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1214 ENSAIO | ESSAY

A focalização utilitária da Atenção Primária


à Saúde em viés tecnocrático e disruptivo
The utilitarian focusing of Primary Health Care in technocratic and
disruptive bias

Alcides Silva de Miranda1

DOI: 10.1590/0103-1104202012720

RESUMO Ensaio argumentativo acerca do sentido contextual, dos condicionantes conjunturais e dos indicativos
estratégicos constantes no Programa Previne Brasil, que estabelece nova logística e modalidade de financiamento
e adscrição para a atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS). Destaca-se contextualmente a hegemonia
neoliberal, com tendência para a colonização subserviente de governos e políticas públicas. Conjunturalmente,
o alinhamento disruptivo do governo Bolsonaro, permeado por ofensivas ultraliberais, pendores impositivos e
práticas autoritárias. Em afinidade e derivação concomitante, a referida estratégia programática tende a con-
substanciar uma nova forma de focalização para demandas estratificadas e de segmentação para coberturas e
serviços de saúde estando regida por racionalidade tecnocrática e utilitária, que tende a desconstituir os preceitos
e as diretrizes estratégicas constitucionais das políticas públicas de saúde. Caracteriza-se principalmente por:
capitação e per capitalização de demandas ‘administráveis’, nos termos de ‘governança clínica’ regulada por
política econômica de austeridade e contingenciamento de gastos sociais; deslocamento do modo de adscrição
territorial e populacional com responsabilização de equipes multiprofissionais visando à Atenção Integral à
Saúde, para outro modo de adscrição individualizada, focalizada e estratificada de clientelas; aplicabilidade
descontextualizada do SUS, para critérios e logísticas de ponderação alocativa de recursos financeiros de custeio
e de pagamento compensatório ao ‘desempenho’ do trabalho de equipes.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde. Estratégia Saúde da Família. Política de saúde. Financiamento
da assistência à saúde. Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT An essay about the contextual meaning, the conjunctural conditioning and the strategic in-
dicatives within the Prevent Brazil Programme, which establishes a new logistics and funding modality for
primary care in the Brazilian Unified Health System. It contextually highlights the neoliberal hegemony, with
a tendency towards a subservient colonization of governments and public policies and in conjuncture, the
disruptive alignment of the Bolsonaro administration, permeated by ultraliberal offensives, imposing biases
and authoritarian practices. In concomitant derivation, this programmatic strategy tends to substantiate a
new form of targeting for stratified demands and segmentation for hedges and health services. Being governed
by a technocratic and utilitarian rationality, which tends to disregard the precepts and constitutional strategic
guidelines of public health policies. It is characterized mainly by: capitation and per capitalization of ‘manage-
able’ demands, in terms of ‘clinical governance’ regulated by austerity economic policy and social spending
contingency; displacement of the territorial and population mode of enrollment with the accountability of
multiprofessional teams aiming at Integral Health Care, to another individualized, focused and stratified
mode of clientele; decontextualized applicability of the health system, with criteria and logistics of alloca-
tive weighting of financial resources of cost and compensatory payment to the ‘performance’ of team work.
1 Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS)
– Porto Alegre (RS), Brasil.
KEYWORDS Primary Health Care. Family Health Strategy. Health policy. Healthcare financing. Unified
alcides.miranda@ufrgs.br Health System.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Introdução políticas sociais na contemporaneidade e o seu


sentido precípuo de racionalidade utilitária.
Argumenta-se, no presente texto, que o sentido A ênfase no presente artigo tem a ver com
e os termos de financiamento estabelecidos a tematização sobre discursos práticos2 dos
para a Atenção Primária à Saúde do Sistema dirigentes governamentais acerca da mudança
Único de Saúde (APS-SUS), constantes no estratégica institucional (administrativa e pro-
‘Programa Previne Brasil’ (Portaria MS nº gramática) para a APS no Brasil, pelos quais
2.979/2019)1, consubstanciam uma nova lógica esses governantes buscam justificar as suas
simbólica e modalidade de focalização para proposições normativas e os seus proferimen-
recursos e políticas públicas de saúde. Uma tos regulativos, em razão de sua aplicabilida-
modalidade de focalização regida por racio- de nos sistemas institucionalizados de ações.
nalidade instrumental e utilitarista, que induz Dessa forma, não se busca tematizar aspectos
a desconstituição do preceito de integralidade práticos e específicos, decorrentes ou deriva-
das políticas públicas de saúde, caracterizan- dos das eventuais mudanças.
do-se por: capitação e per capitalização de
demandas ‘evidenciadas’, ‘reconhecidas’ e
‘estratificadas’ em racionalidade de ‘gover- De concepções,
nança clínica’ de viés utilitário e tecnocrático, justificativas e premissas
regulada por estratégia de contingenciamento
de gastos governamentais ‘primários’; deslo-
contextuais acerca das
camento do modo de adscrição territorial e estratégias governamentais
populacional da responsabilidade de equipes de focalização para as
multiprofissionais e interdisciplinares pela políticas sociais
Atenção Integral à Saúde para outro modo
de adscrição programática de clientelas pa- Em se tratando de recursos públicos aplicados
dronizáveis e administráveis em termos de e utilizados em políticas sociais, desde muitas
coberturas segmentadas; deslocamento de um décadas persiste o debate e as reciclagens de
critério logístico de ponderação alocativa para iniciativas governamentais que contrapõem
recursos financeiros de custeio entre contextos dialeticamente a concepção utilitária de sua
sociais substancialmente diversos (Norte/Sul); focalização em determinados grupos popu-
dimensionamento e valorização compensató- lacionais (‘denominadores populacionais’ de
ria do ‘desempenho’ de trabalho profissional miséria, de riscos, de vulnerabilidades etc.) e
a partir de comportamentos regrados por tal a concepção valorativa (ethos social) da (re)
racionalidade instrumental. produção de melhor equidade redistributiva.
Como a nova modalidade de financiamento Evidentemente, tais concepções derivam de
para a APS-SUS encontra-se provida de racio- distintos princípios, valores, interesses, jus-
nalidade instrumental com pretensões nor- tificativas e propósitos políticos, decorrendo
mativas, embalada em discurso tecnocrático também em distintas estratégias institucionais
de entorno setorial, torna-se necessária a sua (administrativas, programáticas) para a alo-
contextualização, como também a projeção de cação prioritária de recursos orçamentários
seu alinhamento em uma conjuntura política governamentais e para disponibilização e aces-
primada em pendores autoritários, em práti- sibilidade de sistemas institucionalizados e de
cas impositivas e disruptivas de governo. Eis, serviços públicos.
porque, antes de versar e argumentar especifi- Muitas vezes, as estratégias governamentais
camente sobre tal assunto específico, convém de focalização e de equidade redistributiva
discorrer brevemente sobre uma sumária con- (ou, pelo menos, do enfrentamento de iniqui-
textualização acerca do tema da focalização de dades) tendem a ocorrer de forma justaposta

