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I. Introdução
VII. Referências
#M2U3 I. Introdução
O
s professores e autores de livros didáticos de Ciência, cada vez mais, reconhecem
a importância de se ensinar, em aulas de Biologia, aspectos de Filosofia e História
das ciências, especialmente da Biologia. O argumento central é o de que não basta
ensinar os conteúdos das ciências, mas também é importante que os alunos conheçam um
pouco sobre a forma como elas operam, como o conhecimento científico é produzido.
Vamos examinar, nesta unidade, alguns argumentos que defendem essa necessida-
de, refletindo sobre a importância de se utilizar a História das ciências (principalmente, a
História da Biologia) como instrumento pedagógico e como ferramenta para o ensino das
ciências. Também vamos discutir as formas como isso costuma ser feito e as alternativas
de ação do professor. Para que essa conversa fique mais viva, usaremos, como exemplo,
um assunto que todos os professores de Biologia ensinam em suas aulas: as diferenças
entre as teorias de mudança biológica de Darwin e de Lamarck.
Uma das formas de facilitar o entendimento dessas questões por parte da sociedade
é um ensino de qualidade das ciências nas escolas. O ensino de ciências é parte do cur-
rículo escolar por muitas e diferentes razões – razões de natureza histórica, pragmática,
ideológica e tantas outras. Vamos examinar alguns argumentos a favor de sua inclusão no
currículo que parecem ser, particularmente, interessantes.
Fumagalli (1998) aponta três justificativas para a inclusão do ensino de ciências na
Educação Básica:
Atividade complementar 1
Pense em algumas questões atuais discutidas pela sociedade para as quais se faz
necessário algum conhecimento biológico. Você pensa que as pessoas estão sufi-
cientemente informadas sobre elas?
No Brasil, temos três sociedades voltadas para esse tema, e diversos cursos de pós-gradua-
ção voltados para a pesquisa em ensino de ciências.
Ao longo dessa unidade, você encontrará links para publicações sobre o assunto, no
Brasil e no exterior, pois diversos pesquisadores, no mundo todo, dedicam-se ao assunto.
O tema é relevante, porque o aumento da carga horária de disciplinas de natureza cientí-
fica não tem sido acompanhado de uma melhora na qualidade do aprendizado por parte
dos alunos, e vemos que, pelo menos nesse caso, mais horas de aula não têm significado,
necessariamente, melhor qualidade de ensino.
c) possuir alguma teoria ou visão educacional que informe e justifique suas ativi-
dades na sala de aula.
Atividade complementar 2
Examine alguns livros de Biologia do Ensino Médio. Eles contêm elementos de His-
tória da Biologia? Sobre quais temas? Você identifica, na abordagem desses temas,
uma leitura do tipo presentista?
Mas o que vemos é que são valorizados aqueles conceitos ou fatos que, de alguma
maneira, apóiam as perspectivas vigentes, ou apontam para elas, resultando numa His-
tória da Ciência que mostra o passado científico como um desenvolvimento contínuo e
cumulativo que aponta, necessariamente, para o conhecimento atual. Como resultado,
a História da Biologia, presente nos livros didáticos, costuma mostrar uma concepção
problemática da ciência. Ela privilegia histórias anedóticas, de menor importância, apre-
senta a História da Ciência como um processo linear, omite os conflitos importantes,
salientando as concordâncias e apresentando as dissidências como equivocadas e não
apresenta a História da Biologia inserida num contexto histórico mais amplo (CARNEI-
RO; GASTAL, 2005).
Atividade complementar 3
Procure referências a cientistas em livros de Ciências Biológicas. Como é apresenta-
do o trabalho científico? A ciência é descrita como conhecimento socialmente cons-
truído? O cientista é apresentado como um ser humano como os demais?
Uma História da Ciência (ou da Biologia) como essa interage com o conteúdo de
outras disciplinas escolares, como, evidentemente, a História, mas também a Lín-
gua Portuguesa, a Literatura e a Geografia, para citar somente algumas.
cientistas são apresentados como heróis da Biologia. São muitos nossos heróis e, é claro
que para quase todos existem os vilões correspondentes. Pensamos em Darwin, Mendel,
Pasteur, Leuwenhock, Ian Wilmut e Keith Campbell, Francis Crick e James Watson, tantos
nomes que são mencionados como os grandes responsáveis pelo avanço da ciência – heróis
solitários, que teriam trabalhado contra tudo e contra todos, para nos ensinar “a verdade”.
