salienta que a Frente Homossexual de Ação
Revolucionária (FHAR) — que Hocquenghem participa ativamente — inventa
toda uma gramática do “feminismo queer” que surgiria como: “falocracia”,
“ecofeminismo”, “heteronormatividade”, “instituições heteropatriarcais”,
dentre outros termos. O lugar onde este grupo se reúne é importante para a
cartografia do pensamento queer, para a história do pensamento torcido, para
um arquivismo transviado. Trata-se da Faculdade de Belas Artes de Paris, que é o
mesmo lugar que nos anos 90 o coletivo ACT UP50 produzia as suas assembleias.
Em determinado momento, o grupo FHAR se une ao grupo Gazolines, composto
também por bichas e travestis. Influenciado pela cultura glam rock, o grupo vai
ser um dos primeiros a utilizar técnicas de teatralização paródica no espaço
público. Este tipo de atitude é bem característica das políticas queer, e diz

50
O grupo ACT UP é importante para uma militância médica que envolve a pesquisa sobre a Aids. Todavia,
eles não têm tão-somente um ativismo com relação ao HIV/Aids. Este grupo tem como um dos seus métodos
a “ação direta” e sua radicalidade vai influenciar outros coletivos ao redor do mundo como, por exemplo, o
grupo La Radical Gai de Madri, que tinha como um dos seus participantes Sejo Carrascosa, ativismo que
abordaremos aqui na sua relação com as políticas anais e a uma crítica as masculinidades.

152 RAFAEL LEOPOLDO


respeito ao que passamos a conhecer como “políticas performativas”. Para estes
coletivos o próprio corpo é político e ele ganha visibilidade no espaço público.
Deste corpo exposto no espaço público — mesclando o contexto histórico
e sua produção intelectual — poderíamos citar ainda mais dois itens em
consonância com Preciado, e que vinculam Hocquenghem e a teoria queer:
1) o uso da injúria; 2) e uma leitura queer de determinados textos. O primeiro
ponto remonta também à obra O anti-Édipo, que introduz com alegria o palavrão
na obra filosófica. Por sua vez, a injúria, toca nestes grupos como um eixo
de enunciação, como re-apropriação. Passamos a escutar e a ler na produção
teórica palavras como: “queer”, “homossexual”, “bicha”, “sapata”, dentre outras.
O segundo ponto, uma leitura queer dos textos filosóficos, nos conduz, no caso
de Hocquenghem, à sua leitura d’O anti-Édipo como, do mesmo modo, à noção
de “interpelação” de Althusser, e à teoria de des-sublimação de Marcuse. Todos
estes elementos são incorporados no texto de Hocquenghem, de forma que é
possível compreendê-lo como um teórico importante do pensamento queer.

O PÂNICO ANTI-HOMOSSEXUAL

Guy Hocquenghem estava num contexto em que o diálogo com a psicanálise


freudiana, lacaniana e demais recepções filosóficas, estavam fervilhando.
Hocquenghem vai manter esta tendência de uma forte interpelação do saber
psicanalítico. Um dos seus primeiros tópicos, d’O desejo homossexual, é uma
referência a Freud e ao papel da homossexualidade na paranoia. Esta análise
da paranoia e do seu componente homossexual é importante, já que é desta
ponderação que há uma elaboração de uma paranoia anti-homossexual.
Hocquenghem, em sua leitura da obra freudiana, afirma que a paranoia para
Freud está relacionada com uma repressão homossexual: “do fracasso na tentativa
de fazer o componente homossexual nascer nasce a paranoia” (Hocquenghem,
2009, p. 28. Tradução modificada). A primeira referência à análise da paranoia
que o autor retoma acertadamente é o Caso Schreber.
Lembremos que este caso faz referência a Paul Schreber e seu livro Memórias
de um doente dos nervos. Este livro de memórias ficou famoso principalmente
por Freud tê-lo transformado em um livro-paciente, uma vez que o psicanalista
nunca encontrou o autor do livro pessoalmente, apesar de ter feito uma extensa

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 153


análise do volume. Porém, Schreber não causa fascínio tão somente em Freud,
mas, também, em Lacan, que o cita largamente na sua reinterpretação da psicose.
Melanie Klein o retoma, por sua vez, na ilustração do seu conceito de posição
esquizo-paranoide e, claro, Deleuze e Guattari veem em Schreber todo um devir-
mulher. Hocquenghem não era alheio a essas interpretações deste paciente-livro
e o que ele vai apontar é que “um juiz pode, mas não deve ser homossexual”
(Hocquenghem, 2009, p. 29). Não poderia haver um desejo homossexual em
uma pessoa como Schreber, de um nível social tão alto. O desejo homossexual
teria um elemento perigoso.
André Morali-Daninos em sua Sociologia das relações sociais citada por
Hocquenghem assevera que, se a homossexualidade recebesse o mínimo
de aprovação social, se saísse da esfera do patológico, envolveria o fim do
casal heterossexual e da família, base da cultura ocidental. Essa posição de
André Morali-Daninos hoje beira o senso comum de determinados partidos
conservadores, de determinados movimentos de direita, dos novos alt-rights que
sempre retomam a família nuclear como polo de emanação da ética e dos bons
costumes. Não é de qualquer forma que o desejo homossexual pode aparecer
na sociedade. Hocquenghem nos fala de um desejo que é sublimado e outro
que é um desejo pré-pessoal: mas, é claro, a sociedade só aceitaria o primeiro
e não o segundo.
O desejo homossexual só poderia surgir como fracasso, porque se ele
emerge como desejo não personalizado, como desejo pré-pessoal, estaria fora
da reprodução do romance familiar — na família nuclear —, da reprodução
contínua do Édipo com os seus sujeitos fixos e egóicos. A produção heterossexual
se faz pelo romance familiar e de encontro com a ideia de filiação e sucessão
hierárquica, enquanto a produção homossexual (não sublimada) se faria de
forma horizontal não limitativa; tratar-se-ia de novas configurações no seio da
sociedade heterocentrada. E se o ânus-fracassado-homossexual sofre na sua
privatização, seria necessário, como afirma Sáez e Carrascosa, outras políticas
anais. Todavia, este desestabilizar do social produzido pelo desejo pode,
também, causar medo e pânico. O medo de que a família nuclear se dissolva,
o medo de que o desejo não seja tão fixo como ele se manifesta; a presença
do desejo homossexual causaria uma espécie de estranhamento ao outro, que
poderia encontrar nele o seu próprio desejo. A resposta a esta desestabilização,
geralmente, é todo um encadeamento de violência sistemática que já é tão
conhecido na história das minorias.

154 RAFAEL LEOPOLDO


NÉSTOR PERLONGHER E O TROTTOIR QUEER

O “passeio esquizo” do homossexual e do michê oscila


permanentemente entres dois polos: desejo e interes-
se, azar e cálculo.
Néstor Perlongher

Néstor Osvaldo Perlongher (1949 – 1992) ou “Rosa Luxemburgo” tem


tanto uma produção poética de valor quanto uma produção ativista robusta.
Porém, o ponto que nos interessa aqui se dá com a migração de Perlongher,
em 1982, para o Brasil. É no Brasil que este autor obtém o seu título de mestre
em Antropologia Social na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas),
em 1986. Deste trabalho nasce a obra O negócio do michê: prostituição viril em
São Paulo, onde ele analisa as estruturas etnográficas do mercado sexual em
São Paulo.
Este livro é também publicado na Argentina, em 1993, com o nome La
prostitución masculina. O trabalho de Perlongher tem elementos indispensáveis
que remontam o pensamento queer seja no que concerne às suas principais
referências teóricas, assim como à importância que é dada não somente a
sexualidade, mas a todos os fatores sociais na análise da prostituição masculina,
na prostituição viril.
Devido à riqueza deste trabalho, vamos adentrar humildemente n’O negócio
do michê, n’O negócio do desejo, que não tem nada de óbvio em relação às
“identidades” do prostituto ou dos clientes. A cada momento, Perlongher nos
coloca modulações porosas, caminhos sinuosos. O problema da identidade
aparece tanto no campo da sua etnografia como, além disso, em um conceito da
problemática a ser operada. Aliás, deveríamos acrescentar que todo o impulso
classificador aristotélico se apresenta de forma precária para captar o desejo
em fluxo.
Para aprofundarmos na obra de Perlongher, proporemos uma pergunta
que nos servirá de mote e fio condutor nesta pequena passagem ao texto: o que
há de masculino na prostituição masculina? Esta pergunta pode ser norteadora
no sentido de apontar a dificuldade de classificação, a complexidade do desejo,
além de, quem sabe, descortinar a identidade que alguns compreendem como
algo de mármore como sendo mais parecida e fluída como uma onda. Às vezes

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 155


ela é intensa e forte, às vezes ela quebra, mas pode tomar muitas formas e vive
num fluxo contínuo. Além disso, esta questão vai nos remeter ao que há de queer
no trabalho teórico de Perlongher.
Um último dado a ser apontado é que o texto de Perlongher se configura
como um grande trabalho etnográfico-filosófico e, ademais, queer latino-
americano. Se o foco do autor é a prostituição masculina, ele não deixa de
estudar, por exemplo, uma variedade de outros fenômenos como o entendido, o
gay macho, a travesti, a bichinha, a loca pobre, e tantas outras variações demais
brasileiras.

POST SCRIPTUM PARA A EDIÇÃO A RGENTINA

Como hipótese poderia sugerir certa tendência a


dissolução da homossexualidade no corpo social, a
qual passaria a ser vista como uma condição eróti-
ca possível e não, necessariamente, como um modus
operandi sexual e existencial totalmente diferenciado.
Perlongher

No Post Scriptum do livro La prostitución masculina há algumas informações


interessantes que envolvem a obra. Temos um grande temor que é o surgimento
do HIV/Aids. A pesquisa de Néstor Perlongher foi realizada entre os anos de
1982 e 1985, no centro de São Paulo. Perlongher ressalta que neste momento
a AIDS ainda era algo distante; porém nos últimos anos, as coisas haviam
mudado. Isso afetaria a própria constituição do seu trabalho, a própria análise
da prostituição na metrópole, afetando também a vida do autor.
Com a AIDS, o campo social modificaria alguns elementos do seu trabalho.
Por exemplo, Perlongher salienta uma diminuição do número de prostitutos
e dos seus clientes, ou seja, um dado quantitativo a respeito da circulação
das pessoas. As “bocas” também se apresentam agora mais “pesadas”, mais
“perigosas”, eliminando os prostitutos ocasionais, os prostitutos que queriam
apenas experimentar algo novo, os prostitutos de fim de semana, que estariam
com medo da nova doença. Os que sobrariam no “ponto” seriam tão somente
os marginais. Perlongher também vislumbrava que a passagem do michê para
a delinquência armada seria mais frequente a partir da crise da AIDS, devido

156 RAFAEL LEOPOLDO


ao endurecimento das ruas, das relações e de uma maior periculosidade a cada
momento.
Diante do que Perlongher chama de uma “Era do terror”, suas categorias
analíticas deveriam ser revistas e outras já se mostravam inadequadas. O autor
chega a colocar uma pergunta apocalíptica: estaríamos assistindo a morte da
homossexualidade?51 Para o autor, os seus aspectos mais ofensivos e agressivos
— o sexo anônimo e a promiscuidade — estariam de fato desaparecendo com
a vinda da AIDS. Frente ao terror que a AIDS causou, Perlongher pensou que
haveria uma mudança realmente radical que inviabilizaria o seu trabalho e
o transformaria em uma peça de arqueologia, que a AIDS poderia mudar
drasticamente a própria experiência da sexualidade.
O que Perlongher não notou foi o surgimento de novos medicamentos. O
HIV/Aids já não é mais uma sentença de morte como nos anos 80 e nos anos 90,
onde os casos vieram à tona e ganharam a grande mídia, ressoando nos jornais,
na televisão e na internet — esta última que entabulou uma certa popularização
no Brasil na década de 90, posto que houve o surgimento dos servidores e o
barateamento dos computadores pessoais. Perlongher também não chegou
a conhecer toda uma geração que não viveu a experiência histórica da AIDS
e indivíduos que se relacionaram sem mesmo pensar nesta enfermidade. A
camisinha, para uma geração que não conheceu aquela época de terror, já não
teria sentido algum. Aliás, muitas das vezes, ela é pensada como um empecilho
a uma sexualidade mais natural e vista como uma artificialidade.
Ainda assim, depois de tantos anos, a AIDS volta a demonstrar um
crescimento no país, talvez devido a esta não vivência de um período de terror.
Vê-se, nos tempos hodiernos, que esta não experiência com a doença torna
possível uma variedade de relações que Perlongher já apontava na década de 80,
sendo, portanto, revistas na atualidade. Perlongher estava, novamente, errado em
relação ao fim de determinadas práticas homossexuais “ofensivas e agressivas”,
aliás, práticas não só homossexuais, mas da vida noturna...del mundo de la noche
con su deriva homosexual.

51
É Michel Foucault na obra de 1976, História da sexualidade, que nos ensina que a homossexualidade é
uma invenção recente. Foucault argumenta que antes do século 19 o que chamamos de homossexualidade
não era uma categoria coerente. Trata-se de uma outra classificação. Por exemplo, a experiência erótica não
era classificada de acordo com o sexo biológico dos participantes. Este dado é importante para a pergunta
de Perlongher, pois se a homossexualidade é essa invenção recente ela poderia, também, ser reconfigurada.
A Aids era um elemento que Perlongher via que modificava o comportamento sexual das pessoas no seu dia
a dia. Talvez, a Aids fosse um ponto de ruptura.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 157


Esta deriva e este devir são, de fato, retomados mesmo com o perigo da AIDS,
pois este perigo foi abrandado. É essa suavização da doença que mostra que até
mesmo as caracterizações da homossexualidade que Perlongher analisava ainda
não se perderam. Trata-se de um retorno deste trottoir ocasional, mas um retorno
que ainda contém os seus perigos, o que, às vezes, é somente um intensificador
do desejo (ver a análise sobre a AIDS feita por Sáez & Carrascosa, 2017).

O QUE HÁ DE MASCULINO NA PROSTITUIÇÃO MASCULINA?

“Quando vou transar com um cliente, eu não sou


eu; sou a fantasia do cliente”
Fala de um prostituto entrevistado por Perlongher

Uma vez que partiremos da pergunta “o que há de masculino na prostituição


masculina?”, é necessário saber quem é o michê, qual o momento histórico
analisado por Perlongher e, por que há, nesta abordagem, uma leitura queer
de sua fundamentação teórica, como sustenta a própria produção do queer —
alguns dos seus elementos — no texto do autor.
Visando uma aproximação inicial, é relevante retomarmos dois termos
que Perlongher utiliza, o de “michê” e o de “prostituição viril”. Se pensarmos
em sua origem etimológica, vamos encontrar a palavra michê relacionada com
michè, uma doença venérea, ou ainda, michet, aquele que paga pelo amor. Aqui
nesta acepção a palavra se relaciona, de algum modo, a prostituição e as doenças
venéreas. A “prostituição viril”, por sua vez, é tomada por Perlongher quase como
uma forma de se distanciar da prostituição homossexual e da prostituição do
travesti. Ela abarcaria uma “exacerbada masculinidade”. Perlongher afirma que:
“Em princípio, poder-se-ia falar de uma espécie de continuum da prostituição
homossexual que vai desde a “feminilidade” do travesti até a “masculinidade”
do michê” (Perlongher, 1993, p.7).
A própria definição de michê está vinculada ao travesti como uma espécie
de oposto, como o seu negativo. Perlongher parece assegurar que o travesti,
em sua feminilidade radical, desencadearia todo um devir mulher enquanto o
michê, em sua masculinidade paródica, fomentaria um modelo majoritário da
masculinidade (Perlongher, 1993, p. 8). Esta diferença entre o michê e o travesti

158 RAFAEL LEOPOLDO


reverbera uma outra distinção, que já salientamos repetidamente: a padronização
de determinadas relações homoafetivas e o rechaço de outras.
Já nos anos 70 e 80, a relação gay/gay passa a ser vista com maior
normalidade do que qualquer relação com o travesti, ou ainda, com uma bicha
escandalosa, a bicha mais afeminada. Não é raro escutarmos ainda hoje “ele é
gay, mas é discreto”, “ele é gay, mas não dá pinta”. Estas falas dizem muito desse
lugar padronizado da relação gay/gay e do rechaço à bicha afeminada e plumada.
A análise de Perlongher, então, se centra neste “michê másculo”, naquele que
não é uma bicha, não é afeminado, não dá pinta.
A respeito do contexto histórico, o período que mais nos interessa do estudo
de Perlongher é entre 1979 e 1984, onde ele engaja dois pontos indispensáveis
para a nossa cartografia. O primeiro ponto é a micropolítica da saída do armário
e o segundo, a crise social do final dos anos 70, o fim do milagre econômico
brasileiro. A respeito do primeiro ponto, temos a ideia de o desbunde, o “destape”,
o “coming out”, de um massivo out of the closets, uma massiva saída dos armários.
Perlongher vê o epicentro desta saída do armário em São Paulo, no Largo
do Arouche. Neste ambiente, havia a emergência de uma new wave gay num
espaço relativamente democrático onde era possível encontrar gays, travestis,
prostitutas, dentre outros. Já quando pensamos o segundo ponto, a recessão
depois do milagre econômico brasileiro, temos um maior aprofundamento das
desigualdades de classe e a crise produzindo efeitos singulares na configuração
dos guetos. Desta maneira, com o desbunde e a crise econômica, a análise de
Perlongher é que não houve uma retração da prostituição; o que aconteceu com
o desbunde foi uma paulatina legitimação da prática em setores mais vastos da
juventude.
É neste contexto que se dá a investigação do prostituto viril de Perlongher.
Todavia, há uma complicação na questão da identidade do michê másculo, já
que em termos de sexo ele faria a mesma coisa que os homossexuais, embora
cobre exatamente por não ser homossexual. Em certo sentido, é como se o
envolvimento do dinheiro, o fazer sexo por dinheiro resguardasse a identidade
masculina do michê. De qualquer forma, haveria uma “crise de identidade” que
percorreria as práticas da prostituição masculina viril. É neste momento que
Perlongher questiona a própria temática da identidade, de uma demanda de
criar uma imagem coerente do próprio ser, pois esta noção acarretaria riscos
teóricos e empíricos.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 159


Em sua pesquisa, Perlongher debate que a questão da identidade
não evoca uma solução na afirmação de uma homossexualidade, de uma
heterossexualidade, ou ainda, de uma bissexualidade, mas atravessa a própria
dissolução da identidade. O pensador argentino evoca a fala de um michê,
uma fala que poderia estar na ponta da língua de qualquer pessoa que trabalha
com a prostituição: “quando vou transar com um cliente, eu não sou eu; sou a
fantasia do cliente”. A identidade seria efeito de uma razão que reprimiria uma
topologia selvagem. Ela teria um efeito de homogeneização que suprimiria a
diversidade, a diferença na igualdade. Perlongher vai deixar a ideia de identidade
de lado, porque o michê está muito perto da marginalidade quando não dentro
dela, e o lugar da marginalidade também é um lugar de fuga, de saída do
espaço da normalidade. A pergunta do nosso tópico não é de fato respondida
taxativamente52; são abordadas mais as relações em que este sujeito está do que
uma identidade estanque.
Este lugar onde está o michê não rodeia tão somente um espaço físico e uma
determinada sexualidade, mas uma nítida distribuição caracterizada por: raça,
gênero, idade, profissão, situação socioeconômica. Haveria, até mesmo, uma
tipologia sentimental destes encontros. Esses são alguns dados que os pensadores
e pensadoras da teoria queer não deixarão de lado em suas ponderações, em sua
produção de saber. Não se trata de atribuir estas noções à especificidades do
pensamento queer; há também na apropriação de Perlongher uma vinculação
com determinados autores e conceitos que refletem a teoria queer.
Logo abaixo veremos, por exemplo, o esforço de classificação de Perlongher
para pensar o mercado sexual em São Paulo. E há neste quadro geral uma
nomenclatura encontrada na própria rua, no trottoir dos sujeitos e do desejo,
mas, também, uma produção intelectual do autor argentino quando rumina
estes encontros e sua relação com o social — só há o desejo e o social. De
certa maneira, é possível declarar que se trata de uma metodologia que não
diz respeito exclusivamente à antropologia, sociologia, filosofia, etc., mas que
transita entre todos estes elementos, tornando-se algo como uma “metodologia
queer”.

52
É salientada a questão do dinheiro, do vestuário do michê macho, sua paródia da heterossexualidade e
tentativa de exacerbá-la, ou seja, o que a filósofa Judith Butler – em certo sentido – vai denominar como
performatividade de gênero. Perlongher parece não se fixar nem mesmo numa produção performática da
identidade. Assim, a fala do cliente de fato ecoa de forma filosófica: eu não sou eu, sou a fantasia do cliente.

160 RAFAEL LEOPOLDO


QUADRO GERAL DE NOMENCLATURA CLASSIFICATÓRIA:

I: POR GÊNERO

Boy laranja
Mais Taxiboy
Michê Macho Michê gay Mais feminino
masculino Boy modelito
Boy paquera

Travesti
Prostitutos Okó Mati Gay macho Michê loca
Bicha

Homossexual Homossexual Homossexual


Não-prostitutos Fanchona Gay entendido
ativo dual passivo

II: POR IDADE

Mais jovem Eré Michê jovem Mais velhos

Prostitutos Garoto Loca Baby Michê velho

Tios

Não-prostitutos Boy Bichinha jovem Loca velha


Bicha velha

III: POR ESTRATO SOCIAL


Michê de Michê de São
Mais baixo Bicha tirada Mais Alto
Ipiranga Luis
Michê de luxo
Prostitutos Baixo michê Loca pobre
“Executivo”

Boys da treta Bicha fodida


Não-prostitutos Cliente pobre “Professor”
Boys do babado Bicha podre

Judith “Jack” Halberstam vai usar o termo “metodologia queer” em seu


livro Masculinidade feminina, publicado em 1998 e traduzido para o espanhol
por Javier Sáez em 200853. Halberstam designa o seu método de metodologia
queer, pois diz respeito a um determinado afastamento do saber tradicional

53
O livro em espanhol ganha uma introdução da autora, chamada “comparando masculinidades femininas”,
onde Halberstam aponta o conceito de “masculinidade feminina” como abrangente o suficiente para uma
análise entre culturas. Halberstam não se propõe a fazer esta empreitada, mas aponta uma gama de elementos
interessantes de diversas culturas, inclusive da questão da travesti no Brasil.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 161


universitário, uma deslealdade dos métodos de investigações acadêmicas
tradicionais, o que definitivamente não é sinônimo de perda de rigor e de
qualidade — haja vista que, hoje, o texto de Halberstam se tornou uma referência
básica para os estudos das masculinidades.
Perlongher não produz uma dissertação de mestrado fora dos moldes
tradicionais, antes, faz uma seleção e um uso não tradicional de autores para
engendrar o seu tema. Lembremos que se Michel Foucault foi rapidamente
absorvido por grande parte das humanidades, Deleuze e Guattari não o foram,
principalmente, na época da produção do texto de Perlongher. Só agora esses
autores começam a ter certa vinculação na antropologia, sobretudo, com a
popularização da obra de Eduardo Viveiros de Castro. A teoria queer também
faz um uso constante da cultura popular e de textos de outros ambientes teóricos,
então, mesmo que Perlongher não trabalhe intensamente sobre estas outras
referências é viável encontrá-las em citações espraiadas54 em seu texto, que
poderiam (e podem) gerar análises agregadas a outras esferas do social e da
produção cultural.

JAVIER SÁEZ E SEJO CARRASCOSA: AS POLÍTICAS ANAIS


Analisar nossas políticas anais e reivindicar o
orgulho passivo é imprescindível para subverter o
dispositivo da sexualidade que vivemos.

Javier Sáez e Sejo Carrascosa

Neste tópico regressamos a obra Pelo cu: políticas anais, de Javier Sáez e
Sejo Carrascosa. Essa obra tem um forte teor filosófico e queer, mesmo que
os autores em certo estágio se afastem dessa nomenclatura. Como tradutor,
Sáez traduziu várias obras da teoria queer para o espanhol, como Judith Butler,
Monique Wittig, Judith “Jack” Halberstam e Lee Edelman. Trata-se também
de um importante ativista na Espanha, responsável por abordar não só a

54
Tem-se referências principalmente a cantores brasileiro da época do desbunde que ainda estão em vigor
como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ney Matogrosso e o grupo Dzi-croquete. Este último é menos conhecido,
e é dele que Perlongher salienta a androgenia de combate. Com relação ao cinema é citado um filme alemão
chamado “Mujer en Fuego”.

162 RAFAEL LEOPOLDO


questão queer, como também um trabalho de grande relevância a respeito da
discriminação da comunidade cigana.
Por sua vez, Carrascosa deriva de uma formação autodidata e mostra uma
clara alergia ao mundo acadêmico. Foi ativista em diferentes grupos de caráter
antiautoritário e de libertação sexual. Destaca-se a sua contribuição no grupo “La
Radical Gai” — criado em 1991 em Madri — com forte influência do ativismo
político-militante do ACT UP, de Nova Iorque e de Paris, em um momento
de inação governamental e de timidez de algumas organizações oficialmente
LGBT*, principalmente no que se refere à questão preventiva do HIV.
O livro Pelo cu: políticas anais é escrito pelas mãos destes dois ativistas.
Nele, há uma genealogia da analidade. Perpassa, por exemplo, a poesia de Allen
Ginsberg — “espero que o velho buraco continue jovem, até morrer, relaxado” —
os insultos, os preconceitos, as políticas de extermínio, mas, também, caminha
pelos anais da história, da Índia e da tradição tântrica, dos gregos antigos à
sodomia no período da Idade Média e da Idade Moderna; do final do século 19
durante a elaboração diferenciada da psicanálise ao início dos anos 80, quando
encontramos o cu vinculado a AIDS.
Não obstante, o livro traz uma curiosa teoria da subjetivação via analidade.
O cu a princípio não teria gênero, pois todos possuímos um. O que os autores
salientam é que o ânus cumpre um papel primordial na construção da
sexualidade. Ele se relaciona ao que é ser homem e ao que é ser mulher, o que é
ter um corpo valorizado ou um corpo abjeto, um corpo bicha ou hetero e tem
reflexos na própria definição do feminino e do masculino.
Neste quadro, mesmo diante do lugar abjeto da analidade, os autores
propõem uma política anal e uma analética, ou seja, uma ética da passividade,
uma mudança do lugar da analidade. Encontramos um giro histórico na obra,
pois a passividade é valorizada. Encontramos um orgulho passivo surgido desse
lugar inesperado que poderíamos pensar — erroneamente — que não disporia
de uma dignidade filosófica, mas que agora estaria, outra vez, no campo social
e político.
Desta forma, compreendemos que há neste livro três elementos principais:
1) uma genealogia da analidade; 2) uma compreensão da constituição do sujeito
não só via genitálias, mas via analidade; 3) e, por último, a ideia de uma ética da
passividade, uma analética. Porém, nosso intuito não é uma recapitulação do
livro Pelo cu: políticas anais; o que nos interessa neste capítulo, no contexto de

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 163


um pensamento homoerótico, é a temática abordada a respeito da psicanálise
e a uma política anal com relação a AIDS. No primeiro elemento temos uma
relação entre teoria queer e psicanálise; e no segundo, podemos depreender
um pouco mais da homofobia e do contexto do HIV/Aids e suas implicações.

PSICANÁLISE E ANALIDADE

É melhor ser uma bicha liberal que desfruta da sua


bunda que um mesquinho tacanho obcecado com a
ordem (bem, Freud não disse isso exatamente, mas
é a nossa leitura)
Javier Sáez e Sejo Carrascosa

No livro Pelo cu: políticas anais encontramos um capítulo chamado


“Psicanálise: o urso Freud muda de ambiente” que é uma pequena apologia ao
pai da psicanálise. Se o diálogo55 da teoria queer com a psicanálise é tortuoso,
Sáez e Carrascosa não deixam de enaltecer Freud de forma bastante incisiva.
Eles começam o seu texto da seguinte forma:

Neste capítulo, vamos falar de uma das propostas mais originais da história
do pensamento: a teoria psicanalítica – e de como um urso burguês vienense
do final do século XIX vai se atrever a colocar no centro do pensamento o
sexo, o prazer, o desejo, o amor e... o cu. Até Freud, a filosofia e a psicologia
eram espaços ascéticos, onde se falava do divino e do humano, da alma e do
transcendente, do sujeito e do ser, da razão e do destino... mas sem corpos,
sem desejos, sem falar jamais de uma das pulsões mais poderosas dos seres
humanos, a pulsão sexual (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 135).

Freud foi aquele que percebeu um mal-estar relacionado à sexualidade;


quando passou a escutar os seus pacientes, notou uma moral rígida que se
encontrava em oposição aos desejos das pessoas, formando diversos conflitos.

55
Este diálogo é trabalho por Javier Sáez em seu livro Teoria queer e psicanálise e, também, neste livro Sáez
aponta sistematicamente como que Freud é mais revolucionário com relação a sexualidade do que alguns dos
seus críticos poderiam imaginar. Uma guinada reacionária na psicanálise se dá sobretudo com os discípulos
de Freud e o processo de institucionalização da disciplina.

164 RAFAEL LEOPOLDO


De acordo com Sáez e Carrascosa, o foco é num aspecto bem especifico,
que diz respeito à analidade, com base em textos como Três ensaios sobre a
sexualidade, O caráter e o erotismo anal, A disposição a neurose obsessiva,
Sobre a transmutação dos instintos e, especialmente, do erotismo anal. A leitura
minuciosa que os autores fazem destes textos deságua num estudo estimulante
da compreensão freudiana sobre a importância do ânus.
É salientado que o sexo per anum não constitui uma característica particular
da inversão, da homossexualidade. Este entendimento já retira o sexo anal de
um determinado estereótipo relacionado só a experiência homoafetiva. Tem-
se, ademais, em Freud, uma compreensão radical de que há uma fase anal no
desenvolvimento libidinal de todos os sujeitos, ou seja, há um reconhecimento
dum prazer anal em todos os indivíduos; todavia, este prazer vai sofrer
determinada repressão. Este último é o assunto por onde deambularemos nos
próximos parágrafos: a repressão do desejo anal e sua consequência.
“O problema da repressão é que se reprime o que se deseja, e isto sempre
deixa marcas no sujeito” (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 139). O prazer anal que
existiria desde a infância seria reprimido, em uma espécie de mutilação genital
simbólica. Este é um dos elementos que os autores enfatizam para explicar o
horror que se tem com relação ao ânus, com relação à penetração anal, pois se
trata de uma autorrepressão, de um processo doloroso de renúncia de algo que
já foi prazeroso. Desta maneira, “todo esse ódio contra o anal não faz outra coisa
senão mostrar o próprio desejo” (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 139). Porém, há
mais implicações da repressão anal que são vinculadas ao caráter.
O pai da psicanálise chega a conferenciar um caráter anal devido à
sublimação do desejo. A leitura de Sáez e Carrascosa se dá da seguinte forma:

Para Freud, há certos traços de caráter que persistem em algumas pessoas


adultas, como consequência de ter sublimado as pulsões anais. Trata-se
de pessoas ordenadas (pulcras, escrupulosas, complacentes), econômicas
(centradas no dinheiro, inclusive avarentas) e tenazes; essas características
definem o que ele chama de caráter anal. Tem-se uma perda do interesse
erótico do anal, um interesse que essas pessoas haviam tido de forma
acentuada na infância, e se produz um deslocamento de posição: da sujeira
das fezes, rumo à ordem, à limpeza. Das fezes que não valem nada, à sua
antítese, o dinheiro. Do relaxamento que supõe o defecar, à tenacidade, ao
controle obstinado e, às vezes, colérico. (Sáez e Carrascosa, 2016, pp. 140-141).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 165


Fica visível que a espirituosa conclusão que os autores retiram da psicanálise
é que ser uma bicha liberal que desfruta da sua bunda, é melhor que ser um
mesquinho tacanho obcecado com a ordem.

A AIDS E AS POLÍTICAS ANAIS

Já comprovamos o quão terrível foi o HIV/Aids, principalmente, nas


décadas de 80 e 90. Salientávamos, por exemplo, como esta enfermidade
ficou conhecida como a doença dos “quatro agás”: homossexuais, haitianos,
hemofílicos e usurários de heroína. Porém, diante da obra Pelo cu: políticas anais,
parece mais certeiro que foquemos no H que concerne à homossexualidade. Os
dois motes envolvidos neste breve tópico são: 1) a culpabilidade das vítimas; 2)
e a necessidade das políticas anais para uma prevenção da AIDS.
Ainda sobre uma contextualização, o pesquisador e teórico queer Richard
Miskolci, em sua obra Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças, afirma que:

A epidemia é tanto um fato biológico como uma construção social. A Aids foi
construída culturalmente e houve uma decisão de delimitá-la como DST. Uma
epidemia que surge a partir de um vírus, que poderia ter sido pensada como
a hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou sendo compreendida como
uma doença sexualmente transmissível, quase como um castigo para aqueles
que não seguiam a ordem sexual tradicional. Então, a Aids foi um choque,
e da forma como foi compreendida tornou-se uma resposta conservadora
à Revolução Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela então conhecida
“geração do desbunde”. No mundo todo, essa reação teve consequências
políticas jamais superadas e também na forma como as pessoas aprenderam
sobre si próprias, sobre a sexualidade, e na maneira como vivenciam seus
afetos e suas vidas sexuais até hoje (Miskolci, 2012, p. 23).

