Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DO PENSAMENTO
QUEER
CARTOGRAFIA
DO PENSAMENTO
QUEER
R A FA E L L E O P O L D O
2020 © Editora Devires
Cartografia do pensamento queer
Rafael Leopoldo
Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas Lima
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB
Prof. Dr. Leandro Colling
Prof. Dr. Djalma Thürler Universidade Federal da Bahia – UFBA
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Profa. Dra. Fran Demétrio Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB Afro-Brasileira – UNILAB
Prof. Dr. Helder Thiago Maia Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
Universidade Federal Fluminense - UFF Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Prof. Dr. Hilan Bensusan Prof. Dr. Marcio Caetano
Universidade de Brasília - UNB Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima Dr. Pablo Pérez Navarro (Universidade de Coimbra - CES/
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa Portugal e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil)
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa Faculdade de Educação
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
280p.; 16x23 cm
ISBN 978-65-86481-16-7
1. Filosofia contemporânea. 2. Teoria queer 3. Teoria Cuir
I. Título.
CDD 159.9 CDU 308.11
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.
POSFÁCIO 271
BIBLIOGRAFIA 273
PREFÁCIO PARA UMA CARTOGRAFIA
Por Pablo Pérez Navarro
1
Lefebvre, Henri, La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000.
2
Assim a refere Berenice Bento em Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.
3
Livingston, Jennie, Paris is Burning, Off-White Productions, 1990.
12 RAFAEL LEOPOLDO
cartografia do pensamento queer apresentada por Rafael, nessa outra ação
cartográfica que foi o mapa da Red LGBTQI do metrô de Madrid4, desenhado
por Javier Sáez em 2018.
Partindo da pergunta “e se abicharmos, sapatonarmos, transgenerizamos
o metrô de Madrid?”, Sáez reinventou o mapa oficial do Metrô incluindo nele
os nomes daquelas pessoas, referências teóricas e contrassexuais que tinham
sido importantes em sua evolução como ativista e teórico queer, como urso
em armas contra os ditados da cidadania heterossexual. O mapa resultante —
que se difundiu por redes sociais até chegar, por improváveis caminhos, a ser
exposto em tamanho gigante na câmara municipal — parecia ser o mapa de uma
contra-cidade, de uma cidade outra, uma heterotopia que, como se do Up-side
down de Stranger Things, a Casa de Campo se convertesse no Cruising Casa de
Campo e cada uma das estações de metrô tivesse sido radicalmente queerificada.
Assim, algumas destas paradas faziam referência a coletivos emblemáticos
das políticas de ação direta que caracterizaram o ativismo queer que, também, se
faz referência nestas páginas, como Act Up em Nova Iorque de finais dos anos
oitenta, junto aos que os seguiram noutros lugares no começo dos noventa,
como La Radical Gai, em Madrid. Noutras linhas do contra-metrô encontravam-
se algumas das autoras cruciais do capítulo dedicado, nesta cartografia, ao
feminismo lesbiano, como Monique Wittig, que moveu os cimentos identitários
do separatismo lesbiano ao proclamar que “as lesbianas não são mulheres”5;
Adrienne Rich, responsável por um movimento de sentido contrário, com a sua
descrição do “continuum lesbiano”; ou Gayle Rubin, autora de alguns dos ataques
mais contundentes aos movimentos feministas pela abolição da pornografia.
Não faltam, nesta interseção entre o mapa de Javier Sáez e o de Rafael
Leopoldo, nomes imensos dos feminismos negros como Angela Davis, e dos
chicanos como Gloria Anzaldúa — esperta, justamente, nas intersecções
cartográficas e fronteiriças entre sexualidades e comunidades —, junto a alguns
dos autores do que aqui, atravessando geografias e temporalidades, se enquadra
como um “pensamento homoerótico”. Aparecem, assim, paragens do livro
dedicadas a Guy Hocquenhem, autor de Le desir homossexuel, queer avant la lettre
(“se não quisermos fazer dela um marco, deveríamos pelo menos citá-la como
4
Sáez, Javier, “Por qué un Metro LGTBIQ en Madrid”, Píkara Magazine, 26 de Junho 2017 (https://www.
pikaramagazine.com/2017/06/por-que-un-metro-lgtbiq-en-madrid/).
5
Wittig, Monique, The Straight Mind and Other Essays, Boston: Beacon Press, 1992, p. 12.
6
Leopoldo, Rafael, Cartografia do pensamento queer, p. 138.
7
Sáez, Javier e Carrascosa, Sejo. Pelo cu: políticas anais. Trad. Rafael Leopoldo. Belo Horizonte: Letramento, 2016.
8
Vidarte, Paco, Ética bicha, Trad. Cardellino Soto, P. e Selenir Nunes dos Santos, M. n-1 edições, 2019.
14 RAFAEL LEOPOLDO
existe um risco maior do que conceber, imaginar, desenhar mapas: deixar que o
façam por nós. Os riscos, neste último caso, o sabemos bem, são altos. Por não
sair do metrô de Madrid, como esquecer o modo que, durante a prolongação
sul-europeia da Primavera Árabe, foi combativamente renomeada, em cada um
dos mapas de cada uma das estações do metrô, a estação de Sol por “Acampada
Sol”? Como esquecer da violência simbólica que representou, um ano depois,
que a câmara municipal vendesse os direitos de nomeação ou, na linguagem
publicitária, os “naming-rights” da estação de Sol a uma grande companhia
privada, tornando cada um dos mapas do metrô um anúncio publicitário? Talvez
seja por isso que resultou tão catártico, frente à mercantilização de um pedaço
de história de uma luta coletiva, ver o nome de Paco Vidarte ocupar, pela sua
vez, o centro do mapa.
Não é por acaso que as “teorias queer” portam, no seu próprio nome, a
história de uma luta pela ressignificação do insulto, uma luta pelos naming-
rights das sapatonas, das travestis, das soropositivas, das bichas, das raras, das
precárias. A indeterminação do referente, inscrito no insulto queer, é um dos
motivos pelos quais este não é o nome de um movimento social que possa
ser descrito, colocado no vidro do laboratório acadêmico para ser dissecado,
as suas partes expostas e classificadas. De forma similar, queer também não
assinala um conjunto delimitável de teorias que possam ser simplesmente
reunidas, resumidas e sistematizadas. Talvez, uma das melhores descrições
possíveis para aquilo que este livro trata é, justamente, a que está implícita em
seu título. Queer é o nome de um lugar, um campo de estudos, uma proliferação
de espaços de resistência. Daí que a ideia de cartografia seja, entre outras coisas,
um convite a participar desta luta pela nomeação. O convite que Rafael oferece,
aqui é, como o era o mapa de Javier Sáez, amistoso, ciente de que, “apesar do
que proclama a retórica liberal, na verdade somos redes de relações, não de
indivíduos”. Provavelmente por isso as visitas às estações do metrô, de filósofos
como Michel Foucault, Gilles Deleuze ou Jacques Derrida, transcorrem com
leveza, livres do peso da pretensão de completitude ou sistematicidade, sem
perder o alvo de tratar a relação com o pós-estruturalismo a sério e não como
uma mera referência que completa uma página por vazio tecnicismo.
A propósito desta relação, contava Judith Butler em seu prefácio de 1999
para O gênero em disputa, que entendia que o seu trabalho “terminou por ser
9
Butler, Judith, “Preface 1999”, Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity, New York and
London: Routledge, p. ix, 1999.
Austin, J. L., Quando dizer é fazer: Palavras e açã, trad. Marcondes de Souza, D., Porto Alegre: Artes
10
Médicas, 1990.
16 RAFAEL LEOPOLDO
a comoção política da performatividade na filosofia chegaria mais longe11.
Identificar as regras com as quais diferenciar o uso “sério” do simples jogo? As
condições que diferenciam o ato de fala real da sua representação? Sistematizar
as propriedades dos rituais sociais que garantem que aquilo que foi dito fizesse
o que fez? O modelo filosófico com que diferenciar a moeda falsa da real, a
citação do original? Mais do que uma crítica, Derrida despregou o seu riso
sobre o muro de contenção que Austin pretendia levantar frente a algumas das
consequências da sua própria forma de entender a dimensão performativa da
linguagem. À luz desse riso, o que Austin chamava seriedade se revelava, antes
bem, como uma piada escrita sobre outra piada. O uso sério da linguagem,
como anunciou Nietzsche, apenas uma cristalização histórica de um exército
de metáforas. A norma sancionada pelos rituais sociais, uma sedimentação
contingente, provisória, dos usos ditos “ilegítimos”. Tudo casamento, uma obra
de teatro, uma teatralização da legitimidade.
Foi este o duplo impulso crítico, o do pragmatismo de Austin e o de sua
desconstrução, o que Butler dirigiu contra a gramática social do gênero para
entendê-lo como algo que fazemos além de uma expressão de algum tipo
de verdade interior, histórica e independente das relações hierarquizadas e
heterossexualizadas entre os sexos. Assim, na linha aberta pela crítica à categoria
de sexo contra a qual autoras, como Monique Wittig, tinham lançado algumas
cargas de profundidade, a teoria da performatividade veio a questionar a
concepção do sexo entendido como ancoradouro biológico ou ontológico ao
abrigo de qualquer riso desconstrutivo. Não tanto para questionar que existam,
de fato, diferenças materiais entre os corpos, relacionadas com a biologia de algo
chamado sexo, mas para assinalar que a nossa compreensão deste, incluindo
o que aprendemos através dos paradigmas médico-científicos12, não pode ser
isolada sem mais da história social das relações entre os sexos nem do marco
linguístico em que se desenvolvem tanto estas como o próprio marco científico.
Desta forma, não só o gênero, mas o sexo passava a ser considerado como
um elemento a mais nesse conjunto sedimentado das normas, nessa corrente
histórica de recitações que Gayle Rubin chamou sistema sexo-gênero, Monique
Wittig, pensamento heterossexual e Judith Butler, matriz heterossexual.
11
Refereo-me aqui a Derrida, Jaques, “Assinatura Acontecimento Contexto”, em Limited Inc., Campinas:
Papirus, 1991. p. 11-37, 1977.
12
Como argumenta a bióloga Anne Fausto-Sterling em Sexing the Body: Gender Politics and the Construction
of Sexuality, New York: Basic Books, 2000.
Ver Richard Miskolci e Maximiliano Campana, ‘“Ideologia de Gênero”: Notas Para a Genealogia de Um
13
18 RAFAEL LEOPOLDO
de transformá-lo naquilo que este ainda não é. O sabem bem, entre outros,
aqueles que colocam na agenda neoliberal o ataque à filosofia ou, mais em geral,
à balbúrdia dos cursos de humanidades.
Felizmente, frente a qualquer tentação de culpar retroativamente Jacques
Derrida pela atual ofensiva anti-gênero ou de reduzir a teoria queer ao âmbito
de influência de Judith Butler, este livro traz bons antídotos. Entre outros
motivos, porque nele o impulso cartográfico se confunde, por vezes, para além
de qualquer metáfora, com a dimensão geográfica. Tal é, provavelmente, um dos
pontos mais estimulantes desta cartografia do pensamento queer. A diversidade
das fontes passa por autoras e ativismos estadunidenses, sim, mas, também,
francesas, argentinas, espanholas e brasileiras. As visitas de Rafael a estas paradas
da contra-cidade queer transmitem a paixão de uma relação pessoal sem por
isso perder uma importante dimensão pedagógica, no melhor dos sentidos do
termo. O conjunto de metáforas exploradas, os giros teóricos escolhidos, junto
com as referências trazidas da cultura pop, fazem com que as paradas deste
mapa fiquem ao alcance de um público do qual só posso esperar que seja tão
amplo como a proliferação de cartografias e mapas compartilhados e como o
afã de não deixar o mundo tal e como o encontraram.
PENSAMENTO QUEER
22 RAFAEL LEOPOLDO
e sistemático para explicar um objeto determinado de estudo. Ademais, tem-se
um método claro e uma linguagem formal que deve permitir uma análise, uma
verificação das proposições. Aplicado à teoria queer, o termo “teoria”, de acordo
com Sáez, seria no mínimo inapropriado.
Talvez devêssemos salientar que a teoria queer surge com outra linguagem,
não necessariamente acadêmica, que perpassa a fala de uma mexicana nos
Estados Unidos; um estrangeiro sem papeis16 em um trabalho precário num
país europeu; um jovem pardo discriminado por sua cor de cobre na Grécia;
um homem ou uma mulher negra compreendidos como hipersexualizados por
alguns franceses; a conversa de uma butch17 num bar de lésbicas na Argentina;
uma sapata masculinizada trabalhando como caminhoneira junto a diversos
homens nas estradas do Peru; uma drag queen fazendo uma performance
na boca do lixo ou em um grande cabaré na Alemanhã; uma bicha que é
olhada com estranhamento como se não houvesse lugar para alguém mais
afeminado; um puto nas avenidas de Belo Horizonte; homens heterossexuais
com masculinidades diversas de um machismo tóxic que entendem a sua
performatividade como única e verdadeira, e que deveria ser imposta de
forma compulsória; um grupo de lésbicas que se desvincula de um feminismo
16
Na Marcha das Mulheres de 2017, que teve como grande tema uma resistência ao presidente Donald
Trump, Angela Davis (uma das maiores expoentes do feminismo negro norte-americano) reafirmou em
seu discurso que “Nenhum ser humano é ilegal”, mote que remonta ao texto de mesmo nome, escrito por
Elie Wiesel. Há grupos que já têm uma rede internacional antirracista e, principalmente, que mantêm uma
preocupação política com os imigrantes, com a deportação. Esta declaração de Davis é interessante no sentido
de compreendermos como outros elementos passam a fazer parte do discurso feminista. Cita-se também as
guerras, a questão indígena, o racismo, a islamofobia, o antissemitismo, a misoginia, a exploração capitalista,
as mudanças climáticas etc. Ou seja, com Davis já encontramos um discurso interseccional (uma contribuição
para a teoria queer que parece ser especialmente dada pelo feminismo negro e sua relação com a raça, conforme,
as contribuições de Heleieth Saffioti, por exemplo). Outra ativista que deve ser citada é Janet Mock. Trata-se de
uma ativista transexual negra que apontou que a sua liberação está relacionada com a liberação das transexuais
latinas, das trabalhadoras do sexo etc. Aqui novamente existe uma tentativa da produção de discurso
interseccional, um discurso que entende as diversas formas de dominação em simbiose. Estes dois discursos
têm por trás de si uma longa jornada de políticas moleculares, de políticas transversais e questionamentos
queer. No Brasil, também, em 29 de setembro de 2018 houve uma grande Marcha contra o Fascismo – que
ganhou diversos contornos políticos, porém, não partidários –, marcha contra o fascismo, fascismo encarnado
na figura do político Jair Bolsonaro que nadou na onda conservadora brasileira do pós-junho de 2013. Tal
manifestação das mulheres unidas contra bolsonaro contou com dezenas e milhares de mulheres na liderança e
homens nas ruas com o mote – ligado à internet – de #Elenão que, por sua vez, teve ressonâncias fora do Brasil:
#Nothim, #Élno, #Paslui etc. Todavia, logo após a eleição de Bolsonaro como presidente houve uma onda
forte de violência contra as minorias e o mote que passou a percorrer a internet foi “ninguém solta a minha
mão”, mote que cria uma clara simbiose entre os afetados negativamente pelo inicial governo bolsonarista.
A palavra inglesa butch serve para nomear tanto as lésbicas masculinas quanto os homens excessivamente
17
masculinos. Algumas variações desta palavra são: bucha (México, Porto Rico), Buchera (México), Buch (Argentina).
24 RAFAEL LEOPOLDO
Gilles Deleuze escreve a respeito de uma “ação de teoria” e “ação de prática”,
no sentido em que há uma multiplicidade de pedaços ao mesmo tempo teóricos
e práticos que, por sua vez, estariam longe de um corpus teórico, de uma
totalidade, de uma vontade metafísica de criação de sistemas fechados (como,
por exemplo, o sistema kantiano ou o sadeano). Deleuze e Foucault negam
também uma consciência representativa do intelectual: não se trata mais do
intelectual “maldito”, do intelectual “geral” que desvelaria um sistema e mostraria
para os demais as desigualdades. Ao contrário, eles entendem que as massas
têm um saber e que podem dizê-lo, sendo o intelectual entendido, logo, apenas
como o intelectual específico. Para Deleuze, Foucault teria ensinado com a sua
vida e os seus livros a “indignidade de falar pelos outros” (Deleuze, 2002, p.
268). Na corrente dessa afirmação, pensamos que a teoria queer está muito
mais próxima de uma ação de teoria que de um sistema fechado em si mesmo.
A própria filosofia de Deleuze, juntamente com Guattari, é sistemática; mas é
um sistema aberto, uma filosofia a-centrada, uma filosofia rizomática, de modo
que confiamos que o pensamento queer esteja mais próximo desta abertura,
deste a-centramento, deste rizoma, que de um sistema fechado, centrado
e arborescente, e com um desejo metafisico de chegar numa completude
apaziguadora.
A propósito, a palavra inglesa “queer”, primeiramente, possuía uma acepção
de insulto, e servia para nomear o extravagante, no sentido do que vaga fora
da normalidade. Trata-se dos e das incontáveis, dos e das descartáveis, dos
zeros econômicos, do subalterno, do imigrante, da louca, do louco, do mojado,
da chicana, do refugiado, do ladrão, do bêbado, do indigente, do pedinte, do
enfermo, do homossexual, da bicha, da lésbica, da sapatona, da travesti, da
transexual, do homem afeminado, da vida nua, do pobre, do estigmatizado, da
“ralé” e dos “batalhadores” (para pensarmos nos escritos de Jessé Souza e sua
obra A ralé brasileira), do “refugo humano” (para pensarmos nos termos do
sociólogo Zygmunt Bauman em sua obra Vidas desperdiçadas), dos de existência
“precária” (para pensarmos em Judith Butler, e sua obra Vidas Precárias), mas,
também, de nenhum deles, pois, como coloca Paul Beatriz Preciado, essa palavra
aparece como uma falha na representação linguística: nem isso, nem aquilo,
mas “queer”. Este é o primeiro espaço da palavra “queer”, o primeiro lugar do
18
Usamos neste momento o termo “jogo de linguagem” fazendo referência a um conceito da filosofia
da linguagem. Trata-se de, neste domínio, pensarmos a pragmática da linguagem – esta pragmática vai
influenciar John Austin e, ademais, a teoria queer, quando Judith Butler faz uma análise dos atos de fala
– o seu uso em diferentes contextos. Os “jogos de linguagem” remetem, sobretudo, ao filósofo Ludwig
Wittgenstein e suas Investigações filosóficas, e têm relação com suas elaborações sobre os problemas filosóficos
e linguísticos. Para Wittgenstein, não deveríamos procurar um uso geral da linguagem ou um uso abstrato,
mas olhar os casos concretos, valorizar a experiência da linguagem. A partir deste ponto, vamos salientar
dois momentos da palavra queer: 1) um uso primário, onde ela produzia o ser abjeto, ainda que com
uma determinada falha representacional; 2) e um uso secundário, onde ela foi reapropriada e positivada.
Vemos a linguagem no seu uso público – tanto a filosofia da linguagem de Wittgenstein como de Austin são
dialógicas –, e não em seu uso solipsista, individualista, ou ainda, estritamente mental (para uma introdução
a respeito da filosofia da linguagem ver, por exemplo, “As armadilhas da linguagem”, de Marcondes, 2017).