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ou combinada, dificultando ainda mais os justificativo que alega a inevitável insufici-


discernimentos entre elas. Em geral, o que ência de fundos orçamentários públicos para
se pode realçar casuisticamente é o sentido o provimento de políticas sociais, principal-
predominante dessas concepções e disposições mente em função de uma reprodução pro-
estratégicas no conjunto de determinadas po- gressiva e dos infindáveis desdobramentos de
líticas governamentais. O que se pode realçar suas demandas (‘ofertas satisfeitas induzem
conjunturalmente e contextualmente são as e derivam novas demandas’), além da dis-
interveniências mais abrangentes no plano seminada noção de ‘incompetência estatal’
internacional e em perspectiva tendencial. para um gerenciamento ‘eficiente’ e da con-
É difícil e complexa a distinção classifi- sequente exigência de ‘sobrecarga tributária’.
catória entre os termos de focalização e de Todavia, amparando tal ‘discurso prático’, há
produção de equidades (ou confronto de uma concepção primordial e secular acerca
iniquidades)3 para políticas sociais, uma vez das funções e responsabilidades do Estado,
que a preponderância de uns ou de outros na qual se advoga que as políticas sociais de-
depende não somente do propósito ou do veriam estar focalizadas somente naqueles
escopo de estratégias institucionais e setoriais indivíduos e grupos incapazes de vender até
em intercurso, mas, sobretudo, dos contextos mesmo a sua força de trabalho e, portanto,
históricos, sociais e políticos em que ocorrem. desprovidos de competência meritocrática e
Dependendo do contexto histórico e social, de condições objetivas para atender às pró-
uma mesma estratégia governamental pode prias necessidades e demandas essenciais,
tender, concomitante, ao sentido de focaliza- adquirindo bens e serviços nos mercados.
ção e/ou de produção de equidades sociais. Por Políticas sociais de baixo custo orçamentário
exemplo, em um contexto social de menor con- focalizado em excluídos das sociedades de
centração e de melhor distribuição de renda, mercados, sem maiores exigências tributárias
de menos injustiças sociais, uma determinada aos ‘empreendedores’ e aos consumidores com
estratégia governamental tipicamente foca- competência meritocrática.
lizada também poderia diminuir iniquidades Mesmo os discursos práticos e justificativos
ou produzir equidades mais abrangentes (de acerca de focalizações para políticas sociais,
acesso, de utilização de serviços, de impactos mesmo as seculares premissas do liberalismo
etc.) e transcendentes; enquanto, em um con- econômico (direito à propriedade, ‘livre’ inicia-
texto em condição inversa, a mesma iniciativa tiva, ‘livre’ concorrência, competência merito-
de focalização dificilmente iria além da estra- crática, sociedades mercantis ‘autorreguladas’,
tificação compensatória com perpetuação de ‘Estado mínimo’ não intervencionista etc.)4,
dependência e com o incremento do controle não prescindiram do amparo em justificativas
estatal sobre indivíduos e grupos populacionais. morais com pretensões éticas. Na modernidade
Abundam argumentos justificativos e propo- histórica, o surgimento, o desenvolvimento e a
sitivos para ambas as perspectivas, focalização hegemonia (inicialmente ocidental) da filosofia
ou equidade redistributiva, que perduram e são moral do ‘utilitarismo’ (Bentham, Stuart Mill e
incrementalmente refinados desde décadas. outros menos citados)5 vão consubstanciar um
Também há estratégias institucionais e modali- sentido paradoxal para justificar os termos de
dades organizativas em ambas as perspectivas, ‘eficiência’ institucional, inclusive do Estado
que constituem reciclagens e instituem mudan- e de suas políticas públicas, uma razão instru-
ças decorrentes de novos contextos históricos, mental, teleológica6, que se sobrepõe a quais-
políticos, econômicos e societários. quer (pre)tensões normativas apriorísticas
Em termos de platitudes de racionalização e derivadas de valores éticos sociais. Grosso
instrumental para a focalização de recursos e modo, ao pendor ‘utilitarista’, importa mais os
gastos governamentais, persiste um discurso resultados práticos das intervenções políticas

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do que as suas pretensões éticas ou morais, Para os países industrializados do Hemisfério


suas tensões constitucionais e normativas. Norte Ocidental, no que se refere, especifica-
A ênfase nos termos de racionalização mente, às políticas sociais de proteção ou se-
justificativa para determinadas disposições guridade social e, particularmente, saúde, as
políticas se torna importante porque eles estratégias de focalização poderiam ser carac-
tendem a circunscrever um horizonte herme- terizadas como de excepcionalidades: os típicos
nêutico doutrinal, um continente normativo ‘denominadores populacionais’ de incompetên-
e discursivo para comportamentos regrados cia meritocrática. Para os países periféricos não
e, também, perspectivas para intervenções industrializados ou semi-industrializados, as
governamentais. Michel Foucault cunhou o estratégias de focalização estavam orientadas
termo ‘governamentalidade’ para definir os para denominadores populacionais de risco
tipos de racionalidades estruturantes para as (social, epidemiológico) e para determinadas
ações governantes e para a introjeção de com- condições crônicas com magnitude e trans-
portamentos regrados de (auto)governados7,8. cendência em termos de impactos econômicos
Nos primeiros 70 anos do século XX, o diretos e indiretos (absenteísmo, gastos previ-
sentido primordial de governamentalidade denciários com pensões etc.)10,11.
‘utilitarista’ concernente às políticas liberais A partir da década de 1980, o sentido ‘utili-
de Estados e de governos era movido pelo afã tário’ para a focalização das políticas sociais de
de ‘desenvolvimento econômico’ baseado no Estados foi deslocado para a órbita do ‘capital
capital produtivo decorrente da industrializa- improdutivo’12, principalmente em seu apên-
ção em âmbito urbano. A ideologia hegemônica dice parasitário de orçamentos públicos. O
era de que os meios e modos de desenvolvi- chamado ‘mercado financeiro’, dependente
mento econômico industrial decorreriam em de agiotagens, especulações, apostas e jogos
desenvolvimento social, portanto, as políticas rentistas, existe desde os primórdios da his-
sociais deveriam ser dependentes, acessórias tória humana; mas, a partir da década de
e sinérgicas a tal sentido. Nas sociedades in- 1980, obteve protagonismo, preponderância
dustrializadas, as estratégias de focalização e hegemonia em termos de direcionalidade
de políticas sociais estavam orientadas para política e ‘governança’ global. O imperativo
os estratos referidos anteriormente: daqueles de contingenciamento de gastos sociais nos
sem competência meritocrática e excluídos das orçamentos governamentais passou a servir
possibilidades de consumo mercantil (popula- de lastro, em menor medida, para o pagamento
ções abaixo da ‘linha da pobreza’, idosos ‘sem de dívidas externas originárias de ciclos ‘de-
previdência’ etc). Nas sociedades pré-indus- senvolvimentistas’ e, em maior medida, para
trializadas ou em processo de industrialização pagar as espirais de juros de ‘dívidas públicas’,
‘multinacional’ para a produção e o consumo expressão genérica para definir agiotagem
domésticos, caso do Brasil, as estratégias de sistêmica de orçamentos públicos12.
focalização de políticas sociais visavam ao Ao mesmo tempo, foi incrementada e dis-
contingenciamento de gastos públicos como seminada uma ofensiva ideológica de pre-
lastro para garantir o pagamento regular conceitos sobre a incompetência gerencial
dos endividamentos externos e diminuição do Estado para com os denominados ‘gastos
da carga tributária dos setores produtivos. primários’ e a inviabilidade da administração
Diversas estratégias institucionais de focaliza- pública direta.
ção e tecnologias correlatas de planejamento Além das estratégias de focalização de po-
e programação foram desenvolvidas, e houve líticas sociais, as alternativas apresentadas
grande investimento para o adestramento para um melhor ‘gerenciamento’ de recursos
afim das tecnoburocracias estatais do então orçamentários têm visado ao empresaria-
chamado ‘terceiro mundo’9. mento das principais atividades e serviços