Este dado — a Aids como uma construção social — é determinante para


a compreensão do nosso primeiro aspecto: a culpabilidade das vítimas. Esta
construção social nos remete ao entendimento da Aids como um fenômeno
social, como uma enfermidade social e não física.
Para Sáez e Carrascosa, a ideologia de culpabilização das vítimas tem a
função de ocultar as condições sociais, econômicas, raciais, de gênero e sexuais,
colocando a responsabilidade da prevenção e do tratamento nos indivíduos,

166 RAFAEL LEOPOLDO


de tal modo que se pode verificar a transferência de uma obrigação do Estado
(a saúde da população) para o próprio indivíduo. Esta culpabilidade recai,
sobretudo, sobre a bicha, “a bicha era quem transmitia essa enfermidade pelo
cu e, assim, situava-se em um plano de objeto eliminável, controlável” (Sáez e
Carrascosa, 2016, p. 148). Podemos ver políticas antagônicas no tocante à AIDS:
a posição reacionária da Igreja Católica, a posição revolucionária de grupos
como ACT UP. Porém, mesmo em vigorosos grupos de esquerda, podemos
encontrar determinada homofobia, determinado heterocentrismo, até mesmo,
determinado lobo em pele de veado. Creio que seja contra estas políticas tacanhas
que Sáez e Carrascosa procuravam e procuram uma prevenção num sentido
anal.
A pergunta dos autores é: como é possível estabelecer políticas preventivas
sem levar em conta as políticas anais? De um ponto de vista heterocentrado seria
impraticável elaborar políticas anais. Lembremos de Paco Vidarte quando este
enuncia que o que uma bicha entende pelo seu cu não é o mesmo que o poder
entende. As campanhas, as políticas, a administração que tenta produzir uma
prevenção da AIDS dentro de uma norma heterocentrada somente tentam
reelaborar formas de normalização. Mais um elemento que não deve ser omitido
é a compreensão usual do ativo e do passivo, do penetrador e do receptor, já que
o primeiro remonta ao poder e, o segundo, à falta dele, à subjugação:

Dentro dos milhares de mecanismos que entram na construção do desejo, o


penetrado se situa no espaço de submissão, o passivo recebe a ação sem mais
atitude que o oferecimento, tão injuriado socialmente. Não nos encontramos
com alguns penetrados que, em seu foro íntimo, buscam o castigo pela
vergonha de seus atos? O passivo busca castigo quando lhe fodem? Se é
assim, o desejo de trepar sem camisinha é parte da busca de um castigo? Ou
nos encontramos diante de uma forma de depredação sexual que renuncia
a sua saúde por conseguir um pau para botar dentro? A camisinha e a única
forma de prevenção em uma penetração anal? Como fazer uma prevenção
para o passivo-receptor? Pode-se fazer uma prevenção não vitimista? Não
será o passivo uma vítima de um sistema de valores onde a passividade é
o último grau? Pode-se gerir a prevenção numa abordagem mais ampla e
explicita do papel do receptor? Como pedir ao passivo uma verbalização de
sua analidade sem cair em uma confissão no sentido em que fala Foucault?
Como dotar o cu de um grande orgulho pelo prazer que outorga? Todas essas
questões são cruciais para iniciar novas políticas de prevenção baseadas no
orgulho passivo (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 157).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 167


Significa, de certa forma, o ato de procurar uma linguagem, uma categoria
de leitura, que perpasse a experiência de quem vai receber esta mensagem: “se,
ao final, essa categoria é reduzida à de bicha, à de sodomita, à de tomar no cu,
por que não criar campanhas que se dirijam a essas práticas, independentemente
das identidades de seus praticantes? ” (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 158).
Os autores parecem clamar por uma maior criatividade nas políticas de
prevenção. Por exemplo, questionar os termos “ativo” e “passivo” que contém
o peso de uma hierarquia; os termos “insertivo” e “receptivo” que remontam
a determinada cientificidade na prática do coito anal e dá um determinado
distanciamento; os termos “top” e “bottom”, por sua vez, não seriam tão
melhores, mesmo que saiam de uma perspectiva biológica e entrem numa
perspectiva geométrica.
Uma premissa prévia de uma política anal seria já mudar estes termos, criar
novos tropos, desvirtuar o sentido negativo do passivo, do receptor, do “bottom”.
“Morde fronha” e “sopra-nucas” já estaria em outro registro.
Essa ideia nos remete a própria palavra “queer” que era um insulto e, quando
foi apropriada, transformou-se em outra coisa. As políticas anais tratam disso,
tornar e criar novas perspectivas onde a passividade seja entendida de outra
forma:

Se entendermos a sodomia como uma forma de imposição e de ultraje que


atravessa tempos e culturas, sem saber onde e como se originou, mas que
é repetida sem questionar seus meios ou fins, poderíamos falar de um ato
performativo. Todo ato performativo e baseado em uma repetição que não
tem original, mas que produz um efeito de realidade a partir de sua própria
repetição. Por isso mesmo, porque não se remete a nenhuma essência ou
realidade natural, podemos nos apropriar desses atos repetidos e lhes dar
um significado diferente. (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 160).

Citamos, por fim, este fragmento que evoca o ato performativo — sem
um original, sem algo autêntico ou ainda verdadeiro — para assinalarmos a
possibilidade de mudança por meio da apropriação destes atos, mas, também,
para invocarmos nosso próximo capítulo, onde a questão da performatividade
será uma espécie de ponto de virada — turning point — no estudo da teoria
queer.

168 RAFAEL LEOPOLDO


Este componente, a performance, será o primeiro giro que iremos explorar,
o giro performativo de Judith Butler. Já nos abeiramos desta temática quando
abordávamos alguns conceitos-chave da filosofia de Derrida, focando no conceito
de performatividade e, claro, diferenciando-o do conceito de performance. O
segundo giro, o giro tecnológico, será compreendido à luz da filósofa Donna
Haraway. Estas mudanças, estes giros no pensamento queer, vão reverberar em
outros autores e autoras do pensamento queer e constituem, em certa medida,
o adensamento da teoria. Basta pensarmos que, juntamente com estes giros,
há uma consolidação da produção a respeito da temática queer, uma maior
visibilidade, um corpo teórico mais volumoso e pungente.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 169


A TEORIA QUEER E O FEMINISMO NEGRO

UMA OUTRA VOZ NO FEMINISMO

Nós negros estamos na lata de lixo da sociedade


brasileira, pois assim determina a lógica da domi-
nação (...) exatamente porque temos sido falados,
infantilizados (infans, é aquele que não tem fala
própria, é a criança que se fala na terceira pessoa,
porque falada pelos adultos), que neste trabalho
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai
falar, e numa boa.

Lélia Gonzalez

No capítulo sobre o surgimento do pensamento queer citamos a revolta de


Stonewall inn, para evidenciar que desde o começo a teoria queer está relacionada
a determinadas micropolíticas no âmbito norte-americano e europeu. Porém,
deveríamos acrescentar que também no âmbito latino-americano há uma
enormidade de políticas transversais a serem registradas, e que precisam de
um trabalho de arquivo, de um projeto de arquivo-ativismo, de uma elaboração
arque-ativista, pois livramo-nos de uma história única, de um neocolonialismo
epistêmico e, especialmente, passamos a compreender as especificidades de
outros contextos.
Na América Latina e, especialmente, no Brasil, a teoria queer tem uma
dupla recepção: 1) ela percorre as micropolíticas; 2) e, ademais, o ambiente
universitário, a academia. No entanto, acreditamos que a recepção na academia
acontece de forma anêmica, se pensarmos que há uma grande produção
individual, mas não há uma proliferação do debate com programas de extensão,
ou ainda, com linhas de pesquisa especificamente sobre esta temática. Mesmo
que hoje se possa afirmar que houve determinada popularização do queer, é

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 171


necessário uma dose de realismo, pois não há nem mesmo uma consolidação de
polos de pesquisa. Claro que existem algumas exceções, e que esta popularização
não se reflete, necessariamente, em uma estabilidade de determinadas lutas
políticas. Por exemplo, mesmo que se tenha conseguido despatologizar
determinadas minorias, muitas vezes, este processo de patologização é retomado.
Há uma tentativa de re-ativação de alguns preconceitos e arcaísmos.
Enfatizávamos que o queer envolvia uma série de outros feminismos que
não era o feminismo padrão da época. Neste momento pensávamos, sobretudo,
o feminismo padrão como um movimento branco heterocentrado, de classe
média, que, além disso, envolvia a criação de uma identidade gay na década
de 80, nos Estados Unidos. O feminismo negro, por sua vez, trouxe outras
vivências, conhecimentos, consciências e empoderamentos para o debate. Em
suma: outras práticas e epistemologias que provocam uma verdadeira mutação
quando refletimos o feminismo e suas reverberações na esfera pública e privada.
No que corresponde ao feminismo branco e ao feminismo negro, a
ativista Angela Davis tece um registro quase didático para as mulheres brancas
compreenderem o que envolve as políticas das mulheres da classe trabalhadora,
das minorias étnicas e como essas lutas incluem uma mudança para todas as
mulheres. Acrescentaríamos, por sinal, que também envolve uma mudança para
os homens. Este apontamento é apresentado numa conferência de novembro
de 1983:

Tentemos visualizar uma pirâmide simples, dividida horizontalmente de


acordo com a raça e a classe social de diferentes grupos femininos. As
mulheres brancas se situam no alto – primeiro, as mulheres da burguesia,
sob as quais colocamos as das classes médias e, depois, as da classe
trabalhadora. Na parte mais baixa estão localizadas as mulheres negras e
outras mulheres oprimidas racialmente, que em sua grande maioria vêm
da classe trabalhadora. Quando aquelas no ponto mais alto da pirâmide
obtêm vitórias para si mesmas, geralmente a condição de todas as outras
mulheres permanece inalterada. Essa dinâmica se mostrou verdadeira nos
casos de Sandra Day O’Connor e Jeane Kirkpatric – ambas conseguiram ser as
“pioneiras” em suas respectivas áreas. Mas, ao contrário, se aquelas no ponto
mais baixo da pirâmide conquistam avanços para si mesmas, é praticamente
inevitável que seu progresso empurre o conjunto da estrutura para cima. O
avanço das mulheres de minoria étnicas quase sempre dá início a mudanças
progressistas para todas as mulheres (Davis, 2017, p. 16).

172 RAFAEL LEOPOLDO


Ainda que Angela Davis seja uma escritora estadunidense sabemos de
antemão que o mesmo raciocínio poderia ser assinalado diante de outros
contextos. Encontramos, por exemplo, em um trabalho da pensadora Heleieth
Saffioti, da mesma década, a seguinte afirmação com relação à estrutura social:

A supremacia masculina perpassa todas as classes sociais, estando também


presente no campo da discriminação racial. Ainda que a supremacia dos ricos
e brancos torne mais complexa a percepção da dominação das mulheres pelos
homens, não se pode negar que a última colocada na “ordem das bicadas”
é uma mulher. Na sociedade brasileira, esta última posição é ocupada por
mulheres negras e pobres (Saffioti, 1987, p. 16).

Com Saffioti temos a afirmação da posição da mulher negra na base da


pirâmide social — o que é possível apreender com uma leitura de determinada
produção científica ou ainda se tivermos a mínima sensibilidade ao olharmos
o corpo social —, inclusive, em outro momento a autora afirma também
que “a classe patronal tem o maior interesse na existência de categorias sociais
discriminadas: mulheres, negros, homossexuais” (Saffioti, 1987, p. 23. Itálico
nosso). Este interesse da classe patronal na discriminação é a própria produção
de uma classe que se sujeitaria a trabalhar em condições precárias e com salários
precários.
Acreditamos que a importância destes dados se faz presente, porque
demostram tanto uma tensão56 entre o feminismo branco e o feminismo negro
quanto uma possibilidade de conexão entre eles, perpassando a composição
racista e excludente da nossa esfera social. Trata-se de percebermos esta
questão piramidal e os elementos que a envolvem. Na afirmação de Davis,
temos a urgência de que a base de pirâmide se eleve, pois, juntamente com ela
haveria uma mudança em todo o campo social. Na afirmação de Saffioti, uma
mudança deveria ocorrer na lógica do capitalismo e da supremacia masculina
que o envolve, que afeta tanto as mulheres como os homens, de forma social e
subjetiva, tornando-os castrados e incapazes de desfrutar de certos prazeres.

56
Um dos pontos desta tensão entre o feminismo branco e o feminismo negro será abordado quando formos
pensar o giro tecnológico e o teórico queer Paul Beatriz Preciado que aponta como a questão da pílula foi
vista de uma forma positiva para o feminismo branco e de uma forma negativa com o feminismo negro, o
primeiro vendo a pílula como uma possibilidade de liberdade, já que com esta ferramenta biotecnológica se
torna possível desvincular o sexo da reprodução, o segundo compreendendo mais agudamente este pequeno
panóptico comestível como uma política quase eugênica para a padronização de uma determinada forma de
família norte-americana, a família branca de classe média e heterossexual.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 173


É possível ver esse descompasso entre o feminismo branco e o feminismo
negro em múltiplas questões, mas não nos ateremos a estas instâncias. O
feminismo negro vem de outro ambiente, o feminismo negro surge com outra
cor, o feminismo negro emana outra voz, o feminismo negro tem em si outras
marcas que não cobrem tão somente o corpo do feminismo branco. Ele afirma
outra identidade e, por muitas vezes, por ser principalmente um discurso
identitário, se “afasta” (e colocamos muitas aspas nesta fala) em algum sentido
da teoria queer e, ainda que o pensamento queer faça uma crítica da noção de
identidade, não vai deixar de usar a identidade de forma estratégica e nem ser
alheio às políticas identitárias.
Ao mesmo tempo em que propõe uma multiplicidade de identidades,
de criar até mesmo uma hiperidentidade de forma estratégica — como, por
exemplo, a “sapata”, o/a “bicha”, o “veado”, etc —, o movimento queer muitas
vezes não deixará de interrogar a própria identidade. Em outras palavras, há
no queer uma aproximação estratégica da ideia de identidade e um afastamento
importante quando se cria os guetos, a segregação produzida pelos pequenos
grupos, os pequenos fascismos das coligações.
Claro que é possível encontrar as exceções no feminismo branco, ou ainda,
nos corpos brancos, como Heleieth Saffioti que não é uma feminista57 ortodoxa
e nem negra e realizou uma grande contribuição para a temática, produzindo
uma obra que hoje diríamos que abrange um conceito que se torna caro para a
teoria queer, que é o de interseccionalidade — mesmo antes deste conceito passar
a ser pungente na prática militante ou no mundo acadêmico. Basta lembrarnos
do seu livro de divulgação chamado O poder do macho, de 1987, e da conotação
da palavra simbiose.
A análise que Saffioti produz com relação à cultura brasileira, ao gênero,
à raça e ao capitalismo, é fortificante para determinado empoderamento. Lélia
Gonzalez — feminista negra, participante dos movimentos sociais e filósofa —
não esquecerá a produção desta autora para pensar a “lata de lixo da sociedade
brasileira”, pois, por certo, até mesmo esse lixo falará, esse lixo se reerguerá. De

57
Para um maior esclarecimento sobre Saffioti ser ou não ser uma feminista, afirmamos que, primeiro, ela
não se interessa por uma distinção entre feminismo acadêmico e feminismo militante, já que, na sua percepção,
a academia teria absorvido a temática sem uma grande resistência. Outro dado é que muitas das militantes
são acadêmicas, todavia, Saffioti não se vincula a nenhum movimento ao mesmo tempo que produz um
determinado tipo de conhecimento para uma mudança do corpo social. Uma das suas críticas ao feminismo
como, também, a sua postura diante dele, pode ser encontrada na conclusão do livro O poder do macho.

174 RAFAEL LEOPOLDO


modo geral, o feminismo negro ergue-se principalmente com a sua própria voz e
o ativismo queer, as práticas queer, o devir do pensamento queer não vai se fazer
alheio a estas vozes. Muitas vezes, o queer é essa própria voz cantando um blues,
dançando um tango, ou ainda, gozando de uma batida forte de funk carioca.
Lembremos também de Gloria Anzaldúa, pois ela não vai procurar
referências só na literatura, mas em diversas artes, no cinema, na música, etc.
Ou seja, é necessário deslocar o pensamento, ou ainda, descolonizar a reflexão.
O intuito é mudar o foco, transformar e transmutar, des-centralizar e des-fazer,
cortar o elo com o significante despótico, mais rizomas e menos árvores. E acima
de tudo, trata-se de enxergar este “trans” como um novo fluxo, uma nova rota
que seja menos dura: que a produção de linhas de fuga seja uma produção de
linhas de fuga em massa.
De agora em diante, esboçaremos a questão racial brasileira, pois o tema
da raça é vital para o feminismo negro, assim como a questão da compreensão
histórica da formação de uma sociedade dividida, de uma sociedade
preconceituosa, de uma sociedade realmente injusta que ao mesmo tempo foi
entendida como um “paraíso racial”, como uma “democracia racial”. Estes dados
de formação do povo brasileiro fazem parte do que encontramos nos textos das
feministas negras.
O contexto histórico da escravidão será, futuramente, o texto do feminismo
negro que compreende o lastro histórico-cultural da dominação, que é
incorporada — para usarmos uma imagem cristã diríamos que é encarnada
— na pele e que se encontra numa multiplicidade de vozes. Na obra poética de
Conceição Evaristo encontramos estes ecos, principalmente, numa poesia do
livro Poemas da recordação e outros movimentos:

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó


Ecoou criança
Nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
Ecoou obediência
Aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 175


Ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
Debaixo das trouxas
Roupagens sujas dos brancos
Pelo caminho empoeirado
Rumo à favela.
A minha voz ainda
Ecoa versos perplexos
Com rimas de sangue
E
Fome.
A voz de minha filha
Recolhe todas as nossas vozes
Recolhe em si
As vozes mudas caladas
Engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
Recolhe em si
A fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
Se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade

Na poesia de Evaristo encontramos quase todo o percurso do negro na


sociedade brasileira: do navio negreiro até as favelas. Ou melhor: das favelas ao
cárcere58. Porém, o que Evaristo parece reunir é um grito sendo gestado a todo
momento, um grito por vida, por liberdade. Cremos que este grito seja a criação

58
Este soturno caminho que é infligido ao negro, do navio negreiro às favelas e, das favelas ao cárcere, pode
ser compreendido juntamente com a história do racismo no Brasil, ou ainda, juntamente com a história das
prisões no Brasil e mais amplamente na América Latina. No Brasil, a escravidão e a monarquia – mesmo depois
da independência de 1822 – impediam a tentativa da produção do sujeito virtuoso por meio da disciplina
dos regimes punitivos como se deu na Europa e nos Estados Unidos, regimes estes que eram vinculados ao
capitalismo. No Brasil, houve a ideia de que estávamos diante de uma massa bárbara e irrecuperável. Não se
tratava de um conjunto de pessoas passiveis de recuperação e viáveis para a produção capitalista, mas, pelo
contrário, dizia respeito a sujeitos inferiores. O que tivemos não foi a promessa de recuperação de determinados
sujeitos que são comprometidos pela composição social injusta, mas, sim, o ambiente penitenciário servia/
serve como um reforço de mecanismos de controles já postos, mecanismos de controle de populações bem
específicas. A prisão surge objetivando uma relação social injusta já existente e garante esta formação social,
uma formação que divide os livres e os escravos, os homens e as mulheres, os brancos e os negros. Numa
perspectiva norte-america que, por sua vez, não deixa de se vincular com a África e a América Latina, Angela
Davis produz uma crítica interessante ao sistema prisional se colocando do lado do movimento antiprisional
(ver, por exemplo, Davis, 2018 e 2019).

176 RAFAEL LEOPOLDO


de uma bela abayomi em meio do caos, um canto que envolve determinada
atmosfera caótica e cria um cosmo potencializador.
Abayomi é uma palavra em iorubá que significa “encontro precioso”, mas
trata-se, também, de uma boneca de pano, uma boneca feita de retalhos, uma
boneca feita sem o uso da costura, uma boneca fabricada apenas com nós, com
ligações, com conexões de panos, conjunção de retalhos, um brinquedo que
produz um ritornelo. É fundamental acrescentar que estas bonecas foram criadas
num lugar totalmente adverso, num lugar onde o horror reinou da forma mais
crua: os navios negreiros. Nestes navios, mulheres criaram suas abayomis com
retalhos de panos, com fragmentos de suas vestes. Elas construíram, no meio
do horror, algo de belo. Elas construíram, no meio do horror, um espaço de
ternura, ou ainda, uma forma de sobrevivência psíquica (ver, por exemplo, Levi,
1988; Pelbart, 2013). Sabemos que essas formas — a criação da abayomi e seus
correlatos — são necessárias para não cairmos no completo esgotamento, no
inumano, na vida sem forma, no morto-vivo, no homem-múmia, no homem-
concha. Uma abayomi para sobrevivermos, mas, também, muitas delas para
vivermos.

DEMOCRACIA RACIAL BRASILEIRA

Um grande debate que atravessa a produção intelectual brasileira é a questão


da democracia racial. É quase uma unanimidade remontar esse debate a Gilberto
Freyre e Florestan Fernandes, lembrando que Florestan Fernandes foi orientador
da Heleieth Saffioti (estudiosa do racismo no âmbito do feminismo) e que Lélia
Gonzalez, encarregada de reativar este debate, relacionando-o ao carnaval. Ainda
que Freyre não tenha usado essa expressão em seus primeiros trabalhos, ele
possibilitou esta leitura da sociedade brasileira, muitas vezes dita como um
“paraíso racial”. Florestan Fernandes, por sua vez, foi um severo crítico da noção
de uma democracia racial brasileira, compreendendo que o negro e o mulato
não haviam se integrado à cultura e ao capitalismo moderno. De fato, ainda
hoje não há uma integração que seria minimamente desejável.
Gilberto Freyre é conhecido como o apologista da miscigenação, o que
remonta a toda nossa história de formação — os encontros de diversas matrizes
culturais e seu desenvolvimento. Essa apologia é atraente (poderia dizer
necessária) em um período em que a Europa caía em uma política eugênica,

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 177


principalmente, com o nazismo alemão (quando pensamos a segunda Guerra
Mundial e o seu fim em 1945). Esta mistura bem brasileira foi muitas vezes
contada como um exemplo para os próprios brasileiros (para livrar-se de
políticas como o integralismo59) e um exemplo para o mundo exterior (para
livrar-se de políticas nazistas e fascistas). A positivação dessa mistura seria
quase um antídoto para o racismo, não porque o racismo não existisse, mas,
sim, devido a compreensão da nossa própria formação como povo que anularia
determinados preconceitos, já que seríamos em parte índios, negros, europeus;
brasileiros, enfim. E diante do fato de sermos, cada um de nós, essa mistura, o
racismo seria contraditório, tendo em vista que se trataria de um racismo contra
o nosso próprio ser, contra a nossa própria pele multiracializada.
Com perspicácia, Fernandes observou, por exemplo, que a miscigenação
no período colonial não tinha um caráter de uma produção democrática, mas
servia para a criação de uma maior mão de obra escrava. Para o autor, o mito de
uma democracia racial brasileira seria uma falsa consciência da nossa realidade
social. Fernandes chega a nos perguntar que igualdade haveria entre o “senhor”, o
“escravo” e o “liberto”. A relação social exigia o preconceito e a discriminação para
legitimar a ordem estabelecida. Talvez pudéssemos afirmar que a igualdade racial
seria algo em potencial, uma abstração, virtualidade, mas não uma realidade
brasileira, nem mesmo um produto tipicamente brasileiro para exportação.
Outro ponto interessante é que a própria miscigenação e a convivência, mais
ou menos harmônica, entre raças, não impediria que o racismo fosse manifesto
de formas diferentes. Fernandes combatia a ideia de uma democracia racial,
colocando-a como um mito, e tal mito deveria ser desfeito para que nos fosse
possível adentrar criticamente nas mazelas da sociedade.
O mito da democracia racial brasileira permanece, mas já foi atacado por
diversos autores desde Fernandes. Esta permanência toma diversas formas,
volta como potencialidade para uma sociedade mais justa, ou ainda, como falsa

59
O “integralismo”, ou ainda, o “nacionalismo integral” era uma doutrina política, ou ainda, um movimento de
extrema-direita, um movimento ultranacionalista vinculado à doutrina social da Igreja Católica que teve sua
atuação principalmente nos anos 30 e 40 do século 20. Trata-se, também, depois do seu caráter de movimento
de um partido político, ou seja, a uma institucionalização da Ação Integralista Brasileira (AIB) que deu forma
ao nazi-fascismo brasileiro. A AIB tinha um discurso antissemita e ganhou voz em setores como os da classe
média, os profissionais liberais, poetas, funcionários públicos e perpassou muito as áreas de colonização alemã
e italiana. Tal partido recebia ajuda financeira da embaixada da Itália e teve em seu quadro figuras como as
de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Getúlio Vargas usou a força da AIB de forma pragmática,
primeiro, juntando-se a eles contra a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e os Comunistas, porém, nunca
confiando em um movimento que queria governar o país e tinha toda uma iniciativa paramilitar.

178 RAFAEL LEOPOLDO


consciência, como mistificação das relações sociais. Porém, o intuito deste tópico
não é rever sistematicamente os ecos deste mito, ou ainda, a construção de
nossa brasilidade, mas, voltarmo-nos, também, para outro autor que tentou
compreender a matriz cultural africana brasileira, como, ademais, o racismo
no Brasil dentro de suas especificidades, adentrando no debate da democracia
racial brasileira. Essa análise é desenvolvida por Darcy Ribeiro, em seu livro O
povo brasileiro.
Como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro acreditou em uma particularidade do
povo brasileiro; mas, para Darcy, essa singularidade estaria na ideia de sermos
ninguém, de estarmos afundados por um momento em uma ninguendade, de
sermos white paper (um papel em branco, uma tábua rasa) de nossa própria
construção, ou seja, nem africanos, nem europeus, nem índios, mas um povo
novo a ser construído, um povo em construção. Na análise deste povo novo,
Darcy não deixa de lado a questão da classe, da cor, do preconceito, do racismo.
Retornemos, no entanto, aos afro-brasileiros, aos negro-brasileiros para fiarmos
pequenos comentários, antes de nos voltarmos à questão do racismo, do
feminismo e da crítica ao patriarcado e ao capitalismo.

OS HOMENS E AS MULHERES NEGRAS NO BRASIL

Em seu livro Casa-grande e senzala (que é o grande romance da identidade


nacional), no capítulo “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”,
Freyre começa seu ensaio atando a todos na diversidade de etnias e culturas:
“todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na
alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou macha mongólica no Brasil
– a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro ” (Freyre, 1977, p.
283). Esta mistura seria, principalmente, a nossa herança africana. Ao passear em
qualquer rua, poderíamos avistar o resultado desta mistura, dessa miscigenação,
porém não vemos o seu processo histórico.
É sabido a violência com que os negros foram trazidos para o Brasil. Uma
rápida busca ao poeta Castro Alves e seu poema “O navio negreiro”, e nos
deparamos com a maneira clara com que ele poetizou o momento da violência
dos navios negreiros. Através desta percepção, chegamos perto do que sentiu este
negro que morria de maus tratos, que morria de banzo. No fragmento que será
citado, são apresentadas as correntes da escravidão e a liberdade de outra hora:

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 179


Hoje...o porão, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,


A vontade por poder...
Hoje...cum’lo de maldade,
Nem são livres pra... morrer...
Prende-os a mesma corrente
- Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...

Assim chegavam os negros: ao “som do açoite”, quando anteriormente


tinham a “plena liberdade”. Darcy Ribeiro não deixa de salientar que os negros
do Brasil foram trazidos/capturados da costa ocidental da África. Como falavam
diversos dialetos e já tinham as suas diferenças culturais, era difícil, mesmo
quando já estavam no Brasil, juntarem-se para um objetivo em comum. Muitas
vezes eram estranhos uns aos outros, mesmo vindo de um território comum,
mas não um espaço cultural e linguístico que os uniam e que poderia criar
determinada solidariedade. Todavia, esta população aprende o português e passa
a aportuguesar o Brasil e africanizá-lo. Freyre gosta de afirmar a superioridade
tecnológica dos negros em relação aos índios e até mesmo ao português. Já Darcy
Ribeiro argumenta que o negro possui um papel “europeizante” na formação
do povo brasileiro.
Partindo do ponto da passagem do negro boçal ao ladino, poderíamos
elencar inúmeras características da cultura negra brasileira, dessa nova cultura
que vai se formando, desse contato cultural que passa a ser mais forte e configura
o que somos: um Brasil com uma herança africana, não unicamente um Brasil
negro-africano, de fato negro-brasileiro; porque aqui não se trata de gastar o
negro como se gasta o carvão — mas de formar o negro-brasileiro como se
forma uma nova cultura.

180 RAFAEL LEOPOLDO


De qualquer forma, não vamos enumerar a enorme influência negra na
cultura brasileira, mas salientar dois aspectos do mito do negrismo que seriam:
1) a hipersexualidade do negro; 2) e sua violência constitutiva. É como se essa
compreensão do negro, como se essas características fossem uma ontologia,
como se fossem sua natureza imutável e estanque como uma identidade de
mármore. Contudo, remonto esses dois pontos a uma parte importantíssima
da Casa-grande e senzala, visto que Freyre coloca que não há escravidão sem
depravação, ou seja, o sistema escravocrata seria já, em si mesmo, depravado.
Heleieth Saffioti possui uma consideração oportuna — que lembra as
formulações de Joaquim Nabuco — sobre a questão da hipersexualidade do
homem negro ou da mulher negra, a saber:

Rigorosamente, entretanto, a atribuição de uma sensualidade específica à


mulata constitui instrumento de manipulação usada pelo branco, que situa
esta mulher na posição de satisfazer os seus desejos. Se, todavia, a mulata
tomar consciência da instrumentalização de que é objeto, buscará, sempre,
que lhe for possível, “aproveitar-se” do mito. Ou seja, a instrumentalização
da mulher por parte do homem pode gerar a instrumentalização do homem
por parte da mulher. E isto não é suficiente para mostrar que ninguém é feliz
neste jogo de instrumentalizações? Sempre que um ser humano é usado como
instrumento para a obtenção de uma meta, anula-se sua humanidade. Só
quando o outro é considerado igual pode-se evitar a instrumentalização e,
portanto, o desprazer (Saffioti, 1987, p. 54).

Em outro momento, Saffioti enfatiza de que forma a relação da discriminação


(seja com relação à mulher, ou ainda, outras minorias) é vantajosa para o
capitalismo. No caso de Freyre, é fácil pensar que seria diferente olhar o povo
negro em sua própria terra — longe do sistema da escravidão —, envolto em
sua própria produção cultural. Assim, teríamos outra compreensão dele. Em
outros termos, não é o negro que geraria determinada perversão de que seriam
acusados, mas, sim, o próprio sistema escravista que suscitaria estas relações,
ou ainda, o sistema capitalista com sua necessidade de sujeitos discriminados
para que haja uma mão de obra capaz de trabalhar em situações precárias.
Uma das grandes teses de Joaquim Nabuco n’O abolicionismo, é pensar que
abolindo a escravidão não somente estaríamos humanizando o escravo, mas
também os senhores de escravos. Diante destas relações podemos inferir, por
exemplo, que um determinado sistema econômico também traz em si uma
força de subjetivação.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 181


Para o sistema escravista, que considera as pessoas como coisas, necessitando
sempre de mais “mercadoria” para consumir na produção, é viável que seja
produzida uma maior quantidade de gente, seja como for, para gastá-las ainda
mais no trabalho. Já observamos como Fernandes apontou que a miscigenação
no período colonial não tinha um caráter democrático, antes, servia apenas para
a criação de mais mão de obra escrava. Ora, essa sexualidade, entre a casa-grande
e a senzala, por mais que possuísse este caráter de miscigenação, de mistura de
raças, de culturas; ainda era uma sexualidade entre um proprietário e sua coisa,
entre o senhor e sua escrava, ou para dizermos de forma mais “dengosa”, entre
o sinhozinho e sua negrinha. Quando pensamos na obra de Freyre, essa relação
é sadomasoquista.
O olhar do branco, aliás, o olhar da mulher branca com relação à negra,
muitas vezes, foi o olhar do receio, o olhar do medo, o olhar do ódio, porque a
qualquer momento o senhor da casa-grande poderia ir se deleitar na senzala, a
negrinha poderia “seduzi-lo”. Nabuco faz um instigante comentário a respeito
das senhoras e das mulheres em geral:

Nas mãos de um bom senhor, o escravo pode ter uma vida feliz, como a do
animal bem tratado e predileto; nas mãos de um mau senhor, ou de uma
má senhora (a crueldade das mulheres é muitas vezes mais requintada e
persistente que a dos homens) não há como descrever a vida de um desses
infelizes (Nabuco, 2000, p. 24).