19
O termo heteronormatividade evidencia uma tendência de considerar as relações heterossexuais como uma
norma, e as demais formas de relações como desvios da norma. Todavia, esse termo colocaria em pauta a
heterossexualidade não como apenas uma questão sexual, mas como um regime político e normativo, onde
quem não estivesse nessa matriz heterossexual seria o indivíduo abjeto, o rechaçado. É claro que quem está
nessa matriz heterossexual tem determinados privilégios, de modo que bastaria que pensássemos os benefícios
sociais que produz uma união estável via casamento como a proteção do patrimônio nesse núcleo social.
26 RAFAEL LEOPOLDO
Pelo uso não “natural” do corpo (em se tratando dos homossexuais), houve
também a concepção de que a AIDS era uma “praga divina”, que limparia a
impureza da prática homoafetiva. Já os haitianos, por sua vez, tornaram a AIDS
endêmica segundo o senso comum, mesmo que a causa dessa endemia, em
grande parte, seja o turismo sexual norte-americano e uma política religiosa
contra o uso de preservativos, o que somente agravava a situação. Lembremos,
por exemplo, da política norte-americana do presidente Bush e o seu slogan na
África, chamado ABC, Abstinence, Be faithful and Condoms, “abstinência, ser fiel
e camisinha”. Em comparação, a política da ONU era mais efetiva, com a sigla
CNN, Condoms, Needles and Negociation, “camisinha, seringas e negociação”.
Quanto aos usuários de heroína, além do problema da AIDS, tais estigmas
estavam envoltos na própria concepção negativa que se tem do corpo do viciado,
onde ele é visto como execrável, corpo que deve ser eliminado ou reconstituído
de acordo com a norma, muitas vezes por uma internação obrigatória ou, quiçá,
uma internação compulsória20.
Diante de toda esta visão negativa que recai sobre esses grupos sociais
citados, também há uma resposta como, por exemplo, a criação, nos Estados
Unidos, do Gay Men’s Health Crisis, que tenta dar apoio à comunidade gay e às
pessoas afetadas. Outro grupo a ser aludido é o ACT UP, grupo de combate a
AIDS, que luta, entre tantos tópicos, pelo barateamento do valor dos remédios
e por um maior investimento em pesquisas a respeito da doença, além de
apresentar uma política contra o machismo e o racismo. O ACT UP tornou-
se referência para o movimento queer, pois apresenta uma micropolítica,
uma política molecular, um ativismo médico tão útil ao contexto da época,
que reverbera na atualidade em muitos grupos que foram criados a partir
desta experiência pioneira. Eles se apropriam dessa palavra para usá-la como
ferramenta de ruptura com a norma; uma ferramenta de ruptura a uma
sociedade normalizadora. A palavra queer passa, então, de um insulto — o
seu uso primário — para uma afirmação política — o seu uso secundário —;
torna-se uma resistência a um processo de forte normalização. Nota-se que,
neste momento, o jogo de linguagem mudou.
20
Em São Paulo, esse debate sobre a internação compulsória diversas vezes considera a medida
reativa, principalmente, ao que corresponde à área da Cracolândia. A argumentação principal é
que os “usuários de droga” – termo bem genérico – não teriam controle sobre seus próprios atos,
sendo necessário um “tratamento externo” (internação) para evitar determinada deterioração do
sujeito e, sobretudo, uma deterioração do ambiente social que muitas vezes envolve um processo de
gentrificação, relacionado à produção de um espaço limpo daquilo que se considera um dejeto social.
21
A “nova direita” surgiu nos Estados Unidos na década de 70. Ela emerge de grupos fragmentados, como:
os entusiastas do livre mercado, os anticomunistas, antifeministas etc. Esse movimento, inicialmente
fragmentado, ganha uma determinada força política quando faz aliança com o protestantismo conservador,
com o conservadorismo econômico e social. Na década de 80, já encontramos uma “nova direita” forte
nos Estados Unidos e, ainda, uma “nova direita cristã”. A característica comum dos grupos de direita,
dos conservadores e direitistas, é um trabalho de identificação interna do grupo por meio de uma crítica
externa, de um inimigo ou vários. Tem-se uma crítica forte ao comunismo, ao feminismo, aos movimentos
pró-aborto e às políticas LGBT* em geral. Mais adiante, vemos essa direita incorporar o terrorismo como
novo alvo da agenda direitista. Dessa maneira, salientamos: mesmo que haja uma absorção da cultura gay
nos anos 80, há um forte movimento contrário, com políticas abertamente antigay e anti-minoritárias.
28 RAFAEL LEOPOLDO
de nova burguesia gay” (Sáez, 2008, p. 30. Itálico nosso), e havia uma gama de
pessoas que não se identificavam com suas premissas, como, a título de exemplo,
uma variedade de lésbicas, sapatonas, travestis, transexuais, negros, latinos,
desempregados, dentre outros — todos geralmente com problemas de inclusão
social e um grande número de grupos de pessoas com uma sexualidade diversa
da relação “homem gay com homem gay” que, ademais, não se identificavam
com essa nova cultura que se estabelecia diante de um novo sistema econômico.
Enfatizar esse dado é importante a medida em que o pensamento queer
vai perpassar essa recente configuração que envolve o feminismo, as diversas
desistências, esses sujeitos que não se veem representados e que, por sua vez,
vão interpelar esses saberes que já estavam impregnados com uma crítica social.
Leandro Colling afirma que pensamento queer é um “racha” com o feminismo.
Diaríamso também que é um racha com o movimento gay e sua ossificação,
embora conserve muito dos seus elementos e tente novas conexões com ele,
outras formas de aliança. Sobre este aspecto, é sintomático que o livro “Problemas
de gênero: feminismo e subversão de identidade”, de Judith Butler (considerado
um dos livros capitais para a teoria queer) tenha a problemática da “mulher”
como sujeito do feminismo já no primeiro capítulo. O pensamento queer vai,
de diversas formas, aprofundar determinadas críticas do feminismo (às vezes,
surgindo de forma interna), apontando para o fato de que há saberes vindos de
alhures, de outras partes, de outros lugares, de outros espaços, das margens, das
fronteiras e com saberes fronteiriços. Esse sujeito sem identidade (ou que tenta
se des-identificar), sem visto permanente, e que entra no território feminista
aprofundando-o, é o queer.
Em outras palavras: um número considerável de pessoas não se identificava
com o estatuto da cultura gay. Paul Beatriz Preciado chega a alegar que a teoria
queer é pós-identitária, ao passo em que se coloca em uma posição crítica frente
às normas heterocentradas, chamando atenção à normalização e à exclusão
que acontece até mesmo dentro do seio da cultura gay e lésbica. O queer, ante
isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um
questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de
naturalização e normalização. Pensando nesse dado, é preciso que determinados
grupos escutem essa outra voz que é o queer, essa voz que, inexoravelmente,
chegou em dado momento a interpelá-los, não se tornando apenas uma temática
de seus colóquios. O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e
propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação.
22
Reafirmamos que se neste momento ativamos a Revolução cultural chinesa o intuito é tão-somente
remontarmos determinada crítica a si mesmo, criticarmos as nossas próprias linhas duras e fazer uma apologia
a um fervor revolucionário. Todavia, deixamos de lado a violência deste movimento e as suas neuroses.
30 RAFAEL LEOPOLDO
de outra forma. Quem sabe essa palavra fique ainda mais interessante quando
perde o rumo da sua casa, tornando-se um pouco mais drag queen; arrastando-
se, naturalmente, por outros caminhos e por outras relações.
De qualquer maneira, voltamos agora para outros aspectos do ativismo gay,
do feminismo e do queer; logo depois, seguiremos aos seus desdobramentos,
principalmente, no que concerne ao saber filosófico e suas relações com a
produção deste mapa que nos é proposto.
23
Ver, por exemplo, o texto de Hakim Bey chamado Superando o turismo onde o autor aponta que o
turismo procura cultura, exatamente, porque a própria educação se tornou uma preparação para o
trabalho e o consumo. Hakim Bey relaciona o turismo com a guerra, com o terrorismo, com a Era da
mercadoria, mas, ele propõe a Era do presente, da reciprocidade, do dar e receber. Seria melhor, então,
procurar outros lugares como no caso de Lemebel, procurar outros bares, o não-oficial, o não-
monumento, o não apropriado pela máquina social capitalista no seu processo de axiomatizar os fluxos.
Trata-se, então da arte da viagem dos sufis, os místicos do Islã, os não guerreiros, o puro nomadismo.
32 RAFAEL LEOPOLDO
todo o socius como uma mão que libera o fluxo, embora, com a outra, axiomatize
dentro do capitalismo.
Torna-se notável, também, a carga semântica da palavra “homossexual”,
da palavra “gay”, e outras que serão usadas no decorrer deste livro. E se não
empregarmos uma mesma palavra para a experiência homoerótica é porque, ao
colocá-las em determinados contextos, produzimos deslocamentos históricos
que sugerem mutações importantes dessa experiência que é definitivamente
multifacetada.
No dia 29 de junho de 1969, entram no Stonewall Inn alguns policiais
uniformizados e outros não. Estas batidas eram comuns nas décadas de 50
e 60, pois havia ainda, além do preconceito, todo um sistema jurídico anti-
homossexual. Assim, os policiais acostumavam sempre anunciar que estavam
tomando o local. Contudo, cansados de tanta opressão, alguns frequentadores
começam a revidar as batidas policiais que se tornavam cada vez mais comuns
e agressivas. Portanto, a primeira revolta e forma de política nesse ambiente
se trata de um questionamento visceral do poder policial24, do poder estatal.
Na porta do Stonewall Inn as pessoas passam gritando gay power. O confronto
direto entre gays, lésbicas, travestis, drags, transgêneros e a polícia era quase
inevitável e, nesta precisa conjuntura, inicia-se a revolta de Stonewall Inn. No
dia seguinte, mais pessoas vão ao bar. No terceiro dia, cerca de 100 mil pessoas
tomam as ruas de Nova Iorque. Neste momento, temos o marco do movimento
gay norte-americano que vai reverberar nas políticas LGBT* e na constante
reinvindicação por direitos.
Contudo, ainda que a revolta de Stonewall Inn seja um catalisador do
movimento gay, ela não é suficiente para a compreensão de uma “identidade gay”.
Para sermos mais precisos, no contexto norte-americano, salientemos diversos
outros movimentos sociais dos anos 60 como, por exemplo, a contracultura,
o movimento afro-americano, o movimento psicodélico, os hippies, o
antimilitarismo, a nova esquerda, e, ademais, os feminismos em sua importante
pluralidade. Todos estes movimentos formam um cenário onde é possível uma
24
Compreendemos a revolta de Stonewall Inn como, primeiramente, uma revolta contra o poder policial. Vamos
evocar mais à frente tanto o filósofo Michel Foucault e sua análise das prisões quanto a filósofa feminista Angela
Devis e, também, a sua abordagem da questão carcerária é importante de ser lembrada, assim, compreendemos
como a questão policial, a questão estatal desde o início envolve a teoria queer, perpassa as políticas moleculares,
a transversalidade. Todavia, é claro que a revolta de 1969 não vai ter como eco tão-somente a questão carcerária,
por isso, enfatizamos, principalmente, a formação de uma identidade gay, de um modo gay de se viver.
34 RAFAEL LEOPOLDO
que envolvem os aspectos gênero e raça, sexo e classe, idade e corporeidade”
(p. 41). São estas noções que tomamos aqui como referência ao homem branco.
De qualquer forma, lembremos que uma mulher ou um homem branco
podem ser reprimidos pelo patriarcado; no entanto, eles podem exercer,
de forma consciente ou não, um poder racializado sobre os demais grupos.
Lembremos que esta mulher e este homem branco podem reprimir ou serem
reprimidos de acordo com o lugar, com o espaço em que eles vão estar, que
pretendem perpassar. Por exemplo, se um indivíduo branco de classe média
no Brasil pode exercer um papel opressor sobre uma gama de outros tipos, este
mesmo indivíduo pode sofrer preconceito por sua origem latino-americana nos
Estados Unidos ou na Europa. Com esses dados, afirmamos que, mesmo esse
indivíduo branco pode sofrer preconceitos; contudo, neste momento, trata-se
de compreender que há uma variedade de pessoas que não se reconhecem como
gays padronizados ou num feminismo ossificado. Falamos dos já citados zeros
econômicos, do subalterno, do imigrante, do mojado, da chicana, da bicha, da
sapatona, da butch, da lésbica negra, da transexual, do transexual, dentre tantos
outros e outras.
Há um rol de pessoas em uma situação econômica diversa daquela
comunidade gay e, ainda mais, de uma sexualidade que não se refere tão somente
à relação “homem gay com homem gay” em uma relação estável e monogâmica.
Estes que estão fora dessa comunidade gay são, de fato, o queer naquele momento
— aqueles que estão envoltos não só em uma luta por libertação sexual, mas,
sim, em uma luta devido à sua posição geográfica, linguística, social, econômica;
à sua própria vida, enfim, em cada um dos seus elementos. A produção queer
vai ler os seus próprios corpos políticos dentro da sua complexidade.
E se mesmo diante dessa inclusão dos gays no capitalismo e num sistema
heterocêntrico, eles não estão livres dos preconceitos, dos olhares de condenação,
da censura externa e, às vezes, de uma censura interna; se não estão livres (ainda)
das injúrias que escutam, das piadas contadas de forma que chegam à exaustão;
se não estão livres da homofobia generalizada que perpassa os mais próximos
(os familiares) até os mais distantes (o olhar do desconhecido), e se tudo isso
ainda acontece hoje com os gays de classe baixa de forma feroz e, até mesmo,
com o gay de classe média de forma mais amena e velada; se todos esses casos são
assíduos e comuns, então passemos a conceber, passemos a imaginar, passemos
a pensar, passemos a refletir de forma mais aguda sobre o que é o queer e o seu
rechaço, o que é o queer e tudo que ele envolve. No entanto, pensemos não
A (IN)TRADUZIBILIDADE DO QUEER
36 RAFAEL LEOPOLDO
e da língua menor, como abordam Deleuze e Guattari. Não obstante, traduzir
Gloria Anzaldúa exigiria o conhecimento das variações do inglês e do espanhol
usuais da autora, mas, ainda, a força, o peso das palavras e, para completar, a
gama de fatores culturais que envolvem sua produção. Cito-a, porque ela tece
alguns comentários úteis sobre o termo “queer” que abordaremos mais adiante,
além de representar, nesta pesquisa, o tópico de todo um capítulo sobre o começo
da teoria queer. Por ora, retornemos à nossa palavra principal e às duas imagens
da tradução que sugerimos. Trata-se de dois pontos de explicação a respeito
do assunto.
Quando nos deparamos com o termo “queer” visualiza-se, de imediato,
um enigma de tradução. Existem muitas formas de compreender o que é uma
tradução e uma que pensamos ser interessante aqui, nesta nossa dobra teórica, é
aquela que remete à própria etimologia da palavra. A palavra “tradução” vem do
latim transfere, que significa “cruzar uma fronteira”. Podemos pensar o tradutor
como um traficante semiótico, um mojado bilíngue, uma chicana poliglota, um
sans-papier multilíngue. Esta é uma imagem espacial que nos sugere o tradutor
como aquele que leva e traz significados por entre as fronteiras. O tradutor é
aquele que perpassa uma língua e outra, traficando significados. Esta imagem
seria falsa se produzisse uma ideia de que o objeto linguístico seria o mesmo nos
dois lados da fronteira. Exatamente por isso, é crucial dizer que, ao atravessar
a fronteira, o objeto linguístico perde ou ganha um determinado valor, como
toda mercadoria traficada não é a mesma ao longo do seu percurso.
No entanto, se formos a outras fontes, em outros lugares, para pensar
a tradução, encontraríamos outra possibilidade interpretativa da função do
tradutor e sua relação com o texto e o contexto. No árabe, a palavra para tradução
é tarjama, que deriva da palavra biografia. Lembremos que os árabes foram
os tradutores da cultura grega, ou seja, eles tiveram uma relação forte com a
preservação de toda a cultura ocidental e o seu desdobramento. Com eles, temos
outra imagem do que é a tradução. Neste momento, o tradutor não é aquele que
leva algo de um lugar a outro, mas alguém que conta uma história, uma história
de vida, a vida grafada no papel (bio-grafia). Gostaríamos de pensar, além disso,
em uma zoografia da reflexão transviada; com ela, estaríamos mais próximos de
uma política cuir dos trópicos, mais próximos de uma grafia, também, do não-
humano, dos cheiros, dos fluídos, dos poros, dos gritos, dos grunhidos que o
queer faz transbordar, que o “querer” (como parece preferir Richard Miskolci) faz
transbordar. De qualquer forma, quando meditamos a fundo nesta etimologia,
38 RAFAEL LEOPOLDO
nem isso nem aquilo, mas “queer” — o estranho, o raro. Desta forma, o queer não
teria um conteúdo específico, mas reuniria em si todos os abjetos, os rechaçados,
os desalmados, etc.
Todavia, este mesmo termo é ressignificado por aqueles que são chamados
de queer, é ressignificado pelo ativismo. A palavra queer passa a afirmar uma
diferença que não queria ser integrada — diferente de alguns movimentos que
lutavam e lutam por esta integração à norma heterocentrada e ciscentrada —,
uma diferença que se coloca com orgulho. O sentido da palavra queer sofre
outras mudanças com suas viagens, seja quando encontra outras pessoas do
outro lado do continente, seja como uma palavra estranha que designa uma
teoria ainda mais esquisita, ou ainda, ao entrar nas portas das universidades e
percorrer as salas, os corredores, etc. Aqui nos debruçamos somente da palavra,
pois o queer, enquanto referência a uma subjetividade, já existia em tantos
outros lugares sem que fosse preciso classificá-lo com uma palavra estrangeira,
exótica. Há uma série de outras palavras que caracterizam a existência queer,
mas é a palavra inglesa que ganhará os contornos de uma produção teórica,
funcionando como o catalisador de um discurso.
Quando a palavra queer atravessa as fronteiras com uma tradução ou ainda
até mesmo com uma tentativa de tradução, ela perde parte do seu significado;
o que era excesso de significação que não conseguia capturar, transforma-se
em uma falta de significação devido à perda da própria história da palavra,
ou por causa da perda de sua carga como uma injúria. Não é estranho que o
queer ganhe até mesmo um ar de respeitabilidade quando chega ao mundo
acadêmico, pois a palavra já foi esvaziada do seu conteúdo. Com certeza, é mais
fácil se identificar como queer do que bicha, travesti, transexual, transgênero,
sadista, masoquista, fetichista, sapatona, puto, ou ainda, não se identificar com
nenhuma categoria. Partindo deste dado, compreendemos como também é
louvável as tentativas de subverter o próprio termo queer à procura de um
“estudo transviado”, de uma “teoria torcida”, de um “estudo cuir/kuir”, de um
estudo do “querer” dentre outras tentativas de tradução (ou mudança de grafia),
outras tentativas de atravessar fronteiras, outras tentativas de recontar histórias.
No capítulo sobre Gloria Anzaldúa e o nascimento do queer veremos
a relação que esta autora teve com as lesbian writers, as escritoras lésbicas,
pois Anzaldúa é mestiça e, para ela, a categoria lésbica não diz muita coisa.
O que Anzaldúa escutava estava num outro contexto, dizia respeito de uma
identificação com a marimacha, jota, loquita, culera, etc., mas, não com a palavra
40 RAFAEL LEOPOLDO
A TEORIA QUEER CONHECE A PSICANÁLISE
O TRONCO E OS RAMOS
42 RAFAEL LEOPOLDO
ideia de perversão. A respeito de um possível heterocentrismo em Freud, o já
citado Caso Dora pode resultar um estudo positivo.