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dos estabelecimentos estatais (mudança de programáticas de políticas sociais, sendo tal


institucionalidade da administração direta modalidade evidenciada adiante, na análise
para a administração indireta sob a égide do sobre a nova forma de financiamento da
direito privado, com introjeção de raciona- ‘atenção primária no âmbito do SUS’.
lidade empresarial) e ao seu agenciamento Ainda em termos de governamentalidade
por intermédio de associações privadas de neoliberal, um dos primados acerca das estra-
caráter ambivalente: ‘público não estatal’ e tégias de focalização de políticas sociais advém
de ‘quase-mercado’ (como as Organizações do que Claus Offe17 definiu como seletividade
Sociais e congêneres). Para o gerenciamento e estrutural do Estado, sob governança direcio-
a prestação de serviços auxiliares e de apoio às nal de determinados grupos de interesses, que,
instituições públicas, é preconizada a contra- naturalmente, tendem a priorizar as demandas
tação colateralizada de terceiros (terceirização sociais ‘padronizáveis’ e ‘administráveis’ nos
e suas derivações). Ainda, para a contenção termos de suas conveniências (por exemplo,
do chamado deficit primário, é preconizada a contingenciamentos orçamentários para o
privatização de empresas estatais de mercado, financiamento de agiotagem rentista) e de
com atividades econômicas e serviços consi- suas prevenções (tal como controle e amor-
derados lucrativos13. tecimento de tensões sociais). A seletividade
O Banco Mundial e o Fundo Monetário sistêmica e estrutural de demandas sociais
Internacional (FMI) têm sido as principais ‘convenientes’ e ‘administráveis’ sob égide de
instâncias para veiculação e imposição de uma ‘democracia mínima’ tende a produzir
‘receituários’ de ‘ajuste fiscal’ em termos formas de ‘indiferença estutural’18 a partir das
de políticas governamentais (no continente políticas públicas, com a exclusão de deman-
europeu, o FMI alinhou-se ao Banco Central das não ‘padronizáveis’ ou ‘administráveis’.
Europeu e à Comissão Europeia, formando No extremo, até mesmo pode produzir o que
a chamada Troika, com a mesma finalidade), alguns autores definem como uma das decor-
como também, especificamente, para a con- rências da necropolítica19: a exterminação in-
substanciação tecnocrática de estratégias tencional de indivíduos e grupos populacionais
institucionais de focalização para políticas considerados ‘dispensáveis’, de forma proativa
sociais12,14-16. (repressão) ou pela via do não reconhecimen-
Ao longo das últimas décadas, e geralmente, to de necessidades sociais imprescindíveis e,
os receituários para focalizações de políticas consequentemente, pela ausência de respostas
sociais têm-se modificado muito pouco, uma governamentais compatíveis até mesmo para
vez que, embora a destinação dos desvios de a sua mitigação.
recursos públicos tenha se deslocado para o Uma variação mais abrangente das estraté-
capital improdutivo, os propósitos de ‘ajustes gias de focalização para políticas sociais pode
fiscais’ e de contingenciamentos orçamen- ser identificada nos últimos receituários de
tários permanecem similares. O que se tem agências multilaterais e em recentes experi-
aprimorado são as formas de indução de go- ências de governos. Seriam mais propriamen-
vernamentalidade neoliberal7, assim como as te estratégias de segmentação para políticas
estratégias institucionais, as modalidades e os sociais com cobertura universal para deter-
dispositivos para a focalização de políticas. minadas estratégias programáticas, grupos
Por exemplo, a per capitalização por riscos de procedimentos ou ‘cartas de serviços’ (algo
e vulnerabilidades, exaustivamente explora- distinto do preceito de universalidade). No
da nos mercados de seguros como forma de caso do setor de saúde, por exemplo, pode-se
dimensionamento de preços para apólices, estabelecer a ‘cobertura universal’ para níveis
tem sido utilizada para definir e estabelecer assistenciais (como da APS), para procedimen-
critérios para o financiamento de estratégias tos assistenciais (procedimentos de prevenção

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coletiva, como vacinações, de alto custo, como o que reportar e distinguir sobre as premissas
transplantes etc.) ou para ‘cartas de serviços’, filosóficas, a constituição histórica de sentido
com estratificação de demandas e com alter- e suas derivações em termos de estratégias
nativas complementares de mercado para a governamentais para políticas públicas. Por
maioria da população empregada20. exemplo, poderiam ser analisadas desde as
No campo da saúde, há muitas proposições formulações originais de economia política
de estratégias institucionais compatíveis com redistributiva a partir da década de 193023 até
os termos de segmentação com ‘cobertura uni- o advento e experiências internacionais do
versal’ (como o ‘pluralismo estruturado’21 e chamado Welfare State em países setentrionais
outras), assim como experiências de implemen- (em meados do século XX). Ademais, pode-
tação em sistemas nacionais de saúde (o caso riam ser analisadas as distintas experiências
da Colômbia é pioneiro na América Latina). de políticas e estratégias governamentais afins
O que se denota, a partir de processos e de (parciais, setoriais, incrementais), ocorridas
resultados das experiências internacionais e decorridas em países meridionais de ca-
com segmentação de ‘coberturas universais’ pitalismo periférico. Muitas dessas aborda-
para determinados serviços públicos, é que gens abrangentes precedem e poderiam ser
tal disposição não pode ser dissociada da ra- contextualizadas como significativas para a
cionalidade utilitária referida anteriormente concepção, a constituição original e a prescri-
ao neoliberalismo. De início, porque geral- ção normativa do SUS brasileiro. Entretanto,
mente têm ocorrido combinações de estra- tal intento estenderia por demais o presente
tégias governamentais de segmentação e de texto, que requer atenção para versar sobre
focalização dos recursos e políticas sociais, ‘focalização’.
ficando difícil distinguir as particularidades e
as interveniências. Também, porque a adoção
de estratégias de segmentação com ‘coberturas A Atenção Primária à
universais’, embora possa ter alcançado resul- Saúde como um consenso
tados e obtido impactos sobre determinados
perfis epidemiológicos em alguns países do
internacional genérico,
Hemisfério Norte, não alterou substancial- polimorfo e o seu viés
mente as margens de contingenciamento de utilitário e tecnocrático
recursos públicos, tampouco os termos de
‘eficiência’ para além das medidas restritas de Sem delongas sobre os primórdios da APS,
‘contenções orçamentárias’. As experiências desde formulações modelares (Informe
de implementação de estratégias para segmen- Dawson, Modelagem de Leavell & Clark etc.)
tações com ‘coberturas universais’ em países até experiências governamentais (National
de capitalismo periférico, como o citado caso Health System – NHS etc.), a partir da década
da Colômbia, não apresentaram resultados de de 197024, o conceito genérico acerca de tal
melhor gestão orçamentária, uma vez que a estratégia institucional tornou-se uma espécie
‘economia’ de recursos de tal ‘eficiência aloca- de consenso internacional (consagrado inicial-
tiva’ têm sido incrementalmente sequestrada mente na Conferência de Alma-Ata), todavia,
pelas dinâmicas de agiotagem do mercado por entendimentos, interesses, motivações,
financeiro22; sequer apresentaram resultados racionalidades e propósitos diversos. Mesmo
de melhoria de iniquidades de acessibilidade assim e desde então, tem havido contradições
e de impactos epidemiológicos. e contendas sobre as disposições estratégicas
Acerca da contraparte dialética, políticas da APS como um nível de seletividade focali-
sociais e estratégias institucionais visando zada (APS seletiva, ‘atenção primitiva’25) ou
melhor equidade redistributiva, haveria muito como uma base hierarquizada potencialmente