Aquela negrinha/mulatinha já era vista como hipersexualizada na Europa,


com uma sexualidade pecaminosa e muitas vezes patológica, em contraponto à
mulher branca e angelical, insossa e assexuada (figura principal do romantismo).
Outra relação menos comum era o contato da sinhá com o negro,
correspondência que o cantor e compositor Chico Buarque explicitou bem em
sua canção “Sinhá”. Vale a pena escutarmos e, por alguns instantes, meditarmos
na letra:

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça

182 RAFAEL LEOPOLDO


Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem

Para que me pôr no tronco


Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Para que me fazer tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz

Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém

Por que talher meu corpo


Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em ioruba
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz

E assim vai encerrar


O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 183


Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

Mesmo que a letra não condene a hipersexualidade, podemos notar a


violência com que o negro era tratado, mas, também, as relações e miscigenações:
o negro que por suas mandigas acabou enfeitiçando a Sinhá e, por meio desta
relação, gerou o filho sarará que entoou a canção.
Claro que, da violência sistemática do sistema escravista, surgiria uma
contra-violência dos negros, alimentada pela eterna vontade de fuga que brilha
nos olhos. Esses aspectos do período colonial vão reverberar no nosso Estado
policialesco e suas relações com as pessoas de cor, a brutalidade vai ser mais
frequente contra pardos e contra os negros do que contra brancos, por motivos
racistas e classistas. Esta violência que caracteriza o negro historicamente se
trata de uma contra-violência sistemática ao estado de coisa. Nabuco, n’O
abolicionismo, já orientava essa realidade quando escrevia que:

A escravidão é um estado violento de compressão da natureza humana no


qual não pode deixar de haver, de vez em quando, uma forte explosão. Não
temos estatísticas dos crimes agrários, mas pode-se dizer que a escravidão
continuamente expõe o senhor ou os seus agentes, e tenta o escravo, à prática
de crimes de maior ou menor gravidade. Entretanto, o número de escravos
que saem do cativeiro pelo suicídio deve aproximar-se do número dos que se
vingam do destino da sua raça na pessoa, que mais os atormenta, de ordinário,
o feitor. A vida, do berço ao túmulo, literalmente, debaixo do chicote é uma
constante provocação dirigida ao animal humano, e à qual cada um de nós
preferiria, mil vezes, a morte (Nabuco, 2000, p. 8).

Hoje, diante de um racismo institucionalizado, onde o negro e o pardo


têm menos condições de saúde, educação e renda do que o branco, o olhar
policialesco do Estado passa a vê-los como possíveis criminosos. Cria-se o perfil
comportamental e físico, e a qualquer comportamento suspeito a violência é
aplicada, seja ela física ou simbólica. Esse perfil, na sociedade contemporânea,
vai ser alvo de uma intensa cultura tecnocrata e uma política de vigilância 24/7,
24 horas por dia, 7 dias por semana, sem intervalos, pois as câmeras, os drones e

184 RAFAEL LEOPOLDO


a vigilância digital não têm pálpebras; a vigilância digital não pisca, todos estes
meios não produzem espaços intervalares.
É diante dessa imagem nociva que se tem do negro, que convocaremos,
novamente, o livro de Saffioti, O poder do macho. Com ele, já na década de 80 do
século passado, temos uma elaboração intricada entre o patriarcado, o racismo
e o capitalismo. Acessar esta informação no livro de Saffioti é ser levado a fazer
determinadas asseverações a respeito da história do feminismo e da teoria queer
recente, posto que as questões colocadas por esta pensadora dizem respeito à
história do pensamento sobre o feminismo e a questão racial no Brasil e, mais
amplamente, às teorias do Sul Global.

HELEIETH SAFFIOTI E O CAPITALISMO EM SIMBIOSE

No intuito de pensarmos o feminismo negro é vital recorrermos a Heleith


Saffioti. Ela foi uma pensadora pioneira sobre as questões de gênero e suas
correspondências com o patriarcalismo, o racismo e o capitalismo. Saffioti se
formou em sociologia pela USP na década de 60 e neste mesmo período já tinha
como interesse a condição da mulher no Brasil. Este tema se torna objeto de
uma tese de livre docência, sob a orientação de Florestan Fernandes — pensador
que mencionamos tangencialmente a respeito de sua crítica a democracia racial
brasileira —, sendo a tese de Saffioti defendida em 1967 e publicada em formato
de livro apenas na década de 70. O projeto da socióloga, chamado A mulher na
sociedade de classe: mito e realidade, se torna um best-seller, além de um livro
de referência para o estudo das questões de gênero. Segundo o livro Gênero:
uma perspectiva global, de Connel e Pearse, um dos raros trabalhos a tratar dos
avanços do feminismo no Sul Global, Saffioti era bastante representativa no
assunto:

O primeiro grande avanço teórico do novo feminismo surgiu no Brasil.


Em 1969, o trabalho pioneiro de Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade
de classes, foi publicado em São Paulo. O livro apresenta uma teorização
marxista-feminista sofisticada sobre o sexo como forma de estratificação
social e um balanço detalhado e embasado em estatística da divisão sexual do
trabalho, da economia política da família e da educação das mulheres. Realiza
uma abordagem histórica da subordinação das mulheres e da emancipação,
analisa a influência conservadora da Igreja Católica e traz uma discussão

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 185


brilhante sobre economia sexual da sociedade colonial no Brasil. Saffioti
estava comprometida com a política socialista, não com um movimento
autônomo de mulheres (à época, o Brasil era comandado por uma ditadura
militar de extrema direita), então sua visão sobre a estratificação de gênero
sublinha a necessidade do controle social na sociedade capitalista. Ela foi
influenciada pelo marxismo estruturalista de Paris, muito em voga nos anos
1960, mas também utilizou argumentos dos economistas da dependência sul-
americanos como Celso Furtado, preocupados com a desigualdade global e
em como um desenvolvimento econômico autônomo poderia ser realizado
(Connel e Pearse, 2015, pp. 134-135).

A produção de Saffioti é, sem dúvida, fulcral no final da década de 60, e se


estende na década de 70 e 80, onde publica livros como: Emprego doméstico e
capitalismo (1978), O fardo das trabalhadoras rurais (1981), Mulher brasileira:
opressão e exploração (1984) e o livro de divulgação O poder do macho,
publicado no ano de 1987. Na década de 90 contamos com a publicação dos
seguintes trabalhos: Mulher brasileira é assim (1994), Violência de gênero: poder
e impotência (1995). Esta produção percorre um período extenso da história
brasileira, envolvendo tanto a ditadura como o período de uma abertura para a
redemocratização (pensa-se, levando em conta este período histórico, os anos de
1964 até 1985). Agrupamos, no entanto, somente os trabalhos mais significativos
da autora, que é dona de uma produção realmente robusta e prolífera nos seus
desdobramentos e análise da cultura brasileira, além de, em diversos períodos,
traçar um comparativo com outras culturas, com outros países.
Em consonância com esta grande produção ela criou o Núcleo de Estudos
de Gênero, Classe e Etnia, na UFRJ. A criação de núcleos de estudos é sempre
salutar para a produção do conhecimento, para a continuação de trabalhos
acadêmicos e, no caso de Saffioti, de determinada militância; todavia, quando
pensamos em uma cartografia do pensamento queer, nem todo o conhecimento
surge da esfera acadêmica. Em virtude desses fatos, escolhemos — a título de
introdução ao pensamento de Saffioti —, um livro de divulgação da autora (O
poder do macho), pois nesta obra ela tenta não só mudar a linguagem para afetar
um grande público, como, também, empreender o esforço de versar sobre temas
centrais que acreditamos que devam ser reafirmados devido aos seus ecos no
feminismo posterior e, além disso, na teoria queer.
A elaboração teórica de Saffioti a que nos referimos é a ideia de um
capitalismo em simbiose com o patriarcalismo e, também, com o racismo. Sabe-

186 RAFAEL LEOPOLDO


se que o termo “simbiose” vem da biologia e expressa uma interação entre dois
seres vivos, onde cada um possui algum benefício, mesmo que este benefício
seja desigual. Quando pensamos o capitalismo em simbiose, há a constatação de
que não poderíamos entender o social, ou mesmo apresentar nossas lutas, nossas
micropolíticas sem que defrontemo-nos com as relações entre o patriarcado,
o racismo e o capitalismo. Poderíamos dizer que se trata, em última instância,
de um entendimento interseccional60— conceito que ganha determinada
popularidade no feminismo negro, na teoria queer, e poderia encontrar sua
procedência no pensamento de Saffioti —, um entendimento interseccional do
socius, onde não há tão somente uma forma de dominação, mas várias formas.
É diante desta derradeira observação que vamos adentrar no pensamento de
Saffioti, pois este saber envolveria de forma mais complexa qualquer luta por
uma sociedade menos desigual.

CAPITALISMO EM SIMBIOSE:
PATRIARCADO-RACISMO-CAPITALISMO

Com a finalidade de conhecer um pouco mais a fortuna crítica de Saffioti,


analisaremos a relação entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Creio ser
interessante os estudos de Saffioti sobre as mulheres e os homens (estudados em
relação), compreendendo-os como castrados. Por isso, antes de uma primeira
alusão ao patriarcado-racismo-capitalismo, urge regressar a esta relação,
regressar à importância que a autora dá tanto para as mulheres como para os
homens em sua análise. Os homens como castrados, os homens construídos
como aqueles que não choram — vide o ótimo filme Boys don’t cry —, os homens
que devem ser os provedores do lar, os homens que, em último caso, deveriam
ser machos. Por sua vez, as mulheres estão cercadas numa construção social
da inferioridade que envolve, ademais, a construção social da supremacia
masculina. A criação da mulher dócil tem como o outro lado da moeda o homem

60
O conceito de “interseccionalidade” foi utilizado pela primeira vez por Kimberlé Williams Crenshaw,
em uma pesquisa da década de 1990. Trata-se de uma pesquisadora de questões de raça e gênero, assim,
compreendeu como muitas que as minorias estão envoltas a diversos tipos de poder, diversas formas de
dominação, diversas maneiras de discriminação. A interseccionalidade trataria das interseções – Saffioti
chamaria de simbiose – destes poderes, destes diversos fenômenos.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 187


macho e, acrescentaríamos: o homem machista, o homem identificado com
uma masculinidade tóxica.
Ao ponderarmos este macho, estaríamos refletindo, também, sobre o
patriarcado, e no poder que o homem exerce sobre a mulher no âmbito político
— pensamos aqui, sobretudo, a maior participação política dos homens no
espaço público e da mulher no espaço privado ou mesmo no âmbito econômico.
Torna-se óbvio, então, pensarmos que os cargos de chefia também estão em
vantagem numérica masculina, estando as mulheres encerradas no âmbito
privado, ou ainda, refletirmos na informalidade compreendida como a falta
de uma carteira de trabalho assinada e, muitas vezes, o trabalho de forma
autônoma. A informalidade se trata de forma geral de uma posição precarizada
no mercado de trabalho.
O racismo, nosso terceiro elemento, mostra-se indispensável para criar uma
categoria que poderia trabalhar por um menor salário no sistema capitalista.
Para Saffioti é claro que “todas os tipos de discriminação favorecem a maior
exploração por parte dos empregadores” (Saffioti, 1987, p.51). Claro que já
sabemos que dentro destas relações simbióticas entre estruturas de dominação,
na base piramidal do social se encontra o negro; aliás, se encontra a mulher
negra e pauperizada.

OS HOMENS E MULHERES CASTRADAS

Novamente nos aproximamos da questão da feminilidade e da


masculinidade que Saffioti coloca reiterada como uma questão entre o
homem e a mulher. Talvez seja mais viável usarmos os termos feminilidade
e masculinidade, pois, desta forma, seria fácil pensar em uma feminilidade
masculina e uma masculinidade feminina com maior clareza. Para início de
entendimento, Saffioti toma o conceito de homem e mulher em seu debate e,
assim, começa a sua crítica apontando ambos como castrados, ambos limitados
diante de certa possibilidade de ser e de determinados prazeres.
A socióloga assevera que “o preço pago pelo homem para dominar a
mulher extravasa largamente o terreno econômico” (Saffioti, 1987, p.24). Para
se constituir como um macho, tal como na ideologia dominante, este homem
deve aceitar a sua própria castração, mesmo que de forma inconsciente.

188 RAFAEL LEOPOLDO


Necessariamente, temos na análise de Saffioti, uma estrutura castradora, uma
relação familiar produtora da castração, uma composição social castradora. O
homem tem que possuir determinadas características como: provedor do lar,
força, razão, coragem, destemor, etc. A obrigatoriedade de se integrar com estes
elementos torna-se realmente um fardo na constituição deste macho, já que
poderíamos cogitar um homem com uma inclinação feminina que teria que
negar, por exemplo, sua feminilidade. O exemplo da castração do homem, que
Saffioti desenvolve com maior detalhamento é a compreensão que ser o provedor
da família é algo deveras perigoso, já que “numa sociedade competitiva, o êxito
de alguns poucos constroi-se graças ao fracasso de muitos” (Saffioti, 1987, p. 24).
Seria impossível a todos os homens terem sucesso econômico nesta sociedade?
Saffioti se pergunta:

Quantos homens não perderam o desejo de viver em face da impossibilidade


de cumprir o destino que a sociedade lhes reserva? Quantos não se tornaram
alcoólatras ao cabo de um longo período de buscas infrutíferas de emprego?
Quantos não se tornam sexualmente impotentes pela impossibilidade de
desempenhar uma função de macho, segundo reza a cartilha das classes
dominantes? Quantos não se tornam violentos, espancando mulher e filhos,
em virtude do desespero provocado pelo desemprego? (Saffioti, 1987, p. 25)

O exemplo econômico talvez seja o mais dramático, porém, esta constituição


de um macho envolve toda uma negação da feminilidade. Dialogaremos com a
questão da masculinidade abarcando outros elementos no capítulo sobre teoria
queer e masculinidades, mas esta primeira caracterização é adequada para que
compreendamos uma forma padrão da masculinidade. Saffioti, por sua vez, não
deixa de pensar que “a luta das mulheres não diz respeito apenas a elas, mas
também aos homens” (Saffioti, 1987, p. 27).
Não obstante, a autora trata também — e de forma mais contundente — das
mulheres castradas. Quando Saffioti escreve sobre a mulher e sua “inferioridade
social” nos parece que ela monta uma análise da construção de uma mulher
dócil que é a outra metade da construção social da superioridade, da construção
social da supremacia masculina, assim, “mulher frágil é a contraparte de macho
forte” (Saffioti, 1987, p. 29. Itálico nosso). Deste modo, a autora compreende,
sobretudo, uma relação de dominação-exploração. Com este enlace, seguimos
então para a relação entre a supremacia masculina e a sociedade capitalista, para
o capitalismo em simbiose com o patriarcalismo e o racismo.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 189


Antes deste crivo, lembramos que a obra que citamos de Saffioti é da
década de 80 do século passado, quando a autora procurava mostrar que tanto
o patriarcado, o capitalismo e, também, a família, estavam unidas na castração
do prazer. Se havia uma tentativa de mudança, tratava-se da busca de relações
entre iguais, de relações que não envolveriam o domínio, de relações que
não abarcariam a exploração, de relações mais saudáveis. Por outro lado, é
preponderante reconhecer que houve também nos anos 80 e, ainda, no século
21, uma soma de movimentos e políticas arcaístas que procuraram manter esta
estrutura social que Saffioti e tantas outras autoras e autores criticam como uma
política que torna a vida menor, menos potente.
Contudo, não se trata somente de homens brancos heterossexuais europeus
ou norte-americanos que buscam um retorno à família nuclear, à posição do
homem como provedor e, muitas vezes, à posição da mulher como submissa
ao poder masculino. Há grupos de mulheres que também se imiscuem
nesta tentativa de retorno a um sonho social conservador, o regresso a um
patriarcalismo duro. Quando citamos a Ação Integralista Brasileira (AIB) e sua
posição de extrema-direita, não alegamos que neste movimento ultranacionalista
encontravam-se mulheres. Na atualidade, poderíamos citar um apanhado de
mulheres, gays e trans, que assumem uma postura conservadora no berço do
que se costumou chamar de alt-right, do que agora é nomeado como uma direita
alternativa. Evento estranho, posto que os movimentos de direita — e, inclusive,
muitos de esquerda — são desfavoráveis a relações homoafetivas, ou ainda, à
questão da transexualidade e do transfeminismo.
A motivo de exemplo, citamos uma homoerotização do conservadorismo e
uma feminização do fascismo. Mencionaremos duas figuras envoltas no âmbito
político-mediático da atualidade, mas poderíamos fazer todo um traçado
histórico que compõe estas relações. Trata-se do político brasileiro Fernando
Holiday que, apesar de ser negro e gay, se opõe enfaticamente a questões do
movimento negro e do movimento LGBT*. E, também, de Lana Lokteff que é
uma mulher sueca e representa uma clássica feminização do fascismo, que trouxe
à tona diversos arcaísmos e levanta diversos assuntos que estavam adormecidos.
Para usarmos uma imagem do filósofo francês Albert Camus: são questões que
estavam adormecidas como o bacilo da peste (o nazismo).
O vereador da cidade de São Paulo eleito em 2016, Fernando Holiday, é
filiado ao partido DEM (“Democratas”). Como dissemos, Holiday é negro e gay
e, no que lhe toca, é contrário às políticas do movimento negro — propõe o fim

190 RAFAEL LEOPOLDO


das cotas, o fim do dia da consciência negra, o fim da secretaria Municipal de
Promoção da Igualdade Racial, de São Paulo — e as políticas LGBT* — envolve-
se com a ideia de uma “Escola sem Partido”, onde um dos temas é o não estudo
de questões de gênero no Ensino Médio, o que chamam de forma pejorativa
de “ideologia de gênero”. Holiday também é integrante-organizador do MBL61
(Movimento Brasil Livre), criado no ano de 2014 e que convocou os protestos
favoráveis à destituição — o golpe — orquestrado para a ex-presidenta Dilma
Rousseff. Ele também foi um dos grandes catalisadores do discurso conservador/
reacionário de direita no Brasil pós-junho de 2013.
Este espaço do discurso conservador e reacionário ganhou uma formulação
ainda maior com o populismo autoritário e fascista do político Jair Bolsonaro,
candidato a presidência em 2018, pelo PSL (“Partido Social Liberal”) e eleito
presidente numa disputa acirrada. Assim, é necessário relembrar, mais uma
vez, que foi exatamente contra o fascismo de Bolsonaro que houve uma grande
marcha das mulheres contra bolsonaro — no dia 29 de setembro de 18, ou seja,
poucas semanas antes de sua vitória para o maior cargo de governo do país no
mês de outubro — com o mote e a hashtag #Elenão, #Élno, #Nothim, #Paslui,
etc. Trata-se, sobretudo, de tecer afetos políticos para efetivar a vida que sempre
tentam minorizar, ou ainda, eliminar como no caso das declarações62 de diversos
bolsonaristas e do próprio Bolsonaro. Trata-se, ademais, de uma micropolítica-
feminina que perpassa tanto o mundo on-line como as relações face a face, tanto
o espaço virtual quanto a corporalidade.

61
O MBL, Movimento Brasil Livre, foi um dos principais articuladores das manifestações contra o PT, Partido
dos Trabalhadores, e ao impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff. Após as jornadas de junho de 2013
eles levantam a bandeira de uma luta contra a “corrupção” e apregoam ideias “liberais” e “conservadoras” se
alinhando a uma política de “direita”. As aspas em “liberais”, “conservadores” e “direita” se dá, sobretudo, porque
este movimento tem uma flexibilidade moral espantosa indo aos lugares que lhes convém politicamente. Outro
aspecto que não deve ser esquecido é que eles souberam usar das “guerras culturais”, transformando-as em
um catalizador para a junção do conservadorismo. Trata-se como já colocado antes de se afirmar por meio de
uma posição reativa como, por exemplo, ser um movimento antinegro, antifeminista etc. Com esta posição se
soma um discurso policialesco, sensacionalista e a produção massiva de Fake News. Poderíamos dizer que o
MBL é uma fábrica do que Márcia Tiburi e Rubens Casara diagnosticam como “imbecelizadores profissionais”.
62
Declarações que, por sua vez, teve um efeito no real, posto que após o discurso do Bolsonaro ganhar
visibilidade houve uma banalização do mal extremada.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 191


Não obstante, quando pensamos em Lana Lokteff encontramos, de fato, uma
determinada feminização do fascismo, compondo o corpo do conservadorismo,
da direita conhecida como alt-right. Trata-se, como supracitado, de uma tentativa
do retorno à família nuclear, de uma tentativa de propagar o nacionalismo, de
inculcar a volta de papeis duros de gênero. Trata-se, sistematicamente, de um
retorno a vários ideais de beleza. Trata-se, além de tudo, do esforço ativo de
acabar com o que se chama de “genocídio branco” e criar um Estado étnico.
Se na década de 80, Saffioti e tantas outras feministas criticavam a estrutura
patriarcal, Lokteff parece dizer: “faça o patriarcado grande novamente”. Lokteff
acaba evocando as piores interpretações de Nietzsche, flertando sempre com o
antissemitismo. Ela se mantém atuante nestes princípios degenerados usando
uma variedade de redes sociais e um programa de rádio on-line, onde entrevista
diversas pessoas com alinhamentos políticos que coadunam com sua postura e
uma textura mais forte a sua própria bolha.

Lana Lokteff conhecida por ser propagadora Vereador de São Paulo, Fernando Holiday
de ideologias nacionalistas, crítica da diversi- que é, também, líder do MBL (Movimento
dade como apagadora da raça branca, e com- Brasil Livre). Holiday tem um papel político
põe a alt-right. no que conserne um novo conservadorismo.

192 RAFAEL LEOPOLDO


Diante destes exemplos, reiteramos dois pontos. O primeiro é que a cada
avanço parece, também, haver árduas forças contrárias, e o reconhecimento
implacável de que a menor conquista não fica segura sem luta. O segundo ponto
é que uma determinada identidade que é minorizada não é necessariamente
uma força política trans-histórica. Mesmo uma identidade historicamente
oprimida pode, em dado instante, assumir uma postura de extrema-direita, uma
postura alt-right, ainda que essa postura pareça contraditória a uma particular
compreensão da história. Assim, compreendemos que “muitas mulheres [e
homens] que se sentem naturalmente parte do patriarcado ajudam a confirmar
a ordem vigente e a tendência dominante machista, porque aproveitam alguma
coisa do sistema de privilégios” (Tiburi, 2018, p.108).
Em contrapartida, acreditamos também que estas escolham expressam
radicalmente a liberdade humana, posto que: “não é porque nasci proletário que
me tornarei necessariamente um vermelho, um revolucionário: posso também
militar em um partido fascista, ser liberal ou social-democrata. Posso escolher.”
(Ferry, 2018, p. 53). Perante esta conclusão, retornamos a análise de Saffioti,
mas, agora, cônscios e com o aviso prévio de que qualquer avanço pode sofrer
retrocessos se não for constantemente imerso em cautela e luta.

PATRIARCADO-RACISMO-CAPITALISMO

Tencionando pautar o poder do patriarcado salientamos o poder masculino


no âmbito político e no âmbito econômico. No primeiro, encontramos a
pungência que os homens têm na esfera pública e as mulheres na esfera privada;
no segundo, a maior participação dos homens em cargos mais altos que as
mulheres. Estes elementos, por sua vez, provarão seus ecos tanto numa estrutura
racista como, ademais, no próprio funcionamento do capitalismo. Extraimos,
de certa forma, uma simbiose entre estes elementos.
Já no início do esboço de Saffioti, ela aponta que o homem estabeleceu seu
domínio sobre as mulheres há milênios. Porém, sua análise não é antropológica,
mas parte para as sociedades contemporâneas afirmando que:

A participação política da mulher pode ser considerada ínfima [na sociedade


contemporânea]. Além de Lídia Gueiler, que ocupou a presidência da Bolívia
em 1979, em circunstâncias excepcionais, apenas duas outras mulheres

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 193


chegaram à presidência da república: Isabelita Perón, na Argentina, e Corazón
Aquino, nas Filipinas. A primeira, por ter sido eleita vice-presidente em uma
chapa integrada por seu marido, após a morte deste. A segunda foi eleita muito
mais em razão do que representou seu marido, assassinado pela ditadura
de Ferdinand Marcos, do que pelo trabalho de oposição política ao regime
totalitário, que realizou após haver enviuvado. Assim, estas duas mulheres,
que chegaram ao mais alto posto político de uma república, fizeram-no com
o auxílio do prestígio desfrutado pelo nome de seus companheiros (...) a
grande participação política das brasileiras tem-se dado nos movimentos
sociais: associações de mães, movimento contra a carestia, luta por creches,
movimento feminino pela anistia etc. Convém lembrar que o espaço de lutas
destes movimentos não é o da política institucional. Isto é, estes movimentos
ocorrem fora do espaço parlamentar, fora do espaço dos partidos políticos.
Trata-se de lutas travadas em torno de certas reivindicações que seus
militantes esperam ver atendidas pelo poder municipal, estadual ou federal;
ou ainda um empresário privado. Faz parte da natureza deste movimento a
fluidez, isto é, o baixo grau de estruturação (Saffioti, 1987, p. 47).

Desde a publicação da obra de Saffioti no final da década de 1980, houve


outras presidentas mulheres na América Latina — Rosália Arteaga, no Equador,
Cristina Kirchner, na Argentina, Dilma Rousseff, no Brasil —, apesar disso,
ainda estamos, frente ao estudo de Saffioti, neste entendimento de que o poder
masculino, em sua maioria, envolve o poder público, o ambiente político;
enquanto o feminino envolve o âmbito privado, o ambiente doméstico, ou ainda,
se se está na esfera pública e não se encontra tão articulado, os movimentos se
tornam fáceis de serem cooptados por determinadas forças políticas.
Por efeito disto, parece que o intuito é uma substituição do poder masculino
por um poder feminino; não uma mudança de um polo para o outro, mas,
sobretudo, uma mudança de relação entre os homens e as mulheres, uma
mudança para que a correspondência não seja de exploração-dominação.
Advertimos que na base da pirâmide social, no chão desta pirâmide, estaria a
mulher negra, pois ela é “duplamente discriminada: enquanto mulher e enquanto
negra” (Saffioti, 1987, p. 52). Cabe-nos fazer alguns apontamentos sobre este
aspecto, tendo em vista o desenvolvimento da reflexão de Saffioti.
Quando pensamos a discriminação racial, é impossível não conectar a carne
negra como “a carne mais barata do mercado”, como cantou Elza Soares. Porém,
na sociedade brasileira não encontramos somente tal preconceito. Nossa autora
já nos agrega algo que é pertinente:

194 RAFAEL LEOPOLDO


Na sociedade brasileira não são apenas os negros e mulatos que sofrem
discriminações. Estas existem contra índios, contra asiáticos e, até mesmo,
às vezes, contra europeus. Cabe, entretanto, ressaltar os preconceitos contra
negros e mulatos, já que, somados, eles perfazem cerca de 45% da população
nacional. Na “ordem das bicadas” neste país, a mulher ocupa a última posição.
Ela é duplamente discriminada: enquanto mulher e enquanto negra. De
acordo com o modelo oficial, cabem-lhe, fundamentalmente, dois papéis: o
de empregada doméstica e o de objeto sexual. (...). Qualquer que seja o tipo
de discriminação que pese contra uma categoria social, serve para introduzir
o fenômeno da diferenciação dentre os candidatos a empregos. Assim, a mão
de obra em seu conjunto não é uniforme, é heterogênea. Esta heterogeneidade
não diz respeito apenas ao grau de qualificação profissional das pessoas aptas
para o trabalho. Estabelecem-se outras diferenças – como as de sexo e de
raça – sobre as quais seus portadores não têm controle. Assim, é fácil pagar
salários menores a um negro e a uma mulher. Mais fácil ainda será pagar
salário ínfimos a uma mulher negra. Mal remunerada, esta mulher passará
de duplamente discriminada para triplamente discriminada: mulher, negra
e miserável. (Saffioti, 1987, pp. 52-55).

Neste momento entendemos a variedade de discriminações e como ela


funcionaria no capitalismo, no mercado de trabalho. Por sua vez, no que diz
respeito à mulher negra, o que era uma dupla discriminação — mulher e negra —
se torna ainda uma tripla discriminação — mulher, negra e pobre —, reduzindo-a
cabalmente ao chão da pirâmide social. Ora, deste entrançamento, já podemos
observar a simbiose entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo, mesmo
que não seja de uma forma tão sistematizada como Saffioti produz nas suas
argumentações, ainda que estejamos nas fronteiras de seu pensamento.
Para Saffioti, a simbiose do patriarcado, do racismo e do capitalismo
não é uma interseção harmônica, não é uma relação pacífica; é, sobretudo,
contraditória. O patriarcado, bem como o racismo, permitiria uma maximização
dos lucros capitalistas, mesmo que mantendo o limite do consumo dos
trabalhadores bastante limitado. Saffioti, portanto, questiona: quem são os
beneficiados desta simbiose? Sua resposta é intrigante: ainda que aparentemente
os homens fossem vitoriosos devido a determinado poder histórico sobre a
mulher, segundo ela, todos sairiam perdendo desta relação, pois os homens são
castrados, as mulheres são castradas e os filhos e filhas desta relação também o
são. Desta maneira, “a castração do prazer — fenômeno que afeta a mulher, o
homem e seus filhos — constitui um instrumento de fundamental importância
na domesticação da mão-de-obra” (Saffioti, 1987, p. 63).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 195


LÉLIA GONZÁLEZ E A QUESTÃO DO RACISMO-SEXISMO

Lélia Gonzalez nasceu em Minas Gerais, Belo Horizonte, em 1935. Ela vem
de uma família de classe baixa, o pai Acácio Almeida era ferroviário e sua mãe
Urcinda Serafim de Almeida, de origem indígena, era doméstica. Lélia Gonzalez
formou tanto em história como em geografia, em 1958. No início da década
de 60, também concluiu a graduação em filosofia, revelando um interesse pela
antropologia na pós-graduação. No mesmo período, Lélia produz em sua casa
debates em torno do cinema de Bergman, Fellini, Buñuel, etc. No campo da
filosofia, a temática principal de sua filiação teórica era a corrente de pensamento
existencialista, à luz de obras existencialistas de Sartre e feministas de Beauvoir.
O que fez Lélia Gonzalez despertar para a questão racial — além de uma
curiosidade intelectual dos estudos em grupo — foi sua relação com o noivo,
Luiz Carlos Gonzalez. A família de Luiz Gonzalez não aceitou o casamento,
devido a Lélia ser negra. A psicanálise é que faz Lélia Gonzalez se voltar
para questões pessoais, assim como para toda uma esfera que retoma uma
ancestralidade, que retoma a cultura negra, que reata a negritude não de maneira
a procurar embranquecer a sua própria pele — como no âmbito universitário
que é majoritariamente branco e embranquecedor —, mas, sim, afirmá-la. A
psicanálise é um saber importante para Gonzalez no nível pessoal e como um
arrimo para o desenvolvimento do seu pensamento.
A militância da autora envolveu tanto o seu trabalho como professora
universitária como sua forte participação nos movimentos negros e, até mesmo,
uma tentativa de adentrar no mundo político como deputada federal, em 1982,
pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Encontramos, além disso, uma produção
teórica interessante que evoca com frequência alguns autores franceses, a cultura
brasileira, a sua posição social desde o ambiente de classe baixa até a esfera
universitária, desde a militância acadêmica aos movimentos sociais, ou ainda,
a militância diretamente partidária — todos estes elementos são, em parte,
o contexto e o texto de Lélia Gonzalez. Para nos aproximarmos deste limiar,
apresentaremos o que essa autora desenvolveu sobre a questão do racismo e do
sexismo na cultura brasileira.
Sendo assim, vamos entrelaçando filosofia, feminismo, movimento negro e
militância. Todavia, antes de darmos este passo, convém sabermos o motivo do
esquecimento do tema racial pelo feminismo mainstream. Depois deste dado

196 RAFAEL LEOPOLDO


voltamos ao racismo e ao sexismo, tendo em vista o tema já trabalhado do mito
da questão racial. Agora temos a elaboração de Gonzalez e uma reflexão sobre
como este mito tem o seu rito no carnaval e reverbera na tríade: 1) mulata; 2)
doméstica; 3) mãe preta. Compreendemos alguns aspectos da mulher negra,
seja ela como a mulata sensualizada, seja como a doméstica, ou ainda, a mulher
negra como função materna na cultura brasileira. É óbvio ululante que a nossa
neurose, a neurose cultural brasileira se trata de recalcar o saber racial. O que
não contávamos era que o recalcado retornasse como sintoma.

O ESQUECIMENTO DA QUESTÃO RACIAL NO FEMINISMO

Neste momento, evocamos um texto de Lélia Gonzalez denominado


Racismo e sexismo na cultura brasileira, um trabalho de 1980. O próprio título
já evidencia o vínculo entre um tema do movimento negro — o racismo — e um
tema do feminismo — o sexismo — e é exatamente o feminismo negro que vai
aprofundar esta análise. A escolha de Gonzalez que norteia nossa reflexão se dá
pela sua assídua menção à cultura brasileira, tanto no seu período de formação
quanto na década de 80 e reiterar que houve um esquecimento do problema do
racismo pelo feminismo branco. Esquecimento que é compreendido pela autora
por duas vias: 1) primeiro, haveria um racismo por omissão; 2) e, segundo,
uma visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista. Estes dois pontos são
trabalhados por meio de uma leitura criativa da psicanálise lacaniana.
Considerando o primeiro ponto, para uma análise do racismo por omissão,
Gonzalez retoma o saber psicanalítico lacaniano, a fim de dizer que o negro foi
tratado como o infante, como aquele que não é dono do seu próprio discurso.
Ao ser falada pelo discurso do adulto, a criança é excluída e ignorada apesar de
sua presença. Da mesma forma que a criança é falada e não tem o seu próprio
discurso, Gonzalez compreende que as mulheres e o não branco, estariam nesta
condição, na condição de não ser sujeito de sua própria história. Nesta ocasião,
Gonzalez aprofunda um debate que ficou conhecido com a rubrica de “lugar
de fala” ou “lugar de dor”.
A respeito do segundo ponto, de uma visão de mundo eurocêntrica
e neocolonial, Gonzalez também regressa à vulgata lacaniana e se defronta
com o conceito de sujeito de um suposto saber, fazendo suas devidas torções
no conhecimento psicanalítico. Este sujeito de um suposto saber se refere

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 197


às identificações imaginárias com algumas figuras, como o pai, o professor,
o padre, o psicanalista, o especialista, etc., neste sentido, para Gonzalez, o
colonizado atribuiria um suposto saber ao colonizador. Este dado produz
um branqueamento, um apagamento, ou ainda, uma abstração de aspectos
vitais do caráter nacional da América Latina. Um destes aspectos é o caráter
multirracial e pluricultural da nossa cultura. Desta maneira, com o texto de
Gonzalez endossamos a questão racial atrelada ao sexismo e à cultura brasileira,
salientando o que ela classificou como uma neurose cultural brasileira.