Na obra freudiana encontramos uma potencialidade libertadora sem
precedentes para pensar a homossexualidade, o que não vai reverberar de forma
aguda nos pós-freudianos e no processo de institucionalização da psicanálise.
Lembremos, por exemplo, que a filha de Freud, Anna Freud, vai tentar corrigir/
curar os homossexuais, e desta posição escutaremos alguns ecos, até mesmo na
atualidade, quando a homofobia se mescla com o saber da psicanálise, ainda que
— e vale a pena reafirmar —, encontremos na própria obra freudiana todos os
elementos para nos distanciar de uma visão tão tacanha que tenta, por exemplo,
aplicar uma “cura gay”.
Esses apontamentos são extremamente úteis para que, na clínica, haja
uma relação positiva com homossexuais, travestis, lésbicas, transexuais, etc.
Compreender essa multiplicidade queer e relacioná-la com o saber psicanalítico
tem uma veemência importante para uma mudança positiva do sujeito com
relação à compreensão de si mesmo, dando uma eficácia à análise e ao processo
de final de análise, da criação de novas narrativas de si, ou ainda, de um novo
conto familiar.
ESBOÇO CRONOLÓGICO
44 RAFAEL LEOPOLDO
questão da homossexualidade vai reverberar. Veremos mais adiante a posição de
Freud frente a este assunto e de alguns pós-freudianos. Com relação aos grupos,
os seus componentes permanecem principalmente como alunos do mestre Freud,
não chegando a compor uma produção que se iguale à dele. Neste período, a
marca é a filiação direta com o mestre e o não surgimento de contrapontos que
possam gerar grandes tendências ou novas escolas psicanalíticas.
No segundo período (1918-1939), a forte figura de Freud se mantém, mas
já existem fatores que tornam possível a criação de grupos autônomos. Mezan
aponta que “a novidade desta segunda fase é que as discussões não terminam
necessariamente em dissidências formais nem em expulsões espetaculares,
mas na formação de correntes de opinião, que serão as bases das escolas
propriamente dita” (Mezan, 2014, p. 50. Itálico do autor). Mezan é honesto
em colocar o caso de Wilhelm Reich — autor importante para o pensamento
deleuzo-guattariano e para a libertação sexual — e Otto Rank, que estão em um
conflito “insanável” com Freud. Para o autor, estes casos seriam uma exceção.
Ainda neste segundo período, dentro da própria teoria freudiana, começa-se
a mostrar relações complexas, de um Freud se colocando contra um Freud,
revendo a sua própria teoria, nuançando-a. Essa diversidade interna dentro
da teoria possibilitará o surgimento de escolas psicanalíticas. Tem-se agora
uma maior institucionalização dos grupos; com eles um processo multiplicador
da psicanálise que não depende mais de Freud. Mezan aponta que “a rede de
transferência deixa de ter o seu pivô em Freud para se refratar por diversos
focos, dando origem a uma geração de analistas para quem ele se apresentava
mais como um autor do que como um objeto pessoal de amor ou de rivalidade”
(Mezan, 2014, pp.50-51).
O terceiro período (1940-70/7) é considerado a era das escolas. Neste
momento, formam-se núcleos de teorização divergentes, tem-se uma
cristalização da diversidade da fase anterior em torno dos seus principais
autores e, junto a eles, novos processos de institucionalização dessas escolas.
Há poucas citações recíprocas, não parece existir uma verdadeira tentativa de
interlocução entre as escolas, mas segue-se a lógica do choque, da disputa. Este
período é principalmente marcado pela psicologia do ego, das escolas com
tendências kleinianas, escolas das “relações de objeto” e o lacanismo. Sobre
Lacan, poderíamos citar uma passagem de sua biografia, escrita por Elizabeth
Roudinesco: “Em 1960, ele [Lacan] era ortodoxo porque preconizava um retorno
à linha correta da doutrina original contra toda tentativa de ultrapassagem do
FREUD E A HOMOSSEXUALIDADE
46 RAFAEL LEOPOLDO
nenhum equívoco, sem nenhuma ambiguidade. A primeira manifestação se
trata de uma opinião pública no jornal vienense Die Zeit, onde Freud faz um
pronunciamento a respeito da homossexualidade (este acontecimento data
de 1903). A segunda manifestação é uma carta para Ernest Jones, referente à
admissão ou não de homossexuais na Associação Internacional de Psicanálise
(IPA) (carta datada de 1921). A terceira manifestação é a conhecida carta a uma
mãe americana a quem Freud responde uma questão sobre a homossexualidade
(esta manifestação é datada de 1935). Acreditamos que estes três exemplos são
esclarecedores sobre a inclinação positiva de Freud sobre a questão, num largo
período.
O primeiro ponto, a participação de Freud no jornal Die Zeit se dá devido
a uma personalidade ser “acusada” de práticas homossexuais. A resposta de
Freud foi a seguinte:
48 RAFAEL LEOPOLDO
disso, ao postular que a sexualidade vai além dos órgãos genitais, o autor leva
“as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito
que o dos adultos”. Nessa perspectiva, em que as pulsões parciais integram
o psiquismo humano, o conceito de normalidade perde o seu sentido,
tornando-se uma ficção: não existe diferença qualitativa entre o normal e
o patológico. A diferença reside nas pulsões componentes dominantes na
finalidade sexual (Ceccarelli, 2008, p. 75).
O que interessa a Freud não é o sentido da loja em si, nem tampouco do riso
dos vendedores, tomado isoladamente, mas a rede de conexões que faz com
que Emma seja afetada por essas representações. Assim, do mesmo modo
que se pode dizer, na esteira de Deleuze, que o cavalo domesticado tem mais
50 RAFAEL LEOPOLDO
parentesco — ou seja, mais afetos em comum — com o boi do que com o
cavalo selvagem, vale acrescentar que a confeitaria, na constelação afetiva
de Emma, tem mais parentesco com um lugar de assédio sexual do que com
qualquer outro estabelecimento de vendas (Teixeira, 2010, pp. 10-11).
25
De forma parecida e não igual, porque existem diferenças grandes entre os dois casos, uma a ser posta é
que em 1905 Freud já tinha a noção de sexualidade infantil no seu arcabouço teórico.
No seu estudo sobre Dora, Freud não precisa do Complexo de Édipo para
entender a histeria. A combinação de disposição, complacência somática,
trauma e fantasia, tal como nos descrevemos, já é suficiente. E ainda, a maioria
dos comentários, vindo das mais diversas tradições psicanalíticas, não apenas
dá uma explicação edipiana para a “petite hystérie” de Dora, mas também,
injustificadamente, atribui esta explicação a Freud (Haute & Geyskens, 2012,
p. 54).
52 RAFAEL LEOPOLDO
A análise dos dois autores denota-nos outros elementos que não são o
complexo de Édipo. Estes elementos geram, para Freud, uma explicação do Caso
Dora. Se pensarmos na evolução da etiologia das neuroses, podemos voltar a
um momento em que Freud aborda o método catártico e a disposição à histeria,
juntamente com a etiologia, como pensadas na teoria da sedução. Adentramos,
deste modo, no método catártico como um meio de expurgação e a disposição à
histeria com as suas três características: 1) uma grande sensibilidade corporal; 2)
uma inclinação a evitar a sexualidade; 3) e, por último, os devaneios. Na etiologia
pensada no período da teoria da sedução, a histeria e a neurose obsessiva se
dão pela natureza do trauma. Trata-se da passividade ou atividade sexual da
criança com relação ao seu abusador. Esses elementos seriam suficientes para a
análise de Dora. Porém, seria injusto a este caso dizer que a temática edipiana
não estaria ali. Mas devemos nos perguntar: qual é a função de Édipo no Caso
Dora? Essa resposta nos coloca diante de uma possível psicanálise edipiana ou
ainda uma psicanálise não edipiana.
A pergunta sobre o Édipo no Caso Dora envolve mais do que o interesse
por uma análise meticulosa do texto freudiano; esta pergunta é aqui revelada,
porque, em determinado momento da psicanálise, o complexo de Édipo terá
um papel quase normativo, tornando-se o grande folclore da psicanálise. E a
filosofia e a teoria queer não deixarão de interrogá-lo. Talvez, a crítica mais
forte venha do livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari chamado, exatamente,
de O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. De qualquer modo, a teoria queer
também vai interpelar a psicanálise.
Em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade,
Judith Butler nos escreve sobre uma “matriz heterossexual” da psicanálise
freudiana. A autora não cita o Caso Dora, mas textos, como Luto e melancolia
e O eu e o id, para pensar a questão/problema de gênero. Voltamos para Hauter
& Geyskens, na tentativa de mostrar uma ambiguidade de Freud com relação
à homossexualidade, ao menos apontar que Freud não se livra totalmente
do pensamento de sua época ao pensar que garotas são feitas para garotos (e
vice-versa). Ora, para uma leitura do Caso Dora, esses aspectos deveriam ser
salientados, uma vez que estamos diante de um autor que apresenta aspectos
tanto reacionários quanto revolucionários.
Abordemos essa temática, já que diversos autores indicam que Freud
não mede esforços para que Dora tenha uma relação com o Sr. K, deixando
em segundo plano o desejo de Dora pela Sra. K; ou seja, que Freud,
54 RAFAEL LEOPOLDO
A TEORIA QUEER E O DIREITO DOS ANIMAIS
ANIMAL QUEER26
26
Grande parte deste capítulo se encontra no livro Teoria queer e micropolítica, onde comecei a trabalhar
a questão animal juntamente com os alunos do ensino médio, na rede pública de Minas Gerias.
Posteriormente, trabalhei na disciplina de “Filosofia: ética e antropologia”, na Pontifícia Universidade de
Minas Gerais. Parte daquele trabalho pode ser visto como um prelúdio, como um ensaio à elaboração
da Cartografia do pensamento queer. Este capítulo, ademais, é dedicado a Natália Coeli (e sua produção/
preocupação sobre o direito dos animais, principalmente, a sua breve história do especismo) e ao
MMDA (Movimento Mineiro pelo Direito dos Animais e o seu ativismo com relação aos não-humanos).
27
Todos estes autores e autoras vão de certa forma trabalhar com a fronteira entre o humano e o não humano,
ainda que haja diferenças teóricas grandes, como no caso da crítica de Donna Haraway elaborada ao conceito
Decepcionados com
Um mundo onde
Ou você come
Ou é comido
Os três porquinhos
Deliberaram
Sair da pocilga
À noite
Entraram na casa
E assaram os donos:
56 RAFAEL LEOPOLDO
Esta zoopoética nos leva a uma multiplicidade de interpretações. Dentro
do livro Fábulas para adulto perder o sono, há uma relação com a carência, a
falta, a fome; de tal maneira descortinada, que estes porquinhos encontram-se
configurados nesta relação social precária: ou vítima ou carrasco. Todas as duas
posições são complicadas — é urgente sair da posição de vítima ou de carrasco;
porém, ao menos, há um exercício de mudança de perspectiva, um exercício
essencial para conhecermos outros corpos, outras vozes, outros grunhidos.
Nesta zoopoética, mais do que pensar uma relação senhor e escravo, talvez
soasse de melhor tom pensar que tanto os porcos quanto os humanos sofrem
com suas maçãs na boca. Aqui nos encontramos em um outro registro onde —
como assinalaria Deleuze — o homem que sofre é um bicho, o bicho que sofre
é um homem. Estamos, neste momento, em uma identidade profunda com este
animal queer. Aproximemo-nos, então, desta animalidade.
A nossa aproximação se dá com o que compreendemos como um animal
queer. Refletimos numa existência tornada abjeta: o animal queer é aquele que,
em determinada ocasião, teve a sua possibilidade de vida limitada. Porém,
não deixaremos de adentrar em uma relação mais positiva com os animais
quando nos ocuparmos tanto Peter Singer quanto Francione, ou ainda, a cultura
ameríndia. Outro avizinhamento do queer e da animalidade diz respeito à ligação
da sexualidade com a gastronomia — lembremos aqui que a questão animal
também envolve a questão alimentar —; por exemplo, quando escutamos “somos
o que desejamos” e “somos o que comemos”. Estes dois ditos remetem a uma
produção de uma determinada subjetividade. Claro que ambos os temas já
são, por si só, muito extensos: a temática do desejo e a temática gustatória
reverberam na nossa literatura e merecem uma análise ainda a ser feita tanto
para a compreensão de uma heterossexualidade compulsória quanto para o
entendimento de um carnivorismo compulsório; tanto para a compreensão
de uma saída do armário quanto para o entendimento de uma narração de
si mesmo com práticas alimentares diversas, ou seja, a saída do armário do
carnivorismo.
Se o animal já é queer devido a uma existência minorada, podemos ainda ver
outras relações entre a teoria queer e os animais e, também, o veganismo como
um dos discursos contrários a determinadas práticas hegemônicas. Entretanto,
diante de diversos caminhos, iniciamos este apontamento remontando a
um livro que se tornou clássico no que concerne aos direitos dos animais, o
continuamente revisitado Libertação Animal, do filósofo Peter Singer.
28
O especismo é definido como uma atitude tendenciosa de membros da própria espécie, contra os
de outras. Lembremos do “racismo” como uma atitude de enaltecer uma raça contra outra, ou do
“sexismo” como enaltecimento de um gênero contra o outro e, por analogia teríamos o especismo,
que envolve a ideia de que o humano seria uma espécie mais elevada por ter determinados atributos –
polegar articulado, cultura, linguagem, etc. Estes atributos o fariam melhor que as demais espécies,
um tipo de mestre e possuidor dos demais não humanos. O especismo se relaciona a uma ideia antiga
chamada “antropocentrismo”: o ser humano no centro de tudo, seja da cultura ou do universo.
58 RAFAEL LEOPOLDO
Se for para levarmos os interesses dos animais a sério, então só podemos fazer
de uma maneira: aplicando o princípio da igual consideração aos interesses dos
animais em não sofrer. Não há nada de exótico ou particularmente complicado
quanto ao princípio de igual consideração. De fato, esse princípio faz parte
de todas as teorias morais e, como princípio do tratamento humanitário,
é algo que a maioria de nós já aceita. Para colocar a questão em termos
simples, devemos tratar casos semelhantes semelhantemente. Embora possa
haver muitas diferenças entre os humanos e os animais, há pelo menos uma
semelhança muito importante que todos já reconhecemos: a capacidade de
sofrer que todos compartilhamos (Francione, 2013, pp. 159-160).
29
Bentham e Singer escrevem somente sobre um interesse por não sofrer e, não sobre um interesse pela vida.
Estes filósofos acreditam que a maioria dos animais não tem uma existência mental contínua nem projeção
para o futuro, e valorizam apenas o ser humano como produtor de uma autobiografia. Contudo, se seguirmos
a lógica do argumento a respeito do interesse de qualquer animal não sentir dor, chegaríamos à conclusão que
eles têm um interesse pela vida, já que se evita a dor no intuito de viver. Até mesmo o sentido de unidade mental
é questionável: podemos compreender nossas subjetividades como traumáticas, mais do que subjetividades
contínuas e projetivas. Uma subjetividade traumática pressupõe ruptura. Um exemplo na literatura é a novela
A Metamorfose, de Franz Kafka, onde o personagem principal acorda como um inseto. Poderíamos nos
voltar a tantos outros traumas que produzem quebras no sentido autobiográfico do sujeito. A neurologista e
filósofa Catherine Malabou é exemplar nesta temática com a sua obra Ontologia do acidente: ensaio sobre a
plasticidade destrutiva, pois propõe, até mesmo, a total perda de continuidade, de uma plasticidade destrutiva.
30
Uma atitude humanitarista envolve basicamente uma consideração moral para com os animais não humanos,
trata-se de não impor um sofrimento desnecessário a eles.
A condição (ou status) dos animais como propriedade não é nova; tem estado
conosco por milhares de anos. De fato, a evidência histórica indica que a
domesticação e a posse de animais estão intimamente relacionadas com o
desenvolvimento das próprias ideias de propriedade e dinheiro. A palavra
cattle (gado), por exemplo, vem da mesma raiz que a palavra capital, e as
duas são sinônimas em muitas línguas europeias. A palavra espanhola para
propriedade é ganadería; a palavra para gado é ganado. A palavra latina para
dinheiro é pecunia, que deriva de pecus, que quer dizer “gado” (Francione,
2013, p. 118).
60 RAFAEL LEOPOLDO
A mesma lógica é aplicada aos animais. Deus teria dado-nos pleno poder
sobre os animais que, por sua vez, não variariam, em grau de diferença, dos
demais recursos naturais. Um indivíduo pode, por exemplo, usar um cavalo
como animal de carga e este trabalho (que é feito no “recurso natural”) é tirar
o animal da natureza, dando-lhe a condição de propriedade. Para Francione, é
esta condição de propriedade que é incompatível com a atitude humanitarista
e fonte de nossa esquizofrenia moral. De acordo com isto, não seria possível
pensar no interesse do animal, uma vez que o interesse do proprietário sempre
é maior — prioritário — e a propriedade sempre será uma coisa, seja ela um
objeto, um animal ou ainda um ser humano.
Refletindo acerca da análise do Francione, é possível acrescentarmos outro
nível de explicação sobre a esquizofrenia moral. Francione se voltou, a todo
momento, para o social, para mostrar como a atitude humanitarista e o status
dos animais como propriedade privada são incompatíveis; todavia, podemos
regressar a Gregory Bateson e sua etiologia da esquizofrenia para acrescentar
alguns dados psicossociais.
Nos anos 50, Bateson criou o conceito de “duplo vínculo” para esquadrinhar
a esquizofrenia. O duplo vínculo parte de um indivíduo frente a duas mensagens
contraditórias que se excluem mutuamente; diante das duas mensagens, o
resultado seria uma punição. A mensagem de duplo vínculo recebida a todo o
momento com relação aos animais é que devemos amá-los; porém, ao mesmo
tempo, devemos usá-los como objetos, isto é, humanitarismo e animais como
propriedade privada. Esta é uma relação muito sutil, já que os animais estão
ao nosso redor, geralmente, desde o nascimento. Quanto a estas observações,
gostaria de introduzir dois pontos: 1) a herança cultural indígena com relação
aos animais; 2) e, mais modernamente, a configuração dos quartos de bebês.
A respeito do primeiro ponto, podemos voltar à grande obra de Gilberto
Freyre, Casa-grande e senzala, onde se entrelaçam uma gama enorme de fontes
para pensar os animais no Brasil. Aqui tento me limitar a poucas citações, como
esta, que apresenta a nossa herança, a nossa relação com os animais e a floresta:
Há, na cultura brasileira, tantas outras músicas infantis usadas no ninar das
crianças; se coloco esta para exemplificar é para nos encaminhar ao segundo
ponto: a configuração dos quartos de bebês, o complexo mundo da criança nos
seus primeiros dias.
Este elemento é interessante, pois a maioria dos quartos são rodeados por
animais — expressando o nosso animismo indígena e nosso totemismo — , a
galinha, o cachorrinho, o porquinho, a vaquinha, o cavalinho, o elefantinho, o
ursinho, etc. Os brinquedos que envolvem o mundo infantil também contêm
uma porção de animais, o leãozinho de pelúcia, o cachorrinho de plástico, a
galinha, dentre outros; além de haver uma enorme quantidade de desenhos
infantis que, desde cedo, usam animais na tentativa de acalmar o choro ou
ensinar a fala. Há o contraponto, o animal triturado como comida, o animal
triturado na papinha do bebê, o leite da vaca que sofre de mastite devido ao
excesso de peso e de hormônios e o brinquedo que também é uma posse da
criança, etc. Neste momento, mesmo que a criança não tenha consciência destas
questões, já encontramos o poder da tradição que está em todo o quarto. Somado
a isso, este é o duplo vínculo que parece digno de acréscimo aqui, principalmente
quando pensamos a atitude especista e a esquizofrenia moral.
