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Žižek: O ateísmo é um legado pelo qual vale a pena 

lutar
Publicado em 13/11/2015 | 9 Comentários

http://blogdaboitempo.com.br/2015/11/13/zizek-o-ateismo-e-um-legado-pelo-qual-vale-a-pena-lutar/

Por Slavoj Žižek.*
No contexto do lançamento do aguardado O absoluto frágil, ou, porque vale a pena lutar pelo legado
cristão, de Slavoj Žižek, recuperamos este artigo do filósofo esloveno que procura reabilitar, da perversa
ética multiculturalista do capitalismo contemporâneo, o núcleo emancipatório do ateísmo. Ao invés de se
relacionar de forma exterior com a religião – sucumbindo assim à armadilha da “tolerância” –, Žižek
subverte a abordagem e propõe levarmos a crença a sério e cobrar dos crentes a responsabilidade sobre
aquilo em que creem. É esta perspectiva avessa ao lugar comum que anima também O absoluto frágil, um
ensaio explosivo que defende uma aproximação entre o cristianismo e o marxismo num projeto político
emancipatório renovado. Nas palavras do esloveno: “O primeiro paradoxo da crítica materialista da
religião é este: às vezes é muito mais subversivo destruir a religião a partir de dentro, aceitando sua
premissa básica para depois revelar suas consequências inesperadas, do que negar por completo a
existência de Deus.” Confira!
***

Por séculos, nos foi dito que sem religião não somos mais do que animais egoístas lutando pelo nosso
quinhão, nossa única moralidade a de uma matilha de lobos; apenas a religião, dizem, pode nos elevar a um
nível espiritual mais alto. Hoje, quando a religião emerge como a fonte de violência homicida ao redor do
mundo, garantias de que fundamentalistas cristãos ou muçulmanos ou hinduístas estão apenas abusando e
pervertendo as nobres mensagens espirituais de seus credos soam cada vez mais vazias. Que tal restaurar a
dignidade do ateísmo, um dos maiores legados da Europa e talvez nossa única chance de paz?
Mais de um século atrás, em Os Irmãos Karamazov e outras obras, Dostoiévski alertava sobre os perigos de
um niilismo moral sem deus, defendendo essencialmente que, se Deus não existe, então tudo é permitido. O
filósofo francês André Glucksmann até mesmo aplicou a crítica de Dostoiévski do niilismo sem deus ao 11
de setembro, como sugere o título de seu livro, Dostoiévski em Manhattan.
O argumento não poderia estar mais errado: A lição do terrorismo atual é que, se Deus existe, então tudo,
incluindo explodir milhares de espectadores inocentes, é permitido – pelo menos àqueles que alegam agir
diretamente em nome de Deus, já que, claramente, uma ligação direta com Deus justifica a violação de
quaisquer refreamentos e considerações meramente humanos. Resumindo, os fundamentalistas não se
tornaram diferentes dos comunistas Stalinistas “sem deus”, para os quais tudo foi permitido, já que viam a
si mesmos como instrumentos diretos de sua divindade, a Necessidade Histórica do Progresso em Direção
ao Comunismo.
Fundamentalistas fazem o que veem como boas ações de forma a satisfazer o desejo de Deus e ganhar a
salvação; ateus o fazem simplesmente porque é a coisa certa a fazer. Não seria essa também nossa
experiência mais elementar de moralidade? Quando faço uma boa ação, não a faço visando ganhar um
favor de Deus; faço porque, se não fizesse, não poderia me olhar no espelho. Uma atitude moral é por
definição sua própria recompensa. David Hume argumentou isso pungentemente quando escreveu que a
única maneira de demonstrar verdadeiro respeito a Deus é agir moralmente ignorando sua existência.
Dez anos atrás, Europeus debatiam se o preâmbulo da Constituição Europeia deveria mencionar o
cristianismo. Como de costume, um meio termo foi arranjado, uma referência em termos gerais à “herança
religiosa” da Europa. Mas onde estava o legado mais precioso da Europa, o do ateísmo? O que faz da
Europa moderna única é que ela é a primeira e única civilização em que o ateísmo é uma opção plenamente
legítima, e não um obstáculo a qualquer posição pública.
O ateísmo é um legado europeu pelo qual vale a pena lutar, não menos por criar um espaço público seguro
para os que creem. Considere o debate que inflamou-se em Ljubljana, a capital da Eslovênia, meu país
natal, conforme a controvérsia constitucional fervia: muçulmanos (em sua maioria trabalhadores imigrantes
das antigas repúblicas Iugoslavas) devem ter permissão para construir uma mesquita? Enquanto os
conservadores opunham-se à mesquita por razões culturais, políticas e até arquitetônicas, a revista semanal
liberal Mladina foi consistentemente explícita em seu apoio à mesquita, em continuar com suas
preocupações pelos direitos daqueles que vinham de outras antigas repúblicas Iugoslavas.
Não surpreendentemente, dadas as atitudes liberais, Mladina também foi uma das poucas publicações
eslovenas a republicar as caricaturas de Maomé. E, reciprocamente, aqueles que demonstraram maior
“compreensão” pelos violentos protestos muçulmanos causados por aqueles cartuns foram também aqueles
que regularmente expressavam sua preocupação com o futuro do cristianismo na Europa.
Estas alianças estranhas confrontam os muçulmanos da Europa com uma escolha difícil: A única força
política que não os reduz a cidadãos de segunda classe e os concede o espaço para expressar sua identidade
religiosa são liberais ateus “sem deus”, enquanto aqueles mais próximos a suas práticas religiosas sociais,
seu reflexo cristão, são seus maiores inimigos políticos.
O paradoxo é que os únicos verdadeiros aliados dos muçulmanos não são aqueles que primeiramente
publicaram as caricaturas para chocar, mas aqueles que, em defesa do ideal da liberdade de expressão,
republicaram-nas.
Enquanto um verdadeiro ateu não tem necessidade de apoiar sua própria posição provocando crentes com
blasfêmia, ele também se recusa a reduzir o problema das caricaturas de Maomé ao respeito às crenças de
outras pessoas. O respeito às crenças dos outros como o valor maior só pode significar uma de duas coisas:
Ou tratamos o outro de forma condescendente, evitando magoá-lo para não arruinar suas ilusões, ou
adotamos a posição relativista de vários “regimes da verdade”, desqualificando como imposição violenta
qualquer posição clara em relação à verdade.
Mas que tal submeter o Islã – junto com todas as outras religiões – a uma respeitosa, mas por isso mesmo
não menos implacável, análise crítica? Essa, e apenas essa, é a maneira de mostrar verdadeiro respeito aos
muçulmanos: tratá-los como adultos responsáveis por suas crenças.
* Publicado originalmente em inglês no The New York Times em 13 de março de 2006. A tradução,
ligeiramente modificada, é de Ale GM para o Bule Voador.
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