Temos aqui a pintura A redenção de Can, de M. Brocos. Lilia Moritz Schwarcz tece um
interessante comentário sobre esta pintura. Afirma que nela vemos a representação do processo
de branqueamento apregoado pelo governo brasileiro. Nesta tela encontramos à esquerda o que
parece uma avó negra; a direita um pai branco que aparenta ser um português; e, no meio, uma
mãe mulata segurando um bebê branco, de cabelo liso. Lélia Gonzalez traz à tona este apagamento
do negro na cultura brasileira e, igualmente, na própria formação do feminismo. Gonzalez propõe
um feminismo afrolatinoamericano. Trata-se de uma nova aliança, de uma nova irmandade onde
seria levado a sério elementos constitutivos da nossa própria cultura, as mulheres são irmãs, as
negras e os negros são irmãos, os povos indígenas são novas alianças.

198 RAFAEL LEOPOLDO


A NEUROSE CULTURAL BRASILEIRA

No primeiro momento da análise de Gonzalez, é apresentada uma reflexão


sobre o carnaval. A festa da carne é pensada como o rito que atualiza o mito
da democracia racial. Desta festa, Gonzalez chega a elucubrar a posição da
mulher negra, que ganhará, porventura, duas características, uma como a
mulher desejada no ambiente carnavalesco e a outra afogada no cotidiano da
empregada doméstica. Neste rito da democracia racial, a mulher negra surge
como a mulata, como a cinderela do asfalto. Todavia, esta mesma mulher passa
a ser compreendida de outra forma quando pensamos o seu cotidiano, trata-se
do dia-a-dia da empregada doméstica.
Esta relação com a mulher negra — da cinderela do asfalto à empregada
doméstica — se originaria de nosso passado escravocrata e a relação do senhor
com a mucama. A mucama era a escrava negra, a mulher que fazia determinados
serviços caseiros e, por vezes, era também a ama-de-leite. Saffioti não deixa
de salientar que, na função da escrava no sistema produtivo, também havia a
prestação de serviços sexuais. Assim, na mucama encontramos tanto a mulher
desejada quanto a empregada doméstica. Agora, convém perguntar sobre a
última figura da análise da intelectual mineira: como se configura a mãe preta
nesta análise?
A mãe preta, segundo a pesquisa de Gonzalez, não representaria um
exemplo extraordinário de amor, como nos apontamentos dos brancos,
tampouco seria a traidora da raça, como opinam alguns negros. Ela seria
simplesmente a mãe; basta lembrarmos que não é a mulher branca que cuida,
não é a mulher branca que amamenta, não é a mulher branca que põe a criança
para dormir, não é a mulher branca que ensina a falar ou conta as histórias
para a criança. Logo, identificamos que a mucama tem a função dos trabalhos
serviçais e sexuais; e a mãe preta, por sua vez, é retida na função materna. É
explícito, conforme essas relações, que a mulher branca se configura como a
esposa legítima, porém, não tem necessariamente a função sexual nem a função
de mãe: torna-se a mulher que concebe o filho. Diante da mãe preta, da função
materna, compreendemos de onde vêm as nossas histórias, como foram passados
e internalizados determinados valores. Desta forma se fecha a tríade: a mulata
sensual, a doméstica em seu cotidiano e a mãe preta apagada.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 199


Ora, especificamos a esposa legítima, a amante, a mãe preta, porém, nada
foi dito sobre a figura do pai. Para Gonzalez, o escravo se torna Mestre-escravo,
já que na própria caracterização do Brasil, ou melhor, da brasilidade, o que
vem à tona são características de uma mescla cultural com a África — e, claro,
muito digno de nota, uma mescla cultural com a cultura indígena. Surgem a
alegria, as festas, as comidas típicas como a feijoada, o futebol63, dentre outros.
Acerca disso, a autora indaga: qual seria o papel do senhor nesta situação? Para
Gonzalez, ele só se apresentaria como o tio ou o corno.
Para subvertermos ainda mais esta pergunta e relacioná-la à teoria queer
poderíamos incluir: qual seria o papel da teoria queer quando se elabora como
uma teoria tão somente vinda do Norte Global? É claro que mesmo quando
pensarmos o queer nos trópicos, o que é mais peculiar da cultura brasileira —
e poderíamos estender a questão para a América Latina —, recairá sobre uma
matriz europeia extenuada, mas, especialmente, da matriz indígena e africana. É
neste momento que o “queer” nem mesmo será esta estranha palavra de origem
inglesa, mas qualquer outra devorada — antropofagia — ou possuída — como
num ritual. E se estamos diante de uma cartografia do pensamento queer, se
estamos diante de uma zoografia da reflexão transviada, esperamos que uma
multiplicidade percorra cada palavra grafada no papel.

63
O futebol é um espaço interessante para a análise do racismo, da homofobia, ou ainda, do culturalismo
racista brasileiro. Trata-se de compreendermos o seu surgimento racista e machista no Brasil, depois, a sua
relação com os negros e os pardos e, além disso, uma elitização da história do futebol. O futebol pode ser
visto tanto como uma heterotopía em algum momento quanto um inferno racial e homofóbico com seus
torcedores gritando injúrias com os pulmões cheios de ar e ódio (para uma pequena análise do racismo, da
homofobia no futebol ver, por exemplo, Leopoldo 2017b).

200 RAFAEL LEOPOLDO


A TEORIA QUEER E O TRANSFEMINISMO
TRANSFEMINISMO

Neste capítulo, convidamos à uma aproximação do fenômeno trans*,


do feminismo transgênero, ou ainda, do que se chama mais comumente de
transfeminismo. Defrontamo-nos, novamente, com aspectos históricos e
conceituais neste tópico. Abrimos o leque para averiguar as possibilidades
de surgimento do transfeminismo e da elaboração de novos conceitos
operacionais como, por exemplo, cis, cisgênero, cisnormatividade, ou ainda,
uma trans-epistemologia (produzida principalmente pela pesquisadora Sara
York). Conceitos que este saber militante vem sofisticando e em posse destas
ferramentas modificando a reflexão acerca do feminismo (ver Lamas, 2009;
Bagagli, 2013; Serano, 2013). Sobre tais modificações no feminismo, optamos
por nos embrenhar por elas de forma tangencial nos próximos capítulos
dedicados ao giro performativo e ao giro tecnológico, à pensadora Judith Butler
e ao pensador Paul Beatriz Preciado.
Neste prelúdio sobre as pessoas trans* o principal intuito é compreendermos
que o transfeminismo é um fenômeno contemporâneo. Seguindo tal objetivo,
nosso primeiro ponto aproximativo se dá em solo norte-americano. Trata-se,
então, de pensarmos na primeira cirurgia de mudança de sexo que ganhou
uma relativa atenção midiática. Esta redesignação de sexo aconteceu com o ex-
soldado norte-americano chamado George Jorgensen. Este caso é paradigmático
para pensarmos à transexualidade, exatamente devido a sua cobertura midiática
que transborda em temas para o grande público a respeito do mote trans*.
Depois da redesignação de sexo de George Jorgensen, na década de 50,
temos que ponderar sobre as micropolíticas da década de 60 e, além disso, toda
uma onda conservadora nas duas décadas posteriores. No início dos anos 80
estamos em presença do HIV/Aids como um impasse praticamente global. No
Brasil houve toda uma retomada de arcaísmos conservadores relativos ao HIV/

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 201


Aids, e, sem nenhuma surpresa, a população fora da heteronormatividade e da
cisnormatividade foi tratada com violência física ou simbólica.
A violência policial diante dos homossexuais, travestis, transexuais, é que
cria a necessidade dos sujeitos trans* se agruparem para sobreviverem e, assim,
criar determinadas comunidades, formas de ativismos, ou ainda, a chance para
que o conheçamos como transfeminismo. Na década de 90 já encontramos
grupos consolidados para pensar a questão trans*, mesmo que em espaços
limitados.
Não obstante, é necessário ainda discorrermos sobre todo o rechaço ao
trans*. Para refletirmos sobre esta exclusão, este sistema de invisibilidade, é mister
retomar tanto aos principais textos acadêmicos — Janice Raymond e Sheilla
Jeffreys — quanto a opinião do senso comum a respeito da transexualidade.
Uma grave falta de compreensão sobre o assunto talvez seja o que coaduna
com a grande violência que a comunidade trans* é tratada. Em razão disso,
não é descomedido afirmar, sem medo, que há um verdadeiro genocídio trans*
tomando forma em nosso cotidiano: um genocídio subnotificado.

TRANS* UM FENÔMENO CONTEMPORÂNEO

Assim que se pensa o fenômeno trans64 é necessário vinculá-lo muito


próximo ao nascimento da teoria queer. Se há algo que podemos dizer sobre
esta configuração sexopolítica é que se trata de um fenômeno recente, pois ele é
atual tanto na história do feminismo quanto na construção científica moderna
— endocrinologia e a cirurgia plástica reconstrutiva — e a indústria cultural.
Portanto, poderíamos datá-lo numa década anterior as micropolíticas dos anos
60, pois é no pós-Segunda Guerra Mundial, no início da década de 50, que
encontramos uma verdadeira popularização da transexualidade com a figura
de Christine Jorgensen.

64
Uma outra linha de pensamento poderia surgir da radicalização de um pequeno comentário de Joanne
Meyerowitz no seu livro How sex change: a history of transexuality in the United of States, onde a autora afirma
que em 1910 cientistas europeus começam a publicizar as suas tentativas de mudança de sexo em animais.
Daqui poderíamos compreender outro início do fenômeno trans, um início relacionado ao não humano,
ao animal queer.

202 RAFAEL LEOPOLDO


Capa do jornal New York Daily News, de 1952. A primeira cirurgia de redesignação de sexo
que tomou conta da imprensa foi a de Christine Jorgensen. Porém, a história de Jorgensen não
se tratou apenas de um determinado sensacionalismo, mas, também, de uma abertura de um
grande debate sobre a mudança de sexo.

Posto isso, o caso mais popular de uma pessoa trans65 — uma pessoa cuja
identidade de gênero não se identifica com o sexo designado no nascimento num
sistema cisnormativo — é datado de 1954. Trata-se do já referido ex-soldado
norte-americano, George Jorgensen que, então, fez uma cirurgia de redesignação
de sexo, na Dinamarca, chefiada pelo endocrinologista Christian Hamburger.
Após a mudança de sexo, George Jorgensen, em homenagem a seu médico,
passa a se chamar Christine Jorgensen. O caso de Christine Jorgensen amplia

65
Neste momento seria ainda necessário um comentário sobre a noção de trans
envolvendo a transexualidade, o transgenderismo e o travestismo. De forma breve
salientamos que: 1) na transexualidade haveria uma mudança cirúrgica; 2) no
transgederismo haveria a adoção de marcas sociais do sexo oposto; 3) e na travesti haveria
uma relação com a vivência do papel de gênero feminino, por vezes, preferem não se
qualificar como homem ou mulher, porém, preferem o tratamento nominal no feminino.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 203


diversas questões para vários campos das ciências e das humanidades e, além
disso, não deixa de perpassar o imaginário do senso comum.
A redesignação de sexo está, além do saber médico, relacionada a outros
saberes, por exemplo, a psicanálise e a sexologia66 que, por sua vez, está numa área
conexa com a psicologia, a psiquiatria e a medicina. Destas conexões podemos
compreender o porquê de a transexualidade estar muitas vezes atrelada a uma
noção de desvio, de doença mental e de uma estrutura patologizadora.
Acerca da patologia, convém lembrar que a homossexualidade só foi retirada
da lista de doenças na década de 90, pela OMS, Organização Mundial da Saúde.
E ainda encontramos, infelizmente, psicólogos e psicólogas — contrariando o
Conselho Federal de Psicologia67 — e psicanalistas — dotados de uma leitura
restrita de sua própria disciplina —, propondo algo como uma “cura gay” e,
no caso da transexualidade, uma cura para a “disforia de gênero”. Assim, os
saberes psi, às vezes, tornam-se uma verdadeira polícia de gênero dentro de uma
lógica cisnormativa e ao invés de se atentarem ao sofrimento das pessoas trans
e à dor que a cisnormatividade pode gerar, obstruem uma normatização do
fenômeno trans com opiniões retrógradas. Desta forma, no sentido de haver uma
patologização, a transexualidade chega muito perto da homossexualidade. Estas
duas lutas se entrelaçam em diversos campos que tendem a afrontar estruturas
que visam normatizar determinadas performances de gênero não hegemônicas.
Do mesmo modo, o fenômeno trans — com suas características modernas —
surge de forma inevitável num embate social — contra estruturas que julgam
a questão do sexo como demasiadamente fixo — e ainda permanece nele seja
no âmbito religioso, político, jurídico ou médico.
Em um outro capítulo procuraremos compreender a questão trans,
através, também, de um giro performativo e um giro tecnológico na história do
pensamento queer. Refletindo sobre estes pontos de virada no seio da teoria queer

66
Da psicanálise freudiana o conceito que tem um valor interessante para a compreensão da sexualidade é
o de bissexualidade inata. Um homem tem tanto características femininas quanto masculinas e uma mulher
tem tanto características masculinas quanto femininas. Os médicos – no caso da transexualidade – usariam
determinados hormônios e a cirurgia para mudar a morfologia de uma pessoa deixando coeso o sexo biológico
e o seu gênero.
67
Na resolução CFP N. 001/99 de 22 de março de 1999, encontramos a seguinte posição: “os psicólogos não
colaboração com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. E na resolução
de 29 de janeiro de 2018 encontramos referência a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. E no seu
artigo terceiro encontramos que “as psicólogas e psicólogos, em sua prática profissional, não serão coniventes e
nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis”. Duas resoluções importantes que
exigem para serem efetivas uma modificação no currículo formativo dos psicólogos e psicólogas.

204 RAFAEL LEOPOLDO


e do fenômeno trans fica fácil deduzir que não há uma sexualidade “autêntica”
contra uma “inautêntica”. Não há um homem ou uma mulher com características
inatas contra homens e mulheres trans que usurpariam o verdadeiro espaço da
masculinidade ou da feminilidade. Estes dados são basilares para o embate social
que nos predispomos a gerar, pois o objetivo é compor espaços — de pessoas
cis e trans — menos segregativos.

A QUESTÃO TRANS* E A RELAÇÃO POLICIAL-HIV/AIDS

A partir dos meandros assinalados até agora, cabe-nos retomar alguns


conhecimentos para que esta cartografia do pensamento queer se torne ainda
mais clara. Em retrospecto, primeiro se trata de pensar que na década de
60 houve o surgimento de diversas políticas moleculares, múltiplos grupos
combativos e todo um sonho de uma transformação social. Porém, na década de
70 e 80 encontramos um retrocesso destas demandas idealizadas, ao passo que
nos anos 80 estamos diante da questão do HIV/Aids e a reelaboração de vários
arcaísmos. Encontramos, assim, a constante estigmatização dos “quatro agás”,
já apropriadamente explicitados nesta pesquisa (a relembrar: homossexuais,
haitianos, hemofílicos e usuários de heroína). Não obstante, é neste período
que surgem diversas respostas para estes arcaísmos, a teoria queer encabeçando
a lista.
Diante do HIV/Aids houve duas posições muito violentas — que em certa
medida se equiparavam — que é a dos religiosos e a da polícia, dos representantes
de Deus na terra e dos representantes do Estado nos lugares empobrecidos. Os
religiosos interpretavam a epidemia da AIDS como um castigo às pessoas que
não se incluíam em uma heteronormatividade ou cisnormatividade. Por outro
lado, a violência policial com toda a sua homofobia e transfobia produzia a
mesma limpeza social dos corpos ditos como abjetos, dos corpos compreendidos
como uma sujeira social que a religião pregava. Desta maneira, encontramos
um duplo dispositivo de apagamento, ou seja, um aparelho de limpeza religioso-
policialesco.
Contudo, vale lembrar que a decisão de retormarmos a década de 80,
juntamente com os horrores do HIV/Aids, tem por finalidade agregarmos
referências a respeito da década de 90 e a formação das políticas trans*. Sayonara
Naider Bonfim Nogueira, em seu dossiê, A carne mais barata do mercado (2018),

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 205


afirma que a AIDS foi um catalisador da organização política das travestis no
Brasil. Entender a AIDS como um catalisador68 das políticas trans* é, também,
pensar que houve uma abundância de agressões que levaram às pessoas trans*
a se juntarem para sobreviverem a esta situação. Esta auto-organização, então,
emerge de uma resposta à violência policial nos locais de prostituição. Tem-
se uma dupla aliança para a tentativa de sobrevivência: 1) aliança com os
movimentos homossexuais; 2) e a aliança com os movimentos de luta contra
o HIV/Aids.
Podemos compreender que a AIDS e a violência policial afetaram
diretamente ou indiretamente muitos corpos. Desta relação observamos, por
exemplo, a ativista Brenda Lee e a primeira casa de apoio para pessoas com
HIV/Aids e às vítimas da violência policial, isso ainda no início da década de
80, em São Paulo. Posteriormente, ressaltamos a primeira organização política
latino-americana de travestis, já no início da década de 90, no Rio de Janeiro.
Voltamo-nos, então, para estes dois elementos que fortificam uma união trans*.
Brenda Lee — conhecida como anjo da guarda das travestis — foi uma
ativista em relação ao HIV/Aids e uma militante transexual dos direitos LGBT*.
Nela encontramos ambas as violências que uma grande parcela da população
sofria. Sayonara Nogueira (2018), elaborando uma “História do movimento
trans no Brasil” comprova a importância desta ativista na história do movimento.
Com ela temos a criação da primeira casa de apoio de pessoas com HIV/Aids,
no Brasil, na cidade de São Paulo. Esta casa teve início em 1984 e em 1988 era
oficialmente a Casa de Apoio Brenda Lee. Acolhia-se, especialmente, pessoas
soropositivas e vítimas de violências. Brenda Lee deu possibilidades de vida para
os rechaçados e, mesmo assim, foi brutalmente assassinada. Ela foi executada
a tiros no dia 28 de maio de 1996 e, depois, seu corpo foi encontrado em um
terreno baldio. Nas estatísticas a respeito da morte de travestis e transexuais é
usual constatar uma brutalidade exagerada na prática dos crimes, o assassinato
não só por um tiro, mas por vários; facadas também são comuns, assim como
os inúmeros espancamentos.

68
Compreender esta relação nos dá elementos para pensar o surgimento da junção do fenômeno trans – uma
questão pessoal – com um aspecto político – uma questão coletiva –, assim, criando mais dados para o
entendimento de um ativismo trans, para o transfeminismo.

206 RAFAEL LEOPOLDO


A Associação Nacional de Travestis e Transexuais produblicou em 2018 um “Mapa dos
assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017”. Uma produção como esta é necessária
e louvável, posto que até o momento o Estado não produz dados “oficiais” a respeito da população
trans*. Neste estudo entendemos a violência que é exercida na população trans*. De acordo
com este mapa uma pessoa trans é assassinada a cada 48h e no gráfico acima vemos que estes
assissinados são sempre de forma bastante brutal.

O Brasil é o país conhecido por matar mais travestis e transexuais, e podemos fundamentar
estes dados, também, no gráfico do mesmo projeto d’Associação Nacional de Travestis e
Transexuais. Contudo, este projeto não faz um comparativo somente por países, mas, sobretudo,
dos estados brasileiros. Todo este mapeamento é importante para a criação de políticas para a
população trans*. De forma alguma se trata da criação de privilégios – como dizem alguns –,
mas, sobretudo, de estabelecer possibilidade de vida, de criar potencialidades, de exercer, por
exemplo, os direitos básicos a qualquer cidadão.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 207


Se a Casa de apoio Brenda Lee angariou um grande papel com relação
ao HIV/Aids, já na década de 90, no Rio de Janeiro, foi produzida a primeira
organização política de travestis d’América Latina, chamada Associação das
Travestis e Liberados do Rio de Janeiro (ASTRAL). Novamente, o grande
catalisador da comunidade trans* foi a violência policial. Nos anos 90 a
quantidade de grupos e de ONG’s de travestis e transexuais se expandiu
muito, houve, por exemplo, a criação da Rede Nacional de Travestis e Liberados
(RENTRAL). Em 2000, o boom se agigantou e os movimentos chegaram à nível
nacional. Percebe-se, então, que a força dos movimentos trans* ao longo do
tempo foi um fato inegável. Porém, falta que esta cartografia saliente o motivo
de tanto rechaço ao fenômeno trans*, que se perpetra como realidade ainda
nos dias de hoje.

O FEMINISMO ANTI-TRANS*

Visto que em um dos tópicos anteriores apontávamos que o fenômeno trans


surge num inevitável embate social — com a religião, o ambiente jurídico e o
ambiente médico —, parece-nos verossímil (re)afirmar que este choque envolve,
também, o próprio feminismo. Antes de tudo, no entanto, se faz necessário
garantir que há feminismos, no plural. Desta pluralidade de feminismos, é esperado
que haja, algures, certas correntes do feminismo contrárias a questão trans*.
Constrói-se, desta forma, um feminismo anti-trans e, muitas vezes, anti-queer.
Como ponto inicial vamos ressaltar que há uma crítica feminista à temática
trans*. Esta crítica é fundamentada, principalmente, por Janice Raymond e
Sheila Jeffreys. Raymond produz à sua crítica no final da década de 70, em
seu livro The transsexual Empire. Jack Halberstam (2018), por exemplo,
chega a insinuar que o livro de Raymond é tóxico, um texto profundamente
transfóbico, cheio de paranoia em relação às mulheres trans que, segundo a
autora, invadiriam o “espaço da mulher”; aliás, haveria um “império”69 transexual
que deveria ser apagado. Jeffreys, por sua vez, segue os passos de Raymond no

69
A palavra “império” de fato é pomposa demais para qualificar algo que nunca existiu com relação à
comunidade trans. Seria necessário dizer que ainda há toda uma luta por direitos, por medicamentos e, além
disso, há um número pequeno de pessoas que tratam da questão. Seja tratá-la no âmbito do direito, da saúde,
ou, até mesmo, dentro das disciplinas que estariam mais alinhadas com possíveis relações com a questão
trans como a psicanálise – que estuda formas de subjetivação –, os estudos de gênero – que compreende
bem à questão do gênero no campo social – e o feminismo – como uma política que visa igualdade entre os
homens e as mulheres. Enfim, o fenômeno trans está longe de algo que se possa chamar de império e suas

208 RAFAEL LEOPOLDO


seu desenvolvimento teórico e, além disso, redige uma crítica à teoria queer em
seu livro Unpacking queer politics: a lesbian feminist perspective. Estas duas vozes
foram tão ferinas no debate norte-americano — e esta cisão também é vista na
América Latina — que criaram uma verdadeira separação entre o feminismo
anti-trans e o feminismo trans, dificultando a criação de uma imperativa
solidariedade política.
De qualquer forma, a crítica geral de um feminismo anti-trans perpassa
muito os preconceitos do senso comum dirigidos aos homens e mulheres trans, ou
ainda, a toda extensão da transgeneridade. A transexualidade, para o feminismo
e para o senso comum, muitas vezes parece manifestar-se como um roubo e,
portanto, não é bem aceita. Esta rejeição tem como consequência uma não
visibilidade do fenômeno trans; se não há uma visibilidade, temos, por sua vez,
uma compreensão limitada da transexualidade — o que coaduna, no mínimo,
com uma possível atitude transfóbica que limita o espaço das pessoas trans.
Se a pessoa é um transhomem, o feminismo compreende que esta pessoa
vestiu a roupa da masculinidade e, por isso, agora tem acesso a determinados
privilégios que os homens possuem, assim, este transhomem parece ter traído
a sua própria feminilidade ao adentrar na estrutura patriarcal. Se a pessoa é
uma transmulher, o feminismo compreende que não se trata de fato de uma
feminilidade verdadeira, além disso, ela estaria ocupando o espaço próprio de
uma mulher autêntica. Em ambos os casos o feminismo anti-trans não entende
a transição, não aceita (que dirá aprova) nem o transhomem nem a transmulher.
Porém, mesmo que a produção sobre o transfeminismo pareça amena,
ela possui a força de um tsunami. Compreendemos que no transfeminismo
há toda uma maquinaria sendo elaborada e que acarretará mudanças no
ambiente religioso, jurídico, médico e no próprio feminismo. Em suma, o que
se espera — e endossamos nesta pesquisa — é que haja solidariedade entres os
feminismos. Esta solidariedade é necessária, principalmente, quando pensamos
à transgeneridade, já que se trata de uma população que sofre uma violência
constante, física, material e simbolicamente. Por fim, fato é que estes novos
sujeitos serão capazes de gerar várias questões no feminismo e não apenas a
respeito de outra compreensão dos corpos ou das subjetividades, mas, acima
de tudo, de quem poderá representá-lo.

demandas parecem estar, também, distante desta linguagem bélica do Soberano; mais próxima das lutas por
direitos humanos, porém.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 209


JUDITH BUTLER E O GIRO PERFORMATIVO

JUDITH BUTLER E A TEORIA QUEER

Se as identidades deixassem de ser fixas como


premissas de um silogismo político e se a política
não fosse mais compreendida como um conjunto
de práticas derivadas dos supostos interesses
de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova
configuração política surgiria, certamente das
ruínas da antiga.
Judith Butler

No presente capítulo, “Judith Butler e o giro performativo”, trabalharemos,


principalmente, a filósofa Judith Butler e algumas particularidades que envolvem
as suas concepções sobre a teoria queer. A chegada de Judith Butler no debate
teórico feminista-queer ou ainda pós-feminista, acontece nos anos 90 com a
publicação do livro Problemas de gênero: política e subversão da identidade.
Este advento é tão impactante que tal obra chega a ser conhecida por alguns até
mesmo como o texto “fundador”, o texto “instituidor” da teoria queer, muito
embora já tenhamos observado tantos outros autores e tantas outras autoras que
poderiam ser caracterizados e caracterizadas como queer com notável facilidade.
Claro que há, neste entremeio de ideias, uma série de corpos que já são
corpos subversivos sem a necessidade da teoria para constituí-los como queer
ou qualquer outra nomeação. Trata-se de um ativismo corporal. É certo que
aqui não tomaremos a obra de Judith Butler como um texto fundador do queer,
no entanto. Não vamos pensá-lo como um significante despótico quando a
teoria queer, quando a prática queer, quando a reflexão queer está muito mais
relacionada à intensidade das revoltas moleculares do que à extensividade
do molar e muito mais associada às micropolíticas transversais do que à

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 211


macropolítica. Todavia, voltamo-nos, em primeiro lugar, para alguns elementos
desta obra, devido aos ecos que ela produziu e produz na teoria queer.
A professora Sara Salih publicou em 2002 um livro introdutório interessante
chamado Judith Butler e a teoria queer, e no primeiro parágrafo desta obra
encontramos este alinhamento entre Butler e o pensamento queer:

Se perguntarmos a alguém que trabalha no campo da Teoria Crítica quem


é Judith Butler, é possível que a resposta contenha expressões como “teoria
queer”, “teoria feminista” ou “estudos de gênero”. Se aprofundarmos a
pergunta, podemos ouvir falar em “performatividade de gênero”, “paródia”
e “drag”, conceitos e práticas com os quais Butler veio a ser largamente
associada, ainda que talvez de forma equivocada (Salih, 2012, p. 9).

Na citação de Salih aprendemos ao que o nome Judith Butler está ligado,


mesmo que sua obra aglomere outros temas, principalmente, nos seus livros
mais recentes que se valem do quesito da guerra como mote basal. De qualquer
forma, Judith Butler está vinculada à teoria queer, à teoria feminista, aos estudos
de gênero, ou ainda, ao drag, à paródia. Para nós a autora está conectada,
especialmente, à ideia de performance/performatividade.
A ideia de performatividade de gênero traz um verdadeiro giro teórico
à teoria queer e deve ser pontuada. Antes de investigar este giro, este ponto
de virada, cabe discutirmos alguns tópicos do primeiro capítulo do livro
Problemas de gênero, que nos direciona a um ponto histórico da teoria queer
que é questionar as “mulheres” como sujeito do feminismo. Trata-se de mostrar
como pode ser complexo presumir uma determinada identidade tão fixa para o
feminismo, presumir um sujeito feminino universal, um essencialismo feminista.
Por sua vez, essa problemática reverbera no queer e na representatividade e, em
última instância, vai ter seus ecos no par performance/performatividade, esse
quase “desenlace” de um feminismo fundacionista. Neste contexto, torna-se
interessante inteirarmo-nos sobre a questão da drag queen e, por último, a análise
do livro Relatar a si mesmo, pensando sua conexão com o saber psicanalítico.
Isso nos fornecerá a possibilidade de pensar a abertura ética por meio da ideia
de passividade, tanto dos ativistas Javier Sáez e Sejo Carrascosa quanto da
psicanálise de Laplanche. Da junção destas perspectivas teóricas, acreditamos
que um campo ético — no seio da teoria queer — pode se abrir, tendo em vista
o diálogo com o pensamento de Butler.

212 RAFAEL LEOPOLDO


CRÍTICA A REPRESENTATIVIDADE E A IDENTIDADE

Já afirmamos, junto à Sara Salih, que Judith Butler é a filósofa dos estudos
de gênero, da performatividade, da paródia, da drag, etc. Além de todos estes
conceitos (que poderíamos remontar ao Problemas de gênero) há, ademais,
o pouco averiguado primeiro capítulo da obra de Butler. Nele, encontramos
conteúdos sobre a identidade e a representatividade, questão importante quando
há toda uma política sexual acirrada no feminismo.
A respeito deste tema, Sônia Correa faz o gracejo de que se o feminismo
fosse apenas para mulheres não se trataria de um feminismo, mas, sim, de um
“vaginismo”. Trata-se de uma brincadeira espirituosa, porém, muito crítica a
um feminismo fundacionista, a uma metafísica da substância70 encontrada
facilmente em textos teóricos ou em cartazes de movimentos contestatórios.
Outro dado é que, neste capítulo, podemos entender como o contexto já é o
texto, voltando à parte menos abordada do livro de Judith Butler, pois o destino
do recalcado do feminismo padronizado71 é sempre retornar.
Nesta imaginação de uma cartografia do pensamento queer, de uma história
do pensamento queer já mencionamos as diversas divisões no feminismo, como,
inclusive, de que forma uma gama de outras autoras passa a interpelá-lo. Trata-se
do feminismo negro, do feminismo indígena, do transfeminismo, do feminismo
islâmico, dentre outros. Esta interpelação faz com que o feminismo questione
a si mesmo, questione a própria figura da mulher, ou ainda, das mulheres
como representantes do feminismo. Este é um elemento histórico descrito
nas primeiras páginas do livro Problemas de gênero. Todavia, ele recebe uma

70
Uma gama de homens – heterossexuais ou não – irá questionar este vaginismo, este feminismo fundacionista,
esta metafísica da substância. A crítica mais aguda, talvez, ainda venha com o transfeminismo onde há, por
exemplo, uma infância feminina mesmo que se tenha um pênis. A respeito do contrário, de uma infância
masculina em um corpo de fêmea poderíamos citar o exemplo da autobiografia do ativista FTM, trans-
homem, João Nery, na sua obra Viagem Solitária. A crítica vinda de homens femininos, por sua vez, parece ser
totalmente descartada por um feminismo padronizado, já que o homem seria transformado na figura do mal,
o violentador. Caímos no maniqueísmo e nos piores folhetins, onde a bondade e maldade são características
intrínsecas e não cambiáveis nos seus personagens. Poderíamos remontar esta crítica também a uma obra de
Derrida chamada Gramatologia, de 1967. Desta obra podemos compreender que não há uma conexão fixa
entre identidade discursiva e os corpos que estas identidades se referem, ou seja, reafirmamos novamente que
podemos ter, por exemplo, uma feminilidade no corpo masculino e uma masculinidade no corpo feminino.
71
Pensar a questão da identidade-representatividade como o recalcado do feminismo é também enfatizar
determinadas contradições no feminismo, pois, ao mesmo tempo em que alguns grupos reiteram de forma
enfática a questão da mulher ser uma construção social há também uma tentativa de se atrelar a mulher e o
feminino a uma estrutura biológica bem especifica.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 213


elaboração intelectual intensa, não reduzido apenas a um “mero problema” de
“lugar de fala”, mas, à própria questão da produção da representatividade, da
identidade e, além disso, do que fica fora desta construção, ou seja, um problema
segregativo.
Deveríamos ainda reafirmar quão problemático é o conceito de “mulheres”,
ou ainda, a de uma “essência feminina”. Lembremos, por exemplo, como o
historiador Thomas Laqueur sinaliza que até o século 17 havia tão somente
um sexo. Primordialmente, era pensado que havia somente um sexo, o sexo
masculino, e o feminino era representado como um masculino imperfeito, um
masculino que tinha os órgãos genitais interiorizados. A mulher como totalmente
diferente do homem seria uma construção recente, uma construção moderna.
Este fato é passível de recapitulação quando dizemos “feminino”, “mulheres”,
como se fossem dados demasiadamente precisos, dados demasiadamente óbvios
e de fácil apreensão.
Com a filósofa Simone de Beauvoir ainda temos a elaboração famosa de
que não se nasce mulher, de que ela seria uma construção histórica, cultural,
ideológica e filosófica. Citamos, por sua vez, em diversas ocasiões, a antropóloga
feminista Gayle Rubin e o seu complexo ensaio sobre o tráfico das mulheres; nele
o debate para a construção do feminino é relacionado com o marxismo, com
a antropologia e a psicanálise. Desta forma, seria necessário compreendermos
estas genealogias socioculturais e a ficção representacional que é a mulher, para
que o próprio feminismo seja mais potente.
De qualquer maneira, a filósofa Judith Butler se imiscui neste debate —
já nas primeiras páginas de Problemas de gênero — e afirma determinadas
posições: 1) não há um sujeito feminino anterior à lei; 2) não há uma identidade
do feminino; 3) não há apenas uma opressão das mulheres72. Destas três
críticas encontramos a conclusão de que “talvez, paradoxalmente, a ideia de
representação só venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando
o sujeito mulheres não for presumido em parte alguma” (Butler, 2010, p. 24).