Para Francione, a “cura” para a esquizofrenia moral é o humanitarismo, sem
que esta atitude se desvincule do fato de não entendermos mais os animais como
62 RAFAEL LEOPOLDO
uma propriedade. Daí, decerto tivéssemos uma só mensagem e uma relação
mais afetuosa com os animais. Para Francione, somente este caminho pode
gerar uma ética em relação aos animais, porque um humanitarismo vinculado
ao entendimento do outro como propriedade privada (já vimos na história)
chama-se “escravidão”. Sendo um autor norte-americano, Francione escreve
sobre a experiência dos Estados Unidos, mas parece pertinente que pensemos
os nossos brasis, pois aqui o negro, que era escravo e propriedade, veio da
seguinte forma:
No caso dos paulistas juntavam tantos índios que tiveram de desenvolver uma
nomenclatura para escriturá-los como peças dos seus inventários. Assim é
que falam de peças de serviços, gente roja, serviços obrigatórios, gente do
Brasil, servidores. Tudo isso para que as mencionadas peças sucedessem
de pai a filho como propriedade privada, sem falar em escravidão (Ribeiro,
2006, p. 92).
64 RAFAEL LEOPOLDO
O LUTO E A LINGUAGEM
66 RAFAEL LEOPOLDO
domésticos, como determinados porcos, cachorros, coelhos, gatos, etc. Deste
modo, é fácil deduzir que os animais humanos ou não humanos expressam o
seu luto de formas distintas e não caberia buscar uma unidade, uma igualdade
desta expressão, mas, sim, captar as diferenças.
Até dentro de uma mesma espécie o luto é sentido e demostrado de formas
diversas e este é um dos motivos da complexidade ao estudar o tema. Basta que
pensemos sobre o luto humano e a sua variedade de expressão, para concluirmos
que no mundo do não humano também há uma variedade imensa, apesar de
ainda não estarmos nem perto de compreendê-la.
Em sua obra A vida emocional dos animais, Marc Bekoff comenta que os
elefantes têm uma profunda curiosidade com os mortos e se preocupam com
o sofrimento e com a morte. A antropóloga, Barbara J. King, escreve um livro
inteiro sobre o luto dos animais e não deixa de declarar como os elefantes são
paradigmáticos a respeito do sentimento de luto. Um livro sobre o luto também
é um livro amoroso, posto que, somente pode haver um verdadeiro trabalho de
luto sob aquilo que se amou.
Para exemplificar a “curiosidade” dos elefantes para com a morte, em seu
livro, Bekoff aborda um experimento que foi feito com elefantes selvagens. O
experimento consistiu em mostrar para dezenove grupos de elefantes objetos
diversos; entre eles, ossadas e presas de elefantes. Estes últimos objetos eram
os que mais chamavam a atenção dos grupos de elefantes e, mesmo diante de
crânios de outros animais, como de búfalos e rinocerontes, os elefantes gastaram
um maior tempo olhando a ossada de sua própria espécie.
O experimento que fora feito com os elefantes é reflexivo, pois estamos ante
a afirmação sólida de que estes animais possuem uma real preocupação com
a morte. Ainda mais intrigante que um grupo de elefantes olhando a ossada
de sua própria espécie, é perceber um luto interespécie, e é um luto deste tipo
que Barbara King aborda em seu livro How animal grieve, traduzido no Brasil
por “O que sente os animais?” (título que, a propósito, seria mais fielmente
traduzido do inglês como “Como os animais enlutam?” , ou ainda, “Como os
animais sentem o luto?”).
“Tarra optou por não participar do enterro. Ela estava perto, a menos de cem
metros de distância, atrás de algumas árvores. Mas não veio. Já se despedira.
Aquilo era para os humanos. No dia seguinte, funcionários que cuidavam dos
animais fizeram uma dolorosa descoberta: Tarra visitara a sepultura de Bella
em algum momento durante a noite ou de manhã cedo. Eles encontraram
fezes por perto e uma pegada de elefante bem em cima da sepultura de Bella.”
68 RAFAEL LEOPOLDO
Esta substância não é oriunda apenas do urso. Muitos animais a produzem,
e há também um composto sintético, denominado ursodiol, que é usado para
o tratamento de cálculo biliar. Contudo, a autora Else Poulsen formula que a
produção de um composto sintético foi uma espécie de “tiro pela culatra” para
o bem-estar dos animais, já que houve uma maior divulgação deste “produto”
e ainda levou a procura do artigo genuíno por certos grupos abastados, não
dando fim às fazendas de ursos.
Barbara King escreve que “na China, os ursos pretos asiáticos tornam-se
nada mais do que máquinas de bile vivas” (King, 2013, p. 145). A situação de
alguns ursos nestas fazendas baseia-se em estarem deitados em um engradado
de tela de arame, em formato de caixão, com espaço livre apenas para moverem
as patas e apanhar comida. O urso medicado para ficar meio inconsciente é
amarrado com cordas e um cateter de metal fica permanentemente preso
a vesícula biliar e “com o passar do tempo, alguns ursos simplesmente
enlouquecem. Incapazes de se libertar, eles batem a cabeça nas barras” (King,
2013, p. 146).
É impossível remontar as condições de uma fazenda de urso em poucas
palavras, mas estes apontamentos são necessários para falarmos de um caso em
particular: uma notícia de Marc Bekoff a respeito de uma ursa que teria matado
o seu filhote e se matado em uma fazenda de urso chinesa, no qual King tece um
comentário oportuno ao provável “suicídio”. Teria acontecido o seguinte: o filho
da ursa é capturado por um funcionário e quando começa a coleta da bile do
filhote ele grita de agonia. A mãe ursa em desespero e, de alguma forma, liberta-
se de sua jaula. Neste momento, ela abraça o seu filhote até o estrangulamento;
depois, corre de encontro a uma parede onde bate, intencionalmente, a sua
cabeça e morre.
A descrição do acontecimento com a mãe ursa e seu filhote é lacunar, porém
não invalida as questões que fazem surgir:
70 RAFAEL LEOPOLDO
antiga. Por sua vez, quando falamos sobre a brincadeira dos animais, estamos
voltados para a questão da linguagem, na produção da linguagem por meio da
brincadeira dos animais, sendo possível afirmar a mesma coisa que dizíamos
a respeito da moralidade na esteira de Bekoff: a linguagem tem raízes deveras
mais antigas. Desta forma, mesmo que o foco seja diferente, entrevê-se um
ponto em comum, um continuum que mostra toda a nossa animalidade — no
melhor sentido desta palavra.
O capítulo 4, d’A vida emocional dos animais, é chamado de “Justiça,
empatia e respeito às regras no mundo selvagem: a descoberta da honra entre os
animais”. Este título oferece indícios manifestos do que se seguirá no desenvolver
do texto do autor. Bekoff aponta que:
Não estou dizendo que o comportamento moral dos animais seja idêntico ao
comportamento moral humano. Mas propriamente, a minha teoria é de que
o fenômeno ao qual nos referimos como “moralidade” é uma necessidade
biológica diversificada para a vida social. Assim como as emoções são uma
dádiva dos nossos ancestrais, o mesmo ocorre com os ingredientes básicos da
moralidade, ou seja, a cooperação, a empatia, a equidade, o senso de justiça
e a confiança (Bekoff, 2007, p. 106).
72 RAFAEL LEOPOLDO
mais-valia energética, uma mais-valia de vida, uma intensidade, um entusiasmo
corporal. Os animais dizem, a todo o tempo, por meio das suas ações: “isso é
um jogo”.
Gregory Betson pensa a afirmação “isso é um jogo” de uma forma bem
curiosa: ao dizer “isso é um jogo” ele também diz “isso não é uma mordida”. A
mordida de brincadeira se coloca no lugar de outra ação, como, também, põe
a sua função normal em suspenso. Brain Massumi, em sua obra What animals
teach us about politcs (“O que os animais nos ensinam sobre política”) afirma
que, com a mordida de brincadeira de um lobo, este animal diz o seguinte:
“isto não é uma mordida; isto não é uma luta; isto é um jogo; eu estou aqui me
colocando num registro existencial diferente que, no entanto, significa o seu
análogo suspenso” (Massumi, 2014, p. 4. Itálico nosso). Esta função normal
em suspenso é a criação de uma outra atmosfera, de um outro ambiente;
trata-se do espaço da brincadeira, do espaço do lúdico. Quando pensamos na
curvatura de um cão que começa a brincar, ele coloca um outro animal nesta
atmosfera da brincadeira. Tem-se, desta forma, um outro registro existencial,
onde vigora a gestualidade lúdica. Há, neste ambiente, uma liberação de uma
trans-individualidade, que transforma ambos na brincadeira, que muda os gestos
para um ato performativo, para um determinado poder de variação gestual que,
por sua parte, abre as portas para a improvisação das formas gestuais que nos
levam em direção à inventividade. Pensar a variação gestual, a improvisação
e a inventividade, é vital para que saiamos de uma perspectiva cartesiana da
animalidade, da compreensão do animal como um robô, onde somente vigoraria
uma existência instintual (e instinto entendido como um sistema arco-reflexo,
e não em sua variação continua, em sua criatividade).
Nesta atmosfera da brincadeira dos animais, neste ambiente do lúdico
é que Betson nos ensina dois pontos a respeito do animal e da linguagem:
1) o primeiro ponto é que o gesto lúdico é uma forma de abstração, ou seja,
reflexividade; pode-se colocar, em outras palavras, que se trata de um elemento
de metacomunicação (quando o animal faz uma diferenciação entre a mordida
predatória e a mordida lúdica, o gesto de combate e o gesto brincalhão, tem-se
uma abstração da própria ação, uma metacomunicação); 2) o segundo ponto é
que esta abstração gestual se apresenta no condicional, pois as ações dos animais
não denotam o que elas deveriam denotar, há uma mais-valia lúdica.
74 RAFAEL LEOPOLDO
A TEORIA QUEER E O PÓS-ESTRUTURALISMO
76 RAFAEL LEOPOLDO
FOUCAULT: DISCIPLINA E BIOPOLÍTICA
31
Michel Foucault tem uma análise complexa do racismo europeu na era da biopolítica; todavia, o racismo
brasileiro se configura de uma forma distinta do europeu. Para uma aproximação entre eles ver o capítulo
sobre a teoria queer e o feminismo negro, onde é abordado a questão da problematização a respeito do mito
da “democracia racial brasileira”.
78 RAFAEL LEOPOLDO
sem que estes soubessem quem estivera vigiando-os. Deste modo, geraria um
sentimento de constante vigilância, de uma vigilância ininterrupta. Se quando
os presos eram trancafiados em masmorras o intuito era trancar, privar de
luz e visibilidade, agora, com o panoptismo, a ideia é trancar, dar luz e gerar
visibilidade, no entendimento de que “a visibilidade é uma armadilha” (Foucault,
2009, p. 190. Itálico nosso), visto que quanto maior o campo de visibilidade do
prisioneiro, maior seria o saber e o poder sobre aquele corpo. Neste momento,
é importante observar que o panoptismo não é somente uma estrutura física,
mas, também, uma tecnologia de poder que induz um estado consciente de
permanente visibilidade.
Entendido como uma tecnologia, o panoptismo poderia colonizar outros
ambientes, já que se apresenta como ramificável e flexível. Esta compreensão
já está nas próprias cartas de Bentham (carta 19, 20 e 21), ou seja, a própria
estrutura panóptica (o princípio da inspeção) poderia ser utilizado nos hospícios,
hospitais e escolas. Logo abaixo, encontramos um exemplo de um desenho
arquitetônico de forma panóptica feita pelo arquiteto Willey Reveley:
Fonte: Wikipedia [Site]. Willey Reveley. No livro Vigiar e Punir encontramos algumas imagens
que mostram a estrutura panóptica. Sabemos que não se trata de apenas uma estrutura, mas,
sim, de um princípio de vigilância que coloniza diversos ambientes. Quando compreendemos
o panóptico como uma tecnologia e não tão somente como uma estrutura física, passamos a
entendê-lo melhor, já que ele pode ser visto em diversos lugares diferentes da prisão.
80 RAFAEL LEOPOLDO
milhões de outros, passa a lutar contra a pobreza, contra o desemprego; envolve-
se com as greves e fura-greves, e encontra, nas grandiosas máquinas, o ambiente
cinza das fábricas. Nesta película, o personagem principal faz tantos movimentos
repetitivos que, ao sair da fábrica, não para de fazer o mesmo movimento em
outros ambientes; do que podemos compreender que, na disciplina, há uma
anatomia-política, o corpo é aproveitado em cada detalhe, ele é dividido, o
uso do braço, o uso das mãos, o uso dos dedos, o uso das pernas, etc. Essas
unidades, tomadas separadamente, sofrem uma submissão, são transformadas
e aperfeiçoadas para uma determinada função.
Trata-se, ademais, de compreender o sujeito como um objeto que pode ser
moldado. Os movimentos automatizados são, cada vez mais, especializados e
geradores de um controle, também, do tempo, do espaço, da arquitetura. Reside
nisso, inclusive, o cômico do filme de Chaplin, o fato do personagem extrapolar
até mesmo o tempo designado na fábrica e passar a repetir este movimento
incessantemente: a máquina técnica acoplada à máquina social.
Com este movimento da tecnologia disciplinar moldando o indivíduo,
ela estaria, também, fabricando-o por meio de uma normalização técnica.
Novamente: esta tecnologia perpassa diversos âmbitos, a ponto de Foucault
cunhar o termo “sociedade disciplinar”. Agora, se este conceito dá conta do
micro, do indivíduo, dos ambientes fechados, certamente não dá conta do
macro, ao passo que o conceito que vai ampliar a análise de Foucault do social
é, exatamente, o de biopoder, o de biopolítica. Não há somente uma análise
do indivíduo enquanto um corpo disciplinado, mas, também, o corpo enquanto
espécie. Adentremos, então, na ideia de biopolítica.
Foucault vai assinalar que, já na segunda metade do século 18, surge algo
novo, uma outra tecnologia de poder, que não exclui a primeira, a tecnologia
disciplinar, que então debatíamos. Essa nova tecnologia não se aplica ao corpo
individual, mas ao corpo enquanto espécie, não mais uma anatomia política,
mas uma biopolítica. Contudo, do que se trata este novo poder, este biopoder?
Para Foucault:
Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a
vida; vai ser preciso estimular a natalidade. E trata-se sobretudo de estabelecer
mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo
aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer
uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar
mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma
população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de
vida: mecanismos, como vocês veem, como os mecanismos disciplinares,
destinados em suma a maximizar forças e a extraí-las, mas que passam por
caminhos inteiramente diferentes (Foucault, 2010, p. 207).
82 RAFAEL LEOPOLDO
um indivíduo, mas à população. Diante deste entrecruzamento, Foucault faz um
comentário significativo sobre aqueles que estão fora da norma, os desviantes.
O filósofo aponta que eles serão punidos imediatamente, por exemplo, a criança
que se masturba ficaria doente para a vida toda, a sexualidade devassa teria seus
efeitos, também, na população. Pensemos, neste instante, nas teorias do século
19, como as da hereditariedade, da degenerescência.
Quando conjectura a ideia de biopoder, Foucault não chama a sociedade
de uma sociedade disciplinar apenas, mas, também, de uma sociedade de
normalização. Não se trata apenas da colonização de diversos ambientes feita pela
tecnologia disciplinar, mas de uma biopolítica normalizadora, regulamentadora
— o duplo jogo da disciplina e da normalização. Neste ponto da argumentação,
Foucault vai apontar outro dado que inclui os estudos queer: o racismo. A
questão, para Foucault, é que em uma sociedade biopolítica basta fazer viver,
assim, haveria a premência de como exercer o poder de fazer morrer — este
poder se dá com a ativação do racismo.
O racismo que funciona fragmentando um contínuo biológico, racismo
que funciona por uma “ética guerreira” que proclama que para você viver o
outro tem que morrer, racismo que funciona mesclando a ética guerreira com
o biológico, afirmando que há espécies inferiores e superiores, racismo que
funciona defendendo que há indivíduos anormais, degenerados, devassos e
que eles deveriam ser eliminados para o bem de uma determinada espécie,
racismo que funciona pela lógica de que a morte do outro é a segurança da
minha vida, mas, também, é o que vai gerar uma vida mais saudável, uma
população mais pura, racismo que funciona na tentativa da eliminação do
inimigo-biológico entendido, por vezes, como uma raça inferior. O racismo seria
o próprio mecanismo para ativar a função assassina do Estado, ativar a função
do soberano, ativar a função de multiplicar os riscos, de rejeitar, de expulsar,
etc. O racismo biológico perpassa o imaginário Europeu, e é sempre ativado
nas empreitadas de colonização, no genocídio, do mesmo modo que também
aparece como um bacilo da peste em certos partidos políticos na atualidade do
Norte Global.
2. É vital observar que este “pós” no conceito de Bauman não significa um “fim”,
porque para o autor o panoptismo estaria armado de formas que Foucault nem
imaginaria. Todavia, este panóptico não teria a mesma centralidade em nossa
sociedade, mas estaria vinculado a partes “não administrativas” da mesma, como
os campos de confinamento, as prisões, as clínicas psiquiátricas, etc. A citação
destes ambientes por Bauman confirma o seu entendimento do panoptismo como
um espaço físico e não, necessariamente, como uma tecnologia de vigilância e
poder.
84 RAFAEL LEOPOLDO
Bauman entende que, na atualidade, o panóptico não possui uma
centralidade e coloca-o como um aparato de vigilância de uma minoria.
Esta minoria, para Bauman, diz respeito a categoria utilizada em livro Vidas
desperdiçadas de “lixo humano” ou ainda de “refugo humano”.
A categoria do “lixo humano” ou do “refugo humano” corresponde aos
excluídos e aos restos da máquina social capitalista. O sociólogo chega a
relacionar essas minorias com a compreensão de um homo sacer, como analisado
por Giorgio Agamben. O conceito de Agamben refere-se a uma vida desprovida
de valor, seja na perspectiva humana ou na perspectiva divina. Um indivíduo
que não se define por leis positivas e nem por ser um portador dos direitos
humanos que precederia as normas jurídicas.
Para Bauman, o homo sacer seria a principal categoria do “refugo humano”,
aquele que não é e nunca será útil para a sociedade. O panoptismo teria o poder
de vigilância destes sujeitos, mas o pós-pan-óptico parece estar noutro âmbito.
Poderíamos envolver este pós-pan-óptico numa forma de “subjetivação”, mesmo
que o autor não use esta palavra com frequência. A imagem oportuna para este
processo de subjetivação é o “homem-caramujo” com o seu “panoptismo-pessoal”
em suas costas.
Bauman quando argumenta sobre o homem-caramujo, sobre este novo
panoptismo-pessoal, ele cita o livro Discurso da servidão voluntária, de Étienne
de la Boétie. A servidão voluntária apareceria de forma exemplar no ambiente
empresarial, onde há a luta para se obter o sucesso a partir de uma ferrenha
disciplina, obediência, conformidade, respeito à ordem, etc. A noção de
disciplina de Foucault mostra que, se o corpo ganha em utilidade, perde em
poder político, já que ele estará sempre submisso. Bauman vê nessa disciplina
uma tentativa de vários indivíduos de serem vencedores no ambiente de trabalho.