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e tendencialmente equitativa para sistemas A partir da década de 1990, ocorreram a


universais de saúde. Evidentemente, tais dis- renovação e a disseminação de teorias sistêmi-
cordâncias também implicam distintas es- cas (Luhmann e outros)26 e da complexidade
tratégias institucionais e modos de integração (Morin e outros)27, que serviram de substrato
sistêmica para a APS. Todavia, não houve muita e referência para a reformulação de concei-
celeuma acerca das postulações específicas, tos logísticos aplicáveis em termos de estra-
programáticas e tecnológicas de cuidados, para tégias institucionais para políticas sociais.
a organização, os processamentos, a gestão e a Por exemplo, as modelagens hierarquizadas
produção de serviços de APS em âmbitos locais. passaram a ser reconhecidas em arquiteturas
Até mesmo em subsistemas privados com reticulares de poliarquia28 (redes com vertica-
fins lucrativos, passou-se a valorizar estra- lidades, horizontalidades, transversalidades,
tégias similares (não propriamente a APS) tramas etc.). No campo das políticas de saúde,
com serviços domiciliares (Home Care) e tais reformulações repercutiram notadamente
ambulatoriais de melhor resolubilidade para na redefinição de arquiteturas sistêmicas, por
demandas que requerem intervenções clínicas exemplo, as estratégias institucionais de APS
com menor densidade tecnológica e, prin- passaram a ser reconfiguradas como umas das
cipalmente, com a triagem padronizada por ‘portas de entradas’, dos pontos de Atenção
protocolos de algoritmos e por autorizações de múltiplas e sinérgicas redes de cuidado,
prévias (gatekeeping) para referenciamentos particularmente, como instâncias primordiais
mais especializados e apoios diagnósticos e para as coordenações de fluxos e referen-
terapêuticos. Obviamente, a racionalidade ciamentos (‘linhas de cuidado’, itinerários
utilitária e o propósito primordial da adoção terapêuticos etc.)29.
de tais estratégias primam pela diminuição de Também a partir da década de 1990, pesqui-
custos e gastos evitáveis, a melhor eficiência sas e estudos internacionais (com ênfase no
em termos de lucros. Convém denotar que, se protagonismo, coordenação e publicações da
nos países do Hemisfério Norte as estratégias Dra. Bárbara Starfield30) confluíram para pro-
de Home Care têm mais a ver com procedi- duzir evidências empíricas acerca da melhor
mentos de média complexidade para âmbitos efetividade de (sub)sistemas de saúde com a
domiciliares, aqui no Brasil, existem diversos APS estruturada e funcional a partir de de-
exemplos de ‘planos de saúde’ com ofertas terminados atributos, tais como: o primeiro
de ‘cuidados domiciliares’ consubstanciados contato; a longitudinalidade, a integralidade
em procedimentos típicos da APS (algumas e a coordenação do cuidado; a focalização em
ofertas, inclusive, com programações intitu- famílias; a orientação comunitária e a com-
ladas explicitamente de Home Cares). petência cultural. A partir desses trabalhos,
A APS e as estratégias congêneres confor- ocorreu a formulação de metodologias e de
mam uma espécie de consenso internacional instrumentos para a avaliação sistêmica e
genérico em que cabem distintas motiva- normativa da APS (PCATools e outros). Tais
ções, interesses, propósitos, decorrentes conhecimentos, metodologias e tecnologias
estratégias institucionais e modalidades produziram uma significativa reciclagem no
organizativas, sejam elas focalizadas, seg- modo de organização das estratégias de APS
mentadas ou integradas em sistemas uni- e, consequentemente, reformulações tecnoló-
versais. Assim, não basta a reiteração de gicas e tecnocráticas compatíveis e aplicáveis
alinhamento ao consenso genérico, mas é tanto em diretivas estratégicas de focalização
preciso distinguir e discernir sobre de que e de segmentação como de integração em sis-
tipo de APS estamos tratando e, principal- temas universais de Atenção Integral à Saúde.
mente, conforme antecipado, em qual o con- Outro fenômeno concomitante e correlato
texto social, político e econômico se insere. tem a ver com (re)formulação dos conceitos

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de gestão e governança clínica. A adoção verticalidades utilitárias e teleológicas para