72
Esta temática, a de uma variedade de opressões com relação a mulher e não somente o patriarcado como
uma opressão universalizada já poderia ser compreendida com Juliet Mitchell no seu artigo Woman: the longest
revolution (“Mulheres: a mais longa revolução”, de 1966). No mesmo ano da publicação do livro de Judith
Butler, a socióloga britânica Sylvia Walby publica o livro Theorizing patriarchy (“Teorizando o patriarcado”).
Por sua vez, o livro Gênero: uma perspectiva global, de Raewyn Connel e Rebecca Pearse, abordam estes
elementos e ainda enfocam estudos mais recentes sobre o assunto.

214 RAFAEL LEOPOLDO


Diante destes argumentos, compreendemos como a categoria de sujeito
pode ser complexa: no primeiro caso mostrando o sujeito do feminino já
implicado com o poder jurídico, já implicado na lei e produzido por ela, pois o
poder, como ensina Foucault, não é tão só negativo; no segundo caso, a respeito
da identidade feminina, constatamos como dizer que se “é” uma “mulher” não
é algo exaustivo, pois há outros elementos a serem considerados nesta equação,
como a raça, a classe, a etnia, etc. E, por último, a respeito de uma única opressão,
a opressão do patriarcado, salientar que este fator cria uma unidade de um
grupo oprimido, por sua vez, uma unidade fictícia, que não serviu para olhar
outros lugares sem que seja condenado como uma espécie de neocolonialismo
feminista (com sua epistemologia sendo vertida alhures, sem levar em conta os
“nativos” — para usarmos o jargão antropológico), que não considera o outro
em sua diferença.

O FEMINISMO E O QUEER: POLÍTICA PÓS-FEMINISTA

Possivelmente devêssemos nomear por quem o feminismo é interpelado,


já que não é somente uma revisão de um determinado feminismo: trata-se
daquela gama de outros que estão fora, que estão à margem, trata-se do queer
num diálogo crítico com o feminismo mainstream, o feminismo padronizado.
É neste contexto que Butler irá singularizar a questão da representatividade.
Retiramos das primeiras linhas do principal livro da autora as três ideias — três
hipóteses políticas — já afirmadas neste estudo, a relembrar: de que não há um
sujeito feminino anterior a lei, de que não há uma identidade do feminino e de
que não há só uma opressão das mulheres.
Creio que estes pontos de vista são interessantes para tatearmos as questões
que envolvem o queer, o pós-feminismo, a representatividade, a identidade fixa
e o essencialismo, à luz destes pontos críticos do feminismo e das elaborações
com a teoria queer.
Antes de realizarmos comentários a respeito destes três elementos, todavia,
citamos as primeiras linhas do livro Problemas de gênero, posto que ali podemos
compreender o que está em jogo nesta crítica elaborada pela filósofa:

Em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma identidade
definida, compreendida pela categoria das mulheres, que não só deflagra os

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 215


interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio discurso, mas
constitui o sujeito mesmo de quem a representação política é almejada. Mas
política e representação são termos polêmicos. Por um lado, representação
serve como termo operacional no seio de um processo político que busca
estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por
outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem que
revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das
mulheres (Butler, 2009, pp. 17-18. Itálico da autora).

Verifica-se que, aqui, o feminismo presumiria uma identidade definida


da categoria de mulheres e a complexidade que envolve o termo representação.
O primeiro dado é um raciocínio fundacionista que supõe que primeiro deva
haver uma identidade e, depois, criar-se a ação política. De modo geral, é através
destes meios que vamos abordar o nosso primeiro dito proeminente em relação
à filosofia de Butler (já brevemente apresentado): o fato de não haver um sujeito
feminino anterior a lei.
Judith Butler formulou uma ponderação muito potente a respeito da
representatividade. A autora vai retornar à compreensão de poder de acordo
com Foucault, principalmente, no volume 1 da História da sexualidade. Trata-se
de observar que a organização da vida política não se dá tão somente por uma
via negativa, ou seja, por meio das limitações, proibições, regulamentações,
etc., mas, também, através de uma positividade, de forma mais precisa, através
de uma produtividade, de uma produção de sujeitos que — subsequentemente
—passam a ser representados. Desta maneira, não haveria um sujeito feminino
anterior a lei, ele é constituído na lei e pela lei.
A filósofa (2010) norte-americana vai afirmar que “os domínios da
representação política e linguística estabeleceram a priori o critério segundo o
qual os próprios sujeitos são formados, com resultado de a representação só se
estender ao que pode ser reconhecido como sujeito” (p.18). Sob este prisma,
Butler parece asseverar que as cartas do jogo já estariam marcadas, pois o “sujeito
feminista” se revela constituído pelo próprio sistema a quem as mulheres dirigem
a demanda de uma emancipação. Este “sujeito feminista” seria produzido com
determinados traços, em conformidade com um eixo diferencial de dominação.
Desta maneira: “um apelo acrítico a esse sistema em nome da emancipação das
mulheres estaria inelutavelmente fadado ao fracasso” (Butler, 2010, p.19). Butler
salienta o perigo do sujeito jurídico “mulheres”, pois o poder jurídico produz — e
esta produção é ocultada — aquilo que alega meramente representar. Enfatizado

216 RAFAEL LEOPOLDO


este risco, vamos ao nosso segundo dito, não há uma identidade do feminino ou
não haveria uma identidade tão fixa como pressupõe o feminismo.
A respeito do segundo dito, Butler concluirá que há um problema político
no feminismo, que é a suposição de que o termo “mulheres” denote uma
identidade comum. Segundo ela:

Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o
termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero
da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque
o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos
diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com
modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a
noção de “gênero” das interseções políticas e culturais em que invariavelmente
ela é produzida e mantida (Butler, 2010, p. 20).

Esta crítica de Butler à identidade do feminino só é possível diante da


interpelação histórica que ocorreu diante do feminismo padronizado, tratando-
se — de igual forma — do feminismo negro, do feminismo indígena, do
feminismo islâmico, do transfeminismo, e a vasta variedade de movimentos.
Diante de tantos marcadores, a própria identidade, o próprio conceito de
“mulheres” é compreendido como demasiadamente poroso. Esta crítica ainda
recebe outros elementos na filosofia de Butler, tanto no livro Problemas de gênero
quanto posteriormente no livro Relatar a si mesmo, onde o tema da identidade
ganha outros contornos73. Desenvolvidas estas observações, chegamos ao nosso
último mote.
Como falávamos, o terceiro e último dito para abordar a questão da
identidade e da representatividade nas primeiras páginas do Problemas de
gênero defende a não existência de uma opressão unicamente com relação
às mulheres. Essa afirmação está relacionada ao segundo mote, visto que “a
presunção política de ter de haver uma base universal para o feminismo, a ser
encontrada numa identidade supostamente existente em diferentes culturas,

73
Foi salientado neste tópico a relação de Butler com um determinado contexto histórico; ainda seria possível
vermos a elaboração do tema da identidade por um viés que retoma a filosofia e a psicanálise. Nestes dois
âmbitos, os autores mais interessantes são Hegel e Laplanche. É com Laplanche – e o contexto dos filósofos pós-
estruturalistas – que Butler vai compreender a formação do sujeito numa determinada opacidade, porosidade.
O sujeito em última instância não tem uma total compreensão de si mesmo. Vamos abordar esta temática
quando tocarmos no tema da ética.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 217


acompanha frequentemente a ideia de que a opressão das mulheres possui
uma forma singular” (Butler, 2010, p. 20). É claro que esta opressão singular
diz respeito ao patriarcado ou a uma opressão masculina. A noção de um
patriarcado necessariamente universal além de ser perigosa, envolve uma
profunda falta de conhecimento pertinente a fontes antropológicas clássicas e
específicas produzidas pelo próprio feminismo.
Em seguida, optaremos por revelar um dos perigos que não é abordado
por Butler, mas que percorre a noção tratada pelo feminismo. Antes, porém,
citemos a filósofa:

A urgência do feminismo no sentido de conferir um status universal ao


patriarcado, com vistas a fortalecer aparência de representatividade das
reivindicações do feminismo, motivou ocasionalmente um atalho na direção
de uma universalidade categoria ou fictícia da estrutura de dominação, tida
como responsável pela produção da experiência comum de subjugação das
mulheres (Butler, 2010, p. 21).

Esta passagem de Butler é profunda, pois relaciona a criação de uma


identidade (a identidade das mulheres) à representatividade de um grupo
e, ainda, uma opressão universalizada que seria o patriarcado. Todavia,
ponderemos juntamente com algumas pensadoras mulçumanas (ver Sirin Adlbi
Sibai), que o discurso de uma libertação das mulheres é uma desculpa ocidental
para justificar as guerras nos países árabes. Este apontamento não invalida a
noção de patriarcado; porém, mostra como esta identidade de “mulheres” e esta
única forma de opressão pode ser problemática. O feminismo ocidental quando
olha para o espelho parece distinguir apenas mulheres ocidentais, enquanto
deveria contemplar uma gama de outros e outras para se confirmar mais potente.
A argumentação de Butler percorre o fracasso de se explicar a opressão
feminina somente com a conceituação de patriarcado em contextos culturais
concretos e, além disso, há um risco de um determinado “imperialismo
epistemológico”, no sentido de que “o esforço de incluir ‘Outras’ culturas
como ampliações diversificadas de um falocentrismo global constitui um ato
de apropriação que corre o risco de repetir o gesto auto-engrandecedor do
falocentrismo” (Butler, 2010, p. 33. Itálico da autora). Trata-se de colonizar as
diferenças que poderiam questionar o conceito totalizante.

218 RAFAEL LEOPOLDO


Diante destes pressupostos, Judith Butler se vê diante de algumas perguntas
que parecem solapar desta reflexão, por exemplo:

Seria a construção da categoria das mulheres como sujeito coerente e estável


uma regulação e reificação inconsciente das relações de gênero? E não seria
essa reificação precisamente o contrário dos objetivos feministas? Em que
medida a categoria das mulheres só alcança estabilidade e coerência no
contexto da matriz heterossexual? Se a noção estável de gênero dá mostras
de não mais servir como premissa básica da política feminista, talvez um
novo tipo de política feminista seja agora desejável para contestar as próprias
reificações do gênero e da identidade – isto é, uma política feminista que tome
a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e
normativo, senão como um objetivo político (Butler, 2010, p. 23).

Já que o feminismo pode se transformar num feminismo segregativo,


com a noção de uma identidade fixa, com a noção demasiadamente estrita de
“mulheres”, somada a uma aproximação acrítica da ideia de “representatividade”,
a tentativa de Butler seria a de propor uma genealogia feminista da categoria
de mulheres. Em linhas gerais, significaria questionar o sujeito do feminismo
e afirmar que o sujeito feminista não deveria ser o fundamento da política
feminista, dado que a produção do sujeito feminista ocorre no interior de um
campo de poder que encobre o seu fundamento.
Se seguirmos estes traços teóricos, é possível inferir que Butler implementa
uma crítica potente ao dizer que a ideia de “representação” só faz sentido para
o feminismo quando as “mulheres” não forem presumidas em parte alguma.
Poderíamos dizer, quem sabe, que esta radicalidade do pensamento da
filósofa possui como correlato os antecedentes do conceito de performance/
performatividade, ou seja, os Drag queens e, por último, claro, a potencialidade
do seu próprio conceito que dá um giro no pensamento queer.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 219


AS DRAG QUEENS E O GIRO PERFORMÁTICO

Todos nós nascemos nus. O resto é drag.


RuPaul Charles

Na intenção de complementar nossa cartografia e pensarmos o giro


performático na teoria queer é necessário seguirmos três linhas, entendendo,
aliás, que estas linhas percorrem — mesmo que, às vezes, de forma silenciosa
— cada página do livro Problemas de gênero. Trata-se de refletirmos sobre os
seguintes indícios: 1) o aparecimento das drag queens e sua nova forma de fazer
política; 2) a tomada do saber psicanalítico como outro elemento de suporte
teórico (um dos arrimos epistêmicos para o pensamento de Butler); 3) e, por
último, a importância da filosofia de Foucault com o modelo da inscrição no
corpo, o que leva Butler a pensar em uma “disciplina do gênero”, como também
na não autenticidade de qualquer gênero e na performatividade. Sucintamente,
chegamos, agora, ante estas três linhas: as drag queens, o saber psicanalítico e
o saber filosófico.
A respeito da primeira linha, cabe ressaltar que o ator drag queen possui uma
longa história, mas o período que nos atrai aqui, particularmente e inicialmente,
são os anos 60, quando os atores drag se imiscuem em companhia de uma
variedade de atores políticos da época e promovem uma torção política com o
seu vestir, com o seu montar, com a sua performance.
Esta potencialidade do ator drag reverbera nos estudos de Judith Butler.
Pode-se dizer que toda construção será encenação e performatividade. Em
Problemas de gênero, Butler faz estes apontamentos de forma demasiadamente
cautelosa e, às vezes, confusa. Diante destes dois termos — encenação e
performatividade — a autora hesita na descrição do gênero como encenação
ou como performatividade; o primeiro poderia envolver mais o mundo drag e
o segundo a filosofia, o primeiro poderia pressupor a ideia de um sujeito por
detrás da ação e o segundo o sujeito entendido no ato performativo. Então, na
primeira linha vamos no sentido da encenação, do ator drag, de uma estética-
política, de uma política da performance mesmo que, em última instância,
Butler privilegie pensar a construção do sujeito como performatividade no seu
sentido filosófico.

220 RAFAEL LEOPOLDO


LINHA 1: O DRAG QUEEN E UMA NOVA POLÍTICA

O primeiro ponto que abordaremos é a questão do ator drag queen,


compreendendo o vestir, o montar, a performance como uma nova política.
Antes de mais nada, é indispensável deixar claro que o drag queen é, basicamente,
uma forma artística, não uma orientação sexual. Trata-se de uma arte, não de
uma sexualidade; de uma arte, não de uma eleição do objeto sexual. O artista
ou a artista drag queen ou drag king se monta no intuito de entreter, no intuito
de produzir uma arte e, até mesmo, com um propósito político — se é que os
dois pontos anteriores já não eram políticos. Esta definição provisória já está
carregada de alguns elementos do contemporâneo, pois, na nossa cartografia do
queer, na nossa biografia optamos por datas e eventos recentes para a empreitada
adentro de uma reflexão histórica do pensamento e suas micropolíticas
transversais.
A história do ator drag pode ser facilmente remontada à antiguidade grega
como faz, por exemplo, Roger Baker em seu livro Drag: the history of female
impersonation in the performing arts, que recai sobre a vivência dos personagens
no teatro grego. Na sociedade medieval, determinados homens assexuados
faziam papéis femininos em montagens bíblicas, posto que as mulheres não
tinham espaço no teatro. Além disso, temos o teatro Elizabetano do século
16, onde os papéis femininos escritos por Shakespeare eram interpretados por
homens adolescentes travestidos. Papéis como Julieta, Ofélia, Lady Macbeth
foram interpretados por estes homens femininos. Todavia, estes atores perdem
o seu espaço quando as mulheres passam a ter permissão para entrar no teatro
e eles somente retornam a cena de forma contundente no século 19, como a
parte cômica de um drama. Neste momento, o drag ganha o seu complexo riso.
Na efervescência cultural dos anos 60 houve uma fase em que a cultura de
massa tocou a arte tradicional e a arte tradicional tocou a cultura de massa. Esta
mescla se deu em vários âmbitos, como a música, o cinema, a arte em geral,
etc. Igor Amanajás, em um pequeno artigo intitulado Drag queen: um percurso
histórico pela arte dos atores transformistas, afirma que:

Diante do cenário multifacetado e pluricultural que as grandes metrópoles


apresentavam, a comunidade gay começou a ser vista de outra forma e,
assim, como os adolescentes heterossexuais buscavam um estilo, os jovens
homossexuais também buscaram uma identidade cultural própria através da

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 221


música, da moda e das gírias. Apesar de uma maior abertura da sociedade
perante os homossexuais, os novos bares gays foram, a princípio, construídos
nas áreas periféricas, longe das famílias de bons costumes. É nesse contexto
e dentro desses bares que a drag queen, mais uma vez, ressurge (Amanajás,
p. 16, 2016).

Igor Amanajás demarca o contexto em que a drag queen “ressurge”. A drag


queen ressurge como um corpo político, com um ativismo corporal74 e, ao
mesmo tempo, vinculado à cultura das divas hollywoodianas como Marylin
Monroe, Berry Davis, Cher, Diana Ross, Madonna, e assim por diante.
Nos anos 70 e 80 a visibilidade das drags se torna ainda maior, já que não
estão mais vinculadas apenas aos bares gays. Trata-se agora de uma visibilidade
nas rádios, na televisão e no cinema. Poderíamos citar, por exemplo, no âmbito
do cinema: “A gaiola das loucas”, “Priscilla, a rainha do deserto” e, até mesmo,
“Uma babá quase perfeita” (ver, por exemplo, Leopoldo, 2017). De todo modo,
o ativismo artístico, o ativismo corporal, faz uma verdadeira mutação política
quando pensamos na arte, no vestir e no montar drag. Inaugura-se, então, um
discurso estético-político.
As aparições das drag também se deram no seio do feminismo radical
norte-americano na década de 70 e duas técnicas que envolvem esta questão
se destacam. A primeira técnica estético-política é levar o slogan “o privado
é político”75 ao seu extremo. Trata-se de produzir performances onde se gera
uma experiência que possibilita a transformação social e pessoal, um processo
de aprendizado, uma produção de conhecimento que se vincula a uma ação
política. A segunda técnica estético-política, em consonância com a primeira,
é fazer circular a palavra, fazer uma limpeza na chaminé — se pensarmos um
pouco em Freud — uma terapia política onde há o envolvimento da intimidade,
do corpo e da teatralização. Novamente, este processo estético-político se

74
O que chamamos de “ativismo corporal” é quando o corpo do sujeito já é uma radicalidade. Mesmo que
não seja uma escolha do indivíduo, o corpo do sujeito já é político. Ser gay nos anos 60 e 70 já era um ato
político e o corpo do drag queen surge como uma radicalização da homossexualidade, configurando-se como
um dos grandes personagens nas lutas em prol dos direitos gays. Nas décadas de 80 e 90, talvez seja o corpo
trans que toma esta forma de um ativismo corporal que é somente reelaborado teoricamente depois e, desta
maneira, passa a ter uma maior clareza política no transfeminismo.
75
Raewyn Connel e Rebecca Pearse (2015) no livro Gênero: uma perspectiva global vão apontar que este dito
do Movimento de Libertação das Mulheres ainda procede, pois há políticas de gênero em nossas relações mais
íntimas, assim a “política da intimidade está sempre no pano de fundo da política pública e não pode ser
abandonada” (p. 195). Todavia, para um maior esclarecimento deste mote, façamos uma distinção conceitual
entre privado e intimidade, pois, talvez, a potência esteja realmente no privado e não no íntimo.

222 RAFAEL LEOPOLDO


conecta a uma ação, à produção de um novo sujeito no próprio momento da
performance. Não diz respeito a uma possível representação, mas, sobretudo a
uma experimentação.
Desta maneira, poderíamos frisar que com o ator drag portamos um ativismo
corporal, uma teatralização da feminilidade — o que mostra a característica
paródica do gênero —, temos as práticas estético-políticas performáticas que
se tornam coletivas e o privado se torna público. Estes elementos subversivos
das drag queens colocam-nas no front de uma nova forma estético-política,
demostrando a artificialidade das diferenças de gênero; ponto central no
pensamento de Judith Butler.
O ator drag queen com suas cores, com seu riso, com o seu salto alto, com
toda a sua montagem vai refletir uma nova forma estética e envolvimento político
que não será desprezada nem no campo acadêmico nem nas micropolíticas
transversais, nas micropolíticas do pensamento queer. Posto estes raciocínios,
seguimos para a nossa segunda linha, a relação com a psicanálise e a questão
da máscara. O nosso marco teórico girará em torno de Lacan e Riviere, mas
focaremos, sobretudo, em Riviere neste momento. Para resumir, a próxima
afimação garante que a máscara da feminilidade será tão original como a própria
feminilidade ou ainda que não haveria uma distinção entre uma feminilidade
autêntica e a máscara.

LINHA 2: A PSICANÁLISE E A MÁSCARA

Quando adentramos nesta segunda linha — a psicanálise e a máscara —


estamos expostos a um terreno arenoso, pois um dos pontos em que Judith Butler
vai ser constantemente criticada é, exatamente, pelo seu uso da psicanálise,
pela sua interpretação do texto psicanalítico seja de Freud ou de Lacan. Javier
Sáez, por exemplo, em seu livro Teoria queer e psicanálise tece duras críticas da
apropriação de Butler do saber que envolve a psicanálise. Para nos colocarmos
além — ou aquém — deste imbróglio entre o pensamento queer e o pensamento
psicanalítico, é necessário retornar ao texto de Butler e sua análise de um ensaio
datado de 1929, de Joan Riviere, chamado Womanliness as a Masquerade. Aqui,
a autora introduz a ideia da feminilidade como uma máscara, desenvolvendo,
de forma adjacente, uma teoria sobre a masculinidade.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 223


A respeito do ensaio de Joan Riviere, a argumentação mais interessante
talvez seja quando encontramos a garantia de que a aquisição de determinados
atributos — masculinos ou femininos — e a consumação da heterossexualidade
ou da homossexualidade são produzidos mediante a resolução de conflitos que
têm por objetivo a eliminação da angústia. Vamos perpassar apenas o caso da
mulher para que possamos exemplificar a ideia da máscara e da feminilidade
em Riviere.
No que concerne à mulher, Joan Riviere mostra que algumas mulheres
que desejam a masculinidade podem empregar uma máscara de feminilidade
para evitar a angústia e a represália dos homens. Exagera-se o feminino para
se livrar da angústia, da desaprovação dos homens. Um dado importante na
argumentação de Riviere é que “a rivalidade com o pai não se dá em torno do
desejo da mãe, como se poderia esperar, mas do lugar do pai no discurso público,
como orador, conferencista ou escritor – isto é, como usuário de signos ao invés
de um signo-objeto ou elemento de troca” (Butler, 2010, p. 84). Estamos distantes
da estrutura do complexo de Édipo e do discurso antropológico da troca, mas
defronte a tentativa de se colocar no lugar público. A “mulher mascarada
homossexual” de Riviere assume a feminilidade, pois deseja a masculinidade;
porém, ela teme a retaliação, a desaprovação de assumir publicamente a aparência
de masculinidade. Judith Butler tenta uma interpretação deste pensamento:

Uma interpretação possível é que a mulher mascarada deseja a masculinidade


para entrar no discurso público com homens e, como homem, como parte
de uma troca masculina homoerótica. (...) Riviere nos faria considerar que
tais mulheres mantêm uma identificação masculina não para ocupar uma
posição na interação sexual, mas, para dar continuidade a uma rivalidade que
não tem objeto sexual, pelos menos, que não tem nenhum que ela nomeie
(Butler, 2010, p. 85).

Deste ponto, Butler reconsidera a questão da máscara com a pergunta: o


que é mascarado pela mascarada? Na resposta de Riviere, que vai ser proveitosa
para Butler, há uma recusa de postular uma feminilidade anterior ao mimetismo,
uma autenticidade feminina anterior à performance, ou melhor, se há uma
“autenticidade” ela é a própria máscara. Por enquanto, ficamos com estes dados
a respeito da máscara, enfatizando que há uma gama de nuances abordadas
por Butler no desenvolvimento de seu capítulo sobre a temática e uma crítica
excelente a uma matriz heterossexual. Passemos então para a nossa terceira

224 RAFAEL LEOPOLDO


linha, onde abordaremos, novamente, a filosofia de Foucault. Neste momento,
esse retorno a Foucault se dá com um maior mergulho no pensamento queer,
pois com ele será plausível repensar a inscrição no corpo, os drags, o travestismo
e a paródia.

LINHA 3: FOUCAULT-BUTLER E A DISCIPLINA DO GÊNERO

Já havíamos discorrido alguns aspectos da filosofia de Foucault em diversos


momentos deste livro, com maior atenção aos enunciados da disciplina e da
biopolítica. Agora retornaremos à leitura que Butler faz de Foucault no capítulo
3, “atos corporais subversivos”, do livro Problemas de gênero, tendo em vista,
principalmente, o tópico “da interioridade aos performativos do gênero”. Neste
fragmento, Butler trabalha pormenores do livro Vigiar e Punir, de Foucault, e
não o “último Foucault”76 que desencadeia uma elaboração ética e propõe outros
elementos para pensar o sujeito por meio das “práticas de si”77. Enfatizar este
dado é informar que, nesta trilha, ainda estamos envolvidos na temática da
disciplina, da inscrição corporal.
A respeito do livro Vigiar e Punir a filósofa Judith Butler vai apontar que
Foucault questiona a linguagem da internalização. “Vigiar e punir pode ser lido
como um esforço do autor para reescrever, sob o modelo da inscrição, a doutrina
da internalização de Nietzsche, exposta em A genealogia da moral” (Butler,
2010, pp. 192-193). Segundo Butler, no contexto dos prisioneiros, a lei não seria
internalizada, a lei seria incorporada. A lei não é externa aos corpos, antes sujeita
e subjetiva. Uma pergunta da autora se assoma: qual é a lei interditora que gera
a estilização corporal do gênero, a representação fantasiada e fantasiosa do corpo?
A lei, neste contexto, é entendida como todo o processo de disciplina, como a

76
Caracteriza-se como o “último Foucault” o momento em que este filósofo foca a sua atenção, principalmente,
na cultura grega e nos traz uma interpretação importante a respeito da subjetivação como práticas de si,
como uma estética da existência. Neste último Foucault encontramos uma elaboração ética que ainda foi
pouco tratada pela teoria queer. Este último período foucaultiano é fecundo para pensarmos as mudanças
no próprio sujeitos, para pensarmos práticas distintas e que não se vinculam a uma cientificidade ou ainda
a uma norma jurídica.
77
Os livros de Foucault que fazem uma maior referência a este debate, os das práticas de si, são o segundo e o
terceiro volume da História da sexualidade e as aulas que constituem o livro Hermenêutica do sujeito. Observamos
que as práticas de si, o cuidado de si, podem ser compreendidos como anterior à elaboração filosófica
socrática, assim atravessando outras esferas como, por exemplo, a cultura ameríndia (ver Leopoldo; Starling).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 225


inscrição corporal, como projeto de sujeição e subjetivação, são as palavras de
Butler de uma “disciplina do gênero” (Butler, 2010, p.194. Itálico nosso).
A disciplina do gênero pode ser compreendida como outro termo para
a “heterossexualidade compulsória”, se salientarmos que há tanto interesses
para a regulação heterossexual como, inclusive, a construção de uma coerência
ficcional que, por sua vez, oculta as descontinuidades do gênero. Butler, neste
sentido, vai afirmar que:

Atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna,


mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausência
significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da
identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos
gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por
outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas
por signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser
marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado
dos vários atos que constituem sua realidade. Isso também sugere que, se a
realidade é fabricada como essência interna, essa própria interioridade é efeito
e função de um discurso decididamente social e público, da regulação pública
da fantasia pela política de superfície do corpo, do controle da fronteira do
gênero que diferencia interno de externo e, assim, institui a “integridade” do
sujeito. Em outras palavras, os atos e gestos, os desejos articulados e postos
em ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizado do gênero, ilusão
mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos
termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora. (Butler,
2010, pp. 194-195. Itálicos da autora).

Algo estimulante nesta argumentação de Butler é que há, de fato, uma


disciplina do gênero, há uma organização para se estruturar uma determinada
coerência do gênero, há um ocultamento das descontinuidades, há políticas e
práticas que constituem um “eu” localizado no interior, um “núcleo” psicológico
não visível, que impediria uma análise da própria constituição política do sujeito
marcado pelo gênero.
Em consequência disto, tanto o gênero interno é compreendido como
fabricação como o “gênero verdadeiro” seria uma fantasia instituída e inscrita
sobre a superfície dos corpos, novamente, os gêneros não seriam nem verdadeiros
nem falsos, nem autênticos nem inautênticos; paródicos, no entanto.

226 RAFAEL LEOPOLDO


ABERTURA PARA O CAMPO ÉTICO

Um fundamento sobre a ética no âmbito de uma filosofia pós-estruturalista,


na esfera de um sujeito descentrado, diz respeito a pensarmos que se o sujeito é
opaco, que se o sujeito é descentralizado, então, como haveria uma possibilidade
de uma ação ética já que o sujeito não conhece inteiramente a si mesmo? Esta
parece ser a primeira questão de Judith Butler: saber se diante de um sujeito
que não tem uma total compreensão de si mesmo, saber se diante de um sujeito
que tem um inconsciente, seria possível narrar a si mesmo e ser responsável.
O dilema do descentramento do sujeito remonta, sobretudo, à filosofia de
René Descartes e ao cogito; a um Eu centrado em si mesmo, a um Eu possessivo,
ao indivíduo, ou seja, aquele que não se divide. Todavia, o contraponto ao
pensamento cartesiano poderia ser indicado pelos “mestres da suspeita” — Karl
Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud —, mas não vamos citá-los neste
momento e, sim, salientar que, agregado a eles, aprendemos que o sujeito é
mais poroso do que cremos e mais opaco do que aparenta ser. Se pensarmos no
saber psicanalítico, diríamos — juntamente com Freud — que o Eu não é senhor
nem na sua própria casa, porque há uma forte influência de outras instâncias
psíquicas sobre ele, como o Super-Eu e o Id78.
Todo o contexto filosófico e psicanalítico que aponta um descentramento79
do sujeito levantaria à questão da impossibilidade de uma límpida narração de si
mesmo que, por sua vez, nos coloca diante de uma responsabilização dos nossos
próprios atos. Para aclararmos este conceito há um fragmento da obra Relatar a
si mesmo, no capítulo “Um relatar a si”, que parece até mesmo didático em sua
estrutura, pois realça elementos que atrapalhariam a narração de si:

Há (1) uma exposição que não pode ser coloca em forma narrativa e estabelece
minha singularidade, e há (2) relações primárias, irrecuperáveis, que formam
impressões duradouras e recorrentes na minha história de vida, e por isso (3)
uma história que estabelece minha opacidade parcial para comigo mesma.
Por fim, há (4) normas que facilitam meu ato de contar sobre mim mesma,

78
Neste momento fazemos referência ao aparelho psíquico – a conhecida segunda tópica – na teoria freudiana
elaborada, sobretudo, no texto O eu e o Id e outros textos.
79
A respeito deste “descentramento” citamos todos os filósofos chamados de “mestres da suspeita”, enfatizando
que a pensadora Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue (2000), aborda a temática de forma interessante.
Com esta referência, estaríamos mais próximo de autoras contemporâneas, que fazem um diálogo com a
teoria queer (ver, Leopoldo, 2017b).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 227


mas que não crio e fazem de mim substituível no momento exato em que
busco estabelecer a história da minha singularidade. Essa despossessão na
linguagem é intensificada pelo fato de que dou um relato de mim mesma para
alguém, tanto eu a estrutura narrativa desse ato de relatar é suplantada pela
(5) estrutura de interpelação na qual ele acontece (Butler, 2016, pp. 54-55).

Certas teses apresentadas por Butler explicam que começamos a narrativa de


si mesmo in media res, ou seja, já imiscuídos em uma grade de normas. Todavia,
se damos um passo atrás compreendemos que também estamos no meio de uma
determinada exposição, de numerosas relações primárias; portanto, adquirimos
uma opacidade parcial. Resumidamente, em primeiro lugar há a exposição —
passiva — e, em seguida, uma determinada relação reflexiva-crítica — ativa —
com o social. Acerca da passividade vamos retomar o saber psicanalítico de Jean
Laplanche e em relação as normas, ou ainda, sobre determinado quadro80 da
cena de reconhecimento, faz-se necessário resgatar o saber filosófico de Michel
Foucault. De maneira célere evocaremos inicialmente este último filósofo, e
faremos alguns adendos com relação ao pensamento de Adriana Cavarero.
Do pensamento do filósofo Michel Foucault, Butler aborda a ideia da
formação dos sujeitos pela disciplina (ver Butler, 2010) como citado no “último
Foucault” (ver Sáez, 2004; Oksala, 2011), onde o autor coloca outros elementos
para pensarmos o processo de subjetivação dos sujeitos, regressando não só
para as disciplinas, mas, também, para unidades da cultura grega e a relação
dos sujeitos com a norma (Foucault, 2014). Butler enfatiza, ponderando neste
período de Foucault, que para ele o reconhecimento de si é dado por regimes de
verdade. Estes regimes de verdade teriam um duplo: 1) estariam em determinado
grau fora do sujeito; 2) e, também, serviriam como normas disponíveis onde
acontece o reconhecimento. Assim, “o regime de verdade fornece um quadro
para a cena de reconhecimento, delimitando quem será classificado como sujeito
de reconhecimento e oferecendo normas disponíveis para o ato de reconhecimento”
(Butler, 2015, p. 35. Itálico nosso). Com este dado, compreendemos que o
questionamento do regime de verdade implica num questionamento da própria
condição ontológica do sujeito.