Deleuze, por sua vez, já salientava que “muitos jovens pedem estranhamente para
serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles
descobrirem a que estão sendo levados a servir, bem como seus antecessores
descobrirem, não sem dor, a finalidade das disciplinas” (Deleuze, 2013, p. 230).
O indivíduo assimilaria essas linhas duras de uma sociedade de controle. Na
empresa, os líderes, os gerentes passariam para os demais a lógica da vigilância,
do panoptismo-pessoal, do do it yourself (“faça você mesmo”), e as relações de
poder seriam verticais e horizontais e:
86 RAFAEL LEOPOLDO
é claro, por tirar a vida, não entendo simplesmente o assassínio direto, mas
também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte
política, a expulsão (Foucault, 2010, p. 216).
32
De forma indireta, o terrorismo tem os seus ecos no Brasil. Cito três exemplos: 1) na tentativa de produção
de leis especificas antiterroristas, mesmo que estas leis possam ter o intuito de criminalizar os movimentos
sociais – esta atitude pode ser vista com clareza em junho de 2013 – , ou apenas deixe brechas para isso; 2)
uma maior produção de segurança e vigilância em grandes eventos de cunho internacional; 3) a cada ato
terrorista se tem a criação do estigma de que cada membro da cultura islâmica seja um terrorista e, geralmente,
há reações violentas contra esta cultura, principalmente, contra as mulheres, que são de fácil identificação
devido a vestimenta característica.
88 RAFAEL LEOPOLDO
Se o sinóptico substitui o pan-óptico, não há necessidade de construir
grandes muralhas e erigir torres de vigilância para manter os internos do
lado de dentro, ao mesmo tempo contratando um número incalculável de
supervisores para garantir que eles sigam a rotina prescrita; com o custo
adicional de aplacar o ódio latente e a falta de disposição para cooperar
que a rotina monótona em geral alimenta; assim como de precisar fazer
um esforço contínuo para matar no nascedouro a ameaça de uma rebelião
contra a indignidade da servidão. Agora, espera-se que os objetos de
preocupação disciplinares dos gerentes se autodisciplinem e arquem com
os custos materiais e psíquicos da produção da disciplina. Espera-se que eles
mesmos ergam as muralhas e permaneçam lá dentro por vontade própria.
A recompensa (ou a promessa) substitui a punição, e tentação e sedução
assumindo as funções antes desempenhadas pela regulação normativa; o
sustento e o aguçamento dos desejos tomam o lugar do policiamento, caro
e gerador de discórdias; portanto, as torres de vigilância (tal como toda a
estratégia destinada a estimular a conduta desejável e eliminar a indesejável)
foram privatizadas, enquanto o procedimento de emitir permissões para a
construção de muralhas foi desregulamentado. Em vez de a necessidade
caçar suas vítimas, agora é tarefa dos voluntários caçar as oportunidades
de servidão (o conceito de “servidão voluntária” cunhado por Étienne de la
Boétie teve de esperar quatro séculos até se transformar no objetivo comum
da prática gerencial) (Bauman, 2014, pp. 72-73).
90 RAFAEL LEOPOLDO
que codifica os fluxos de produção, os meios de produção, os seus produtores e
os consumidores. Desta maneira, “o corpo pleno da deusa Terra reúne sobre si
as espécies cultiváveis, os instrumentos aratórios e os órgãos humanos” (Deleuze
& Guattari, 2010: 188). A respeito deste último ponto, os órgãos humanos, há a
produção de uma memória de palavras e a codificação dos fluxos, o investimento
sobre os órgãos e a marcação dos corpos.
A máquina territorial primitiva funciona por meio da codificação dos
fluxos; esta codificação, por sua vez, investe os órgãos e marca os corpos —
este investimento de determinados órgãos e não outros será um dos temas da
teoria queer, em sua análise do corpo como uma estrutura política. O socius
primitivo consistiria em tatuar o corpo, excisar, incisar, recortar, escarificar,
mutilar, cerrar, iniciar. É diante deste processo que se dá uma memória ao
homem, embora não se trate mais de uma memória biológica, mas, sim, uma
memória de palavras. A memória diz respeito a uma recordação dos signos,
não a uma memória de efeitos. O terrível alfabeto é o signo escrito na própria
carne por meio da crueldade. Para Nietzsche, a crueldade está na essência de
toda cultura e, lendo-o, Deleuze e Guattari observam que “a crueldade nada tem
a ver com uma violência qualquer ou com uma violência natural, com que se
explicaria a história do homem; ela é o movimento da cultura que se opera nos
corpos e neles se inscreve, cultivando-os” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 193).
Daí se tem uma teoria do surgimento da linguagem, porque os signos marcados
na própria pele, por meio da crueldade, poderiam ser chamados de escrita e esta
inscrição no corpo é o que leva o homem a ser capaz de linguagem. Primeiro,
há o signo escarificado na própria carne, toda uma mnemotécnica da crueldade
e então a linguagem, uma memória de palavras. Em seu artigo “Da tortura nas
sociedades primitivas”, Clastres nos diz que o próprio corpo é uma memória,
aonde, a propósito, o antropólogo escreve sobre diversos rituais de passagens e
da crueldade que existem em cada um deles. Em alguns destes rituais, não basta
cortar com a fina lâmina: a intenção é dilacerar o corpo com a faca mais cega.
A dor, a tortura, o sofrimento provocado é essencial nos rituais de passagem.
A sociedade marca a pele do indivíduo. Clastres faz uma afirmação que nos
recoloca em toda a problemática da criação de uma memória via marca:
92 RAFAEL LEOPOLDO
primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de Marshall
Sahlins (Clastres, 2003, p. 208).
Para Clastres, o primitivo é marcado mais por uma positividade do que uma
carência, do que a falta de determinados elementos que estariam na sociedade
civilizada. A visão de que o primitivo “carece” de algo ou que estaria em um
estado “embrionário” seria uma compreensão ingênua e etnocêntrica, pois no
povo primitivo faltaria o que a sociedade “civilizada” produziu em seu processo
histórico, como se a sociedade civilizada fosse um telos a todas as outras. Em
síntese, o primitivo é entendido tanto por Clastres quanto por Deleuze e Guattari
como uma recusa de determinada economia e de um Estado.
Diante da argumentação de Clastres, vislumbra-se outra pergunta: como
Édipo se configura na máquina social primitiva? Édipo, na máquina social
primitiva, é este pesadelo em preto e branco, o déspota de pés inchados, chegando
e sobrecodificando o código primitivo. Em meio a esse pesadelo ainda é possível
divisar algumas sombras, algumas silhuetas, algumas nuances que os seguem;
estas imagens obscurecidas são os contornos dos vários grupos perversos;
são os doutores; são os escribas; os funcionários, os burocratas e também
os padres; estes mesmos, que em determinado momento Foucault relaciona
com os psicanalistas33. Pode-se dizer que o primitivo tem esse desconforto de
um mau sonho profético. O sonho que talvez o déspota venha a chegar ao
socius primitivo, sobrecodificando cada uma de suas peças, montando uma
megamáquina, uma máquina de captura.
33
É possível pensar na escuta do padre como na escuta psicanalítica, o momento da confissão do pecador ou do
paciente, do analisado. Além disse se refletirmos na arquitetura há o deslocamento do confessionário para o divã.
É assim que Marx define a produção asiática: uma unidade superior do Estado
instaura-se sobre a base de comunidades rurais primitivas que conservam a
propriedade do solo, ao passo que o Estado é o seu verdadeiro proprietário
em conformidade com o movimento objetivo aparente que lhe atribui o
sobreproduto, que lhe reporta as forças produtivas nos grandes trabalhos,
e faz com que ele próprio apareça como a causa das condições coletivas da
apropriação (Deleuze & Guattari, 2010, p. 256).
34
A megamáquina ou máquina de captura como posta no segundo tomo d’O Anti-Édipo é caracterizada
por três pontos. Primeiro pelo fato do déspota cobrar o aluguel, da terra da qual ele é o único proprietário.
O segundo ponto é a questão de ser projetado quem captura a mais-valia de produção. E o terceiro ponto é
que o conquistador captura o tributo, as taxas, via proprietário ou a circulação do dinheiro. Ainda é importa
salientar que esta é a primeira megamáquina, a primeira máquina de captura, pois no capitalismo surgirá
uma segunda máquina.
94 RAFAEL LEOPOLDO
primitiva. Ele é o que sobrecodifica o socius primitivo. Têm-se, assim, dois pontos:
substituição da máquina territorial, com a formação de um novo corpo pleno,
mas também, se mantém várias territorialidades da máquina primitiva que
servem como peças da produção bárbara despótica.
O corpo pleno do déspota torna-se uma quase-causa, porque ele é a fonte
do movimento aparente, onde toda a produção é registrada, parece que tudo
depende da máquina despótica e relaciona-se a ela. Contudo, ainda sobre
o déspota, Deleuze e Guattari acrescentam algo considerável: “Em vez de
desligamentos móveis da cadeia significante, um objeto destacado saltou para fora
da cadeia; em vez de extração de fluxos, há convergência de todos os fluxos para
um grande rio que constitui o consumo do soberano: mudança radical de regime
no fetiche ou no símbolo” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 258. Itálico nosso).
Todos os fluxos para um grande rio. Um objeto é destacado. Um objeto salta
para fora da cadeia significante. Este é o paralogismo da extrapolação, no qual
o objeto salta para fora da cadeia e torna-se significante despótico, de tal modo
sobrecodificando os outros elementos da cadeia. Há uma notória mudança e não
é somente no nível de uma pessoalidade, não se trata apenas do soberano, mas,
sim, de uma máquina social que neste momento é uma megamáquina estatal.
Deleuze e Guattari usam a figura da pirâmide e exemplificam esta
megamáquina: o déspota no cume, seguido do aparelho burocrático e, na base,
os trabalhadores. Desta forma, concretiza-se a pseudoterritorialidade, como se
o Estado estivesse se territorializando via uma fixação de residência; porém,
o que existiria, em verdade, é uma efetiva desterritorialização, pois há uma
substituição dos signos da terra pelos signos abstratos, além do próprio Estado
que se faz proprietário da própria terra.
Apesar disto, ainda ressoa outra questão: como Édipo devém se torna possível
na máquina bárbara despótica (pensando que Édipo estará sempre atrelado ao
capitalismo)? Neste momento, já temos a resposta para esta pergunta. Se, em
um primeiro momento, na máquina primitiva selvagem, Édipo era visto como
um pesadelo, como uma sombra; agora no socius bárbaro ele devém possível
como aquele que opera a sobrecodificação dos códigos. Contudo, não estamos
ainda dentro de um Édipo como entendido pela psicanálise (o complexo de
Édipo dentro do familismo), porque o desejo ainda não está atuando sobre um
triângulo familiar (nem esta tríade ainda está formada). Neste caso, o desejo se
processa como um investimento libidinal da máquina de Estado. Mais alguns
pisares são necessários para que Édipo Rei chegue com a sua marcha firme, ainda
96 RAFAEL LEOPOLDO
A essência do capitalismo se encontra em dois fenômenos complementares:
desterritorialização e descodificação. Ambos foram analisados por Marx. O
capital se apropria cada vez mais dos territórios; apropria-se do campo, do
artesanato, do comércio e finalmente da indústria. O capital desterritorializa
tudo. Mas, ao mesmo tempo descodifica tudo: a religião, a moral, as crenças;
tudo sucumbe ao impulso do capital. Este impulso anulador de códigos e
apropriador de territórios é universal no capitalismo. O capitalismo é, por
isso, o universal de toda sociedade (Sáez, 2004, pp. 80-81. Itálico do autor).
98 RAFAEL LEOPOLDO
outro lado, sobre o segundo tipo de moeda, Lazzarato coloca que “o capital tem
um poder sobre o fluxo de poder aquisitivo dos trabalhadores, antes de tudo,
porque é amo e senhor de um fluxo de financiação: amo e senhor do tempo,
das escolhas e das decisões” (Lazzarato, 2013, p. 97).
Aqui, Lazzarato acompanha a lógica deleuzo-guattariana de separar duas
moedas, uma das quais relacionada ao salário, a um “poder de compra”35, a um
poder de consumo. Esse é o dinheiro que se encontra no bolso de um indivíduo,
que ele é capaz de usá-lo de alguma forma. Não obstante, há outra moeda com
o poder de mudar as relações, uma moeda com o poder de destruir e construir.
Neste âmbito, já não se trata do salário, do dinheiro com o fluxo no trabalho,
na família, no emprego; estamos em um nível maior, porque a moeda também
é capital e tem o seu poder de destruição/criação. E estes elementos, dívida e
finança, não são “patologias” do capitalismo, mas uma forma de a máquina
funcionar, funcionar em um “desequilíbrio funcional”, a máquina funciona
desarranjando-se, rangendo. Ironicamente, Deleuze e Guattari escrevem que:
“as contradições nunca mataram ninguém. E quanto mais isso se desarranja,
quanto mais isso esquizofreniza, melhor isso funciona, à americana” (Deleuze
& Guattari, 2010, p. 202).
Esses desarranjos, para Lazzarato, são “dispositivos estratégicos” que
determinam a destruição do antigo regime e a criação de um novo sistema.
E o sistema financeiro está no centro de uma nova política de destruição e
criação onde o econômico e o político se mesclam, sobrepõem-se. O dinheiro
como capital se torna um fluxo criador, há signos poderosos, signos potentes.
O poder capitalista não é somente uma mera acumulação de capital: é o
poder de reconfigurar relações, ou seja, poder de subjetivação. Embora hajam
outras características do capitalismo, como o seu cinismo e o seu poder de
axiomatização, e, por último, a sua relação entre o capitalismo e a psicanálise, a
chegada de Édipo, rei no socius (que será interiorizado), a subjetividade edipiana,
o sujeito que é, também, escravo de si e tem o seu desejo trapaceado.
O capitalismo trabalha com o cinismo, porque o dinheiro não serve
mais apenas como troca, agora é o dinheiro em si mesmo que serve como
descodificação dos códigos. Este é o poder do capitalismo, uma radical
35
Expressão irônica, porque este “poder de compra” somente expressaria uma impotência da reprodução de
determinadas relações de mercado. O dinheiro não daria realmente o poder, ou seja, a potência de mudar
relações. Os signos potentes, o capital, é que tem o poder de criação e destruição.
36
Poderíamos ver o livro da Naomi Klein, No Logo, como uma crítica do cinismo produzido pelas grandes
marcas. Ou ainda com Noam Chomsky e o seu livro Media Control como análise deste cinismo aplicado às
propagandas de guerra. Por último, ainda deveríamos lembrar do livro Quadros de Guerra, de Judith Butler
para entendermos como uma teoria queer aborda a questão da Guerra, das imagens propagadas e a questão
de quem é merecedor ou não do luto.
DERRIDA: DESCONSTRUÇÃO,
SUPLEMENTO E PERFORMATIVIDADE
Na América Latina, que recebe Derrida tanto pela via francesa como a
norte-americana, este espraiamento de Derrida pelo marketing, pela publicidade,
pela TV, pelos filmes e pela música, também é visto de forma muito clara.
De qualquer forma, salientamos esse comentário de Cusset para esclarecer
que, se há uma posse de Derrida em determinadas áreas, no pensamento queer
ele ainda começa a ser digerido de maneira vagarosa. Não obstante, sobre o
comentário de Cusset, a respeito de como esse autor francês se tornou tão
popular nos Estados Unidos, creio ser necessário reafirmarmos o papel da
tradução da obra De la grammatologie, de 1967, feita por Gayatri Spivak.
Gayatri Spivak é a autora do conhecido ensaio Can subaltern Speak?37 (“Pode
37
Este texto de Gayati Spivak foi importante para pensar o “lugar de fala”, para pensar o saber do “subalterno”,
principalmente, no contexto norte-americano. Um tema relacionado a este que vamos abordar é a questão
da “representatividade”; todavia, este se tornou um debate tão viciado dentro do feminismo e em grupos
periféricos que seria viável toda uma genealogia dos conceitos principais como “lugar”, “fala”, “representação”,
para que a discussão fosse retomada sem o cancro paralisador do debate. De forma irônica, o que era
potencialidade de ouvir outras vozes se tornou, muitas das vezes, a impossibilidade do diálogo, já que se
tomou vulgarmente que o lugar de fala produz a autenticidade e a verdade da fala, assim, criando não um
lugar de fala, mas, sim, um lugar autoritário e antipolítico (ver, por exemplo, Tiburi, 2018). Retomamos este
debate quando pensamos o feminismo negro e a pensadora Lélia Gonzalez.
DESCONSTRUÇÃO
38
Para uma análise de filmes queer ver o trabalho do historiador e teórico queer Fabrício Marçal Vilela.
O modus que Sáez utiliza para aclarar o conceito de Derrida não está
distante do apontado por Moysés Pinto Neto: um “viver sem preconceito”. Ou
ainda: um viver desfazendo os preconceitos. Porém, como Sáez alude, esse não
é o todo da desconstrução. Recordemos dos dados complementares: a nossa
aproximação da ideia de desconstrução e sua relação com o queer.
O primeiro dado se dá com a já citada Spivak e sua relação complexa com o
texto de Derrida. Uma informação a ser grifada é que ele — um filósofo europeu39
— articula como o sujeito-europeu tem uma determinada disposição a construir
o Outro como o marginal, o extravagante e o exótico. Este dado é elementar
para fazermos uma crítica profunda ao racismo europeu e ao eurocentrismo,
vislumbrando outras epistemologias.
Outro dado importante a ser enfatizado é que o conceito de desconstrução
teria uma extrema validade para refletir determinados binarismos como homo/
hetero, homem/mulher, natureza/cultura, etc. Lembremos que a interpelação de
39
Muitas vezes o pensamento descolonial tenta evitar tudo que vem de fora, por exemplo, um pensador como
Derrida, pelo fato de ser europeu. Todavia, este rechaço mais parece uma xenofobia epistêmica – que é algo
bem europeu – do que realmente a produção de um pensamento que combate a colonialidade. Talvez, mais
do que um descolonialismo xenofóbico fosse melhor repensarmos um canibalismo produtivo, uma antropofagia
como filosofia. Claro que com este apontamento sobre a descolonialidade não há uma generalização do
pensamento descolonial, ou ainda, das Epistemologias do Sul – que são extremamente necessárias e devem ser
intensamente proliferadas –, mas, trata-se de apontar um rechaço que é infundado e prejudicial ao próprio
pensamento, é prejudicial às relações dialógicas (para uma introdução ao pensamento descolonial ou ainda
sobre a questão da pós-colonialidade ver, por exemplo, Castro-Gomez, 2020).
SUPLEMENTO
PERFORMATIVIDADE
Na matéria d’A pública consta que estes ataques violentos aconteceram desde
o dia 30 de setembro de 2018, assim, trata-se de apenas 10 dias de análise. A
40
Durante a campanha e logo após o anuncia da vitória do presidente Jair Bolsonaro houve um aumento da
violência contra as minorias, assim, não foi estranho o ressoar do grito “Ninguém solta a mão de ninguém”
como uma forma de aliança entre as pessoas. Esta frase remonta, por sua vez, a época da ditadura e a
Universidade de São Paulo, USP. Quando a universidade era invadida pelos militares os estudantes buscavam
as mãos uns dos outros e, então, diziam “ninguém solta a mão de ninguém”. Depois quando as luzes voltavam
os estudantes faziam uma contagem para saber se todos ainda estavam ali e, claro, que nem sempre estavam
todos lá. De qualquer maneira, esta frase foi reavivada diante do discurso de ódio do bolsonarismo como
forma prática de resistência desinibição da violência, contra a brutalidade. Thereza Nardelli também utilizou a
frase numa imagem – que viralizou na internet – mostrando uma mão segurando a outra e uma rosa no meio.