de premissas de racionalidade sistêmica e reduzir e acondicionar aspectos logísticos
complexa da contemporaneidade produziu e instrumentais (dos processos e práticas
reformulações significativas dos critérios e de gestão e atuação clínica) aos termos res-
termos logísticos para as tomadas de decisões tritos de eficácia baseada em ‘evidências
clínicas, para a reordenação de fluxos e itine- clínicas’ e orientada por protocolos e algo-
rários de manejo clínico (de apoio diagnóstico ritmos decisionais de caráter estritamente
e terapêutico, de cuidado, de reabilitação). A sistêmico. Essa racionalidade protocolar
ênfase nos propósitos de economia de escopo de caráter estritamente sistêmico tende a
e de escala também proporcionaram refor- ser mais facilmente regulada e integrada
mulações significativas nos critérios e termos extrinsecamente por políticas econômicas,
de eficiência alocativa e custo-efetividade. pelos imperativos de eficiência alocativa e
Sendo repetitivo, reformulações compatíveis de austeridade preconizados pela agenda
e aplicáveis tanto em diretivas estratégicas de reformas neoliberais. Tal postura tec-
de focalização e de segmentação quanto de nocrática, preponderantemente biomédica
integração em sistemas universais de Atenção e regulada por viés econocrático, despreza
Integral à Saúde. hermenêuticas críticas, discussões teóricas
Uma das condições imprescindíveis para e questionamentos metodológicos, buscando
disseminação de inovações tecnológicas e amparo em uma doutrina ‘pragmática’ pela
para o desenvolvimento de seus processos qual se cultuam ‘caixas de ferramentas’,
de (re)produção requer a constituição de normativas de adestramento, competências
comunidades de práxis e/ou de práticas instrumentais e comportamento regrados.
correlatas e afins. As comunidades de práxis No apelo utilitário dessas doutrinas
tendem a priorizar a racionalidade e a com- tecnocráticas da APS, de seus ‘tecnocratas
petência estratégica, buscam incorporar orgânicos’ (perdoe-me, Gramsci)31, impor-
e experimentar as inovações tecnológicas tar e incorporar estratégias institucionais
e tecnocráticas, entretanto, coproduzin- entre contextos distintos e diversos (como
do dinâmicas críticas e criativas para as do Hemisfério Norte para o Sul) requer mais
suas contextualizações, alterações e au- adaptações e adestramentos do que práxis
toproduções (autopoieses, na perspectiva de contextualização, inovações e mudanças
sistêmica). Algumas das comunidades de autóctones e modos de gestão participati-
práticas tendem a priorizar a disseminação va. Se a conjuntura for propensa e favorá-
de doutrinas tecnocráticas e as adaptações vel aos pendores autoritários de governo,
de ortodoxias modelares; nesses casos, facilmente as incorporações estratégicas
conforma-se também um campo mais fértil (administrativas, programáticas) e tecno-
para a preponderância de racionalidade te- cráticas, suas adaptações e os decorrentes
leológica e competência instrumental, para a adestramentos tendem a ser verticalizados
colonização de pendores utilitaristas. Em se a partir de imposições e da utilização de
tratando de comunidades afeitas às estraté- recursos de poder administrativo e político.
gias de APS no mundo e, particularmente, no É notório que, atualmente, alguns dos
Brasil, podem-se identificar ambos os perfis, arautos e expoentes da doutrina tecnocrática
muitas vezes em disputa ideológica, política da APS ocupam cargos-chave na direção de en-
e (por que não escrever?) paradigmática (ou, tidades representativas de especialidades pro-
em muitos casos, paradogmática). fissionais e na gestão governamental, inclusive,
Também no Brasil, vicejam especialistas do Ministério da Saúde (MS). Provém dessa
da APS com postura mais tecnocrática e vertente, a nova formulação estratégica para
corporativa, com pretensões de combinar a adscrição e o financiamento da APS-SUS.

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1222 Miranda AS

Do contexto utilitário e chantagens ou por modos indiretos, como ‘pre-


distópico a uma conjuntura miações’ por adesão (e consequentes punições
pela negativa). Entretanto, existiram imposi-
de autoritarismo e ções tecnocráticas sob regimes autoritários es-
disrupção táveis e proativos, cujas decorrências tenderam
para consolidações parciais de determinadas
A partir de 2016, o governo brasileiro operou estratégias institucionais; e houve imposições
um incremento radical no seu progressivo ali- tecnocráticas em regimes autoritários instáveis
nhamento e subserviência para com a agenda de e disruptivos, cujas decorrências tenderam
reformas neoliberais. Após um golpe parlamentar mais para a barbárie34.
e do lawfare32 capitaneados por corporações au- Reiterando algo afirmado anteriormente,
toritárias da sociedade política e civil, o governo assim como são imprescindíveis as contextuali-
Temer realizou uma reforma constitucional zações (históricas, conceituais, sociais, políticas,
visando à colateralização e à precarização de econômicas etc.), também não podem ser des-
contratos e vínculos trabalhistas; além disso, consideradas ou menosprezadas as conjunturas
estabeleceu um ‘teto’ para os ‘gastos primários’, políticas em que ocorrem e decorrem determi-
com lastro orçamentário de duas décadas para o nadas reformas políticas e estratégicas, sejam
incremento de garantia de usufruto da agiotagem genoestruturais ou fenoestruturais.
rentista (EC-95/2016). Tratou-se do início de Em termos de reformas genoestruturais, o
reformas genoestruturais, com ‘estado de sítio’ governo Bolsonaro e o Congresso Nacional já
fiscal e orçamentário, que antecederam desdobra- aprovaram um significativo desmonte no regime
mentos e derivações específicas, como o advento previdenciário e alinham agora o encaminhamen-
de estratégias governamentais de focalização e to de desmontes administrativos e de alterações
segmentação para políticas sociais. no regime tributário, concomitantes com uma
A subsequente eleição de Jair Bolsonaro ofensiva incremental para privatizações, ter-
produziu uma conjuntura disruptiva e instável. ceirizações e agenciamentos empresariais de
Uma conjuntura contemporânea que, como em estabelecimentos e serviços públicos.
outras fases históricas de crises superestruturais33 Além das iniciativas fenoestruturais de dis-
no Brasil, deriva do esgotamento para mais um rupções e de desmontes da institucionalidade
ciclo condominial (governabilidade de coalizão, estatal, a partir de 2019, alguns dos setores ad-
dependente do mercado da pequena política) e de ministrativos do governo Bolsonaro iniciaram
reaparecimento do tragicômico personagem as suas proposições e imposições tecnocráticas
‘redentor da moralidade pública’ (assim como, em termos específicos de estratégias institucio-
Jânio Quadros e Collor de Mello), em parte como nais para focalização e segmentação de recursos
a imposição distópica de um novo bloco histórico, públicos e de políticas sociais. É o caso da nova
dirigido por plutocracia rentista. A alternativa es- estratégia governamental para o financiamento
colhida para a continuidade de condução gover- da APS-SUS, sumariamente analisada adiante.
namental coercitiva em uma transição regressiva De início, convém destacar que a referida
(de direitos políticos e civis, de políticas públicas proposição estratégica (de teor administrativo e
e sociais) é uma espécie de governo miliciano programático), descrita na Portaria Ministerial
‘ultraliberal’, afeito e propenso às insinuações e nº 2.979/20191, tende mais para os propósitos
experimentações neofascistas. de focalização de recursos e demandas da APS/
Conforme a história demonstra em repetidas SUS do que para a perspectiva de segmentação
‘farsas ou tragédias’, o caráter autoritário de de sua cobertura universal, embora possa haver
governos tem sido atrativo para imposições tec- compatibilizações e combinações adiante (o
nocráticas, verticais e abruptas. Imposições que que dependeria de sinergia para com outras
podem ocorrer de modo direto, por coações e estratégias institucionais mais abrangentes).