80
No primeiro capítulo do livro Relatar a si mesmo no tópico “sujeitos foucaultianos” encontramos a palavra
quadro (“frame”) que é cara a filosofia de Judith Butler e, sobretudo, tem uma maior elaboração no livro
Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Onde não somente encontramos uma elaboração deste
conceito como, também, encontramos referências explicitas ao pensamento de Laplanche.

228 RAFAEL LEOPOLDO


O que Butler vai criticar, ou ainda, acrescentar em Foucault — via Adriana
Cavarero — é que este filósofo havia dado uma importância muito maior para
a dimensão social da normatividade que governa a cena do reconhecimento,
e não a cena diádica como há na Fenomenologia do Espirito, de Hegel81. Com
Adriana Cavarero, o Eu surge com uma particular corporalidade, mas, também,
como um sujeito exposto ao outro. Esta exposição seria a própria constituição
da singularidade do sujeito. O sujeito encontra-se exposto e sem um controle
desta exposição, desta visibilidade. Captamos que tanto em Foucault como em
Cavarero há uma falta do controle, algo que extravasa o sujeito, porque “quer o
outro seja ou não singular, ele é reconhecido e oferece reconhecimento através
de um conjunto de normas que governam a reconhecibilidade” (Butler, 2015,
p. 39). Encontramos uma despossessão do sujeito com relação a determinados
elementos para o reconhecimento.
Com estes dados, temos um primeiro ponto chave para Butler: enfatizar
que mesmo diante de uma despossessão é possível fazer uma narração de si,
mesmo que ela seja fabulosa — não recuperamos um referente original — algo
que é reiterado pelo saber psicanalítico. Para a psicanálise o romance familiar,
ou ainda, o conto familiar, torna-se um romance à clef, na medida em que
encontramos a todo instante elementos ficcionais em nossas vidas. Diante destes
apontamentos, passamos para a questão psicanalítica que envolve o mote da
passividade e a problemática de Butler.
Pensando a respeito da passividade, remontamos tanto para Javier Sáez
quanto para Sejo Carrascosa e o livro Pelo cu: políticas anais, onde esbarramos
em uma genealogia da analidade. Relaciona-se a entender a passividade como a
grande postura que gera um rechaço, levanta as injúrias e reconfigura o social.
Acerca da psicanálise, mesmo que estes autores citem Freud para enfatizar a fase
anal em cada indivíduo, eles não aprofundam realmente na compreensão de
que a passividade está na própria constituição do sujeito por meio de mensagens
enigmáticas, como na elaboração de Laplanche. Situemos Laplanche diante
de Sáez e Sejo para que avancemos a teoria. Judith Butler ressalta de alguma

81
A cena diádica se encontra, especialmente, do capítulo da Fenomenologia do Espírito a respeito da dialética
do senhor e do escravo. Para uma análise deste capítulo – que tem um debate longo na história da filosofia
– e, ademais, de sua relação com a revolução haitiana ver Buck-Morss, 2009 e Leopoldo 2017a. Butler vai
trabalhar de forma reiterada a filosofia de Hegel, escrevendo um texto interessante especificamente sobre o
assunto com a neurologista e filósofa Catherine Malabou chamado Sois mon corps: une lecture contemporaine
de la domination et de la servitude chez Hegel.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 229


forma esta questão, ainda que seu intuito seja, novamente, mostrar a opacidade
do sujeito.
Do segundo capítulo, “Contra a violência ética”, refletiremos, sobretudo, o
tópico sobre a psicanálise. A filósofa vai assegurar que uma das possíveis funções
da psicanálise é oferecer ao cliente formar uma história sobre si mesmo, ou seja,
reformular o romance familiar:

Argumenta-se que o objetivo normativo da psicanálise é permitir que o cliente


conte uma história única e coerente sobre si mesmo, de modo a satisfazer
a vontade de conhecer a si próprio, ou melhor, de conhecer a si próprio em
parte por meio de uma reconstrução narrativa na qual as intervenções do
analista ou terapeuta contribuem de diversas maneiras para recriar e retramar
a história (Butler, 2015, p. 72).

A questão que Butler levanta é que, talvez, a narrativa de uma vida não possa
ser o objetivo da psicanálise devido à própria formação do sujeito. Afirmamos
que “Lacan, como se sabe, deixou claro que qualquer que seja o relato que
se dê sobre os momentos inaugurais de um sujeito, ele sempre será tardio e
fantasmático” (Butler, 2015, p. 73). Assim, uma “norma de saúde mental” que
entende que relatar a si mesmo de forma coerente faz parte do trabalho ético da
psicanálise, encontra-se num equívoco do que a psicanálise pode e deve fazer.
Butler conclui que a narrativa de si depende de uma interpelação, e que ela é
anterior até mesmo ao processo de individuação. Esta elaboração teórica poderia
resgatar tanto ao filósofo Lévinas quanto ao psicanalista Laplanche. Elejamos o
segundo autor. A autora escreve que, para Laplanche “parece que a experiência
primária do infante é invariavelmente a de ser oprimido, não só impotente
em virtude de capacidades motoras não desenvolvidas, mas profundamente
ignorante das invasões do mundo adulto” (Butler, 2015, p. 95. Itálico nosso).
Estas “invasões do mundo adulto” dizem respeito às mensagens enigmáticas
do inconsciente parental que encontram o mundo infantil, na sua passividade
perceptiva e motora.
A criança exposta a estes elementos enigmáticos é a que geraria uma
determinada estranheza: “o eu descobre-se estranho para si mesmo em seus
impulsos mais elementares” (Butler, 2015, p. 96). Notamos que há uma falta de
saber tanto dos pais quanto do infante, posto que esta mensagem enigmática
embebida de significações sexuais é inconsciente; e quando o infante a recebe,

230 RAFAEL LEOPOLDO


ele não possui um aparato pronto para acolhê-la de forma clara. O argumento
de Butler, tendo em vista Laplanche, prossegue da seguinte forma:

Laplanche afirma que, a princípio, o infante registra passivamente esses


significantes enigmáticos. A repressão constitui a primeira ocorrência de
uma ação, mas poderíamos dizer que é uma ação que precede todo agente.
Uma vez reprimidos, esses significantes enigmáticos começam a “atacar” de
dentro, e algo desse ataque enigmático também sobrevive na experiência
adulta da sexualidade. Alguma coisa atua em nosso desejo e sobre ele, algo
que não pode ser recuperável pela tematização ou pela narrativa. O objetivo
de nossos impulsos não só se torna enigmático e inescrutável para a criança,
mas também continua enigmático em certa medida durante a vida inteira
(Butler, 2015, p. 97).

Assim sendo, compreendemos reiteradamente que haveria uma opacidade


fundamental com relação a nós mesmos, e que a criança tenta dar uma coesão
a estes “ataques”. Nos dizeres de Laplanche, haveríamos de construir o Eu a
partir deste excesso de alteridade, um excesso de alteridade enigmática.
Agora, a questão que surge é: diante da opacidade fundamental do sujeito – que
impediria uma narração límpida de si mesmo – quais implicações com relação
à responsabilidade? Não é coincidência que esta pergunta nos remeta à ética.
Entendemos, então, o sujeito como um sujeito opaco, ou ainda, como um
sujeito poroso, pois não haveria com ele uma compreensão total de si mesmo,
devido a uma passividade originária. Esta passividade originária é formulada
tanto por Lévinas quanto por Laplanche, embora sigam caminhos distintos.
Deste modo, retomamos outra vez o saber psicanalítico para aprofundarmos
o diálogo de Butler com Laplanche e afirmarmos esta passividade como um
determinado horizonte ético.
Se a passividade é anterior ao sujeito, ela se torna a própria condição para
a subjetivação do sujeito. Desta maneira, o outro tem uma posição fundante no
processo de composição de si mesmo:

De certo modo, o outro aqui é a condição de possibilidade da minha vida


efetiva, acomodado dentro de mim como objeto-fonte que dá origem a
minhas pulsões e meus desejos. Da perspectiva da relação de objetos, as
impressões primárias constituem os objetos exteriores, porém próximos, aos
quais um si-mesmo emergente se apegará para satisfazer suas necessidades
básicas. (...). Nesse nível, ainda não nos referimos a limites no processo de

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 231


formação, não buscamos apelas à capacidade de reflexão e autorreferência,
suporte linguístico da posse de si. A gramática do sujeito não é válida nesse
ambiente, pois a despossessão no outro e através do outro é anterior ao
estabelecimento de um “eu” que pode alegar, de vez em quando e sempre
com certa ironia, possuir a si mesmo (Butler, 2015, pp. 102-103).

Encontramos, portanto, uma despossessão que, também, seria constituinte.


Esta passividade originária que para Laplanche abarca receber as mensagens
enigmáticas dos adultos, envolve um enigma no sujeito — não poderíamos
culpar a criança pela mensagem recebida — que depois se transforma no enigma
do sujeito — o sujeito na idade adulta tem que lidar com estas mensagens que
não foram totalmente registradas no nível da consciência.
Desta relação do infante com o mundo adulto, com a alteridade excessiva
e enigmática, é que o horizonte ético afirmado por Butler parece se formar.
Esta relação inicial é traumática para Laplanche e a autora a traduz como
uma violência anterior à constituição do sujeito, uma violência que seríamos
levados a enfrentar. Ela compreende que a violência não seria uma punição
justa que sofremos tampouco uma vingança justa pelo que sofremos — duas
posições que podem reverberar em uma violência ainda maior. Para a autora,
esta vulnerabilidade física da qual não escapamos diz que estamos à mercê do
outro. Deste ponto, Butler não conclui uma impossibilidade ética, mas, sim,
salienta que é esta situação que fundamenta o nosso horizonte de escolha, a
nossa responsabilidade.

232 RAFAEL LEOPOLDO


DONNA HARAWAY E O GIRO TECNOLÓGICO

DONNA HARAWAY E A TEORIA QUEER

(…) Ah, poder exprimir-me todo como um motor


se exprime! Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel
último-modelo! Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me
completamente, tornar-me passento A todos os
perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora
estupenda, negra, artificial e insaciável! (…)

Fernando Pessoa, Ode triunfal – Londres, 1914

Donna Haraway é uma bióloga, feminista e filósofa norte-americana,


professora da Universidade da Califórnia, Santa Cruz. Seu trabalho compreende
tanto a noção do ciborgue — noção que exploraremos com afinco, relacionando
com a teoria queer e um giro tecnológico — como, também, a relação entre
o humano e o animal não humano. Neste capítulo, vamos enfatizar a obra
Manifesto Ciborgue, de 1985. Porém, antes mesmo de entrar no que há de queer
neste manifesto, é indispensável analisar alguns princípios de uma genealogia
do ciborgue, além de propor uma aproximação da definição deste conceito na
autora.
É irônico que o ciborgue surja no final dos anos 5082, e tenha uma visibilidade
nos anos 60 e 70, décadas em que houve uma crescente popularização do

82
Na década de 60, nos anos loucos, há alguns acontecimentos importantes na área de uma tecnocultura
como, por exemplo, a entrada do russo Igor Gagarin no espaço; em 1967, o primeiro transplante de coração
na África do Sul; a chegada do homem à lua em 1969. No mesmo ano que o homem chega à lua temos o

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 233


ciborgue. Esta estreia é pungente porque nos anos 60 havia toda uma política,
todo um movimento cultural que procurava um retorno à Natureza, um retorno
à Deusa Mãe e, até mesmo, uma determinada tecnofobia, geralmente atrelada
não só a um medo das máquinas, mas a este retorno a uma natureza idealizada e
bucólica que caracteriza muito os anos loucos e uma grande parte do feminismo
da década de 70, principalmente, o ecofeminismo. Com relação a este arcaísmo,
Haraway (2000) não deixa de ser cáustica ao afirmar que “não se trata apenas
de que deus está morto: a deusa também está” (p. 60).
Nos anos 7083 encontramos a popularização do ciborgue, bem como uma
estética da precarização, que vai da música até a literatura, do Punk Rock até o
Ciberpunk. Ademais, estamos historicamente nos escombros de um pós-guerra,
como na produção tecnológica da Guerra Fria, ouvindo os motes punk de um
“no future”, de um “no hope”, ou seja, não haveria um horizonte claro, não
haveria futuro e nem esperança, nos encontraríamos abaixo de um céu de aço
e os grandes prédios não seriam casas, mas o cinza das multinacionais, lar de
uma classe abastada com os seus dedos sebosos.
O surgimento do ciborgue — enquanto uma hibridização humano-máquina
— não é grandioso como monstros hibridizados, nem como monstros de um
filme japonês que detêm em seu ventre o pulsar humano. O ciborgue surge do
tamanho exato de um rato. Trata-se, aliás, de um rato com um implante de
uma bomba osmótica que injeta doses precisas e controladas de substâncias
químicas capazes de alterar seus parâmetros fisiológicos. Este pacato surgimento
do agenciamento homem-máquina — o homem e o objeto técnico — acontece
no ambiente amorfo de um Hospital Estadual de Rockland, em Nova Iorque.
O termo “ciborgue”, por outro lado, surge dentro de uma ambição
maior. Manfred Clynes e Nathan Kline escrevem um artigo nos anos 60
sobre o que chamaram de “ciborgue”, um ser “ampliado”, com qualidades
para suportar as viagens espaciais. Já na década de 70, a imagem deste “ser
humano ampliado”, deste “ciborgue” é popularizada no nosso imaginário. Nos

primeiro festival de música de Woodstock, nos Estados Unidos, um marco musical e cultural que reflete bem
o clima político da época: uma esperança no futuro, em uma gama de possibilidades que estaria a céu aberto.
83
Na década de 70 pensemos tanto as mudanças sociais como, ademais, o ambiente cultural. Talvez o mote do
Punk Rock – especialmente do punk londrino - que clamava no future seja importante para uma aproximação
dos problemas irresolúveis de uma determinada sociabilidade. Lembremos que estamos num período pós-
Segunda Guerra Mundial, pós-ataques de Hiroshima e Nagasaki e no seio de uma Guerra Fria que envolvia
a ordem política, militar, ideológica, econômica, social. No nosso caso, apontamos a grande importância do
desenvolvimento tecnológico, ou seja, a estética do ciborgue espraiada no social.

234 RAFAEL LEOPOLDO


anos 80 e 90, o ciborgue já vai ter passado pelo sonho da cibernética como,
além disso, estará vinculado ao sistema de informação on-line, às próteses,
aos implantes, às mudanças de memória, não havendo qualquer resquício de
algo “verdadeiramente”, de um “autêntico”, de um “verdadeiro” humano, mas
tão somente agenciamentos homem-máquina. O sonho científico, o sonho
militar, o sonho da cibernética vai estar acoplado aos nossos corpos e é desta
forma que podemos compreender Donna Haraway num giro tecnológico que
adentra no feminismo e no pensamento queer, sugerindo um contraponto a um
determinado ecofeminismo demasiado ligado a uma natureza originária — que
seria também o feminino.

O CIBORGUE E A DISSOLUÇÃO DO HUMANO

Além do manifesto de Donna Haraway que nos servirá de escopo, no livro


Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano, há um pequeno ensaio
de Tomaz Tadeu chamado “Nós, ciborgues. O corpo elétrico e a dissolução
do humano”. Neste ensaio, a ideia de dissolução do humano deve ser levada
em conta, posto que pode nos remeter tanto para o fim de um determinado
tipo de sujeito — tema eloquente para a teoria queer — quanto para o pós-
humano. De forma tangencial e, às vezes, explícita, neste nosso estudo sobre a
cartografia do pensamento queer, abordaremos a importância do fim da ideia
de uma identidade cartesiana, da construção dura de um eu. Dessa forma,
compreendemos como a questão da identidade é crucial para o pensamento
queer e que ela pode, ademais, configurar-se como um ponto divisor em relação
a outras correntes teóricas, demonstrando os seus alinhamentos filosóficos, suas
alianças e seus divórcios.
Tomaz Tadeu faz o diagnóstico de que a subjetividade já se encontra em
ruínas desde os “mestres da suspeita”, ou seja, desde a tríade filosófica composta
por: Karl Marx, Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche. Acreditamos que o
desabamento se dê realmente com o quinteto polifônico pós-estruturalista:
Foucault, Derrida, Lyotard, Deleuze e Guattari. A respeito dessa identidade,
apontamos que o feminismo fez com que compreendêssemos essa identidade,
esse sujeito abstrato, racional, universal como por demais masculino, como
por demais branco, como por demais americano, como por demais europeu.
A teoria queer viu na própria construção de uma identidade das mulheres o

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 235


reflexo de uma mulher demasiadamente branca, uma mulher demasiadamente
de classe média alta, uma mulher profissionalmente estabelecida, uma mulher
que também deveria ser criticada por suas demandas que deixavam de lado
ou não representavam uma variedade de outros e outras; aqueles que vagam
fora; aqueles que estão à margem, nas fronteiras. Daí surgirem inúmeras cisões
dentro do próprio feminismo, mas, também, outras formas de política que não
levem tanto em conta a identidade, mas (no caso de Haraway), a afinidade, o
parentesco político; não o familismo, porém.
A análise queer e pós-colonialista do sujeito passa a considerar outros
elementos que já salientamos tantas vezes — pensemos nos textos de Gloria
Anzaldúa, um texto-ciborgue, poderia dizer Haraway — como o desejo, o poder,
a raça, o gênero, a classe, etc. Trata-se de compreender que esta subjetividade está
na história. Doravante se pensa também no ciborgue e na sua própria ontologia,
onde não haveria uma identidade fixa, uma identidade de “mármore” — para
usarmos uma palavra cara à antropologia brasileira após os escritos seminais de
Eduardo Viveiros de Castro —, do ciborgue surge outra antologia mais fluida,
que pensa o fluxo e a intensidade depois destes elementos: o surgimento do
sujeito como um resto do maquínico, à maneira de Deleuze e Guattari n’O
anti-Édipo.
O ciborgue irrompe como possibilidade de pensamento para o queer, pois
faz elaborações sobre o objeto técnico, sobre a tecnocultura, sobre os órgãos
artificiais, os anabolizantes, as vacinas, os psicofármacos, os seres modificados
geneticamente, as supermodelos, os supersoldados 24/7, os clones, dentre
outros. O teórico queer Paul Beatriz Preciado não esquecerá as lições de
Haraway, produzindo todo um saber que não vai só envolver a ideia de uma
performatividade, mas, também, a ideia da materialidade dos corpos. Paul
Preciado traz à tona dois conceitos ótimos: o primeiro é o de contrassexualidade
como uma forma de análise; o segundo é o de poder farmacopornográfico, que
Peter Pál Pelbart (2016) compreende como uma molecularização do biopoder,
já que “o êxito da ciência estaria em transformar a depressão em Prozac, a
masculinidade em testosterona, a ereção em Viagra etc” (p 142). De qualquer
maneira, o ciborgue vai tecnodigerindo também uma gama de dualismos, ao
colocar tudo em questão com os seus objetos científicos, com a sua tecnocultura.
Estes dados não dizem respeito a um sonho distante, mas a uma realidade já
posta. O no future punk — para pensarmos um estilo musical da época dos

236 RAFAEL LEOPOLDO


ciborgues — também é um futuro vivenciado e não uma trajetória épica, é o
futuro que é presente, pois não haveria nenhum futuro por vir.
Mesmo assim, esta realidade ciborguiana estaria atrelada à ida a uma
academia, ao uso de energéticos para o body building, para a produção de um
corpo que visa à alta performance e tantas outras alterações tecnoculturais.
O ciborgue estaria nos nossos pés quando fazemos um pequeno jogging e
escolhemos calçados esportivos, ou ainda, nos jogos olímpicos onde o calçado
é ligado à medicina, à dieta, à disciplina, ao treinamento constante, etc. Não se
trata mais de apenas correr, mas de uma produção ciborguiana. Poderíamos
até comentar que há drogas lícitas e ilícitas nas Olimpíadas, mas que sempre
haverá o uso de drogas, sempre haverá uma rede tecnocultural de reprodução
da artificialidade; aliás, é até razoável admitir que há tão somente o artificial
sem um natural, o que torna a noção da transexualidade84 no esporte não só
uma questão tecnocultural, mas, sobretudo, uma questão ética.
Finalmente, o humano se dissolve numa outra ontologia, “se com Darwin
o homem se tornou ontologicamente indistinguível dos outros seres vivos,
a existência real de ciborgues torna problemática distinções ontológicas
demasiadamente nítidas entre homem e máquina” (Tadeu, 2000, p. 18). E
veremos mais à frente como Haraway tem prazer em confundir as fronteiras.
Neste enquadramento específico, adentramos em alguns aspectos do Manifesto
Ciborgue: 1) o ciborgue e as masculinidades, salientando algumas questões a
respeito de um aparato tecnológico repressor e da reestruturação das relações
entre o homem e a mulher no capitalismo tardio; 2) a produção de uma
imaginação política que envolve o ciborgue, o corpo orgânico e a tecnologia,
pensando a análise político-ficcional de Haraway; 3) e, por último, a possibilidade
de uma literatura ciborgue. Estes elementos vão possibilitar um giro tecnológico
no sentido não só de se inserir a tecnologia em questão, mas de uma tentativa de

84
Faço este apontamento lembrando que o COI – Comitê Olímpico Internacional – mudou em 2016 sua
resolução a respeito de atletas transexuais nas competições oficiais. Todavia, mesmo que não seja necessária
a mudança de sexo, no caso das mulheres, a COI ainda julga necessário o controle da testosterona, o controle
do “hormônio masculino”. Mesmo diante de uma flexibilidade tardia da COI, há um forte preconceito contra
os e as atletas transexuais por parte do público, principalmente, a respeito da transmulher, MTF, uma vez
que o correlato da não aceitação da identidade de gênero trans é pensar que haveria uma trapaça por parte
delas devido a uma estrutura corporal masculina.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 237


re-apropriação de algo que, geralmente, é visto com um demasiado fervor — o
discurso tecnoutópico — ou com um medo extremo85 — o discurso tecnofóbico.

O CIBORGUE E AS MASCULINIDADES

O último capítulo deste livro é reservado, especificamente, para refletirmos


“A teoria queer e as masculinidades”; apesar de, em várias situações deste estudo,
a masculinidade já ter sido alvo de atenção, por exemplo, quando abordávamos
a análise da prostituição masculina feita pelo pensador argentino Perlongher
(ver o capítulo intitulado “A teoria queer e o pensamento homoerótico”). Ao
pensar o Manifesto Ciborgue não será diferente, pois também nos avizinharemos
do mote da masculinidade, no sentido de que há passagens interessantes e
dignas de nota sobre o capitalismo e outras construções do masculino, sobre o
capitalismo e sua interpelação à determinada virilidade.
Em seu “Manifesto”, Donna Haraway mostra as três principais fases
do capitalismo, compreendidas da seguinte forma: comercial/industrial,
monopolista e multinacional. Por sua vez, Haraway argumenta que essas
configurações se relacionam a determinadas formas de famílias e propõe uma
esquematização: 1) a família nuclear patriarcal; 2) a família moderna mediana;
3) e a família da economia do trabalho caseiro.
A primeira é relacionada a uma estrutura dicotômica entre o público e o
privado, acompanhada pela ideologia da separação entre o público e o privado
e associada ao feminismo burguês anglo-americano do século 19. A segunda
é pertinente ao estado de bem-estar social — algo que não aconteceu, por
exemplo, na sociedade brasileira, onde a seguridade social é usada não como
potencialidade de vida, mas como uma ferramenta de controle social. A terceira
é relacionada a uma contraditória estrutura de casas chefiadas por mulheres e
pela pluralidade de feminismos. Após esta caracterização, Haraway pratica o que
ela propõe a todo tempo no “Manifesto”: uma conexão com as novas tecnologias.

Há uma literatura a respeito do medo; todavia, talvez a perspectiva mais interessante para pensarmos a
85

América Latina esteja no pensamento do xamã Davi Kopenawa exposto no seu livro A queda do céu: palavras
de um xamã yanomami. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro relaciona este xamã com o filósofo Günder
Anders e seu desenvolvimento nesta linha, no ensaio O sombrio sonho d’A queda do céu. Trata-se de pensar
em determinado momento o valor heurístico do medo e a potencialidade das distopias.

238 RAFAEL LEOPOLDO


Na última visão temos um novo contexto onde as novas tecnologias se
tornaram parte da economia mundial e:

À medida que a robótica e as tecnologias que lhe são relacionadas expulsam


os homens do emprego nos países “desenvolvidos” e tornam mais difícil gerar
empregos masculinos nos países “em desenvolvimento” do Terceiro Mundo
e à medida que o escritório automatizado se torna a regra mesmo em países
com reserva de trabalhadores, a feminização do trabalho intensifica-se. As
mulheres negras nos Estados Unidos sabem desde há muito tempo o que
significa enfrentar o subemprego estrutural (“feminização”) dos homens
negros, bem como sua própria e altamente vulnerável posição na economia
salarial. Um número maior de mulheres e homens ver-se-á frente a situações
similares, o que fará com que alianças que atravessem o gênero e a raça,
formadas em torno das questões ligadas à sustentação básica da vida (com ou
sem emprego), se tornem necessárias e não apenas desejáveis (Haraway, 2000,
p 70. Itálico nosso).

Dois pontos são interessantes neste fragmento: 1) o primeiro é a relação da


tecnologia com o trabalho, a produção/criação de uma maior precariedade; 2)
em segundo lugar, há a exigência de novas formas de relação — não somente
no âmbito familiar — entre o homem e a mulher. Desta maneira, na família da
economia do trabalho caseiro, em um ambiente cada vez mais precarizado e, ainda,
diante da exigência de novas relações, o masculino é interpelado a determinadas
modificações juntamente com a tecnocultura, sobretudo diante de seus aspectos
repressivos, de seus aparatos high-tech violentos86. Diante destas modificações, as
masculinidades têm que mudar não apenas no âmbito familiar, mas, também,
na prática de uma produção científica. Cabe acrescentar, ainda, a importância
da inclusão de outras perspectivas dentro da produção tecnológica, pois, se há

86
É interessante observar que o medo da tecnologia – e sua relação com a empregabilidade – pode ser
compreendida até mesmo nos anos 70. Nesta década não há somente o punk rock londrino e sua crítica
social, mas o surgimento da disco music, uma música mais amena e os seus bailes, um som mais suave e sua
diversão. Por certo, a disco music era mais próxima da cultura hippie dos anos 60 do que do rock and roll
cada vez mais crítico da década posterior e, por vezes, destrutivo. Os roqueiros, em sua maioria, fizeram uma
verdadeira inquisição contra a disco music, argumentando que ela seria alienada e, ademais, que usaria uma
tecnologia para a sua produção musical. Neste uso dos objetos técnicos, os roqueiros viam um velho tema
social – tratado por Karl Marx no livro O capital, no primeiro capítulo, na quarta parte – que é a substituição
do homem pela máquina, a substituição dos operários pelo aparato tecnológico. Desta forma, eles como nas
revoltas operárias do século 17 contra as máquinas de tecer, ou como nas revoltas operárias do século 18
contra a máquina de tosar lã movida a água – onde 100,00 pessoas ficaram sem empregos – se revoltaram
contra as máquinas, ou melhor, contra a disco music, queimando os seus vinis e tentando enterrar o seu ritmo
eletrônico, o seu ritmo não humano.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 239


neste contexto teórico-científico a prevalência de uma masculinidade tóxica, é
inadiável incluir uma variedade de outros elementos, de outras subjetividades,
para uma ciência não ser produzida como aparato repressivo, isto é, o caráter
que produz toda a tecnofobia e as distopias tecnológicas da literatura ciberpunk.

O CIBORGUE E A IMAGINAÇÃO POLÍTICA

O Manifesto Ciborgue é denominado por Donna Haraway como uma ficção


científica, de modo que poderíamos chamá-lo de um feminismo especulativo, de
uma análise político-ficcional, uma análise sobre o poder utopista das ficções. A
matéria deste ensaio político-ficcional é o ciborgue e um poder imaginativo. Por
isso, vamos encontrar neste pequeno texto palavras como: “imaginação”, “tempo
mítico”, “quimeras”, “híbridos”, “utopia”, “imagística corporal”, “visão de mundo”,
“os ciborgues são éter”, “os ciborgues são quintessência”, “os engenheiros são
adoradores do sol”, dentre outras expressões. Todos esses termos nos remetem
a essa nova imaginação política. No entanto, devemos lembrar-nos dos pais
dos ciborgues — o capitalismo e o militarismo — pois tal filiação é o que pode
carregar o que há de mais assombroso na tecnologia. Haraway acredita que o
ciborgue é um filho bastardo desta união entre o capitalismo e o militarismo,
e que há uma gama de possibilidades neste híbrido homem-máquina, neste
agenciamento homem e o objeto tecnológico.
Salientado o perigo parental do ciborgue, há a ameaça do próprio poder
imaginativo. Em seu ensaio Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero
e anticolonial da violência!, Jota Mombaça tem um tópico-cena chamado
“ficções de poder e poder das ficções” que poderíamos facilmente relacionar
com o texto de Haraway. Se ativamos Mombaça neste momento é para tê-
lo como uma espécie de aviso, como uma espécie de advertência diante das
produções político-ficcionais. O ensaio de Mombaça é, sobretudo, a respeito
do monopólio da violência e de sua possível redistribuição. O autor aponta
que a ficção científica é uma das linhas de tensão entre as ficções de poder e o
poder visionário das ficções. Este poder ficcional é pungentemente formulado
por um homem branco, cisgênero, heterossexual e de classe alta, que encontra
diversas distopias, que parece detectar cada vez mais a linha dura da sociedade
disciplinar e da sociedade de controle. O aviso de Mombaça a este respeito é que
a revelação deste maquinário de poder projetando-o no futuro coincide com

240 RAFAEL LEOPOLDO


a tarefa ingrata da produção de tais máquinas, tendo-as como uma espécie de
futuro inescapável87. Para Mombaça, é necessário um trabalho de reimaginação
do mundo, recriação de formas de resistências e linhas de fuga que vão contra
as ficções de domínio totalizantes. Eis que o ciborgue, a política-ficcional de
Haraway, se apresenta num espaço desde o início ambíguo: entre o fascínio e
o medo do híbrido.
Há toda uma literatura e uma filmografia sobre esta ambiguidade do
ciborgue, entre este deslumbre e este temor. Haraway enfatiza o ciborgue como
algo positivo para uma espécie de novo feminismo tecnológico, o que levanta
uma sorte de possibilidades para o pensamento queer e as fronteiras. Além
disso, mais drasticamente, trata-se de saber que “nós somos responsáveis pelas
fronteiras; nós somos essas fronteiras” (Haraway, 200, p. 97); que nós poderíamos
extrair prazer das máquinas; que o gênero pode não ser a identidade global,
mesmo que tenha sua profundidade e amplitude histórica; que é perfeitamente
possível entender que “o gênero ciborguiano é uma possibilidade local que
executa uma vingança global. (...) Não existe nenhum impulso nos ciborgues
para a produção de uma teoria total; o que existe é uma experiência íntima
sobre fronteiras – sobre sua construção e desconstrução” (Haraway, 2000, p. 98).
A filósofa nega, desta forma, uma produção totalizante, como, ademais, uma
demonologia da tecnologia, e abraça a tarefa de pensar as fronteiras, de pensar
as conexões parciais. Trata-se do feminismo em glossolalia para “incutir o medo
nos circuitos dos supersalvadores da direita” (Haraway, 2000, p. 99). Enfim, o
giro tecnológico de Haraway se dá em sua preferência de ser um ciborgue e
não uma deusa.

A LITERATURA CIBORGUE

A luta do ciborgue envolve a linguagem, “a luta contra a comunicação


perfeita, contra o código único que traduz todo o significado de uma
forma perfeita – o dogma central do falogocentrismo” (Haraway, 2000, 88).

87
Proponho uma leitura diferente de Jota Mombaça, na qual compreendo a distopia sobretudo com um valor
educacional, com um valor heurístico. A distopia é um futuro que pode ser, mas que deveríamos evitá-lo. Não
se trata do único futuro possível, mas de um sombrio futuro que talvez se torne real se não for desativado. E
na própria distopia podemos encontrar não somente as linhas duras de uma ficção de domínio totalizante,
mas, também, as linhas de fuga para o presente.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 241


Consequentemente, a filósofa não deixará de lado o texto e seus ruídos, a sua
poluição; não abandonará a possibilidade de uma escrita-ciborgue.
A aliança de Haraway se dá com as construções das mulheres de cor e, para
além, a construção de “eus” monstruosos, feitos na ficção cientifica feminista.
Temos, portanto, dois pontos basilares para o mito do ciborgue e os insights de
Haraway: o feminismo negro/de cor e a ficção científica. A respeito do primeiro,
Haraway toma como exemplo a importância da escrita para todos os grupos
colonizados e, diante disso, a autora afirma:

A escrita tem sido crucial para o mito ocidental da distinção entre culturas
orais e escritas, entre mentalidades primitivas e civilizadas. Mais recentemente,
essas distinções têm sido descontruídas por aquelas teorias pós-modernas
que atacam o falogocentrismo do ocidente, com sua adoração do trabalho
monoteísta, fálico, legitimizado e singular – o nome único e perfeito. Disputas
em torno dos significados da escrita são uma forma importante da luta política
contemporânea. Liberar o jogo da escrita é uma coisa extremamente séria.
A poesia e as histórias das mulheres de cor estadunidenses dizem respeito,
repetidamente, à escrita, ao acesso ao poder de significar; mas desta vez o
poder não deve ser nem fálico nem inocente. A escrita-ciborgue não tem a
ver com a Queda, com a fantasia de uma totalidade que, “era-uma-vez”, existia
antes da linguagem, antes da escrita, andes do Homem. A escrita-ciborgue
tem a ver com o poder de sobreviver, não com base em uma inocência
original, mas com base na tomada de posse dos mesmos instrumentos para
marcar o mundo que as marcou como outras (Haraway, 2000, p. 86).