41
O silêncio em relação a tradução das obras de Gloria Anzaldúa é impressionante até mesmo nos países que
tem como língua materna o espanhol. Basta salientarmos que a tradução de Borderlands somente surgiu no
ano de 2006 com o trabalho de Carmen Valle e a editora Capitan Swing. No Brasil encontramos a tradução
de alguns artigos espalhados por algumas revistas acadêmicas.
Fonte: Cláudia Andujar [Site]. Cláudia Andujar tem um grande trabalho fotográfico com o
povo Yanomami. No que envolve o pensamento filosófico brasileiro, tivemos recentemente a
publicação do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, do xamã Davi Kopenawa
e do antropólogo Bruce Albert. Nele encontramos toda uma potencialidade de pensamento não
ocidental que poderia nos remeter a elementos do pensamento queer. Quando ponderamos sobre
Gloria Anzaldúa e sua escrita xamânica, mais atual seria pensar A queda do céu como um diário
ameríndio de intoxicação voluntária, assim, poderíamos fazer referência a toda uma crítica queer
do poder farmacológico, ou melhor, da farmacopornografia para usarmos um conceito de Paul
Beatriz Preciado.
FALANDO EM LÍNGUAS
42
Ainda a respeito do xamanismo, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, já nas décadas de 80 e 90,
ajuda a produzir uma verdadeira “virada ontológica” na antropologia; seus trabalhos têm ecos importantes
na produção filosófica.
Daí ser necessário adotar uma visão do feminismo que não torne as
mulheres de cor invisíveis, pois elas falam de outro lugar e com outras línguas.
É por isso que, por exemplo, Anzaldúa nega o termo “lésbica/lesbian”, já que
lésbica seria uma palavra cerebral, de uma mulher branca de classe-média,
representante da cultura dominante de língua inglesa. Como Anzaldúa se
identifica como uma trabalhadora chicana, mestiça, a própria palavra lésbica
não teria nenhuma relação com ela; porém, outras palavras são substanciais
como: loquita, jotita, marimacha, pajuelona, lambiscona, culera, etc. Estas são
as palavras que têm significado para Anzaldúa e que ressoam na sua mente. Em
outro texto, chamado To(o) Queer the writer — loca, escritora y chicana, a autora
afirma que se fosse escolher uma palavra do inglês seria a “dike” ou “queer”,
isto é, “sapatão” ou esta outra palavra tão difícil de ser traduzida que é o: queer!
Anzaldúa toma para si mesma a palavra queer, fazendo parte da ressignificação
que já abordamos. Neste momento, o termo é retomado; porém, de uma forma
ativa, a enunciação está na ponta da caneta, na ponta da língua de mil vozes e
mil dialetos de Anzaldúa.
43
Freud já tinha um contato com a filosofia. Jacques Lacan, por sua vez, vai aprofundar este diálogo com
o saber filosófico. Destas relações, surge uma produção muito peculiar no pensamento brasileiro que é a
filosofia da psicanálise.
SISTEMA SEXO-GÊNERO
Não encara o sujeito humano como abstrato, sem gênero. Pelo contrário,
o sujeito humano, no trabalho de Lévi-Strauss, é sempre o masculino ou
feminino e os destinos sociais divergentes dos dois sexos podem, portanto,
ser traçados. No momento em que Lévi-Strauss vê a essência do sistema de
parentesco consistindo na troca das mulheres entre homens, ele constrói uma
implícita teoria da opressão sexual (Rubin, 1993, p.7. Itálico nosso).
É esta teoria da opressão sexual que Lévi-Strauss teria construído, sem que
visse ou demonstrasse suas implicações, as quais Rubin tenta abordar. Neste
momento não vamos reaver a argumentação de Lévi-Strauss sobre a “troca de
mulheres”, tampouco toda a reelaboração feita por ela, porém, alguns pontos são
essenciais para cursarmos de algum modo a crítica da autora. Creio que um dos
elementos principais é uma pergunta que ela faz: “o parentesco é organização, e
organização confere poder. Mas quem é organizado?” (Rubin, 1993, p.9 Itálico
nosso). A resposta a este questionamento nos dirige a uma teoria sobre a
opressão considerando o parentesco.
Para Rubin, a troca de mulheres implicaria numa distinção entre o presente
e o ofertante. Se as mulheres são os presentes, os homens são os que trocam entre
si as mulheres — são os parceiros de troca — e isso é que lhes confere o poder
44
Rubin aborda o mundo primitivo, mas não deixa de apontar que o tráfico de mulheres e a troca de mulheres
não aconteceu somente neste período. Poderíamos, até mesmo, encontrar resquícios desta troca no ato comum
no noivo pedir a filha ao sogro e este entregar a noiva.
Embora toda sociedade disponha de algum tipo de divisão das tarefas por
sexo, a atribuição de qualquer tarefa específica para um sexo ou outro varia
enormemente. Em alguns grupos, a agricultura é trabalho das mulheres, em
outros, trabalho dos homens. Há sociedades em que as mulheres carregam
os fardos pesados, e outras em que são os homens. Existem até exemplos de
mulheres caçadoras e guerreiras e de homens realizando as tarefas relativas
aos cuidados às crianças. De uma pesquisa sobre a divisão do trabalho por
sexo, Lévi-Strauss conclui que ela não é uma especialização biológica, mas
que deve haver algum outro propósito. Este propósito, segundo ele defende,
é assegurar a união dos homens e das mulheres, fazendo com que as menores
unidades economicamente viáveis, contenham pelo menos um homem e uma
mulher. (Rubin, 1993, p. 12)
A divisão do trabalho por sexo pode, deste modo, ser vista também como
um “tabu”: um tabu contra a mesmice entre homens e mulheres, um tabu
dividindo os sexos em duas categorias reciprocamente exclusivas, e um tabu
que exacerba as diferenças biológicas entre os sexos e que, em consequência,
cria o gênero. A divisão do trabalho pode também ser vista como um tabu
contra arranjos sexuais diferentes daqueles que envolvem pelo menos um
homem e uma mulher, impondo assim um casamento heterossexual. (Rubin,
1993, p. Itálico nosso)
Adrienne Rich (1929 – 2012) tem uma grande influência na teoria queer.
Primeiro, ligou-se à poesia, depois desenvolveu, também, um trabalho teórico,
e se engajou no ativismo lésbico norte-americano. O seu trabalho possui poucas
traduções, tanto no que concerne à língua portuguesa quanto ao espanhol.
Talvez, a melhor apresentação que temos da autora em português seja feita por
Juraci Andrade de Oliveira Leão, na sua tese de doutorado chamada Escrita,
corpo e ação: a poética e a política de Adrienne Rich. Esta tese é interessante,
pois, além de uma apresentação de Rich, faz uma análise cuidadosa da poesia
da autora, do seu desenvolvimento poético em relação à sua militância, de um
longo processo onde ela vai se descobrindo como poeta e, mais à frente, exibir
o surgimento da temática do feminismo e do lesbianismo em sua trajetória.
Nesta apresentação de pensamento, citaremos o ensaio teórico chamado
Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, traduzido por Carlos
Guilherme do Valle e publicado na revista Bagoas. Escolhemos esta tradução
e esta edição da revista Bagoas, porque nela, Rich escreve uma espécie de
preâmbulo ao seu artigo, ou seja, há uma contextualização de um artigo que
já se tornou um clássico menor para o feminismo e influencia, de certa forma,
a teoria queer. Nesta contextualização feita pela própria Rich, ela afirma que:
Este contexto da ascensão de uma Nova Direita e os valores que esta direita
tenta conservar, ou melhor, resgatar, necessita ser endossado, visto que sempre
há determinados avanços, ainda que estes nunca sejam seguros, e possam sofrer
alguns retrocessos. Rich caracteriza o seu artigo como uma forma de resistência,
e é esta resistência que abordaremos focando brevemente dois pontos: 1) a
heterossexualidade como um sistema político; 2) e a existência lésbica.
Estes dois conceitos são importantes na produção intelectual da autora,
creio que, principalmente, o segundo. Se a ideia de uma heterossexualidade
compulsória oferece uma crítica ao sistema heterossexual que até então não era
tratada com acuidade, ela vai, a cada momento, tornando-se mais comum até
se firmar como um vocabulário ordinário da teoria queer. Todavia, a concepção
de um continuum lésbico, de uma existência lésbica remonta não tão somente
a uma crítica ao heterocentrismo, mas, também, a um trabalho histórico, a um
trabalho genealógico de retornar a outras formas de existência, ou seja, a outras
subjetividades que não atravessariam tão fortemente a matriz heterossexual.
Javier Sáez, em seu livro já transcrito Teoria queer e psicanálise, afirma que
nos anos 60 houve um distanciamento do feminismo e do lesbianismo. Rich vai
tentar desfazer esta distância na década de 80, mesmo criticando fortemente o
feminismo. Ao criticá-lo, a autora pensa que o feminismo poderia criar novos
caminhos. Outro dado que Sáez coloca é que:
Rich vai adicionar uma preocupação que vai ser logo chave para entender a
aparição da cultura e do discurso queer: a questão da raça e da classe social
como elementos que devem se incorporar aos estudos de gênero. Rich
lança uma grave acusação ao mundo acadêmico da investigação feminista,
assinalando o preconceito racista e homofóbico que excluía as lésbicas de cor
ou outras etnias (mexicanas, judias, indianas etc.) do marco da análise sobre
a opressão das mulheres. (Sáez, 2008, p. 119).
Diante desta análise a autora vai valorizar outros modelos de amor como,
por exemplo, o amor lésbico, a solidariedade, os laços de amizade, modelos
estes que se distanciam de alguma forma da matriz heterossexual. Para este
resgaste, cremos também ser necessária a percepção de um continuum lésbico,
de uma existência lésbica.
O primeiro ponto a respeito da palavra e do conceito de uma existência
lésbica trata de afastar o conceito de “lesbianismo”. Para a autora, o termo
“lesbianismo” tem um cunho mais clínico e estaria limitado a uma relação
sexual entre mulheres. Por sua vez, a expressão existência lésbica remeteria a
dois pontos principais: 1) a uma reconstituição, valorização histórica; 2) e a
uma recusa, uma resistência.
Desta forma, se pensarmos o primeiro ponto, a existência lésbica nos
encaminharia a uma presença histórica da lésbica, a criação de múltiplos
significados, a invenção de alianças, a feitura de amizades, a produção de
vínculos diferenciados de uma matriz heterocentrada. Rich entende que:
Rich parece clamar pela feitura de uma produção lésbica que possa
criar alianças. Não a lésbica entendida como uma “versão feminina da
homossexualidade masculina”, ou ainda, a lésbica constituída por um “ódio
aos homens” — estes aspectos são outras formas de apagar as particularidades
da experiência lésbica.
A existência lésbica se torna em si uma recusa. Aqui adentramos em
nosso segundo ponto, a compreensão deste conceito como uma resistência
ao patriarcado. Este continnum lésbico ganha esta força no pensamento de
Rich, porque ele seria já um contraponto às relações heterossexuais viciadas.
A heterossexualidade compulsória feminina teria o perigo de apagar a própria
experiência lésbica e, principalmente, a própria paixão física. De acordo com
Rich:
Rich ilustra, assim, toda uma energia perdida com a ideia de uma
heterossexualidade compulsória, onde a sexualidade deveria estar num roteiro
já escrito, dentro de padrões já estabelecidos, dentro desta obrigatoriedade na
heterossexualidade. A existência lésbica, neste contexto, seria a recusa desta
O PENSAMENTO HOMOERÓTICO:
HOCQUENGHEM, PERLONGHER, SÁEZ E CARRASCOSA
45
A respeito dos termos usados neste capítulo, em determinado momento usamos a palavra gay,
homoafetividade, homoerotismo e homossexualismo. O intuito neste livro é distanciar desta última acepção,
a ideia de homossexualismo, pois como é sabido esta palavra envolve o ambiente médico, a concepção da
relação homoerótica como uma doença; todavia, como até mesmo autores gays utilizam este termo, voltaremos
a ele por uma questão histórica.
46
Pode soar estranho um comentário a respeito de uma dissertação de mestrado, embora essa dissertação
tenha sido defendida em 1986, numa época ainda em que o mestrado era entendido como um processo de
formação e não, como nos dias atuais, como processo de produção hipervalorizado que eclipsa a formação
intelectual e qualquer intuito criativo. Perlongher, ademais, já tinha todo um desenvolvimento intelectual como
ativista, poeta e pesquisador na Argentina. Estas características e o encontro com a antropologia brasileira
fazem com que esta produção acadêmica de Perlongher seja de fato diferenciada.
47
Já na década de 2000 até a atualidade é possível compreender que a juventude não tem a vivência dos anos
80 e passaram a não se cuidar com relação a Aids, o que gera o seu retorno, principalmente, nas camadas mais
frágeis e sem um olhar atento do Estado. No Brasil parece que as campanhas somente surgem quando alguma
doença afeta as classes médias, se elas tão-somente afetam a população mais pobre não haverá nenhuma
campanha efetiva. Um exemplo recente se deu com no caso da Zika.
48
Nestor Perlongher na sua pesquisa no Brasil faz uma distinção entre a boca e o gay guetto. Creio que
a principal diferença é que gay gueto envolveria uma determinada territorialidade fixa, determinadas
posições econômicas e políticas como, por exemplo, vários bairros em San Diego, na Califórnia onde há
uma preponderância da comunidade gay. Por sua vez, a boca evoca uma maior noção de marginalidade e o
território não seria fixo, mas um ponto de fluxo que se associa a diversas atividades ilegais. De qualquer forma,
há o que poderíamos chamar de subguetos que seriam pequenos territórios comerciais, políticos e de troca.
A transexualidade está como uma doença tanto na OMS (Organização mundial de Saúde) e no DSM (Manual
49
Diagnostico das Desordens Mentais). A inclusão da condição transexual acontece no DSM III em 1980. No
DSM IV a transexualidade aparece, novamente, mas sobre agora a rubrica de um “transtorno de identidade
de gênero”, pois se trataria de uma “desordem” entre o corpo anatômico e o sentimento de identidade sexual.
50
O grupo ACT UP é importante para uma militância médica que envolve a pesquisa sobre a Aids. Todavia,
eles não têm tão-somente um ativismo com relação ao HIV/Aids. Este grupo tem como um dos seus métodos
a “ação direta” e sua radicalidade vai influenciar outros coletivos ao redor do mundo como, por exemplo, o
grupo La Radical Gai de Madri, que tinha como um dos seus participantes Sejo Carrascosa, ativismo que
abordaremos aqui na sua relação com as políticas anais e a uma crítica as masculinidades.
O PÂNICO ANTI-HOMOSSEXUAL
51
É Michel Foucault na obra de 1976, História da sexualidade, que nos ensina que a homossexualidade é
uma invenção recente. Foucault argumenta que antes do século 19 o que chamamos de homossexualidade
não era uma categoria coerente. Trata-se de uma outra classificação. Por exemplo, a experiência erótica não
era classificada de acordo com o sexo biológico dos participantes. Este dado é importante para a pergunta
de Perlongher, pois se a homossexualidade é essa invenção recente ela poderia, também, ser reconfigurada.
A Aids era um elemento que Perlongher via que modificava o comportamento sexual das pessoas no seu dia
a dia. Talvez, a Aids fosse um ponto de ruptura.
52
É salientada a questão do dinheiro, do vestuário do michê macho, sua paródia da heterossexualidade e
tentativa de exacerbá-la, ou seja, o que a filósofa Judith Butler – em certo sentido – vai denominar como
performatividade de gênero. Perlongher parece não se fixar nem mesmo numa produção performática da
identidade. Assim, a fala do cliente de fato ecoa de forma filosófica: eu não sou eu, sou a fantasia do cliente.
I: POR GÊNERO
Boy laranja
Mais Taxiboy
Michê Macho Michê gay Mais feminino
masculino Boy modelito
Boy paquera
Travesti
Prostitutos Okó Mati Gay macho Michê loca
Bicha
Tios
53
O livro em espanhol ganha uma introdução da autora, chamada “comparando masculinidades femininas”,
onde Halberstam aponta o conceito de “masculinidade feminina” como abrangente o suficiente para uma
análise entre culturas. Halberstam não se propõe a fazer esta empreitada, mas aponta uma gama de elementos
interessantes de diversas culturas, inclusive da questão da travesti no Brasil.
Neste tópico regressamos a obra Pelo cu: políticas anais, de Javier Sáez e
Sejo Carrascosa. Essa obra tem um forte teor filosófico e queer, mesmo que
os autores em certo estágio se afastem dessa nomenclatura. Como tradutor,
Sáez traduziu várias obras da teoria queer para o espanhol, como Judith Butler,
Monique Wittig, Judith “Jack” Halberstam e Lee Edelman. Trata-se também
de um importante ativista na Espanha, responsável por abordar não só a
54
Tem-se referências principalmente a cantores brasileiro da época do desbunde que ainda estão em vigor
como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ney Matogrosso e o grupo Dzi-croquete. Este último é menos conhecido,
e é dele que Perlongher salienta a androgenia de combate. Com relação ao cinema é citado um filme alemão
chamado “Mujer en Fuego”.
PSICANÁLISE E ANALIDADE
Neste capítulo, vamos falar de uma das propostas mais originais da história
do pensamento: a teoria psicanalítica – e de como um urso burguês vienense
do final do século XIX vai se atrever a colocar no centro do pensamento o
sexo, o prazer, o desejo, o amor e... o cu. Até Freud, a filosofia e a psicologia
eram espaços ascéticos, onde se falava do divino e do humano, da alma e do
transcendente, do sujeito e do ser, da razão e do destino... mas sem corpos,
sem desejos, sem falar jamais de uma das pulsões mais poderosas dos seres
humanos, a pulsão sexual (Sáez e Carrascosa, 2016, p. 135).
55
Este diálogo é trabalho por Javier Sáez em seu livro Teoria queer e psicanálise e, também, neste livro Sáez
aponta sistematicamente como que Freud é mais revolucionário com relação a sexualidade do que alguns dos
seus críticos poderiam imaginar. Uma guinada reacionária na psicanálise se dá sobretudo com os discípulos
de Freud e o processo de institucionalização da disciplina.
A epidemia é tanto um fato biológico como uma construção social. A Aids foi
construída culturalmente e houve uma decisão de delimitá-la como DST. Uma
epidemia que surge a partir de um vírus, que poderia ter sido pensada como
a hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou sendo compreendida como
uma doença sexualmente transmissível, quase como um castigo para aqueles
que não seguiam a ordem sexual tradicional. Então, a Aids foi um choque,
e da forma como foi compreendida tornou-se uma resposta conservadora
à Revolução Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela então conhecida
“geração do desbunde”. No mundo todo, essa reação teve consequências
políticas jamais superadas e também na forma como as pessoas aprenderam
sobre si próprias, sobre a sexualidade, e na maneira como vivenciam seus
afetos e suas vidas sexuais até hoje (Miskolci, 2012, p. 23).
Citamos, por fim, este fragmento que evoca o ato performativo — sem
um original, sem algo autêntico ou ainda verdadeiro — para assinalarmos a
possibilidade de mudança por meio da apropriação destes atos, mas, também,
para invocarmos nosso próximo capítulo, onde a questão da performatividade
será uma espécie de ponto de virada — turning point — no estudo da teoria
queer.