Mas será mesmo assim que a ciência opera, e será mesmo assim que os cientistas produzem
novos conhecimentos?
Atividade complementar 4
1. Faça uma pausa na leitura e procure relembrar o que aprendeu sobre Lamarck e
Darwin. Escreva suas principais lembranças, e tente sintetizar o que aprendeu sobre
cada um deles e sobre suas idéias no que diz respeito à modificação das espécies.
2. Pesquise quem foram Mendel, Pasteur e Leuwenhock, Ian Wilmut e Keith Cam-
pbell, Francis Crick e James Watson. Faça uma pesquisa sobre esses cientistas, pro-
curando saber em qual debate cientifico cada um estava envolvido, o nome e o
trabalho de alguns de seus colegas contemporâneos.
Vamos nos ocupar aqui do mais freqüente e do mais citado de todos os casos: o do
mecanismo de mudança das espécies, tal como foi proposto por Lamarck e por Darwin.
Com raras exceções, os livros didáticos contam essa história como a luta do heróico
Darwinismo contra o ingênuo Lamarckismo, ou ainda, de Darwin, o observador acurado
da natureza e iluminado pelo gênio, contra Lamarck, o especulador que não observava a
natureza, aquele que teve a disparatada idéia de que os caracteres adquiridos ao longo da
vida de um indivíduo poderiam ser transmitidos a sua descendência. “Imagine! Como ele
pode pensar uma coisa dessas?”
Saiba mais
Vamos ver que o exame mais atento desse conto de mocinho e bandido torna a Histó-
ria da Ciência muito mais interessante do que uma discussão sobre o tamanho dos pescoços
das girafas, e pode até ser um bom instrumento de ensino não só dos conteúdos da Biologia,
mas também da forma como os cientistas trabalham e como a ciência é construída.
Vamos tentar, a partir do exame superficial desse caso, apontar algumas incorre-
ções recorrentes, frutos tanto de um tipo de abordagem histórica que privilegia o presen-
te, como do recurso a fontes históricas de má qualidade. Também tentaremos examinar
essa mesma história, tão conhecida de todos nós, numa perspectiva que inclua o contexto
mais amplo dos debates científicos e sociais em que ela estava inserida – um debate muito
mais interessante e complexo que aquele apresentado aos nossos alunos.
Atividade complementar 5
A idéia de que a observação empírica é forma privilegiada de acesso ao conhe-
cimento sobre a natureza não foi sempre predominante, como é hoje na ciência.
Para os racionalistas, como Platão, a via do conhecimento é a razão, e não passa
pela experiência. Como você vê o compromisso entre racionalismo e empirismo
na ciência contemporânea? Você pensa que o ensino de ciências salienta esses dois
aspectos do fazer científico?
Saiba mais
Já os uniformistas, liderados por Hutton (que teve forte influência sobre Lyell e
A questão da idade Darwin) afirmavam que a Terra sofreu mudanças lentas e graduais (uniformes) num lon-
da Terra foi colocada
pela tradição judaico-
go período de tempo, e que as únicas causas para explicar o desenvolvimento da Terra
cristã, que postulava seriam as mesmas que observamos atuando hoje em dia.
um Criador. Para a Segundo os uniformistas, os eventos no passado são parecidos com os observados
maioria dos filósofos
da antiga Grécia, a hoje. E é por isso que eles propunham que a observação seria o método adequado para a
Terra e o universo Geologia. Damos o nome de empirismo à linha filosófica que propõe a observação como
não foram criados
– eles eram imutáveis
via privilegiada de acesso ao conhecimento. O uniformismo foi um elemento fundamen-
e sempre existiram (e tal no pensamento darwinista. Darwin era um “empirista de carteirinha”.