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A focaliaz ãoç utiliárt ia da Atenção Primária à Saúde em viés et cnocrático e disruptiov 1223

Tal assertiva deriva da constatação de que os cadastrado a totalidade de sua população. Os


termos dessa estratégia específica estão foca- fatores para a ponderação alocativa individualiza-
lizados no modo de adscrição dos serviços de da estabelecem pesos maiores (+ 30% per capita)
APS-SUS, com indução de sua modificação pela para pessoas em situação de vulnerabilidade
via de financiamento de custeio, como também socioeconômica (beneficiárias de programas
na indução de regramento e conformidade do como o Bolsa Família, ou com benefícios pre-
trabalho profissional correlato, com indução pela videnciários de Prestação Continuada (BCP) e
via de ‘pagamento por desempenho’. de até dois salários-mínimos mensais), pessoas
A principal modificação induzida dispõe sobre com menos de 5 anos e mais de 65 anos (perfil
o fim da adscrição territorial e populacional de demográfico); pesos ponderados que podem ser
Atenção Integral à Saúde sob a responsabilidade incrementados (para 45% ou 100%) no caso de
das equipes da APS, com o advento da adscri- essas pessoas cadastradas habitarem em municí-
ção de clientelas (conforme ocorre em países pios classificados como ‘intermediário adjacente’
do Hemisfério Norte) cadastrados nos serviços e ‘rural adjacente’ (+45% per capita) ou ‘inter-
e estratificados em função de suas ‘vulnerabili- mediário remoto’ e ‘rural remoto’ (+100% per
dades socioeconômicas’. Na portaria ministerial, capita). Os fatores de ponderação não têm caráter
tal modificação encontra-se sintetizada sob a cumulativo, ou seja, nos casos em que a pessoa
terminologia normativa e instrumental de ‘ca- cadastrada for enquadrada em mais de um estrato
pitação ponderada’. incremental (vulnerabilidade socioeconômica ou
perfil demográfico), o peso ponderado deverá ser
considerado uma única vez.
Principais termos logísticos Os indivíduos cadastrados pelas equipes
da nova estratégia para a de APS que não estiverem contemplados em
nenhum dos critérios de per capitalização
adscrição e o financiamento incremental deverão estar estratificados como
da Atenção Primária do ‘peso 1’, ou seja, constarão nos cálculos de
Sistema Único de Saúde transferência basal. Assim, o cálculo do valor
total a ser repassado para APS dos municípios
A ‘capitação ponderada’ da nova estratégia levará em conta a multiplicação das pontua-
consubstancia-se pela via de um cálculo e pelo ções de valores per capita a partir dos critérios
aporte de ‘incentivos financeiros’ que dependem preestabelecidos de estratificação.
da população cadastrada pelas equipes de Saúde Outra ênfase da referida portaria minis-
da Família (eSF) e de Atenção Primária (eAP); terial enfoca o propósito de incrementos nas
da estratificação dessa população, a partir de transferências de custeio como premiação
critérios de ‘vulnerabilidade socioeconômica’ por ‘desempenho’ das equipes de APS-SUS,
e de ‘perfil demográfico’ por faixas etárias; da a ser dimensionado em ‘metas’ e classificado
classificação específica de porte populacional e por ‘tipos de equipes: uma modalidade para
de situação (urbana, rural próxima ou remota) eSF e duas modalidades para eAP (respecti-
dos locais em que as referidas equipes atuam. vamente de 20 horas e 30 horas semanais).
No documento, há uma afirmação enfática de As referidas ‘metas’ estão caracterizadas pelo
que a definição preponderante dos ‘incentivos anacrônico escopo donabediano de ‘processo’
financeiros’ depende do ‘peso por pessoa cadas- e ‘resultados’ (uma vez que o componente
trada’, destacados os critérios de estratificação de ‘estruturas’ depende do próprio aporte de
referidos anteriormente. transferências federais e os ‘recursos humanos’
De acordo com a normativa citada, referidos já estão contemplados pela variável dos ‘tipos
‘incentivos financeiros’ de custeio só deverão de equipes’); mais especificamente, processos
ser transferidos aos municípios que tiverem e resultados ‘intermediários’ do trabalho das

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1224 Miranda AS

equipes (outputs), além de ‘resultados em em nota pelo Conasems35, ilustra um cálculo


saúde’ (outcomes) e ‘resultados globais da exemplar do senso de ‘governamentalidade’
APS’ (definidos e dimensionados pelo referido utilitarista, sobre as razões e modos de indução
dispositivo PCATools). Os indicadores de “de- a comportamentos regrados e de introjeções
sempenho” deverão ser definidos e atualizados autogovernamentais7,8. No campo da gestão go-
na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), vernamental, naturalmente, há uma propensão
e os pagamentos correspondentes só deverão ao utilitarismo de curto prazo, muitas vezes
ser efetivados se forem alcançados resultados confundido com ‘pragmatismo’, principalmen-
potenciais de 100% pelas equipes de APS dos te, entre aqueles governantes com alcance de
municípios. Os cálculos municipais deverão olhar e de atuação adscritos aos horizontes de
corresponder ao somatório dos resultados mandatos eleitorais, com cegueira estratégica
obtidos pelas equipes. para perspectivas de políticas de Estado pro-
O MS divulgou uma projeção inicial para jetadas em maiores abrangências ou alcances
dimensionar perdas e ganhos municipais em tendenciais. Em tal delimitação de horizonte,
termos do custeio da APS-SUS, a partir da nova muitas vezes, o sentido de ‘eficiência’ fica re-
ordenação e, especificamente, em relação aos duzido às equações de custos orçamentários
valores recebidos em 2019: 68,2% municípios sobre benefícios eleitorais, aos jogos táticos
obteriam acréscimos; aproximadamente 14% de compensações focalizadas (‘premiações’
dos municípios não teriam alterações ‘sig- por adesão etc.). Para tal ‘senso prático’, não
nificativas’; e 17,8% dos municípios teriam é muito difícil oferecer aparentes aditivos no
decréscimos. Tal projeção foi repercutida pelo ‘varejo’ e curto prazo, enquanto se realizam
Conselho Nacional de Secretarias Municipais subtrações e deformações de políticas e estra-
de Saúde (Conasems)35 como a principal jus- tégias institucionais no ‘atacado’.
tificativa em defesa das ‘vantagens’ de tran- Nos últimos anos, da parte de muitos gesto-
sição para o novo modelo. Ainda não foram res governamentais, tem sido comum a defesa
divulgadas comparações retrospectivas com de racionalidades utilitárias, tais como a insti-
séries históricas de médio ou longo prazo, tuição do que alguns definem como ‘padrões
tampouco projeções prospectivas levando em de integralidade’, denominação tortuosa do
conta os contingenciamentos orçamentários que em outros países está definido mais pre-
para o orçamento federal (termos da EC-95) cisamente como ‘cartas de ofertas’ de pro-
e, particularmente, para os imprescindíveis cedimentos e serviços, reguladas por perfis
rearranjos proporcionais entre os valores de de necessidades e por padrões de consumo
custeio da APS e da assistência especializada. para insumos. Todavia, tal alusão reportada ao
princípio constitucional de integralidade do
SUS revela primordialmente o entendimento
Focalização disfarçada restrito sobre uma tensão normativa de valor
em equidade, ético social (um deve-ser que nunca se alcança,
mas que tensiona continuamente por consubs-
segmentação disfarçada tanciações e aprimoramentos estratégicos) e
em integralidade, sua redução a uma competência instrumental
utilitarismo tecnocrático e um sentido utilitário de ‘eficiência’ orçamen-
tendencialmente disruptivo tária. Sentido de pragmatismo (auto)limitado
e (auto)regulado por governamentalidade co-
do Sistema Único de Saúde lonizada e subalterna.
Diga-se de passagem, dadas a grande con-
O principal argumento de defesa da nova forma centração proporcional de recursos tributá-
de financiamento da APS-SUS, divulgado rios no orçamento federal e a dependência