Lélia Gonzalez
56
Um dos pontos desta tensão entre o feminismo branco e o feminismo negro será abordado quando formos
pensar o giro tecnológico e o teórico queer Paul Beatriz Preciado que aponta como a questão da pílula foi
vista de uma forma positiva para o feminismo branco e de uma forma negativa com o feminismo negro, o
primeiro vendo a pílula como uma possibilidade de liberdade, já que com esta ferramenta biotecnológica se
torna possível desvincular o sexo da reprodução, o segundo compreendendo mais agudamente este pequeno
panóptico comestível como uma política quase eugênica para a padronização de uma determinada forma de
família norte-americana, a família branca de classe média e heterossexual.
57
Para um maior esclarecimento sobre Saffioti ser ou não ser uma feminista, afirmamos que, primeiro, ela
não se interessa por uma distinção entre feminismo acadêmico e feminismo militante, já que, na sua percepção,
a academia teria absorvido a temática sem uma grande resistência. Outro dado é que muitas das militantes
são acadêmicas, todavia, Saffioti não se vincula a nenhum movimento ao mesmo tempo que produz um
determinado tipo de conhecimento para uma mudança do corpo social. Uma das suas críticas ao feminismo
como, também, a sua postura diante dele, pode ser encontrada na conclusão do livro O poder do macho.
Vozes-mulheres
58
Este soturno caminho que é infligido ao negro, do navio negreiro às favelas e, das favelas ao cárcere, pode
ser compreendido juntamente com a história do racismo no Brasil, ou ainda, juntamente com a história das
prisões no Brasil e mais amplamente na América Latina. No Brasil, a escravidão e a monarquia – mesmo depois
da independência de 1822 – impediam a tentativa da produção do sujeito virtuoso por meio da disciplina
dos regimes punitivos como se deu na Europa e nos Estados Unidos, regimes estes que eram vinculados ao
capitalismo. No Brasil, houve a ideia de que estávamos diante de uma massa bárbara e irrecuperável. Não se
tratava de um conjunto de pessoas passiveis de recuperação e viáveis para a produção capitalista, mas, pelo
contrário, dizia respeito a sujeitos inferiores. O que tivemos não foi a promessa de recuperação de determinados
sujeitos que são comprometidos pela composição social injusta, mas, sim, o ambiente penitenciário servia/
serve como um reforço de mecanismos de controles já postos, mecanismos de controle de populações bem
específicas. A prisão surge objetivando uma relação social injusta já existente e garante esta formação social,
uma formação que divide os livres e os escravos, os homens e as mulheres, os brancos e os negros. Numa
perspectiva norte-america que, por sua vez, não deixa de se vincular com a África e a América Latina, Angela
Davis produz uma crítica interessante ao sistema prisional se colocando do lado do movimento antiprisional
(ver, por exemplo, Davis, 2018 e 2019).
59
O “integralismo”, ou ainda, o “nacionalismo integral” era uma doutrina política, ou ainda, um movimento de
extrema-direita, um movimento ultranacionalista vinculado à doutrina social da Igreja Católica que teve sua
atuação principalmente nos anos 30 e 40 do século 20. Trata-se, também, depois do seu caráter de movimento
de um partido político, ou seja, a uma institucionalização da Ação Integralista Brasileira (AIB) que deu forma
ao nazi-fascismo brasileiro. A AIB tinha um discurso antissemita e ganhou voz em setores como os da classe
média, os profissionais liberais, poetas, funcionários públicos e perpassou muito as áreas de colonização alemã
e italiana. Tal partido recebia ajuda financeira da embaixada da Itália e teve em seu quadro figuras como as
de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Getúlio Vargas usou a força da AIB de forma pragmática,
primeiro, juntando-se a eles contra a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e os Comunistas, porém, nunca
confiando em um movimento que queria governar o país e tinha toda uma iniciativa paramilitar.
Nas mãos de um bom senhor, o escravo pode ter uma vida feliz, como a do
animal bem tratado e predileto; nas mãos de um mau senhor, ou de uma
má senhora (a crueldade das mulheres é muitas vezes mais requintada e
persistente que a dos homens) não há como descrever a vida de um desses
infelizes (Nabuco, 2000, p. 24).
Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém
CAPITALISMO EM SIMBIOSE:
PATRIARCADO-RACISMO-CAPITALISMO
60
O conceito de “interseccionalidade” foi utilizado pela primeira vez por Kimberlé Williams Crenshaw,
em uma pesquisa da década de 1990. Trata-se de uma pesquisadora de questões de raça e gênero, assim,
compreendeu como muitas que as minorias estão envoltas a diversos tipos de poder, diversas formas de
dominação, diversas maneiras de discriminação. A interseccionalidade trataria das interseções – Saffioti
chamaria de simbiose – destes poderes, destes diversos fenômenos.
61
O MBL, Movimento Brasil Livre, foi um dos principais articuladores das manifestações contra o PT, Partido
dos Trabalhadores, e ao impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff. Após as jornadas de junho de 2013
eles levantam a bandeira de uma luta contra a “corrupção” e apregoam ideias “liberais” e “conservadoras” se
alinhando a uma política de “direita”. As aspas em “liberais”, “conservadores” e “direita” se dá, sobretudo, porque
este movimento tem uma flexibilidade moral espantosa indo aos lugares que lhes convém politicamente. Outro
aspecto que não deve ser esquecido é que eles souberam usar das “guerras culturais”, transformando-as em
um catalizador para a junção do conservadorismo. Trata-se como já colocado antes de se afirmar por meio de
uma posição reativa como, por exemplo, ser um movimento antinegro, antifeminista etc. Com esta posição se
soma um discurso policialesco, sensacionalista e a produção massiva de Fake News. Poderíamos dizer que o
MBL é uma fábrica do que Márcia Tiburi e Rubens Casara diagnosticam como “imbecelizadores profissionais”.
62
Declarações que, por sua vez, teve um efeito no real, posto que após o discurso do Bolsonaro ganhar
visibilidade houve uma banalização do mal extremada.
Lana Lokteff conhecida por ser propagadora Vereador de São Paulo, Fernando Holiday
de ideologias nacionalistas, crítica da diversi- que é, também, líder do MBL (Movimento
dade como apagadora da raça branca, e com- Brasil Livre). Holiday tem um papel político
põe a alt-right. no que conserne um novo conservadorismo.
PATRIARCADO-RACISMO-CAPITALISMO
Lélia Gonzalez nasceu em Minas Gerais, Belo Horizonte, em 1935. Ela vem
de uma família de classe baixa, o pai Acácio Almeida era ferroviário e sua mãe
Urcinda Serafim de Almeida, de origem indígena, era doméstica. Lélia Gonzalez
formou tanto em história como em geografia, em 1958. No início da década
de 60, também concluiu a graduação em filosofia, revelando um interesse pela
antropologia na pós-graduação. No mesmo período, Lélia produz em sua casa
debates em torno do cinema de Bergman, Fellini, Buñuel, etc. No campo da
filosofia, a temática principal de sua filiação teórica era a corrente de pensamento
existencialista, à luz de obras existencialistas de Sartre e feministas de Beauvoir.
O que fez Lélia Gonzalez despertar para a questão racial — além de uma
curiosidade intelectual dos estudos em grupo — foi sua relação com o noivo,
Luiz Carlos Gonzalez. A família de Luiz Gonzalez não aceitou o casamento,
devido a Lélia ser negra. A psicanálise é que faz Lélia Gonzalez se voltar
para questões pessoais, assim como para toda uma esfera que retoma uma
ancestralidade, que retoma a cultura negra, que reata a negritude não de maneira
a procurar embranquecer a sua própria pele — como no âmbito universitário
que é majoritariamente branco e embranquecedor —, mas, sim, afirmá-la. A
psicanálise é um saber importante para Gonzalez no nível pessoal e como um
arrimo para o desenvolvimento do seu pensamento.
A militância da autora envolveu tanto o seu trabalho como professora
universitária como sua forte participação nos movimentos negros e, até mesmo,
uma tentativa de adentrar no mundo político como deputada federal, em 1982,
pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Encontramos, além disso, uma produção
teórica interessante que evoca com frequência alguns autores franceses, a cultura
brasileira, a sua posição social desde o ambiente de classe baixa até a esfera
universitária, desde a militância acadêmica aos movimentos sociais, ou ainda,
a militância diretamente partidária — todos estes elementos são, em parte,
o contexto e o texto de Lélia Gonzalez. Para nos aproximarmos deste limiar,
apresentaremos o que essa autora desenvolveu sobre a questão do racismo e do
sexismo na cultura brasileira.
Sendo assim, vamos entrelaçando filosofia, feminismo, movimento negro e
militância. Todavia, antes de darmos este passo, convém sabermos o motivo do
esquecimento do tema racial pelo feminismo mainstream. Depois deste dado
Temos aqui a pintura A redenção de Can, de M. Brocos. Lilia Moritz Schwarcz tece um
interessante comentário sobre esta pintura. Afirma que nela vemos a representação do processo
de branqueamento apregoado pelo governo brasileiro. Nesta tela encontramos à esquerda o que
parece uma avó negra; a direita um pai branco que aparenta ser um português; e, no meio, uma
mãe mulata segurando um bebê branco, de cabelo liso. Lélia Gonzalez traz à tona este apagamento
do negro na cultura brasileira e, igualmente, na própria formação do feminismo. Gonzalez propõe
um feminismo afrolatinoamericano. Trata-se de uma nova aliança, de uma nova irmandade onde
seria levado a sério elementos constitutivos da nossa própria cultura, as mulheres são irmãs, as
negras e os negros são irmãos, os povos indígenas são novas alianças.
63
O futebol é um espaço interessante para a análise do racismo, da homofobia, ou ainda, do culturalismo
racista brasileiro. Trata-se de compreendermos o seu surgimento racista e machista no Brasil, depois, a sua
relação com os negros e os pardos e, além disso, uma elitização da história do futebol. O futebol pode ser
visto tanto como uma heterotopía em algum momento quanto um inferno racial e homofóbico com seus
torcedores gritando injúrias com os pulmões cheios de ar e ódio (para uma pequena análise do racismo, da
homofobia no futebol ver, por exemplo, Leopoldo 2017b).
64
Uma outra linha de pensamento poderia surgir da radicalização de um pequeno comentário de Joanne
Meyerowitz no seu livro How sex change: a history of transexuality in the United of States, onde a autora afirma
que em 1910 cientistas europeus começam a publicizar as suas tentativas de mudança de sexo em animais.
Daqui poderíamos compreender outro início do fenômeno trans, um início relacionado ao não humano,
ao animal queer.
Posto isso, o caso mais popular de uma pessoa trans65 — uma pessoa cuja
identidade de gênero não se identifica com o sexo designado no nascimento num
sistema cisnormativo — é datado de 1954. Trata-se do já referido ex-soldado
norte-americano, George Jorgensen que, então, fez uma cirurgia de redesignação
de sexo, na Dinamarca, chefiada pelo endocrinologista Christian Hamburger.
Após a mudança de sexo, George Jorgensen, em homenagem a seu médico,
passa a se chamar Christine Jorgensen. O caso de Christine Jorgensen amplia
65
Neste momento seria ainda necessário um comentário sobre a noção de trans
envolvendo a transexualidade, o transgenderismo e o travestismo. De forma breve
salientamos que: 1) na transexualidade haveria uma mudança cirúrgica; 2) no
transgederismo haveria a adoção de marcas sociais do sexo oposto; 3) e na travesti haveria
uma relação com a vivência do papel de gênero feminino, por vezes, preferem não se
qualificar como homem ou mulher, porém, preferem o tratamento nominal no feminino.
66
Da psicanálise freudiana o conceito que tem um valor interessante para a compreensão da sexualidade é
o de bissexualidade inata. Um homem tem tanto características femininas quanto masculinas e uma mulher
tem tanto características masculinas quanto femininas. Os médicos – no caso da transexualidade – usariam
determinados hormônios e a cirurgia para mudar a morfologia de uma pessoa deixando coeso o sexo biológico
e o seu gênero.
67
Na resolução CFP N. 001/99 de 22 de março de 1999, encontramos a seguinte posição: “os psicólogos não
colaboração com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. E na resolução
de 29 de janeiro de 2018 encontramos referência a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. E no seu
artigo terceiro encontramos que “as psicólogas e psicólogos, em sua prática profissional, não serão coniventes e
nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis”. Duas resoluções importantes que
exigem para serem efetivas uma modificação no currículo formativo dos psicólogos e psicólogas.
68
Compreender esta relação nos dá elementos para pensar o surgimento da junção do fenômeno trans – uma
questão pessoal – com um aspecto político – uma questão coletiva –, assim, criando mais dados para o
entendimento de um ativismo trans, para o transfeminismo.
O Brasil é o país conhecido por matar mais travestis e transexuais, e podemos fundamentar
estes dados, também, no gráfico do mesmo projeto d’Associação Nacional de Travestis e
Transexuais. Contudo, este projeto não faz um comparativo somente por países, mas, sobretudo,
dos estados brasileiros. Todo este mapeamento é importante para a criação de políticas para a
população trans*. De forma alguma se trata da criação de privilégios – como dizem alguns –,
mas, sobretudo, de estabelecer possibilidade de vida, de criar potencialidades, de exercer, por
exemplo, os direitos básicos a qualquer cidadão.
O FEMINISMO ANTI-TRANS*
69
A palavra “império” de fato é pomposa demais para qualificar algo que nunca existiu com relação à
comunidade trans. Seria necessário dizer que ainda há toda uma luta por direitos, por medicamentos e, além
disso, há um número pequeno de pessoas que tratam da questão. Seja tratá-la no âmbito do direito, da saúde,
ou, até mesmo, dentro das disciplinas que estariam mais alinhadas com possíveis relações com a questão
trans como a psicanálise – que estuda formas de subjetivação –, os estudos de gênero – que compreende
bem à questão do gênero no campo social – e o feminismo – como uma política que visa igualdade entre os
homens e as mulheres. Enfim, o fenômeno trans está longe de algo que se possa chamar de império e suas
demandas parecem estar, também, distante desta linguagem bélica do Soberano; mais próxima das lutas por
direitos humanos, porém.
Já afirmamos, junto à Sara Salih, que Judith Butler é a filósofa dos estudos
de gênero, da performatividade, da paródia, da drag, etc. Além de todos estes
conceitos (que poderíamos remontar ao Problemas de gênero) há, ademais,
o pouco averiguado primeiro capítulo da obra de Butler. Nele, encontramos
conteúdos sobre a identidade e a representatividade, questão importante quando
há toda uma política sexual acirrada no feminismo.
A respeito deste tema, Sônia Correa faz o gracejo de que se o feminismo
fosse apenas para mulheres não se trataria de um feminismo, mas, sim, de um
“vaginismo”. Trata-se de uma brincadeira espirituosa, porém, muito crítica a
um feminismo fundacionista, a uma metafísica da substância70 encontrada
facilmente em textos teóricos ou em cartazes de movimentos contestatórios.
Outro dado é que, neste capítulo, podemos entender como o contexto já é o
texto, voltando à parte menos abordada do livro de Judith Butler, pois o destino
do recalcado do feminismo padronizado71 é sempre retornar.
Nesta imaginação de uma cartografia do pensamento queer, de uma história
do pensamento queer já mencionamos as diversas divisões no feminismo, como,
inclusive, de que forma uma gama de outras autoras passa a interpelá-lo. Trata-se
do feminismo negro, do feminismo indígena, do transfeminismo, do feminismo
islâmico, dentre outros. Esta interpelação faz com que o feminismo questione
a si mesmo, questione a própria figura da mulher, ou ainda, das mulheres
como representantes do feminismo. Este é um elemento histórico descrito
nas primeiras páginas do livro Problemas de gênero. Todavia, ele recebe uma
70
Uma gama de homens – heterossexuais ou não – irá questionar este vaginismo, este feminismo fundacionista,
esta metafísica da substância. A crítica mais aguda, talvez, ainda venha com o transfeminismo onde há, por
exemplo, uma infância feminina mesmo que se tenha um pênis. A respeito do contrário, de uma infância
masculina em um corpo de fêmea poderíamos citar o exemplo da autobiografia do ativista FTM, trans-
homem, João Nery, na sua obra Viagem Solitária. A crítica vinda de homens femininos, por sua vez, parece ser
totalmente descartada por um feminismo padronizado, já que o homem seria transformado na figura do mal,
o violentador. Caímos no maniqueísmo e nos piores folhetins, onde a bondade e maldade são características
intrínsecas e não cambiáveis nos seus personagens. Poderíamos remontar esta crítica também a uma obra de
Derrida chamada Gramatologia, de 1967. Desta obra podemos compreender que não há uma conexão fixa
entre identidade discursiva e os corpos que estas identidades se referem, ou seja, reafirmamos novamente que
podemos ter, por exemplo, uma feminilidade no corpo masculino e uma masculinidade no corpo feminino.
71
Pensar a questão da identidade-representatividade como o recalcado do feminismo é também enfatizar
determinadas contradições no feminismo, pois, ao mesmo tempo em que alguns grupos reiteram de forma
enfática a questão da mulher ser uma construção social há também uma tentativa de se atrelar a mulher e o
feminino a uma estrutura biológica bem especifica.
72
Esta temática, a de uma variedade de opressões com relação a mulher e não somente o patriarcado como
uma opressão universalizada já poderia ser compreendida com Juliet Mitchell no seu artigo Woman: the longest
revolution (“Mulheres: a mais longa revolução”, de 1966). No mesmo ano da publicação do livro de Judith
Butler, a socióloga britânica Sylvia Walby publica o livro Theorizing patriarchy (“Teorizando o patriarcado”).
Por sua vez, o livro Gênero: uma perspectiva global, de Raewyn Connel e Rebecca Pearse, abordam estes
elementos e ainda enfocam estudos mais recentes sobre o assunto.
Em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma identidade
definida, compreendida pela categoria das mulheres, que não só deflagra os
Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o
termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero
da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque
o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos
diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com
modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a
noção de “gênero” das interseções políticas e culturais em que invariavelmente
ela é produzida e mantida (Butler, 2010, p. 20).
73
Foi salientado neste tópico a relação de Butler com um determinado contexto histórico; ainda seria possível
vermos a elaboração do tema da identidade por um viés que retoma a filosofia e a psicanálise. Nestes dois
âmbitos, os autores mais interessantes são Hegel e Laplanche. É com Laplanche – e o contexto dos filósofos pós-
estruturalistas – que Butler vai compreender a formação do sujeito numa determinada opacidade, porosidade.
O sujeito em última instância não tem uma total compreensão de si mesmo. Vamos abordar esta temática
quando tocarmos no tema da ética.
74
O que chamamos de “ativismo corporal” é quando o corpo do sujeito já é uma radicalidade. Mesmo que
não seja uma escolha do indivíduo, o corpo do sujeito já é político. Ser gay nos anos 60 e 70 já era um ato
político e o corpo do drag queen surge como uma radicalização da homossexualidade, configurando-se como
um dos grandes personagens nas lutas em prol dos direitos gays. Nas décadas de 80 e 90, talvez seja o corpo
trans que toma esta forma de um ativismo corporal que é somente reelaborado teoricamente depois e, desta
maneira, passa a ter uma maior clareza política no transfeminismo.
75
Raewyn Connel e Rebecca Pearse (2015) no livro Gênero: uma perspectiva global vão apontar que este dito
do Movimento de Libertação das Mulheres ainda procede, pois há políticas de gênero em nossas relações mais
íntimas, assim a “política da intimidade está sempre no pano de fundo da política pública e não pode ser
abandonada” (p. 195). Todavia, para um maior esclarecimento deste mote, façamos uma distinção conceitual
entre privado e intimidade, pois, talvez, a potência esteja realmente no privado e não no íntimo.