existirão) como são Outra questão que era muito discutida naquela época dizia respeito à transmuta-
hoje. Essa era, para
eles, uma questão ção das espécies. As espécies animais e vegetais existem tal como as conhecemos desde o
sem sentido! começo do mundo, ou se transformam? E se não são as mesmas, modificaram-se gradual-
mente, ou foram criadas em momentos distintos por uma divindade? Nem Lamarck nem
Curiosidade
Darwin inventaram essa questão, ela já era discutida há muito tempo. O avô de Darwin,
Conheça alguns
Erasmus, por exemplo, estava envolvido com a questão da transmutação das espécies e, versos do avô de
em 1802, escreveu os versos que se encontram no quadro ao lado. Charles Darwin sobre
a transmutação das
O debate entre fixistas, como Cuvier e transformacionistas era acalorado. Lamarck e Da-
espécies:
rwin trabalharam completamente inseridos no contexto deste debate, como veremos adiante. “A vida orgânica
proveio das ondas
Lamarck litorâneas.
Nasceu e nutriu-se nas
Jean-Baptiste-Pierre-Antoine de Monet de La- cavernas opalinas do
oceano.
marck (1744-1829) era um autodidata, tendo iniciado Num primeiro minuto
muito tardiamente sua carreira na Zoologia. Educa- suas formas foram
invisíveis qual vidro
do para ser um padre jesuíta, aos 17 anos abandonou
esférico.
a educação religiosa e juntou-se ao exército francês, Movendo-se na lama,
indo lutar na Guerra dos Sete Anos. Ao sair do exér- ou perfurando a massa
d’água.
cito, foi para Paris. Desempregado e com grande Isto, em sucessivas
interesse em História Natural, procurou Buffon, du- gerações de
florescimento, novos
rante a revolução, para aprender História Natural. poderes assumiu,
Tornou-se discípulo de Buffon, com quem viajou por adquirindo longos
membros
vários países europeus realizando coletas botânicas. Então, quando
Começou a trabalhar com invertebrados somente aos incontáveis grupos de
vegetação floriram,
Lamarck (1744 - 1829) cinqüenta anos e foi um dos fundadores do Museu o fôlego agitou as
de História Natural de Paris, criado pelos revolucio- barbatanas, os pés e
as asas”.
nários no local onde se localizava o Jardim do Rei. (DARWIN, E. The
Além de seus estudos zoológicos, escreveu muitos trabalhos sobre Meteorologia e Temple of Nature.
Disponível em
Geologia, e publicou estudos em Botânica. Foi um dos primeiros a propor e utilizar o ter- <http://www.
mo “Biologia”. Uma de suas contribuições mais importantes para a Biologia foi a reorga- english.upenn.edu/
Projects/knarf/
nização da classificação dos invertebrados, trabalho que realizou em íntima colaboração Darwin/templetp.
com Cuvier, e que começou a elaborar após ter assumido o cargo de professor de “insetos, html> Acesso em: 30
nov. 2006.)
vermes e animais microscópicos” no Museu de História Natural de Paris.
Em sua classificação dos seres vivos, Lineu havia dividido todos os animais em
vertebrados, insetos e vermes, abrigando todos os animais que hoje reconhecemos como
“invertebrados” em dois filos. O trabalho de desmembramento desses filos foi gradual:
em 1793, Lamarck reconhecia cinco filos (moluscos, insetos, vermes, equinodermos e póli-
pos) e em sua última classificação, ele reconheceu quatorze filos no total, como resultado,
também, do desmembramento do filo vertebrados em quatro novos grupos.
Saiba mais
Aqui já temos um mito que cai: embora os livros costumem apresentar Darwin como
um cientista meticuloso, referindo-se algumas vezes a Lamarck como um especulador,
incapaz de observar a natureza, vemos que ele se debruçou longamente sobre ela – viajou,
observou e organizou a classificação dos invertebrados.
Saiba mais
Atividade complementar 6
Pesquise o que era o pnema e que importância teve esse conceito nas medicinas
grega, medieval e renascentista? Que fato científico deitou por terra esse conceito
de tão longa vida? (Dica: trata-se da identificação de um elemento químico funda-
mental para a vida). Será que ainda hoje persistem idéias a respeito do pneuma no
senso comum?