Trata-se agora de autoras-ciborgues, daqueles e daquelas sobreviventes a


todo o colonialismo, que ainda preservam a linguagem ou recapturam-na na sua
escrita-ciborgue: “as mulheres de cor transformam-na, de uma mãe diabólica,
nascida do medo masculinista, em uma mãe originalmente alfabetizada que
ensina a sobrevivência” (Haraway, 2000, p. 89).
Além desta resistência colonial das mulheres de cor e da sua linguagem,
Haraway nos traz à baila a ficção científica feminista. É diante da ficção científica
feminista que ela introduz a temática dos monstros-ciborgue que “tornam
bastante problemático o status de homem ou mulher, humano, artefato, membro
de uma raça, entidade individual ou corpo” (Haraway, 2000, p. 93). Os livros
citados pela filósofa são exemplares na transgressão de fronteiras e nós somos
estas fronteiras. Os monstros no imaginário ocidental é que definem os limites
da comunidade, os monstros-ciborgue embaralham todas as expectativas, todos
os limites. No sentido de um giro tecnológico com Haraway, compreendemos

242 RAFAEL LEOPOLDO


que a máquina não deve ser idolatrada ou/e dominada — o velho projeto dos
Modernos —, mas a própria máquina coincidiria conosco, ela seria um aspecto
da nossa corporificação, ou ainda, incorporação. Neste momento, nos afastamos
da corporificação feminina orgânica, dada, necessária e, então, nos defrontamos
com nós ciborgues.

MANIFESTO CIBORGUE E O GIRO TECNOLÓGICO

Se atestávamos que o Manifesto Ciborgue traz à tona um giro tecnológico


no pensamento queer, dois apontamentos ainda são instigantes: 1) este giro
tecnológico parece surgir como um contraponto a um culto à Deusa, ao
feminino orgânico, à tentativa de uma visão holística, a elementos que podemos
encontrar dispersos nos diversos ecofeminismos; 2) mas, Haraway não vai ficar
à margem das questões da “mudança ambiental” e, sobretudo, o antropoceno88,
ou, como ela prefere nomear, o “Chthuluceno”. Creio que estes dois pontos sejam
determinantes para reforçar o giro tecnológico como, também, reafirmarmos que
mesmo diante deste agenciamento tecnológico, Haraway não ignorará a questão
ambiental, trabalhando em outros termos que não são o do ecofeminismo,
principalmente, dos anos 70 e 80, depois da publicação do livro Primavera
Silenciosa, de Rachel Carson, em 1962.
O livro de Rachel Carson, Primavera Silenciosa, foi o grande aviso sobre
os pesticidas sintéticos (como o DDT): tóxicos para o ecossistema e à saúde
humana, e não humana. O livro de Carson provocou um amplo impacto, não
atingindo apenas o público acadêmico e gerando uma grande preocupação
ambiental e com a saúde em geral. Mesmo Carson não sendo feminista, sua
obra gerou um debate forte e uma variedade de ativismos com relação às
demandas ambientais dentro do próprio feminismo. O ecofeminismo geralmente
relacionou o orgânico e a terra com a mulher, com o feminino, asseverando uma
afinidade biológica das mulheres com a natureza e afirmando que a exploração

88
O conceito de Antropoceno é usado de forma cada vez mais comum para caracterizar uma nova era
geológica. O termo é um neologismo constituído com o prefixo anthropo (humanidade) e o sufixo cene
(novo). O termo foi cunhado pelo químico Paul Crutzen e o ecologista Eugene Stoermer e apesar do termo
sofrer grandes contestações ele parece não perder a sua força como um conceito operacional. Paul Crutzen
salienta o início do Antropoceno com uma data precisa, ele teria começado em 1784 e o começo da revolução
industrial, porém alguns autores colocam o Antropoceno juntamente com o surgimento da tecnologia-nuclear
e os seus traços radioativos deixados na Terra (Whitehead, 2014, p.5).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 243


masculina — com ideais europeus das revoluções científicas do século 17 — da
natureza é correlata à exploração masculina da mulher, às vezes, até mesmo
essencializando estes papéis. O homem como o vilão-colonizador e a mulher
como a vítima-terra. Talvez, uma das principais respostas dos anos 70/90
para esta questão dos “ideais masculinistas” e de um “homem patriarcal” seja
um retorno à natureza, um retorno à Deusa, retorno que observamos que na
perspectiva de Haraway será criticado quando prepara as peças do ciborgue,
quando prepara os seus arranjos e suas montagens conceituais.
De qualquer forma, não é somente o ciborgue que será uma crítica
ao ecofeminismo, a tentativa de retorno à natureza, ao orgânico; quando
relembramos o antropoceno também parece que as questões ambientais não
têm mais como principal temática este retorno. Sobretudo, pensar os mil nomes
de Gaia; pensar a terra e os seus possíveis fins. Ironicamente, no Sul Global, a
grande contribuição teórica brasileira será dada, principalmente, não pela via
do feminismo, mas com a filósofa Déborah Danowski e o antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, por meio da obra Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos
e os fins. Nela, os autores diante do antropoceno, diante de uma política que
valora o aceleracionismo89 (ver, por exemplo, Srnicek e Williams, 2015; Neto,
2015) apresentam como contraponto o devir-índio, os Terranos, aqueles que
estão do lado da Terra, de Gaia, do povo que falta, etc. Haraway também cita
os Terranos — termo de Bruno Latour — mas com o intuito de construir
refúgios, de unir forças, de fazer uma recomposição biológica-cultural-política-
tecnológica. Quem sabe a questão nunca foi ser um “pós-humano” no sentido
pobre do termo, onde o espírito domina totalmente a matéria90 — seu suporte
tecnobiológico — mas antes no sentido que Haraway diz ser “compostista”, ou
seja, somos todos compostos, adubo, e não necessariamente pós-humanos.

89
Uma política aceleracionista envolve a tentativa de levar o capitalismo e todo o seu processo sócio-
tecnologico as últimas conseguencias. Trata-se de ampliar o capitalismo, de acelerar o capitalismo até que
haja uma mutação, ou, eliminação do mesmo.
90
O filme cyberpunk A vigilante do amanhã: ghost in the shell, dirigido por Rupert Sanders, com atuação de
Scarlett Johansson, se mostrou herdeiro de uma dicotomia platônica entre o mundo material e o mundo das
ideias, em outros termos, entre a matéria e o pensamento. Na tradição metafísica e cristã ocidental se valoriza
as ideias, o pensamento, a mente, o espírito, o cérebro e não o corpo, a matéria, os objetos, a natureza etc. O
ideal de senhorio e domínio da natureza – ideais Modernos-Humanos diferentes dos ideais Terranos – podem
reaparecer até mesmo numa estética cyberpunk como no filme citado, onde a matéria se torna uma espécie de
hospedeiro tecnobiológico da mente, empobrecendo a relação de composição com a matéria, empobrecendo
o agenciamento – montagens e arranjos – homem-máquina num simples dualismo platônico com resquícios
do poderio cartesiano (sobre a questão da filosofia da mente ver Costa 2005; Teixeira, 2015).

244 RAFAEL LEOPOLDO


PAUL BEATRIZ PRECIADO
E A HISTÓRIA DAS TECNOLOGIAS

PAUL BEATRIZ PRECIADO E A TEORIA QUEER

Paul Beatriz Preciado é um dos teóricos mais recentes do pensamento queer


e, juntamente com Donna Haraway, compõe outros aspectos do giro tecnológico.
Depois desta longa explanação, trocamos o Manifesto Ciborgue pelo Manifesto
Contrassexual. Aqui podemos notar que a forma — o gênero literário manifesto
— será a mesma. Ademais, os dois textos coadunam com a ideia de uma ênfase
na tecnologia (sobre o gênero manifesto, ver, por exemplo, Puchner, 2006).
Tomemos estes dois pontos para uma possível introdução ao pensamento de
Preciado, antes de investigarmos em uma apresentação biográfica, em uma
análise do conceito de contrassexualidade e de uma Era da Farmacopornografia.
A respeito da configuração do livro de Preciado — e podemos pensar no
livro de Haraway — um primeiro dado a ser enfatizado é a forma literária, o seu
gênero, pois se trata de um manifesto. O manifesto poderia ser compreendido
como um gênero queer por excelência, já que há uma usurpação do gênero
literário; se o manifesto era usado por soberanos para emitir determinadas leis
— o seu uso primário —, posteriormente ele é furtado para um uso político — o
seu uso secundário —, ganhando a forma que conhecemos hoje nos manifestos
feministas e queer.
De qualquer forma, o manifesto ainda mantém um caráter político e de
urgência que remonta ao seu uso primário e secundário. Porém, se pensarmos
os manifestos atuais — e elencarmos os seus elementos — cairemos, sobretudo,
diante dos manifestos artísticos avant-garde e sua crítica entre a distância da
vida e da arte, questão que poderia reacender aspectos da querela entre teoria
e prática. Neste sentido, o manifesto ganha um contorno mais programático do
que uma produção-teórica — podemos, inclusive, visualizar isso claramente no

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 245


texto de Preciado. Por último, a respeito do manifesto, ele é apresentado como
uma grande ambição performática, teatral e com vistas a efeitos revolucionários.
No tocante a um determinado contexto teórico queer – o giro tecnológico – é
necessário compreender que Preciado está longe de um ecofeminismo e de um
retorno à natureza. Este filósofo também não coaduna de forma irrestrita com
o feminismo construtivista — Preciado faz de Judith Butler o seu argumento
do espantalho91 –, pois seria obrigatório não esquecer os fatores biológicos,
a materialidade do corpo. É pensando nesta materialidade que Preciado vai
reaver toda uma tecnologia sexual produtora e modificadora do corpo. Esta
tecnologia terá o nome de contrassexualidade. Outro conceito base de Preciado
que envolve a tecnologia é o de um poder farmacopornográfico, o de um regime
farmacopornográfico. Com este conceito, entramos no período pós-Segunda
Guerra Mundial dos estudos sobre intersexualidade, transexualidade, sem
esquecer o surgimento da pílula, que é interessante para entender este conceito,
esta “Era farmacopornográfica”. Posto estes dois pontos — o gênero literário e
o giro tecnológico — redirecionamos nosso olhar para as demais questões que
este autor nos propõe, compreendendo alguns afastamentos com relação ao
feminismo e determinadas alianças que nos parecem ser novas.

PAUL BEATRIZ PRECIADO E A PRODUÇÃO TEÓRICA QUEER

Paul Beatriz Preciado é um filósofo espanhol com mestrado em Filosofia


Contemporânea e Teoria de Gênero na School for Social Research, de Nova
Iorque, e doutorado em Arquitetura pela Universidade de Princeton. É professor
de História Política do Corpo e Teoria de Gênero, em Paris VIII.
A respeito de sua produção teórica, seu primeiro livro é o Manifesto
Contrassexual, publicado em 2002. Nesta primeira obra, encontramos um
diálogo forte com Haraway, Foucault e Derrida. Com esta produção, a teoria
queer passa a ganhar novas nuances. O conceito de contrassexualidade se torna
um operador importante para pensarmos tanto as sexualidades hegemônicas
quanto as dissidentes, refletindo sobre a artificialidade do processo social da
construção das sexualidades, juntamente com a construção naturalista que

91
O argumento do espantalho, ou, falácia do homem de palha é quando uma pessoa ignora a real posição
do adversário no dabate e, então, ataca uma versão distorcida dela, ataca um espantalho. A falácia está em
produzir uma distorção proposital do adversário com o objetivo de mais facilmente atacá-lo.

246 RAFAEL LEOPOLDO


envolve os processos biológicos. Com este novo conceito, aprofundamos no
giro tecnológico de forma ainda mais pungente, pois há em Paul Preciado
um materialismo protético em contraponto à compreensão refletindo só
a performatividade ou um construtivismo. A materialidade do corpo e as
modificações tecnológicas serão decisivas para este filósofo no que se refere a
uma abertura biológica em sua produção.
Na segunda obra de Preciado, o livro Testo Yonqui92, de 2008, encontramos
o conceito de um regime farmacopornográfico que abrange o discurso do autor
de forma reiterada. Peter Pál Pelbart (2016), ao analisar os desdobramentos
deste livro, transmite que há uma molecularização do biopoder devido ao
poder farmacêutico. Pelbart nos cede uma imagem interessante, retomando o
texto do Paul, onde “a pílula anticoncepcional seria uma espécie de panóptico
comestível, individualizado, portátil, leve, afável, que modifica o comportamento,
temporaliza a ação, regula a atividade sexual, controla o crescimento da
população, etc.” (p. 144. Itálico nosso), onde observa-se que há, neste momento,
uma molecularização tanto do biopoder quanto da disciplina.

Fonte: imagem utilizada por Paul Beatriz Preciado em uma conferência em Roma, 2010. Nesta
imagem, temos, no lado esquerdo, uma figura do panóptico e, no direito, a imagem de uma pílula;
a primeira imagem nos remete sobretudo a Foucault, e sua análise do surgimento do sujeito
moderno via disciplinas; e, a segunda, ao poder farmacopornográfico sobre o sujeito.

92
Preciado usa a noção de “yonqui”, que em inglês é junkie e, em português, poderia ser traduzido como
“viciado”. Encontramos então um texto viciado, ou melhor, um texto-corpo de intoxicação voluntária, um texto-
corpo de experimentação. Seria ainda interessante fazer uma genealogia de textos com este intuito de intoxicação
voluntária e, com certeza, numa tal genealogia da experimentação não poderiam faltar pensadores de peso como
o psicanalista Sigmund Freud e a sua relação com a cocaína, o filósofo Walter Benjamin e o uso do haxixe etc.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 247


Agora, atravessando outro limiar, nos defrontamos com o trabalho mais
recente de Preciado, o ensaio Pornotopia, de 2011, onde é possível encontrar
uma análise da arquitetura e da sexualidade durante a Guerra Fria, tendo em
vista a revista Playboy. Neste projeto, Paul Preciado trabalha, por exemplo, de
que forma a Playboy, desde o seu início, foi também um plano arquitetônico, e
como a arquitetura se vinculava ao sexo e ao gênero, produzindo, na década de
50, outra forma de subjetividade. Ou como de fato — nos dizeres de Preciado —,
ela “esquentou” a Guerra Fria, não só com os seus artigos sobre Jazz, contos sobre
adultério, exaltação do uso de drogas, mas, também, com a presença de Marilyn
Monroe nua em suas páginas, tornando público o que então era privado, íntimo.
Aliado à circulação da revista Playboy, que ganha o seu arvorecer na década
de 50-60, cria-se também todo um arquipélago de clubs, de hotéis, toda uma forma
distinta de montar e habitar o interior das casas. Pornotopia é grandioso em sua
análise da “Disneylândia para adultos” que Hugh Hefner criou. Helfner compreende
que essa Disneylândia tem um tópos — um lugar especial para o homem branco
e heterossexual que é o leitor ideal da revista Playboy — muito específico.

Fonte: Hight Street Market. Paul Beatriz Preciado nos mostra a importância da arquitetura no
início da revista Playboy. Nesta imagem, temos um design feito por R. Donald Jaye. Este desenho
faz parte da tentativa de construção de um determinado homem moderno – que de fato nos
influencia. Trata-se de uma pornotopía. Percebemos como todo o “ainda” desta imagem se mostra
hiperconectado tal como somos no nosso dia a dia. Este dado tecnológico no pensamento de
Preciado reverbera tanto na sua análise de uma era farmacopornográfica quanto no nosso atual
processo de vigilância que, talvez, o seu maior teórico seja Foucault.

248 RAFAEL LEOPOLDO


Dados estes elementos introdutórios, já compreendemos como Preciado
está imiscuído desde a sua primeira obra na produção da teoria queer. Veremos
na obra dele tanto uma continuação do giro tecnológico produzido por Haraway
quanto, também, a ênfase na produção contrassexual do autor e a sua concepção
de um poder farmacopornográfico. De posse destes componentes, estaríamos
no cerne do que foi produzido por Preciado até o presente, e abrangeríamos a
sua atual contribuição para o pensamento queer.

O MANIFESTO CONTRASSEXUAL

Através de Paul Beatriz Preciado e seu Manifesto Contrassexual, encontramos


um texto erudito e popular, no que tange tanto à filosofia quanto ao feminismo.
O autor vai manejar com maestria filósofos como Foucault, Derrida, Deleuze,
Guattari, e feministas como Haraway, Wittig, Butler e Gayle.
Citamos estes pensadores e pensadoras para destacarmos o fundo teórico
que envolve o seu principal conceito que serve como análise do social. Tal
conceito é o de contrassexualidade. No intuito de mapeá-lo melhor, englobamos
quatro elementos aproximativos; quatro pontos para que possamos nos preparar
para uma iniciação na obra do autor, compreendendo e problematizando esta
elaboração de Preciado.
O primeiro ponto trata de uma aproximação filosófica que integra tanto a
filosofia de Foucault quanto o feminismo de Haraway; o segundo ponto propõe
algumas características da temporalidade da contrassexualidade, a sua parte
dura e o seu elemento flexível; o terceiro ponto é a própria compreensão da
contrassexualidade como uma tecnologia biopolítica (novamente, um conceito
foucaultiano).

O CONCEITO DE CONTRASSEXUALIDADE

1. Contraprodutividade e fundamentação teórica: o filósofo afirma que o


conceito contrassexualidade provém indiretamente de Foucault, remontando
a aspectos como o seu conceito de poder e a ideia de resistência. Trata-se
de pensar que, talvez, a melhor forma de resistência não seja uma “luta pela

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 249


libertação”, mas, sobretudo, criar uma contraprodutividade, isto é, produzir
um saber alternativo. Poderíamos tomar como exemplo a famosa temática
da pornografia que, geralmente, as feministas criticam como uma forma de
objetificação da mulher; tratar-se-ia de uma forma masculina de subjugar o
feminino, de uma produção heterocentrada e da produção de uma pedagogia
sexual pornográfica; uma forma de contraprodutividade, contudo, é quando
as feministas não lutam por uma libertação com relação à pornografia, mas
passam a produzir a sua própria pornografia de uma forma distinta. A respeito
da segunda referência, quando Preciado evoca Haraway, é necessário pontuar
que o filósofo sugere mudar uma história da humanidade por uma história
das tecnologias. No vigente momento, estamos em cheio no giro tecnológico
produzido por Haraway. Preciado vai absorver o gênero como um sistema
tecnológico complexo. As histórias tecnológicas nos remetem a Haraway e o seu
fervor de brincar com as fronteiras e, no caso de Preciado, a fronteira principal
retratada é entre o órgão e o plástico.
2. Temporalidade da contrassexualidade: é significativo quando Preciado
escreve sobre duas temporalidades da contrassexualidade. Uma primeira
temporalidade fixa e a outra constituída de múltiplos “agoras”. Nesta primeira
temporalidade, as tecnologias sexuais se apresentam como fixas, como naturais
e as tentativas de modificá-las são combatidas de forma violenta. Há todo um
rechaço, todo um medo contra qualquer desvio da produção de estruturas
rígidas. A segunda temporalidade, por sua vez, é composta de múltiplos “agoras”
que não se relacionariam com uma verdade natural da identidade sexual, mas
com o seu fluir, com determinada plasticidade. Na primeira temporalidade,
há uma fundamentação metafísica das tecnologias sexuais; na segunda, um
saber dos “agoras”. Em linhas gerais, seria certeiro exprimir que na primeira
encontramos a forma fixa e dura; na segunda o fluir e a plasticidade; no primeiro
a realidade estanque; no segundo o fluxo.
3. Tecnologia biopolítica e contrassexualidade: neste terceiro elemento já
encontramos outro conceito de Foucault: a biopolítica. Todavia, antes de sinalizar
qualquer tese a respeito, é interessante afirmar que, no manifesto de Preciado,
a contrassexualidade parte do desvio, do queer. É por meio do perverso que
compreendemos a norma e, por conseguinte, a desnaturalizamos. A abordagem
de Preciado é que a “natureza humana” é um efeito de uma tecnologia social
que produz os corpos. Há, por exemplo, o sistema heterossocial que reproduz
os corpos e fabrica zonas erógenas. Nesta produção hétero, temos, ademais, a

250 RAFAEL LEOPOLDO


produção do masculino e do feminino, as práticas sexuais atribuídas a cada
gênero, por exemplo, a passividade e a atividade. Nesta produção tecnológica
— da heterossexualidade —encontramos também determinados privilégios.
O conceito de contrassexualidade teria, neste momento, a função de identificar
determinados espaços errôneos desta tecnologia heterossocial. Trata-se de
distinguir “falhas” como os corpos intersexuais, loucas, bichas, sapas, histéricas,
frígidas, etc. Assimilamos a contrassexualidade como um conceito que opera
mostrando a criação dos corpos como tecnologias, mas, também, apontando
as suas falhas. Poderíamos expressar, talvez, que há também uma tecnologia
social queer e o manifesto de Preciado parece querer intensificá-la.

O PODER FARMACOPORNOGRÁFICO

Seguidamente, tomamos como tema tanto o livro Testo Yonqui e a obra Le


cinque giornate lesbiche in teoria, onde encontramos um texto de Preciado sobre
o regime farmacopornográfico e o transfeminismo: “Transfeminismo no regime
farmacopornográfico”. Nosso foco, principalmente, é a fala desta segunda obra
citada, posterior ao Testo Yonqui, e que faz algumas referências a ele. Passamos de
forma veloz por algumas temáticas como a intersexualidade, a transexualidade,
e, principalmente, a ideia de um regime farmacopornográfico, envolto em um
retorno ao naturalismo, ou essencialismo, no sentido de uma determinada
valorização dos processos biológicos na construção do gênero — valorização
esta que adere a própria gênese do conceito, parido no ambiente hospitalar e
não nas assembleias feministas.
Um primeiro dado histórico de relevância é a consciência que Preciado tem
da própria história da teoria queer, compreendendo o queer no seu nível teórico
e prático como uma leitura feminista de Foucault. É viável dizer que o queer é
uma torção da obra foucaultiana, já que o próprio filósofo francês se manteve,
de certa forma, alheio ao feminismo que lhe era contemporâneo, e não chegou
a utilizar a noção de gênero em seu pensamento.
Da análise de Foucault, Preciado enfatiza alguns aspectos já trabalhados
neste livro, como pensar a sexualidade na passagem de um regime soberano
para um regime disciplinar. Outro fato notável é que, a partir do século 18,
ressignifica-se uma preocupação em administrar a vida. Aqui o conceito de

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 251


biopolítica é proposto por Foucault para o discernimento de uma certa gestão
do “corpo livre”. Isso vem à tona no corpus teórico de Preciado.
A respeito do século 19, por outro lado, Foucault faz outra crítica que
também é relevante tanto para o feminismo quanto para a teoria queer. O filósofo
compreende o século 19 como produtor de determinados tipos de corpos. Existe
toda uma fabricação de corpos, toda uma composição de partes sobre partes, de
modo que o regime sexual disciplinar cria noções como heterossexualidade e
homossexualidade entendidos como identidades sexuais e, ainda, vinculadas a
determinada verdade anatômica. Esta conexão entre sexo e reprodução, por sua
vez, gera uma grave forma de patologização de práticas sexuais não reprodutivas.
Com uma concepção de um ideal de normalização surge, também, a noção de
perversidade. Ora, a ideia do vínculo entre reprodução e a sexualidade só vai
ganhar uma real quebra com o surgimento da pílula, num contexto de uma
política eugênica.
Desta herança foucaultiana surge uma urgência enorme de planejar políticas
a respeito da sexualidade, políticas afirmativas que poderão gerar uma força
contra a biopolítica. Pensemos que tanto o feminismo quanto a teoria queer
são práticas que se voltam contra este poder, que se voltam contra o poder
biopolítico. Todavia, Preciado inclui uma outra transformação na análise de
Foucault, que apareceu pós-Segunda Guerra Mundial. Esta transformação se
trata do já citado regime farmacopornográfico.
O regime farmacopornográfico se inseriria num contexto bem específico.
Cito três caracterizações: 1) um certo abandono da compreensão da
homossexualidade em termos médicos; 2) uma quebra da técnica sexual de
reprodução que convém ser ressaltada; 3) e, por último, ainda no período pós-
Segunda Guerra Mundial, toda uma formulação sobre o gênero que influencia
o feminismo e a teoria queer.
Nesta esfera médica, encontra-se um debate que envolve o naturalismo e
o construtivismo. Desta maneira, antes mesmo de analisá-lo, vamos ao próprio
contexto — que também é o texto — da produção do Testo Yonqui, para depois
retomarmos a partir deste ponto e concentrarmos no fator biológico, bem como
nas possibilidades que o naturalismo pode abrir.
As práticas que envolvem o Testo Yonqui tiveram seu início na primeira
década dos anos 2000, quando Preciado começa um processo de intoxicação
voluntária de testosterona. O que Preciado demonstra nessa fase é que

252 RAFAEL LEOPOLDO


juntamente com várias pessoas — lésbicas, radicais, feministas — havia um
uso comum de várias substâncias, como a cocaína, a heroína, o prozac, o álcool,
etc. Para usar a testosterona, ela haveria de passar por uma série de protocolos
médicos jurídicos estatais de mudança de sexo, protocolos que tiveram sua
produção iniciada pelo sexólogo Harry Benjamin e o seu trabalho na questão da
transexualidade. Preciado começa então a administrar o “hormônio masculino”
por conta própria, saindo do contexto médico jurídico da transexualidade.
Assim, o Testo Yonqui surge como um diário de experimentação, um diário de
intoxicação voluntária, repleto de elementos autobiográficos.
A partir destas situações, seria cabível lembrar de Leonid Rogozov como
metáfora para a ideia de gênero. Rogozov foi um médico que explorou a
Antártida, em 1961. Atingido por um ataque de apendicite, teve que abrir a
sua própria barriga e operar a si mesmo com a ajuda de um pequeno espelho.
Para Preciado a relação com o gênero é a mesma: trata-se de um exercício de
auto-operação, de transformação. Portanto, a imagem que surge para Preciado
é a do ciborgue — lembremos de Donna Haraway e o seu Manifesto Ciborgue —
que modifica a si mesmo, um ciborgue que opera mudanças em suas peças, na
sua própria maquinaria. Dentro destas perspectivas, assimilamos o gênero não
só como uma construção (o debate construtivista), mas, também, a partir da
importância de uma manipulação do gênero (o que percorre o debate naturalista,
essencialista).
Reconhecemos que, com Preciado, há uma abertura da caixa preta do
naturalismo, uma vez que há um foco no corpo, nos fluidos, nas doenças, na
invalidez, etc. Agora, voltamos à esfera médica, de extrema relevância para
o autor compreender que o discurso performativo-construtivista não era
suficiente. Tal discurso não bastava, porque precisaríamos nos apropriar das
técnicas de mudanças corporais para remodelarmos as nossas peças.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 253


Fonte: British Medical Journal (BMJ). Em 1961 o médico russo, Rogozov, se vê obrigado a fazer
uma operação de apêndice em si mesmo. Rogozov era o único médico numa estação soviética no
inverno antártico. O filósofo Paul Beatriz Preciado o usa como exemplo para a sua relação com o
gênero, pois não deveríamos tão-somente compreender o gênero como construtivista – o que já
foi analisado por diversos autores -, mas, sobretudo, entendermos as técnicas de transformação
do gênero. Trata-se agora das apropriações das mudanças corporais, dado que era deixado mais
para os teóricos naturalistas.

A informação exposta por Preciado é, sobretudo, a respeito das mudanças


que ocorrem no pós-Segunda Guerra Mundial. Não se trata apenas do poder
soberano; não se trata apenas do poder disciplinar; estes poderes estarão presentes;
porém, surgem novas técnicas. Estas novas técnicas que Preciado vê assomando
não são exteriores ao sujeito como o poder soberano ou o poder disciplinar
(que são ortopédicas), mas configuram o que poderíamos chamar de um fator
biológico. A pílula serve de exemplo paradigmático desta tecnologia, pensarmos
nela como um fator do giro tecnológico que elucidamos no pensamento de
Donna Haraway.

254 RAFAEL LEOPOLDO


Por hora, retomemos algumas mudanças ainda no âmbito médico,
que influenciam o discurso feminista e o discurso queer. Façamos alguns
apontamentos sobre o gênero, a intersexualidade e a transexualidade e, por
último, voltemos a este fator biológico que é basilar para o nosso autor — ao qual
chegamos comentando sobre a importância da pílula, uma importância que é
bastante contra-intuitiva se pensarmos a sua recepção favorável pelo feminismo
branco heterossexual dos anos 70.
Em sua análise histórica a respeito do surgimento de uma determinada
noção de gênero, Preciado afirma que no ano de 1947 este conceito foi inventado.
Este dado que Preciado aponta tem um grande valor, pois é a partir dele que
entendemos que o próprio gênero seria um dispositivo biotecnológico. A
compreensão do gênero como um dispositivo biotecnológico parece ter sido
eclipsada por um feminismo totalmente construtivista, que compreende
o gênero como uma construção social, uma construção cultural; ou como
performatividade (no caso, principalmente, de Judith Butler e de uma gama de
outros autoras e autores). Ao dizer que o gênero é parido num hospital, Preciado
não está negando a sua construção social, antes nos mostra toda a potencialidade
negada ao deixar o naturalismo de lado. Com o naturalismo, entendemos que
a construção do próprio gênero é penetrada por uma tecnologia biológica. É
por isso que o filósofo retorna à figura do psicólogo e sexólogo John Money e à
questão da intersexualidade, apontando posteriormente alguns elementos sobre
a transexualidade, abordadas no mesmo período também por um sexólogo
chamado Harry Benjamin.
John Money propôs a ideia de um gênero flexível, construído de forma
técnica. Essa construção técnica daria oportunidade de fazer um bebê ter o
gênero feminino ou masculino via uma variedade de processos cirúrgicos e
hormonais. Essas modificações se deram diante do corpo dos intersexuais. Quem
trabalhou a questão com uma precisão ainda maior que Preciado foi a bióloga
e feminista Anne Fausto-Sterling, no seu livro Sexing the body: gender politics
and the construction of sexuality. O fator principal da discussão a respeito dos
intersexuais é que não haveria uma maneira de determinar morfologicamente
a verdade do sexo de um corpo. Aqui, entra o processo técnico diante destes
corpos inclassificáveis, ou não classificáveis da forma tradicional — como
feminino ou masculino. Preciado aponta que a medicina praticou uma espécie de
essencialismo construtivista. O que interpretávamos como performatividade dos
corpos discursivos pode ser entendido como performatividades biotecnológicas.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 255


Quando Preciado afirma que o debate sobre o gênero se deu no final da
década 1940, alinha-se com Anne Fausto-Sterling, que afiançou:

Nos anos quarenta, Albert Ellis estudou 84 casos de neonatos de sexo


misto e concluiu que “a potência do impulso sexual humano possivelmente
depende em grande parte de fatores fisiológicos... a direção deste impulso
não parece depender diretamente de elementos constitucionais”. Em outras
palavras, no desenvolvimento da masculinidade, a feminidade e as inclinações
homossexual ou heterossexual, a criação importa muito mais que a natureza.
(Fausto-Sterling, 2006, p. 66).

Por sua vez, é na década de 1950 que estes estudos ganham uma maior
popularização com John Money — já citado por Preciado — e vários de seus
amigos da Universidade John Hopkins, que passam a estudar a intersexualidade,
projetando, também, o estudo de Albert Ellis.
Fausto-Sterling (2006) afirma que, com esses autores, a base biológica da
categoria de masculino e feminino já estaria perdida, ainda que: “[eles] nunca
questionaram a presunção fundamental de que só existiria dois sexos, porque
sua meta era saber mais sobre o desenvolvimento normal. Na visão de Money,
a intersexualidade era resultado de processos fundamentalmente anormais” (p.
66). Desse modo, os intersexuais deveriam ser tratados porque deveriam ter
nascido homens ou mulheres. Com base nestes dados, há uma compreensão de
que diante de uma multiplicidade de corpos, diante de uma multiplicidade de
sexos, há um processo de normalização biopolítica que inflige um conjunto de
operações — cirúrgicas e hormonais — para que os indivíduos se enquadrem
num ideal de masculinidade ou feminilidade.
Este fator biológico, que apreendemos dentro da questão de gênero
pós-Segunda Guerra Mundial, apresenta alguns contornos no regime
farmacopornográfico. Preciado argumenta que, ao mesmo tempo que Money
estudava a questão da intersexualidade, Harry Benjamin inventava os protocolos
da transexualidade (os protocolos para mudança de sexo por meio de diversos
hormônios). É exatamente neste momento, em 1947, que se inicia uma pesquisa
para melhorar a fertilidade da família católica americana de classe média.
Ironicamente, a partir dessa pesquisa ocorre a William John e Gregory Pincus
descobrirem uma combinação de progesterona e estrogênio que impede o
processo de concepção do óvulo. Alcançamos, pela primeira vez na história,
uma quebra radical entre a reprodução e a sexualidade. Sobre este projeto,
no entanto, Preciado salienta aspectos muito mais soturnos que uma provável

256 RAFAEL LEOPOLDO


quebra entre a reprodução e a sexualidade humana. Esta cisão é um dos efeitos
do projeto, realmente, mas não trata do seu verdadeiro intuito. Estamos nos
referindo à questão da pílula e da noção de bio drag.