76
Caracteriza-se como o “último Foucault” o momento em que este filósofo foca a sua atenção, principalmente,
na cultura grega e nos traz uma interpretação importante a respeito da subjetivação como práticas de si,
como uma estética da existência. Neste último Foucault encontramos uma elaboração ética que ainda foi
pouco tratada pela teoria queer. Este último período foucaultiano é fecundo para pensarmos as mudanças
no próprio sujeitos, para pensarmos práticas distintas e que não se vinculam a uma cientificidade ou ainda
a uma norma jurídica.
77
Os livros de Foucault que fazem uma maior referência a este debate, os das práticas de si, são o segundo e o
terceiro volume da História da sexualidade e as aulas que constituem o livro Hermenêutica do sujeito. Observamos
que as práticas de si, o cuidado de si, podem ser compreendidos como anterior à elaboração filosófica
socrática, assim atravessando outras esferas como, por exemplo, a cultura ameríndia (ver Leopoldo; Starling).
Há (1) uma exposição que não pode ser coloca em forma narrativa e estabelece
minha singularidade, e há (2) relações primárias, irrecuperáveis, que formam
impressões duradouras e recorrentes na minha história de vida, e por isso (3)
uma história que estabelece minha opacidade parcial para comigo mesma.
Por fim, há (4) normas que facilitam meu ato de contar sobre mim mesma,
78
Neste momento fazemos referência ao aparelho psíquico – a conhecida segunda tópica – na teoria freudiana
elaborada, sobretudo, no texto O eu e o Id e outros textos.
79
A respeito deste “descentramento” citamos todos os filósofos chamados de “mestres da suspeita”, enfatizando
que a pensadora Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue (2000), aborda a temática de forma interessante.
Com esta referência, estaríamos mais próximo de autoras contemporâneas, que fazem um diálogo com a
teoria queer (ver, Leopoldo, 2017b).
80
No primeiro capítulo do livro Relatar a si mesmo no tópico “sujeitos foucaultianos” encontramos a palavra
quadro (“frame”) que é cara a filosofia de Judith Butler e, sobretudo, tem uma maior elaboração no livro
Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Onde não somente encontramos uma elaboração deste
conceito como, também, encontramos referências explicitas ao pensamento de Laplanche.
81
A cena diádica se encontra, especialmente, do capítulo da Fenomenologia do Espírito a respeito da dialética
do senhor e do escravo. Para uma análise deste capítulo – que tem um debate longo na história da filosofia
– e, ademais, de sua relação com a revolução haitiana ver Buck-Morss, 2009 e Leopoldo 2017a. Butler vai
trabalhar de forma reiterada a filosofia de Hegel, escrevendo um texto interessante especificamente sobre o
assunto com a neurologista e filósofa Catherine Malabou chamado Sois mon corps: une lecture contemporaine
de la domination et de la servitude chez Hegel.
A questão que Butler levanta é que, talvez, a narrativa de uma vida não possa
ser o objetivo da psicanálise devido à própria formação do sujeito. Afirmamos
que “Lacan, como se sabe, deixou claro que qualquer que seja o relato que
se dê sobre os momentos inaugurais de um sujeito, ele sempre será tardio e
fantasmático” (Butler, 2015, p. 73). Assim, uma “norma de saúde mental” que
entende que relatar a si mesmo de forma coerente faz parte do trabalho ético da
psicanálise, encontra-se num equívoco do que a psicanálise pode e deve fazer.
Butler conclui que a narrativa de si depende de uma interpelação, e que ela é
anterior até mesmo ao processo de individuação. Esta elaboração teórica poderia
resgatar tanto ao filósofo Lévinas quanto ao psicanalista Laplanche. Elejamos o
segundo autor. A autora escreve que, para Laplanche “parece que a experiência
primária do infante é invariavelmente a de ser oprimido, não só impotente
em virtude de capacidades motoras não desenvolvidas, mas profundamente
ignorante das invasões do mundo adulto” (Butler, 2015, p. 95. Itálico nosso).
Estas “invasões do mundo adulto” dizem respeito às mensagens enigmáticas
do inconsciente parental que encontram o mundo infantil, na sua passividade
perceptiva e motora.
A criança exposta a estes elementos enigmáticos é a que geraria uma
determinada estranheza: “o eu descobre-se estranho para si mesmo em seus
impulsos mais elementares” (Butler, 2015, p. 96). Notamos que há uma falta de
saber tanto dos pais quanto do infante, posto que esta mensagem enigmática
embebida de significações sexuais é inconsciente; e quando o infante a recebe,
82
Na década de 60, nos anos loucos, há alguns acontecimentos importantes na área de uma tecnocultura
como, por exemplo, a entrada do russo Igor Gagarin no espaço; em 1967, o primeiro transplante de coração
na África do Sul; a chegada do homem à lua em 1969. No mesmo ano que o homem chega à lua temos o
primeiro festival de música de Woodstock, nos Estados Unidos, um marco musical e cultural que reflete bem
o clima político da época: uma esperança no futuro, em uma gama de possibilidades que estaria a céu aberto.
83
Na década de 70 pensemos tanto as mudanças sociais como, ademais, o ambiente cultural. Talvez o mote do
Punk Rock – especialmente do punk londrino - que clamava no future seja importante para uma aproximação
dos problemas irresolúveis de uma determinada sociabilidade. Lembremos que estamos num período pós-
Segunda Guerra Mundial, pós-ataques de Hiroshima e Nagasaki e no seio de uma Guerra Fria que envolvia
a ordem política, militar, ideológica, econômica, social. No nosso caso, apontamos a grande importância do
desenvolvimento tecnológico, ou seja, a estética do ciborgue espraiada no social.
84
Faço este apontamento lembrando que o COI – Comitê Olímpico Internacional – mudou em 2016 sua
resolução a respeito de atletas transexuais nas competições oficiais. Todavia, mesmo que não seja necessária
a mudança de sexo, no caso das mulheres, a COI ainda julga necessário o controle da testosterona, o controle
do “hormônio masculino”. Mesmo diante de uma flexibilidade tardia da COI, há um forte preconceito contra
os e as atletas transexuais por parte do público, principalmente, a respeito da transmulher, MTF, uma vez
que o correlato da não aceitação da identidade de gênero trans é pensar que haveria uma trapaça por parte
delas devido a uma estrutura corporal masculina.
O CIBORGUE E AS MASCULINIDADES
Há uma literatura a respeito do medo; todavia, talvez a perspectiva mais interessante para pensarmos a
85
América Latina esteja no pensamento do xamã Davi Kopenawa exposto no seu livro A queda do céu: palavras
de um xamã yanomami. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro relaciona este xamã com o filósofo Günder
Anders e seu desenvolvimento nesta linha, no ensaio O sombrio sonho d’A queda do céu. Trata-se de pensar
em determinado momento o valor heurístico do medo e a potencialidade das distopias.
86
É interessante observar que o medo da tecnologia – e sua relação com a empregabilidade – pode ser
compreendida até mesmo nos anos 70. Nesta década não há somente o punk rock londrino e sua crítica
social, mas o surgimento da disco music, uma música mais amena e os seus bailes, um som mais suave e sua
diversão. Por certo, a disco music era mais próxima da cultura hippie dos anos 60 do que do rock and roll
cada vez mais crítico da década posterior e, por vezes, destrutivo. Os roqueiros, em sua maioria, fizeram uma
verdadeira inquisição contra a disco music, argumentando que ela seria alienada e, ademais, que usaria uma
tecnologia para a sua produção musical. Neste uso dos objetos técnicos, os roqueiros viam um velho tema
social – tratado por Karl Marx no livro O capital, no primeiro capítulo, na quarta parte – que é a substituição
do homem pela máquina, a substituição dos operários pelo aparato tecnológico. Desta forma, eles como nas
revoltas operárias do século 17 contra as máquinas de tecer, ou como nas revoltas operárias do século 18
contra a máquina de tosar lã movida a água – onde 100,00 pessoas ficaram sem empregos – se revoltaram
contra as máquinas, ou melhor, contra a disco music, queimando os seus vinis e tentando enterrar o seu ritmo
eletrônico, o seu ritmo não humano.
A LITERATURA CIBORGUE
87
Proponho uma leitura diferente de Jota Mombaça, na qual compreendo a distopia sobretudo com um valor
educacional, com um valor heurístico. A distopia é um futuro que pode ser, mas que deveríamos evitá-lo. Não
se trata do único futuro possível, mas de um sombrio futuro que talvez se torne real se não for desativado. E
na própria distopia podemos encontrar não somente as linhas duras de uma ficção de domínio totalizante,
mas, também, as linhas de fuga para o presente.
A escrita tem sido crucial para o mito ocidental da distinção entre culturas
orais e escritas, entre mentalidades primitivas e civilizadas. Mais recentemente,
essas distinções têm sido descontruídas por aquelas teorias pós-modernas
que atacam o falogocentrismo do ocidente, com sua adoração do trabalho
monoteísta, fálico, legitimizado e singular – o nome único e perfeito. Disputas
em torno dos significados da escrita são uma forma importante da luta política
contemporânea. Liberar o jogo da escrita é uma coisa extremamente séria.
A poesia e as histórias das mulheres de cor estadunidenses dizem respeito,
repetidamente, à escrita, ao acesso ao poder de significar; mas desta vez o
poder não deve ser nem fálico nem inocente. A escrita-ciborgue não tem a
ver com a Queda, com a fantasia de uma totalidade que, “era-uma-vez”, existia
antes da linguagem, antes da escrita, andes do Homem. A escrita-ciborgue
tem a ver com o poder de sobreviver, não com base em uma inocência
original, mas com base na tomada de posse dos mesmos instrumentos para
marcar o mundo que as marcou como outras (Haraway, 2000, p. 86).
88
O conceito de Antropoceno é usado de forma cada vez mais comum para caracterizar uma nova era
geológica. O termo é um neologismo constituído com o prefixo anthropo (humanidade) e o sufixo cene
(novo). O termo foi cunhado pelo químico Paul Crutzen e o ecologista Eugene Stoermer e apesar do termo
sofrer grandes contestações ele parece não perder a sua força como um conceito operacional. Paul Crutzen
salienta o início do Antropoceno com uma data precisa, ele teria começado em 1784 e o começo da revolução
industrial, porém alguns autores colocam o Antropoceno juntamente com o surgimento da tecnologia-nuclear
e os seus traços radioativos deixados na Terra (Whitehead, 2014, p.5).
89
Uma política aceleracionista envolve a tentativa de levar o capitalismo e todo o seu processo sócio-
tecnologico as últimas conseguencias. Trata-se de ampliar o capitalismo, de acelerar o capitalismo até que
haja uma mutação, ou, eliminação do mesmo.
90
O filme cyberpunk A vigilante do amanhã: ghost in the shell, dirigido por Rupert Sanders, com atuação de
Scarlett Johansson, se mostrou herdeiro de uma dicotomia platônica entre o mundo material e o mundo das
ideias, em outros termos, entre a matéria e o pensamento. Na tradição metafísica e cristã ocidental se valoriza
as ideias, o pensamento, a mente, o espírito, o cérebro e não o corpo, a matéria, os objetos, a natureza etc. O
ideal de senhorio e domínio da natureza – ideais Modernos-Humanos diferentes dos ideais Terranos – podem
reaparecer até mesmo numa estética cyberpunk como no filme citado, onde a matéria se torna uma espécie de
hospedeiro tecnobiológico da mente, empobrecendo a relação de composição com a matéria, empobrecendo
o agenciamento – montagens e arranjos – homem-máquina num simples dualismo platônico com resquícios
do poderio cartesiano (sobre a questão da filosofia da mente ver Costa 2005; Teixeira, 2015).
91
O argumento do espantalho, ou, falácia do homem de palha é quando uma pessoa ignora a real posição
do adversário no dabate e, então, ataca uma versão distorcida dela, ataca um espantalho. A falácia está em
produzir uma distorção proposital do adversário com o objetivo de mais facilmente atacá-lo.
Fonte: imagem utilizada por Paul Beatriz Preciado em uma conferência em Roma, 2010. Nesta
imagem, temos, no lado esquerdo, uma figura do panóptico e, no direito, a imagem de uma pílula;
a primeira imagem nos remete sobretudo a Foucault, e sua análise do surgimento do sujeito
moderno via disciplinas; e, a segunda, ao poder farmacopornográfico sobre o sujeito.
92
Preciado usa a noção de “yonqui”, que em inglês é junkie e, em português, poderia ser traduzido como
“viciado”. Encontramos então um texto viciado, ou melhor, um texto-corpo de intoxicação voluntária, um texto-
corpo de experimentação. Seria ainda interessante fazer uma genealogia de textos com este intuito de intoxicação
voluntária e, com certeza, numa tal genealogia da experimentação não poderiam faltar pensadores de peso como
o psicanalista Sigmund Freud e a sua relação com a cocaína, o filósofo Walter Benjamin e o uso do haxixe etc.
Fonte: Hight Street Market. Paul Beatriz Preciado nos mostra a importância da arquitetura no
início da revista Playboy. Nesta imagem, temos um design feito por R. Donald Jaye. Este desenho
faz parte da tentativa de construção de um determinado homem moderno – que de fato nos
influencia. Trata-se de uma pornotopía. Percebemos como todo o “ainda” desta imagem se mostra
hiperconectado tal como somos no nosso dia a dia. Este dado tecnológico no pensamento de
Preciado reverbera tanto na sua análise de uma era farmacopornográfica quanto no nosso atual
processo de vigilância que, talvez, o seu maior teórico seja Foucault.
O MANIFESTO CONTRASSEXUAL
O CONCEITO DE CONTRASSEXUALIDADE
O PODER FARMACOPORNOGRÁFICO
Por sua vez, é na década de 1950 que estes estudos ganham uma maior
popularização com John Money — já citado por Preciado — e vários de seus
amigos da Universidade John Hopkins, que passam a estudar a intersexualidade,
projetando, também, o estudo de Albert Ellis.
Fausto-Sterling (2006) afirma que, com esses autores, a base biológica da
categoria de masculino e feminino já estaria perdida, ainda que: “[eles] nunca
questionaram a presunção fundamental de que só existiria dois sexos, porque
sua meta era saber mais sobre o desenvolvimento normal. Na visão de Money,
a intersexualidade era resultado de processos fundamentalmente anormais” (p.
66). Desse modo, os intersexuais deveriam ser tratados porque deveriam ter
nascido homens ou mulheres. Com base nestes dados, há uma compreensão de
que diante de uma multiplicidade de corpos, diante de uma multiplicidade de
sexos, há um processo de normalização biopolítica que inflige um conjunto de
operações — cirúrgicas e hormonais — para que os indivíduos se enquadrem
num ideal de masculinidade ou feminilidade.
Este fator biológico, que apreendemos dentro da questão de gênero
pós-Segunda Guerra Mundial, apresenta alguns contornos no regime
farmacopornográfico. Preciado argumenta que, ao mesmo tempo que Money
estudava a questão da intersexualidade, Harry Benjamin inventava os protocolos
da transexualidade (os protocolos para mudança de sexo por meio de diversos
hormônios). É exatamente neste momento, em 1947, que se inicia uma pesquisa
para melhorar a fertilidade da família católica americana de classe média.
Ironicamente, a partir dessa pesquisa ocorre a William John e Gregory Pincus
descobrirem uma combinação de progesterona e estrogênio que impede o
processo de concepção do óvulo. Alcançamos, pela primeira vez na história,
uma quebra radical entre a reprodução e a sexualidade. Sobre este projeto,
no entanto, Preciado salienta aspectos muito mais soturnos que uma provável
Nesta imagem, temos uma cápsula com as pílulas anticoncepcionais. Percebemos na história
do pensamento queer que, já no seu início, havia um descompasso entre o feminismo negro e o
feminismo padrão. Um destes descompasso se deu, exatamente, com relação à pílula (ver, por
exemplo, Angela Davis, 2017). Trata-se de saber que as mulheres negras compreenderam logo
que a pílula e outros métodos contraceptivos também diziam respeito a um esforço eugênico, e
o feminismo heterossexual e branco via como uma possibilidade de libertação sexual.
SEJA HOMEM!
Por mais que este texto seja questionável em inúmeros aspectos — sobretudo
na postura conservadora da Igreja Católica e do Papa —, é possível ver o desfazer
dos ideais estanques de masculinidade e feminilidade, dos ideais empedernidos
do que se espera de um homem ou uma mulher, até mesmo na instituição mais
austera.
Podemos compreender as masculinidades em crise, entendendo que,
muitas vezes, estas crises têm relação com uma estrutura econômica, pois é fato
dado que a subjetividade está sempre relacionada a sistemas econômicos. Por
exemplo, esses “intercâmbios” de papéis que o Papa Francisco aponta condizem
especialmente com um maior papel da mulher no mercado de trabalho, quando
a mulher se coloca como “chefe da casa” devido a um novo poder aquisitivo.
É através das mudanças econômicas que há uma transformação da
masculinidade, ou ainda, das masculinidades (já que existem muitas delas).
Não nos debruçaremos, neste intervalo, a uma crítica do texto papal — que pode
ser lido como um verdadeiro tratado sobre a sexualidade, sobre as questões de
gênero e os dogmas da igreja —, pois ele será inquerido em outro espaço, já
93
A referência principal para uma teologia queer é Marcella Althaus-Reid. Todavia, é necessário também
pensarmos na produção recente do pesquisador André Musskopt e da pesquisadora Ana Ester.
94
Um dado importante é o profundo conhecimento que Javier Sáez tem da obra de Halberstam, principalmente,
da sua principal obra que é a Masculinidade feminina que o autor traduziu para o espanhol. Javier Sáez e
Sejo Carrascosa citam na obra Pelo cu: políticas anais, a ideia do homem como alguém impenetrável e,
por certo, Halberstam é uma das principais referências que faz com que os autores coloquem a questão da
analidade diante da constituição do masculino. A impenetrabilidade da stone butch pode ser relacionada a
impenetrabilidade do homem, no seu terror a analidade como lugar que o faria perder a masculinidade e se
transformar numa mulher, se transformar num gay, se transformar numa bicha, se transformar num bissexual
dentre tantos outros que são caracterizados por uma passividade, por uma penetrabilidade.
MASCULINIDADE COMPULSÓRIA
Conforme Javier Sáez, não se trata de criar novos homens, pois já existe
uma gama de homens integrados de uma forma diversa do tradicional
machismo. Poderíamos comparar essa “masculinidade tradicional” com o
No livro Pelo cu: políticas anais, de Javier Sáez e Sejo Carrascosa, nos
deparamos com uma genealogia da analidade, compreendendo que nela há,
ademais, uma teoria a respeito da masculinidade que toma como grande mote
o ânus.
Inicialmente, poderíamos supor que o cu seria, de fato, democrático, um
lugar sem gênero, pois pertence tanto ao corpo dos homens quanto ao corpo das
mulheres, tanto ao corpo do heterossexual quanto ao corpo do homossexual,
sem grandes distinções anatômicas. Porém, o que a pesquisa dos autores ratifica
é que diante de um regime heterocentrado e machista o cu tem gênero. Segundo
os autores:
95
Ainda não há uma tradução para o português da obra Female Masculinity; todavia, mesmo que “female”
não seja estritamente traduzível tão-só por “feminina” a tradução por “masculinidade feminina” já é usual
nos artigos, comentários e livros que dialogam com o trabalho de Halberstam.
96
Ambos os termos, lésbica e butch, abarcam uma gama de variedade. Para uma primeira aproximação
apontamos que butch se refere a uma masculinidade feminina. Halberstam vai trabalhar com grande cautela
os matizes destes termos, para mostrar uma variedade produtiva e funcional (e não patológica) de diversas
masculinidades.