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A focaliaz ãoç utiliárt ia da Atenção Primária à Saúde em viés et cnocrático e disruptiov 1225

de municípios e estados em relação às trans- dependente de táticas conjunturais de caráter


ferências federais de recursos financeiros, meramente adaptativo. Alguns podem enten-
uma das características típicas do processo der que esta é a natureza e a sina ‘pragmática’
de implantação do SUS ao longo das últimas de quaisquer processos de gestão institucional,
três décadas tem sido a adesão induzida às o que pode ser delimitado em determinados
estratégias institucionais do MS pela via de continentes e perspectivas (administrativas,
governança (intergovernamental) de caráter burocráticas e de racionalidade sistêmica au-
procedimental. Esclarecido de outro modo, os torregulada); entretanto, pode implicar a ab-
termos de governança direcional geralmente dicação de disputas estratégicas substanciais.
estão preestabelecidos (pela política econômi- Conforme argumentação prévia, a análise
ca de ‘austeridade’ e de contingenciamentos estratégica e situacional de contextos e con-
progressivos), restando aos governantes de junturas políticas deve ser concomitante e
políticas setoriais definir derivações direcio- dialética com a apreciação de derivações
nais correlatas, a partir de dinâmicas de go- estratégicas mais específicas, setoriais e pro-
vernança limitadas aos modos de implantação gramáticas. O Programa Previne Brasil não
e de condução para estratégias institucionais versa somente sobre uma nova programação
condizentes. No caso das instâncias e dinâ- financeira para a APS-SUS, a partir dele, busca-
micas intergovernamentais de governança -se importar, incorporar e implantar logísticas
no setor de saúde, comumente, o MS estabe- sistêmicas e tecnologias adotadas em outros
lece as derivações direcionais em termos de países, com relativos sucessos, em um contexto
estratégias institucionais (administrativas diverso deles. Busca-se consolidar modos de
e programáticas) e opera ainda com estra- integração sistêmica (auto)regulados pelos
tégias de ‘premiação por adesão’ para os termos e propósitos ‘ultraliberais’, por isso
governos subnacionais. Com a inevitável mesmo, disruptivos para as políticas públicas
e ‘voluntária’ adesão, as representações de caráter redistributivo.
políticas dos Secretários de Saúde buscam Seguramente, a ameaça disruptiva em
discutir, estabelecer acordos, ‘consensos’ curso não decorre da adoção de racionalidade
e pactuações nas Comissões Intergestores instrumental ou dispositivos para a recom-
(principalmente na Tripartite), sobre os posição de financiamentos para as políticas
termos e os trâmites procedimentais para públicas de saúde, a partir de critérios e
as referidas verticalidades estratégicas, con- pesos ponderados para alocação recursiva,
ferindo a elas a aparência de autoridade inclusive, algo pertinente e necessário na
federativa coordenada (quando ainda se perspectiva da produção de equidades e dimi-
trata de autoridade federativa dominante)36. nuição de iniquidades. De forma similar, não
Já decorreu tempo suficiente para a he- decorre da adoção de pagamentos e valores
gemonização de uma ‘cultura institucional’ e agregados, a partir de critérios para recompo-
de um ‘senso comum pragmático’ na gestão sição e valorização de trabalho profissional,
intergovernamental de políticas de saúde no algo pertinente e necessário na perspectiva
Brasil. Nas últimas três décadas, ocorreram de planos de cargos, carreiras e salários em
avanços incrementais muito significativos para qualquer política pública de abrangência na-
algumas estratégias institucionais sintônicas cional. As ameaças disruptivas decorrem do
e sinérgicas ao SUS; atores governamentais, sentido contextual, da barbárie conjuntural
atuando nas Comissões Intergestores, dispuse- e da direcionalidade estratégica que buscam
ram resistências e óbices perante tentativas de focalizar e segmentar as estratégias institu-
imposições verticais mais autoritárias (muitos cionais primordiais ao SUS, destituindo-as
são os exemplos); mas, também, instituiu- do sentido de seus valores éticos sociais,
-se a hegemonia de um pendor utilitarista notadamente de equidade e integralidade.

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1226 Miranda AS

A per capitalização alocativa a partir de APS não decorreram em focalizações (foco


cadastros individualizados (e não adscri- em denominadores populacionais de riscos,
tos territorialmente) de clientelas da APS vulnerabilidades ou miserabilidades), contri-
é comum em muitos países do Hemisfério buindo para organização e consolidação de
Norte e Ocidental com sistemas de saúde universalidade e integralidade do cuidado;
universais, em sua maior parte, contando embora, depois do advento do neoliberalis-
com serviços clínicos que orbitam na depen- mo, ocorra uma tendência à segmentação de
dência de trabalho médico semiautônomo, determinadas estratégias institucionais.
especializado e contratado (ou seja, não de O caso brasileiro é historicamente distin-
servidores públicos de carreira). Para quem to, assim como o seu contexto institucional,
conhece minimamente os condicionantes ori- social e econômico. O surgimento tardio (em
ginais da matriz estratégica de tal modelagem comparação aos exemplos anteriores) das
(recomenda-se revisarem os fatos originários tensões constitucionais do SUS no início da
e as mediações políticas imprescindíveis para década de 1990 pode ser mais adequadamente
a garantia de viabilidade inicial do NHS inglês, caracterizado como um vetor setorial para pre-
sob a direção do Ministro Aneurin Bevan), não tensões políticas de ‘bem-estar social’. Ainda
é difícil compreender e constatar que se tratou assim, os princípios constituintes do SUS e suas
de iniciativa correta, contextualmente e con- respectivas diretrizes estratégicas devem ser
junturalmente. Houve ênfase na incorporação considerados de modo ambivalente, sinérgico
de profissionais médicos fora da carreira de e interdependente.
Estado, como também na liberdade de escolha Os valores éticos sociais estabelecidos para
e autonomia das clientelas (territorializadas o SUS ensejam o reconhecimento de que há
em temos de responsabilidades sanitárias, mas multideterminantes complexos e dialéticos
não adscritas em termos de vinculações com para os processos de (re)produção de saúde
profissionais e serviços clínicos). Ao longo e suas antíteses, que incidem desigualmente
de décadas, tal escolha foi sendo aprimorada, e iniquamente sobre indivíduos (singulari-
experimentada e adaptada em países de con- dades), grupos (particularidades coletivas)
dições similares (países escandinavos, Canadá, e populações. Em suas diretrizes estratégi-
Austrália etc.), produzindo não somente resul- cas, a seguridade social e o SUS preconizam a
tados efetivos (em integralidade complemen- organização de sistemas institucionalizados
tar com outros subsistemas), mas também uma de Atenção Integral à Saúde (figura 1), cujo
‘cultura institucional’. Em muitos dos países sentido precípuo, enquanto configuração sis-
referidos, ocorreram inovações e mudanças têmica (polity) e proatividade institucional
em políticas públicas (não somente de saúde) para a produção de bens e serviços públicos
e em experiências típicas de Welfare State, que (policy), requer coerência e compatibilidade
se consolidaram incrementalmente, mesmo contextual. No contexto normativo do SUS,
que parcialmente. Dados os contextos sociais as estratégias institucionais de focalização em
e econômicos desses países, a per capitaliza- singularidades (clínicas ou epidemiológicas)
ção alocativa e a adscrição de clientelas na são incoerentes e incompatíveis