O BIO DRAG E O GIRO TECNOLÓGICO

Quando pensamos o giro tecnológico com Donna Haraway citamos, por


exemplo, como esta autora se distancia de um ecofeminismo, da relação da mulher
com e como a natureza, e sua subsequente valorização da composição técnica, do
ciborgue, da quebra entre as fronteiras entre o homem e a máquina, a natureza e
a cultura, etc. Paul Beatriz Preciado participa desta continuidade quando aborda
outros elementos do naturalismo, ou seja, a performatividade — que seria um
construtivismo — acaba se transformando em performatividade biotecnológica.
Preciado também nos alça a um âmbito histórico diferente. O seu recorte refere-
se ao mundo pós-Segunda Guerra Mundial e à Era da farmacopornográfia.
Em vista disso, voltamo-nos para um último elemento, para que haja um
concreto entendimento aproximativo tanto da farmacopornográfia quanto do
que denominamos como giro tecnológico na história do pensamento queer.
No tópico anterior, esboçamos algumas pesquisas do pós-Guerra, como,
por exemplo, a questão da intersexualidade, da transexualidade e, também, de
uma análise para a fertilidade da família católica americana de classe média
que é, sobretudo, uma família branca. É com base nessa última pesquisa que
William John e Gregory Pincus descobriram a pílula, observando, pela primeira
vez, uma possibilidade tecnológica de desvincular reprodução e sexualidade.
Porém, Preciado nos apresenta este projeto como algo mais sombrio, por se
tratar de um projeto eugênico, de purificação da raça; de um projeto de produção
técnica da família.
Poderíamos elencar dois momentos do uso e da experimentação da
pílula. Um primeiro momento seria dos anos 40 aos anos 50, e um segundo
momento seria, sobretudo, nos anos 50, quando distinguimos a pílula tal como
a conhecemos hoje. O primeiro momento poderíamos nomear de momento
eugênico; e o segundo, como momento mimético.
A respeito do primeiro momento, convém mencionar que a pílula foi testada
primeiramente em comunidades de mulheres negras em Rio Piedras, Porto Rico.
Aqui o objetivo se torna claro: impedir a expansão da raça negra nos Estados
Unidos, preservando a hegemonia da família idealizada norte-americana. Este

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 257


momento eugênico reverbera, além disso, no uso da pílula em prisões e hospitais
psiquiátricos.

Nesta imagem, temos uma cápsula com as pílulas anticoncepcionais. Percebemos na história
do pensamento queer que, já no seu início, havia um descompasso entre o feminismo negro e o
feminismo padrão. Um destes descompasso se deu, exatamente, com relação à pílula (ver, por
exemplo, Angela Davis, 2017). Trata-se de saber que as mulheres negras compreenderam logo
que a pílula e outros métodos contraceptivos também diziam respeito a um esforço eugênico, e
o feminismo heterossexual e branco via como uma possibilidade de libertação sexual.

Em contrapartida, no segundo momento, o momento mimético, temos


uma imitação do próprio processo biológico do corpo, o que Preciado, de forma
divertida, chama de um processo bio drag. É claro que este “drag” faz referência
a drag queen, drag king e uma variedade de drags que abordamos, sobretudo
quando permeávamos o pensamento de Judith Butler. Só que quando Preciado se
refere a um “bio drag”, ele volta à noção de uma performatividade biotecnológica,
atando estilos corpóreos a processos biológicos. Nesta fase, o autor abre todo
um campo de estudos pensando a Era farmacopornográfica. A pílula começa
a ser vendida em 1957 e em 1960 já havia dez milhões de consumidores na
América do Norte. Novamente: não se trata mais apenas de uma forte produção
da subjetividade, tal como vimos com a análise de Foucault e o poder disciplinar,
mas de toda uma ortopédica externa ao sujeito. Daqui em diante, o controle
se apresenta, também, como um controle biomolecular; o panóptico, como um
projeto arquitetônico de vigilância; resultando na transformação do controle
em um panóptico comestível.

258 RAFAEL LEOPOLDO


TEORIA QUEER E AS MASCULINIDADES

SEJA HOMEM!

Enfim, no que concerne à teoria queer e as masculinidades proponho


uma brevíssima aproximação da questão das masculinidades neste capítulo.
Antes mesmo de pensarmos sobre elas, gostaria de formular uma nota sobre
os homens — pensando, a priori, em uma identidade. Quando pensamos o
tema do gênero alguns dados são automaticamente evocados pela nossa mente,
como a igualdade entre homens e mulheres, adotada na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, alguns anos após o final da Segunda Guerra
Mundial. Nesta tentativa de combater formas específicas de discriminação, as
mulheres estão extremamente envolvidas, embora os homens também exerçam
um papel fundamental em busca dessa igualdade — quando se posicionam
ativamente, é claro. Este dado não é somente fundamental para nos fazer cientes
de uma desigualdade histórica, mas, sobretudo, para ponderarmos a atualidade
e seus embates. Daí a essencialidade de o feminismo não ser algo exclusivo para
as mulheres, mas de ser um saber que, quiçá, devesse ser incorporado pelos
homens, pelos transhomens, e entrar nos poros de qualquer masculinidade
dura ou tóxica.
Já na década de 1980, Heleieth Saffioti salientava que “a luta das mulheres
não diz respeito apenas a elas, mas também aos homens” (Saffioti, 1987, p.
27). Márcia Tiburi (2018), por sua vez, na obra Feminismo em comum, afirma
que “o feminismo tende a fazer bem aos homens que desejam uma vida mais
ampla e mais aberta, uma visão de mundo expandida, menos tacanha, diferente
da que foi legada a ele por seus ancestrais comprometidos com a violência e
o poder de destruição da vida” (p. 41). Por estas vias, parece coerente almejar
que o feminismo também fosse uma questão para os homens, uma forma
de modificação de si mesmo. Estes são conhecimentos fundamentais para
vasculharmos as relações entre as mulheres e os homens.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 259


Na ocasião deste debate, citarei uma fonte que está dentro de uma
instituição extremamente dura, mas que já aponta (ainda que minimamente)
para uma determinada flexibilidade de papéis. Trata-se da Igreja Católica e do
Papa Francisco e sua exortação apostólica pós-sinodal chamada Sobre o amor
na família:

É verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra


criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências, e
na qual existem elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também
é verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido.
Por isso, é possível adaptar-se de maneira flexível à condição laboral da
esposa; o fato de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação
dos filhos não o torna menos masculino nem significa um fracasso, uma
capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como
normais estes “intercâmbios” sadios que não tiram dignidade alguma à figura
paterna. A rigidez torna-se um exagero para a reciprocidade encarnada nas
condições reais do matrimônio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o
desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de
considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco isto mudou;
mas, em alguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar
a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade
concreta dos filhos e das suas potencialidades (Francisco, p. 174).

Por mais que este texto seja questionável em inúmeros aspectos — sobretudo
na postura conservadora da Igreja Católica e do Papa —, é possível ver o desfazer
dos ideais estanques de masculinidade e feminilidade, dos ideais empedernidos
do que se espera de um homem ou uma mulher, até mesmo na instituição mais
austera.
Podemos compreender as masculinidades em crise, entendendo que,
muitas vezes, estas crises têm relação com uma estrutura econômica, pois é fato
dado que a subjetividade está sempre relacionada a sistemas econômicos. Por
exemplo, esses “intercâmbios” de papéis que o Papa Francisco aponta condizem
especialmente com um maior papel da mulher no mercado de trabalho, quando
a mulher se coloca como “chefe da casa” devido a um novo poder aquisitivo.
É através das mudanças econômicas que há uma transformação da
masculinidade, ou ainda, das masculinidades (já que existem muitas delas).
Não nos debruçaremos, neste intervalo, a uma crítica do texto papal — que pode
ser lido como um verdadeiro tratado sobre a sexualidade, sobre as questões de
gênero e os dogmas da igreja —, pois ele será inquerido em outro espaço, já

260 RAFAEL LEOPOLDO


há também toda uma teologia queer93 que deve ser lembrada para pensarmos
a religião. Por hora, trata-se de enfatizar que a crise das masculinidades
corresponde às convulsões sociais. Diante destas, os homens podem configurar
sua masculinidade, por exemplo, de forma a potencializar a sua experiência
afetiva ou a criar uma teia de masculinidades mais duras.
Um exemplo de potencialização da experiência afetiva masculina é sair de
sua estrutura de um homem-castrado — usamos este termo para lembrarmos
a crítica de Saffioti —, de um homem-pedra, de sua estrutura identitária de
mármore, de sua estrutura sempre fadada a não sentir nada, para experimentar
outros afetos, como o cuidado com os filhos, com a casa, etc. Por outro lado,
teríamos a experiência de uma masculinidade tóxica, no sentido de não
flexibilizar a masculinidade dura, a ponto de tratar a sua parceira e, às vezes, a si
mesmo, com violência. Compreendemos que há uma variedade de situações em
que o masculino é interpelado a se modificar, a modificar a estrutura antiga de
ser aquele que não sente, aquele que não chora, e aquele que é o provedor. Neste
sentido, os homens, escutam uma frase muito comum em diversas culturas,
recorrente também em diversas línguas, que é: seja homem, sea hombre, fais
l’homme de toi, be a man.
É esta demanda de ser um homem que pretendemos identificar neste
capítulo. Para abordarmos a masculinidade no âmbito da teoria queer vamos
pensar os teóricos Javier Sáez e Sejo Carrascosa e, também, o filósofo Jack Judith
Halberstam. Os dois primeiros pensando a masculinidade, principalmente, no
corpo do homem. E Jack Halberstam assinalando a masculinidade feminina,
ou seja, a contribuição da masculinidade produzida pelo corpo da mulher.
Claro que haveria ainda uma abundância de outros teóricos — fundamentação
filosófica — e exemplos bem particulares — uma produção com viés etnográfico
— de construções de masculinidades que seria interessante sublinhar, mas aqui
se trata, sobretudo, de ressaltar a construção das masculinidades que se dá tanto
no corpo do homem como no corpo da mulher.
De forma tangencial, há um extenso plano político da relação entre os
homens e o feminismo, relação que afirmamos de maneira reiterada que é mais
do que necessária, principalmente, para os homens se reconstituírem diante da
interpelação teórica feminina.

93
A referência principal para uma teologia queer é Marcella Althaus-Reid. Todavia, é necessário também
pensarmos na produção recente do pesquisador André Musskopt e da pesquisadora Ana Ester.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 261


JAVIER SÁEZ: MASCULINIDADE E ANALIDADE

Eu acho que se meu bom e velho cu durar ainda uns


60 anos já está bom
Allen Ginsberg

O sociólogo Javier Sáez dispõe de alguns textos que tocam a questão da


masculinidade. Neste sentido, penso que os dois principais trabalhos do autor
são o livro Pelo cu: políticas anais (escrito juntamente com Sejo Carrascosa) e
o artigo Masculinidade e mudança social. Outros textos sobre masculinidade
versam principalmente sobre as comunidades e as comunidades ursos. O livro
e o artigo resvalam no tema da masculinidade de forma diversa, mas, creio,
complementares. Logo, tendo a glosar elementos destes dois textos, no intuito
de compreendermos como os autores tateiam a masculinidade.
No artigo, Masculinidade e mudança social encontramos uma abordagem
mais tradicional da masculinidade, voltada, principalmente, para o pensamento
de Hocquenghem. Todavia, é marcante quando Sáez frisa que o feminismo é
também uma coisa de homens, ou seja, o feminismo envolve todos e todas.
A partir deste momento se dá uma crítica à masculinidade, ou melhor,
uma autocrítica quanto à posição de homem, a posição masculina e o seu
privilégio. Com relação à constituição do masculino, o artigo retoma a ideia
da masculinidade como um lugar vazio, construído por meio de oposição, por
negação, por exemplo, ser não-mulher, ser não-bicha, etc.
Por sua parte, no livro, Pelo cu: políticas anais, verifica-se uma outra teoria
da masculinidade, que põe o ânus no centro da questão. Nesta perspectiva,
o homem seria aquele que não é penetrável, ou o ânus como protetor da
masculinidade. Se, ao abordarmos Halberstam94 encontramos a stone butch,
também encontramos no homem como uma pedra/stone. Este homem-stone
com seu medo do deslizamento de gênero; este homem-stone com medo da

94
Um dado importante é o profundo conhecimento que Javier Sáez tem da obra de Halberstam, principalmente,
da sua principal obra que é a Masculinidade feminina que o autor traduziu para o espanhol. Javier Sáez e
Sejo Carrascosa citam na obra Pelo cu: políticas anais, a ideia do homem como alguém impenetrável e,
por certo, Halberstam é uma das principais referências que faz com que os autores coloquem a questão da
analidade diante da constituição do masculino. A impenetrabilidade da stone butch pode ser relacionada a
impenetrabilidade do homem, no seu terror a analidade como lugar que o faria perder a masculinidade e se
transformar numa mulher, se transformar num gay, se transformar numa bicha, se transformar num bissexual
dentre tantos outros que são caracterizados por uma passividade, por uma penetrabilidade.

262 RAFAEL LEOPOLDO


flexibilidade de gênero. O homem-pedra deve ser impenetrável, ou cairia no
patológico. Gayle Rubin, em seu ensaio The traffic in women: notes on the “political
economy” of sex (“O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do
sexo”) já apontava que a passividade é trágica nos homens, enquanto a falta dela
é trágica nas mulheres. Vamos analisar estes dois textos de Javier Sáez para que
possamos sondar com mais afinco o âmago da questão das masculinidades.
No primeiro texto, é salientado que a questão da masculinidade está
acoplada às questões sociais. Sigamos esse trajeto e essa possível relação.
Sáez afirma enfaticamente a necessidade de o feminismo entrar no discurso
político, nos movimentos sociais, pois é ele que aponta uma política igualitária
entre homens e mulheres. Todavia, o debate se dá, às vezes, somente com as
mulheres perante outras mulheres. O questionamento perspicaz de Sáez é sobre
os homens no debate feminista. Diante deste cenário, temos que desfazer um
preliminar mal-entendido que percorre o senso comum e, regularmente, o
próprio movimento feminista, afora seus inúmeros coletivos.
O mal-entendido em foco se trata de pensar que o feminismo é uma
coisa tão somente de mulheres. Os homens que compartilham esta visão já
assumem que as deixam falar, que já construíram um espaço para elas, até
mesmo um espaço semântico quando optam por dizer/escrever “companheiros
e companheiras” ou ainda “companheirxs”. Sáez atesta que o feminismo não é
só coisa de mulher, mas, sobretudo um assunto para os homens. Colocando
este tema deveras espinhoso, o autor entra em cheio na teoria queer, onde
não basta possuir uma identidade subalterna, mas questionar a sua própria
identidade. Neste momento, ele questiona o ser homem, a masculinidade e seus
privilégios. Para o autor, incorporar o feminismo se desdobra no questionamento
profundo da própria masculinidade, no discurso masculino e em como se
vive, como se relaciona com o corpo, as relações afetivas, as sexualidades, os
espaços de representação, etc. Assim, é mais que necessário refutarmos a nossa
masculinidade compulsória: é inadiável.

MASCULINIDADE COMPULSÓRIA

Conforme Javier Sáez, não se trata de criar novos homens, pois já existe
uma gama de homens integrados de uma forma diversa do tradicional
machismo. Poderíamos comparar essa “masculinidade tradicional” com o

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 263


“pânico homossexual”, pois é este que cria uma identidade masculina pela via
negativa: não seja uma garota, não seja um veado, não seja uma bicha, não dê
pinta. Não é de se admirar que há toda uma polícia de gênero na construção
da masculinidade. Relacionar a masculinidade com o pânico homossexual é
dizer que ela não é uma essência, mas, sim, uma reação à possibilidade de ser
outro, uma mulher, uma bicha, um(a) trans, etc. Para Sáez, a masculinidade é
um lugar vazio.
A masculinidade tradicional estaria ancorada, portanto, em um sentimento
machista, pois compreende que ser mulher, bicha, trans é algo ruim, pior
que ser um “homem de verdade”. Uma explicação do ódio machista contra a
mulher, a bicha, a trans, a butch e tantos outros que fazem o gênero se mostrar
mais maleável, é que este homem se sente inseguro com relação à sua própria
constituição enquanto homem. Diante deste dado, Sáez levanta duas teses.
A primeira é: deveríamos reposicionar as masculinidades, vivê-las de forma
diferente ou abandoná-las? E a segunda: é necessário viver esta masculinidade
como identidade ou deveríamos desfazer a identidade? As respostas se duplicam.
A primeira resposta depende de os homens ainda se identificarem com
a masculinidade, mesmo que seja reformada, igualitária e progressista. No
entanto, existe um problema bem prático neste resultado que é o do homem
enquanto tal já obter uma posição de previlégio, pois estamos numa sociedade
heterocentrada — quer ele queira ou não. O exemplo que Sáez nos providencia
é fortemente atual: podemos falar de feminino em nossas reuniões de homens
gays ou de ativistas, mas diante do chefe do RH da empresa é inevitável retornar
à velha identidade, aos velhos preconceitos, reavivar os arcaísmos. Desta forma,
poderíamos exercer este privilégio em determinados momentos, principalmente,
quando tudo vai mal — nas crises econômicas estruturais em que o desemprego
não somente bate na porta, mas a arromba — e é plenamente possível remontar
ao arcaísmo machista e fazê-lo reinar.
A segunda resposta é que, para manter uma posição de igualdade, seria
preciso resistir a uma normalização, este que é um trabalho incessante da teoria
queer e uma tentativa ininterrupta do pensamento queer. Seria necessário, então,
uma luta social, onde o homem questione radicalmente o que é “ser homem”,
o que é o “masculino”, o que é ter uma “virilidade”. Sáez afirma que o contrato
social — pensemos no contrato heterossexual, de Monique Wittig — conta como
fundamento os binarismos, as identidades sexuais, sejam elas heterossexual ou
ainda o contrato homossexual. A aposta seria numa des-identificação com o

264 RAFAEL LEOPOLDO


homem e a masculinidade, criando uma subversão dos valores e do político,
em outras palavras: mudar as regras do jogo.
No artigo de Sáez, há uma relação interessante entre a masculinidade —
não essencialista, criada via negação e performativa não voluntarista — e os
movimentos sociais, constituídos essencialmente por homens que não chegam
a questionar a sua própria masculinidade. Seguindo esta linha, devemos
aprofundar ainda mais na questão da masculinidade como a toma Sáez, pois
ele (juntamente com Sejo Carrascosa) vai introduzir outro sentido à construção
da masculinidade, que é a analidade.

A CONSTITUIÇÃO DO MASCULINO PELO CU

O cu tem gênero: se é penetrado, é feminino; se é


impenetrável, é masculino.
Javier Sáez e Sejo Carrascosa

No livro Pelo cu: políticas anais, de Javier Sáez e Sejo Carrascosa, nos
deparamos com uma genealogia da analidade, compreendendo que nela há,
ademais, uma teoria a respeito da masculinidade que toma como grande mote
o ânus.
Inicialmente, poderíamos supor que o cu seria, de fato, democrático, um
lugar sem gênero, pois pertence tanto ao corpo dos homens quanto ao corpo das
mulheres, tanto ao corpo do heterossexual quanto ao corpo do homossexual,
sem grandes distinções anatômicas. Porém, o que a pesquisa dos autores ratifica
é que diante de um regime heterocentrado e machista o cu tem gênero. Segundo
os autores:

O cu tem gênero: se é penetrado, é feminino; se é impenetrável, é masculino.


E mais, poderia se dizer que o cu cumpre um papel primordial na construção
contemporânea da sexualidade, na medida que está carregado de fortes
valorações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, sobre o que é ser um
corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo bicha e um corpo hetero, sobre
a definição do masculino e do feminino (Sáez & Carrascosa, 2016, p. 176).

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 265


Para os autores, o uso ou não que se faz do ânus também define a sexualidade
do indivíduo. Esta definição é inusitada, pois não se coloca inteiramente diante
da questão da genitália masculina ou feminina. O que demarca a sexualidade
é se o cu vai estar aberto ou fechado, se o sujeito tem uma relação passiva ou
ativa na sua atividade sexual.
Esta elaboração do masculino de Sáez e Carrascosa pode ser afixada com a
que abordávamos anteriormente — a de uma paranoia anti-homossexual, a de
um pânico homossexual —, posto que a mulher é o penetrável, o homossexual é
o penetrável, o bissexual é o penetrável, a bicha é o penetrável, ou seja, o pânico
homossexual pode resultar de um pânico diante da passividade.
A mulher masculinizada, a lésbica machona, a sapatão, a maria-homem,
a criança fêmea e viril, a stone butch, também são rechaçadas nesta lógica,
pois a mulher não penetrável seria masculina e ela não deveria sê-lo. Este
afastamento pode ser visto, até mesmo, na produção acadêmica a respeito da
masculinidade das mulheres. Já no prefácio do livro Masculinidade feminina,
Halberstam declara o seu espanto diante do escasso material sobre o assunto, de
tal modo que ela passa a compreender todo o seu livro como um ataque direto à
masculinidade como algo exclusivo dos homens — trabalharemos este aspecto
no próximo tópico. De qualquer forma, Sáez e Carrascosa tornam a questão da
identidade ainda mais sinuosa quando salientam a analidade e não somente a
genitalidade como formadoras do feminino e do masculino, mesmo que as duas
formas de constituição do masculino e do feminino se relacionem no complexo
contexto de um corpo político e de um contexto político social heteronormativo.

JACK HALBERSTAM: MASCULINIDADE FEMININA

A stone butch torna possível a masculinidade feminina.


Halberstam

Jack Judith Halberstam é uma filósofo norte-americano, professor de Estudos


de Gênero e Literatura Comparada em diversas instituições estadunidenses. É
uma teórica queer com uma grande produção sobre o assunto e a sua principal
contribuição — ou a mais popular — para a teoria queer atualmente são diversos

266 RAFAEL LEOPOLDO


estudos sobre masculinidade, sobretudo, no que concerne às masculinidades
femininas e sua reflexão sobre a Stone butch.
O intelectual publica a obra Female Masculinity (“Masculinidade
Feminina95”) em 1998. Este livro surgiria para dar visibilidade a um tema pouco
abordado na academia e nos estudos tradicionais sobre as masculinidades. Trata-
se de uma bagagem teórica sobre a masculinidade não focando o homem branco
de classe média alta nem tendo a ideia de que o masculino seria algo próprio
ou essencial do homem. Lembramos que essa análise pode ser libertadora
tanto para mulheres masculinas quanto para homens que constroem sua
masculinidade de forma distinta. Halberstam, por sua vez, centraliza sua análise
no corpo da mulher. Em Masculinidade Feminina, o filósofo expõe duas teses:
1) a primeira tese é que as mulheres deram a sua própria contribuição ao que
hoje chamamos de masculinidade moderna e esta foi ignorada pelos estudos
de gênero; 2) e a segunda tese reconhece que a masculinidade feminina, na
realidade, envolve uma multiplicidade de masculinidades e quanto mais se
identifica estas masculinidades mais elas se ampliam. A fim de reiterar estas
teses de Halberstam, nos desafiaremos a glosar os elementos da sua obra nos
próximos parágrafos.
A potência do livro de Halberstam começa pelo seu título. Estamos diante
de um oxímoro, duas palavras de sentidos opostos que parecem se excluir
mutuamente, mas que quando colocadas em determinado contexto reforçam
a expressão e lhe dão maior potencialidade. Esta figura de linguagem, ou
seja, este oxímoro de uma masculinidade feminina percorre todo o livro e
nos leva ao cerne da questão de Halberstam: a masculinidade não é algo que
pertence exclusivamente/essencialmente ao homem: “o que coloco neste livro
[Masculinidade Feminina] é que longe de ser uma imitação da virilidade, a
masculinidade feminina, na realidade, nos dá uma pista de como se constrói
a masculinidade como tal” (Halberstam, 2008, p.23). Trata-se de pensar uma
masculinidade sem homens.

95
Ainda não há uma tradução para o português da obra Female Masculinity; todavia, mesmo que “female”
não seja estritamente traduzível tão-só por “feminina” a tradução por “masculinidade feminina” já é usual
nos artigos, comentários e livros que dialogam com o trabalho de Halberstam.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 267


A MASCULINIDADE EM JAMES BOND E A SENHORA M

A stone butch rechaça, de certo modo, sublimar


sua masculinidade e canalizá-la em qualquer
outra forma convencional de feminilidade.
Jack Halberstam

Em sua introdução à masculinidade feminina — a masculinidade sem


homens —, Halberstam cita diversos filmes, atores e, até mesmo, algumas grifes
como Bad Boy e No Fear Gear. Transcrevemos aqui um brevíssimo comentário de
Halberstam ao filme 007 – Contra Goldeneye, uma vez que não haveria “melhor
forma de começar um livro sobre masculinidade feminina que questionando
um dos heróis masculinos mais onipresentes: Bond, James Bond” (Halberstam,
2008, p.25).
O enunciado que Halberstam tece direciona-se, primeiro, a apresentar o
cenário do filme que, por sua vez, poderíamos dizer, remonta a tantos outros
filmes da série James Bond: uma gama enorme de vilões como os comunistas,
os nazistas, os mercenários e no caso do Goldeneye, uma mulher superpoderosa.
O encanto de James Bond é fortemente marcado pela presença de um herói
aventureiro, além, é claro, de toda a montagem que conta com um arsenal imenso
de aparelhos tecnológicos, de bombas à relógios com laser. O que Halberstam
aponta no filme é a falta, a carência, naquele filme e em tantos outros de James
Bond, de uma masculinidade crível.
A masculinidade de James Bond não seria uma virilidade biológica, mas
o que se pode chamar de uma masculinidade protésica: “quando tiramos os
seus aparelhos não sobra quase nada para interpretar a masculinidade de James
Bond” (Halberstam, 2008, p.26). A masculinidade do personagem principal de
Goldeneye dependeria de toda uma rede de relações como os grupos secretos
do governo, de cientistas bem pagos, do exército e, evidentemente, de uma
variedade enorme de belas mulheres e a figura do mal bem delineada.
Talvez o comentário mais interessante de Halberstam com relação ao filme
seja sugerir que a chefe de James Bond tenha uma masculinidade mais crível
do que a do próprio personagem principal. A chefe de Bond que se chama M.
é “uma senhora mais velha, claramente butch, que chama Bond de dinossauro
e lhe dá bronca por ser misógino e um sexista (...) É M. quem interpreta a

268 RAFAEL LEOPOLDO


masculinidade de forma mais convincente e o faz mostrando como é falsa
a própria interpretação de Bond” (Halberstam, 2008, p.25). A conclusão de
Halberstam é que aquela masculinidade excessiva que deveria personificar uma
versão extrema da masculinidade normativa acaba se mostrando como uma
paródia. A masculinidade que geralmente é dita como natural no filme de James
Bond se torna demasiadamente dependente dos seus aparelhos — diríamos que é
demasiadamente protésica — o que acaba por questionar a própria masculinidade
de James Bond, que acaba sendo totalmente antinatural.

A STONE BUTCH E A MASCULINIDADE FEMININA

Grande parte da análise de Halberstam está diante da figura da stone butch.


Então, é necessário indagarmos: quem é a stone butch? Antes de cruzarmos
tal questão, reafirmamos com Halberstam que, mesmo diante de um vasto
conhecimento sobre as questões de gênero produzido pela psicanálise, pelo
movimento feminista, pela teoria queer, ainda vivemos em uma sociedade
heterocentrada. Neste campo de batalha que é a questão de gênero, vamos
encontrar aqueles e aquelas que estão marcados, que estão feridos e muitos
que foram mortos por ter um gênero desviante, um gênero extravagante, aquele
que vaga fora de uma norma heterocentrada. Lembremos, por exemplo, do
filme (baseado numa história real) Boys don’t cry, onde um transexual, FTM,
transhomem, é violentado e depois assassinado por não se adequar aos gêneros
normativos.
Uma destas sexualidades fora da norma é a lésbica, e seus estereótipos mais
comuns são o “sapatão”, a “maria-homem”. Nestes estereótipos, o que é salientado
é uma masculinidade no feminino, ou ainda, uma masculinidade do feminino.
Halberstam (2008) afirma que “temos uma palavra para a masculinidade lesbiana:
butch96” (p. 145. Itálico nosso). Desta maneira, já é possível vislumbrar uma
réplica para a nossa pergunta. De modo simplista, a stone butch parece se tratar
de uma determinada masculinidade lesbiana, uma determinada masculinidade
feminina. Não obstante, Halberstam vai diferenciá-la da lésbica, pois a lésbica

96
Ambos os termos, lésbica e butch, abarcam uma gama de variedade. Para uma primeira aproximação
apontamos que butch se refere a uma masculinidade feminina. Halberstam vai trabalhar com grande cautela
os matizes destes termos, para mostrar uma variedade produtiva e funcional (e não patológica) de diversas
masculinidades.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 269


seria uma mulher que se identifica com uma mulher, uma mulher que deseja
outra mulher, mas a stone butch ocuparia um território existencial distinto. Para
chegarmos mais perto deste ambiente, buscaremos conhecer a fundo alguns
elementos da palavra stone, tal como verificar, o significado dela no contexto
butch.
Na análise de Halberstam a stone butch é compreendida como um corpo
de uma sapata colocado em algum lugar entre a masculinidade feminina e a
subjetividade transgênero. Halberstam tem um longo estudo da cultura trans
e a relação com a butch (ver, principalmente, Halberstam, 2008, pp. 169-177; e
ademais Hueso; 2015 e sua análise da transbutch). Para a autora, a stone butch
define um enigmático núcleo de prática sexual e social. A respeito da prática
sexual, a referência a stone diz respeito a determinada intocabilidade, trata-se
de uma pessoa que dá prazer a outra, mas não se deixa ser “tocada”, que não
se deixa ser “penetrada”. O stone se refere, geralmente, a uma intocabilidade
direta da genitália. Halberstam salienta que algumas stone butch escolhem não
chegar ao orgasmo enquanto outras adentram numa variedade sexual como o
“tribadismo”, a “fricção”, o “dyking” ou ainda o uso do dildo.
Ao comentar um trabalho sobre as butches feito entre 1940 e 1950 nos
Estados Unidos, Halberstam nota um ponto curioso que tenta desvinculá-las
de uma mera comparação com a heterossexualidade. A autora afirma que seria
muito característico das butches a ideia de sempre satisfazer a sua companheira,
em vez de dar prazer a si mesma. Esta relação e a intocabilidade deram a
imagem que hoje temos das butches. As butches representariam, ademais, uma
determinada discórdia, um desacordo, já que se é mulher e sente a si mesma
como masculina — daí a relação com a subjetividade trans que salientávamos a
pouco. Todavia, esta relação para Halberstam não é patológica, mas produtiva,
poderíamos até mesmo dizer criativa, pois gera uma identidade sexual, um
conjunto de práticas sexuais. O que a stone butch faz é integrar esta relação
entre o corpo de mulher e o ser masculina numa identidade sexual própria.
Desta maneira, há uma produção do masculino: “a stone butch faz com que seja
possível a masculinidade feminina” (Halberstam, 2008, p. 151).

270 RAFAEL LEOPOLDO


POSFÁCIO

O livro Cartografia do pensamento queer é uma busca bem elaborada e


detida de um mapa possível da teoria queer. O autor se lança em percursos
teórico-geográficos que ele denomina de giro performativo e giro tecnológico,
bem como procura compreender as complexas relações entre teoria queer e
masculinidades. Como em toda travessia, o autor vai e vem e se movimenta em
torno de conceitos, lugares, pessoas.
Esses (des)caminhos escolhidos mostram que a questão talvez não seja a
de colocar a teoria queer na régua do tempo linear ou delimitá-la em mapas
pré-fixados: o queer aparece como movimento, algo que surgiu aqui e acolá. Da
forma como percebo o esforço teórico de Rafael Leopoldo, o queer seria uma
abertura constante.
Assim, não é necessário concordar com todos os conceitos e mesmo com
as formas de aproximação que vão surgindo no livro, pois a(s) teoria(s) queer
que surge forma uma composição de movimentos (deslocamentos, fugas, flu-
xos). Movimentos que apontariam para o impossível: a existência de corpos e
subjetividades impossíveis que assinalariam a possibilidade do impossível. O
queer afirmaria, como também venho argumentando em diversas ocasiões, que
a teria queer seria o movimento de invenção do impossível.
O livro nos propõe refletir sobre como subverter a máquina poderosa que
faz com que apliquemos aqui o que fora formulado no Norte Global. A leitura
Cartografia do pensamento queer parece nos colocar sempre a indagação: “fica-
remos aplicando teorias formuladas alhures, sem que sofram qualquer refração
das experiências locais?”
Nas possíveis respostas, Rafael busca se afetar e se distanciar de certa po-
lítica de ressentimento que anda a nos espreitar e interpelar. As autoras e os
autores que aborda, depois de sua análise ficam mais vívidos e mais próximos.

CARTOGRAFIA DO PENSAMENTO QUEER 271


Não se trata, portanto, de observar as teorias de fora e, de forma irresponsável,
propor o distanciamento e esquecimento (formas atuais de cancelamento de
baixa intensidade).
Rafael indica que teremos prosseguimento: a teoria queer produzida no
Brasil vai ser analisada em próximo livro. Dado o rigor com que busca trabalhar
e os afetos que o motivam, podemos esperar questões provocativas, como a de
se perguntar se a teoria queer não teria surgido no Sul Global. E se houver uma
resposta negativa: uma teoria queer seria possível aqui distante das experiências
locais? Os percursos são complexos e múltiplos. Um desafio. Afinal, como diria
Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, “contar seguido, alinhavado, só mesmo
sendo as coisas de rasa importância”.

Pedro Paulo Gomes Pereira.

272 RAFAEL LEOPOLDO


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2020 © Editora Devires

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