Em Investigações sobre a organização dos corpos viventes (1802), Lamarck buscou falar
a respeito do movimento, propriedade que ele pensa ser fundamental à vida. Quando
Lamarck (como fez Aristóteles, muito tempo antes) fala de movimento, ele não está se
referindo ao sentido que costumamos dar à palavra – um sentido de deslocamento. Mo-
vimento, para Aristóteles e Lamarck, é mudança. Pelo movimento, o organismo buscaria
desenvolver e especializar os órgãos.
Saiba mais
3. uso e desuso
O desenvolvimento dos órgãos e sua força de ação estão em relação
direta com o emprego desses órgãos. (LAMARCK, 1815, p. 182).
Mas, aqui entre nós, restringir o Lamarckismo à “lei do uso e do desuso” e à “heran-
ça dos caracteres adquiridos” é uma simplificação que reduz a teoria de Lamarck
sobre a vida e sua transmutação a uma caricatura de péssima qualidade do que ele
pensava. Lamarck, e suas diferenças em relação a Darwin, tornam-se muito mais
interessantes se conhecemos melhor suas idéias.
Darwin
Charles Darwin (1809-1882) é um personagem muito conhecido dos biólogos e dos
cientistas em geral. Filho de um médico inglês, neto de Erasmus Darwin, um defensor da
transmutação das espécies, todas as biografias dos livros didáticos o descrevem como um
naturalista apaixonado, observador acurado da natureza o que, sem dúvida, ele foi. Ele
mesmo assim se descrevia, em sua autobiografia:
Portanto, meu êxito como homem de ciência, qualquer que seja a altura
que tenha alcançado, foi determinado, na medida em que posso julgar,
por complexas e diversas qualidades e condições mentais. Dentre elas,
as mais importantes foram: a paixão pela ciência – paciência ilimitada
Entre 1831 e 1836 fez uma viagem a bordo do navio M.S. Beagle, uma experiência
fundamental para a estruturação de seu pensamento. A passagem pelas ilhas Galápagos, Saiba mais
em 1835, é citada (inclusive pelo próprio Darwin) como uma experiência importante. En-
Há obras de Darwin
quanto viajava, lia avidamente, sobretudo o tratado de Lyell sobre Geologia - outro ponto publicadas no
fundamental de seu pensamento. Após haver retornado dessa viagem, publicou diversos Brasil. Conheça!
trabalhos, vários deles resultantes dos estudos feitos durante a viagem, ao mesmo tempo A origem das
espécies. Rio de
em que começava a escrever algumas notas sobre “Transmutação das Espécies”. Sofreu
Janeiro: Ediouro,
influências diversas, além de Lyell. As mais conhecidas são as idéias de Malthus sobre 2004.
limites ao crescimento das populações humanas. Em 1858, vinte anos após seu regresso, A origem do
Darwin receber o trabalho de Alfred R. Wallace sobre variação e evolução – idéias muito homem e a seleção
sexual. Rio de
semelhantes às suas, e os dois publicaram seus artigos num mesmo número da Linnean
Janeiro: Itatiaia,
Society, de Londres. O de Darwin se chamava: Sobre a tendência das espécies de formar varie- 2004
dades, e sobre a perpetuação as variedades e das espécies por meio da seleção natural. A Origem das A expressão das
espécies, livro concebido por Darwin, como um resumo do projeto inicial de uma obra com emoções no homem
e nos animais. São
o título Natural Selection, que nunca foi completado, foi publicado um ano depois. Vários Paulo: Companhia
outros trabalhos, como A variação de animais e plantas domesticadas apresentam descrições das Letras, 2000.
detalhadas que constituem evidência cabal a favor da teoria apresentada na Origem. As O Beagle na
obras A descendência do homem e A expressão das emoções nos homens e nos animais aplicam ao América do Sul. Rio
de Janeiro: Paz e
homem a teoria da evolução. Terra, 2002.
Saiba mais
Uma das razões para o adiamento da publicação de suas idéias, por Darwin, foi o
livro de Robert Chambers, Vestígios da história natural da criação, publicado quinze anos
antes de A origem das espécies. Chambers, como Lamarck, considerava que havia uma ten-
dência de progresso no desenvolvimento gradual da natureza. Esse desenvolvimento es-
taria baseado numa lei natural, imposta por Deus. O desenvolvimento dos seres vivos era
visto como linear ou exibindo diversas cadeias lineares desenvolvendo-se em paralelo, e
não como uma sucessão de milagres. Entretanto, Chambers tinha contra ele os registros
fósseis disponíveis à época, que eram bastante incompletos e ao invés de apoiarem sua
teoria, revelavam várias interrupções, sem apresentarem as espécies ou seres intermedi-
ários necessários para fundamentá-la. Esse fato foi explorado pelos criacionistas com o
objetivo de combater suas idéias.