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A focaliaz ãoç utiliárt ia da Atenção Primária à Saúde em viés et cnocrático e disruptiov 1227

Figura 1. Configuração sobre multideterminantes complexos, condições de desigualdades ou iniquidades e ocorrências de


eventos pertinentes aos processos de (re)produção social de saúde, em relação a componentes sistêmicos e institucionais
de Atenção Integral à Saúde, de acordo com os princípios e diretrizes estratégicas do SUS

POLÍTICAS PÚBLICAS
DE SEGURIDADE SOCIAL

ATENÇÃO
INTEGRAL
Multideterminantes Políticas, estratégias e
À SAÚDE
Políticas, estratégias e Desigualdades
complexos Serviços intersetoriais de Serviços intersetoriais de Iniquidades
Biológicos, sociais, PROMOÇÃO INDIVÍDUOS PROTEÇÃO Riscos, vulnerabilidades
psicológicos, espirituais E PREVENÇÃO GRUPOS VIGILÂNCIA À SAÚDE e desgastes
POPULAÇÕES REDUÇÃO DE DANOS

Políticas, estratégias e
Serviços intersetoriais de

RECUPERAÇÃO
ASSISTÊNCIA,
REABILITAÇÃO,
REINTEGRAÇÃO Arranjos, tipos e níveis de
Âmbitos territoriais de distintas
organizações sistêmicas,
abrangências: locais, (micro)
(macro) regionais etc. Eventos de adensamentos tecnológicos
Demandas, danos, agravos, e de reticularizações
sequelas, deficiências,
incapacidades

Fonte: Elaboração própria.

No decorrer do processo de implantação do plurais, heterogêneos, iníquos e desiguais. Não


SUS, sucessivas e adversas conjunturas políti- se trata da adscrição de responsabilidades clí-
cas constrangeram os termos de sua viabilidade nicas de serviços, mas de responsabilidades
recursiva, dificultaram a implantação de estra- com a Atenção Integral à Saúde, que reque-
tégias inovadoras compatíveis e deformaram rem arranjos sinérgicos, interdisciplinares e
a sua pretensa arquitetura integral e reticular intersetoriais. Lamentavelmente, inovações
em arranjos dissociativos (para a seguridade congêneres não foram estendidas para a as-
social e para o próprio setor). Mesmo assim, sistência especializada.
algumas inovações estratégicas ocorreram e Além de prover as transferências finan-
consubstanciaram modos de integração sis- ceiras para a ABS, o MS tendeu a direcionar,
têmica, como exemplos: a Estratégia Saúde da sob governança federativa, as suas principais
Família, algumas das estratégias institucionais estratégias administrativas e programáti-
de saúde mental, de urgência e emergência, de cas (Política Nacional de Atenção Básica
vigilância em saúde etc. – PNAB). Ao longo dos anos, o montante
No caso da Atenção Básica à Saúde (ABS) e a proporção de transferências federais
(versão SUS de APS), houve inovação signifi- para o custeio da ABS foram progressiva-
cativa na implantação de uma modalidade de mente incrementados, sendo que, inclusi-
per capitalização para transferências federais ve, estabeleceram-se fatores de ponderação
(Piso Assistencial Básico – PAB, fixo e variável) para as modalidades de PAB (portes popu-
vinculada à adscrição local de populações sob lacionais, localização na Amazônia legal,
a responsabilidade de equipes multiprofissio- tipos de equipes etc.). Todavia, persistiu um
nais. Não se trata de adscrição de clientelas e financiamento insuficiente como suporte
demandas singulares ou particulares, mas da recursivo para, além da expansão e aumento
adscrição de âmbitos territoriais complexos, da cobertura populacional, potencializar

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1228 Miranda AS

mudanças mais substanciais do ‘modelo de contratualmente. Trata-se, portanto, de uma


atenção’, ainda sob o esquadro da assistência pretensão e expectativa de eficiência alocativa
especializada. regulada por eficácia contratual, geralmente
Enquanto as Secretarias Estaduais de Saúde individualizada (profissionais) e raramente
concentraram as suas estratégias institucio- particularizada (equipes). Culturas e contextos
nais na coordenação sistêmica e no controle institucionais distintos dos processos de gestão
normativo da ABS, coube aos municípios a do trabalho profissional na ABS brasileira.
maior responsabilidade na sua organização Consideradas sumariamente algumas
efetiva, financiamento, gestão local e presta- das premissas contextuais da ABS e do SUS,
ção de serviços. Em grande medida, os gastos convém analisar os termos de coerência e com-
orçamentários municipais em saúde foram patibilidade para com a inovação estratégica
incrementados para além do piso estabelecido veiculada pelo Programa Previne Brasil37,
legalmente (15%), em função da assunção de que determina a importação e a adaptação
responsabilidades para o funcionamento e de modalidade de per capitalização alocativa
efetividade da ABS. individualizada e de adscrição de clientelas
Em sua diversidade, o contexto institucional estratificadas por focalização.
de gestões municipais tornou-se preponderan- A nova estratégia institucional não só é inco-
te para a viabilidade administrativa e funcional erente e incompatível com a ABS e o SUS como
da ABS. A maior parte de seus profissionais de também induz a desconstituição valorativa
saúde estão vinculados diretamente ou indire- de seu ethos social, desvirtuando o sentido
tamente como servidores públicos de governos polivalente e interdependente de universali-
municipais, sob diversos regimes contratuais. dade com integralidade e equidade em âmbitos
Mesmo iniciativas impactantes, como o pro- locais38. Deforma as diretrizes estratégicas
vimento incrementado pelo Programa Mais para a Atenção Integral à Saúde, deslocando
Médicos (a partir de 2014), cuja vinculação o seu âmbito de territórios sociais complexos
contratual é de âmbito federal, não alteraram para serviços; de necessidades populacionais
significativamente tal situação. Convém des- complexas para demandas individualizadas,
tacar que, no caso da força e dos processos de cadastradas e estratificadas por focalização de
trabalho na ABS, de seus modos de vinculação vulnerabilidade; subordina o sentido de gestão
contratual e perspectivas de campo profis- pública ao entorno tecnocrático de governança
sional, há significativa distinção para com os clínica; desloca a agregação de valores com-
exemplos supracitados e localizados em países pensatórios para responsabilidades assumidas
do Hemisfério Norte e Ocidental. e para os processos e resultados de trabalho
A composição do pagamento de trabalho profissional, de um necessário contrato co-
profissional com a agregação de valores de- letivo abrangente (planos de cargos, salários
pendentes de resultados (outputs, outcomes) e carreiras de trabalhadores do SUS) para a
objetiváveis, dimensionáveis e monitoráveis particularidade de comportamentos regrados
também é característica comum dos sistemas por ‘desempenho’ de equipes.
de saúde universais nos países mencionados.
Os critérios, métodos e termos de composição
e complementaridade para o pagamento de Colaborador
profissionais de saúde, assim como os indi-
cadores correlatos de referência compen- Miranda AS (0000-0001-8947-9676)* é res-
satória, geralmente estão reestabelecidos ponsável pela elaboração do manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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