O mecanismo proposto por Darwin para explicar a modificação das espécies difere
radicalmente daquele proposto por Lamarck e por Chambers.
Além disso, constatou Darwin, nascem muito mais indivíduos do que o ambiente
é capaz de sustentar, resultando em grande mortalidade. Como conseqüência, há uma
“luta pela sobrevivência”, da qual segue-se uma “persistência do mais apto”, ou, como
estamos mais acostumados a falar, uma “seleção natural”. Esses organismos mais aptos,
por sua vez, ao se reproduzirem transmitirão as características que os favoreceram.
Vejamos o que ele nos diz sobre o processo, em duas passagens clássicas de A ori-
gem das espécies:
Devido a esta luta, as variações, por mais fracas que sejam e seja qual for
a causa de onde provenham, tendem a preservar os indivíduos de uma
espécie e transmitem-se comumente à descendência logo que sejam úteis
a esses indivíduos nas suas relações por demais complexas com os ou-
tros seres organizados e com as condições físicas da vida. Os descenden-
tes terão, por si mesmo, em virtude disso, maior probabilidade de sobre-
vida; porque, dos indivíduos de uma espécie nascidos periodicamente,
um pequeno número poderá sobreviver. (DARWIN, 1979, p. 62)
Assim como Lamarck, Darwin reconheceu a importância do tempo para que seu
esquema possa explicar a origem de tal diversidade de espécies que hoje conhecemos:
Mas a causa primordial da nossa repugnância natural em admitir que
uma espécie deu origem a outra espécie distinta é o fato de estarmos sem-
pre pouco dispostos a admitir uma grande alteração sem vermos os graus
intermediários. [...] O espírito não pode conceber toda a significação deste
termo: um milhão de anos, nem saberia, com efeito, adicionar nem per-
ceber os efeitos completos de muitas variações, pequenas, acumuladas
durante um número quase infinito de gerações. (DARWIN, 1979, p. 452)
Darwin, por seu lado, não descarta a hipótese de que ocorresse transmissão de
caracteres adquiridos ou os efeitos hereditários do uso e do desuso. Esse mecanismo de
modificação também era admitido por Darwin, embora tenha importância secundária em
relação à descendência com modificações por efeito da seleção natural. Vejamos o que ele
mesmo nos diz, numa das inúmeras passagens de A origem das espécies em que o assunto
é mencionado:
Se é muito importante para o novo cuco (...) receber, depois do nasci-
mento, a mais abundante alimentação possível, não vejo dificuldades em
admitir que, durante gerações sucessivas, tenha gradualmente adquirido
o desejo cego, a força e a conformação adequada para expulsar os com-
panheiros (...). A seguir, este hábito desenvolveu-se e transmitiu-se por
hereditariedade a uma idade mais tenra. (DARWIN, 1979, p. 238)
fato de que as espécies se transformam e buscavam causas naturais para esse fenômeno.
Ambos consideravam a herança de caracteres adquiridos como um dos mecanismos res-
ponsáveis por essa transformação. A grande (e fundamental) divergência de Darwin
em relação a Lamarck é o não reconhecimento de que possa haver uma direção, uma
Saiba mais
tendência na transformação das espécies:
O debate dos
Lamarck, que acreditava em uma tendência inata e fatal de to- epigenistas versus
preformistas
dos os seres organizados para a perfeição, pressentiu também
atravessa a História
essa dificuldade (a de explicar a existência de formas simples), da ciência. Para
que o levou a presumir que as formas simples e novas são cons- os primeiros
(como Hipócrates,
tantemente produzidas pela geração espontânea. [...] Pela nossa Aristóteles e Buffon,
teoria [...] a seleção natural, ou a sobrevivência do mais apto, entre outros), o
embrião forma-
não leva, necessariamente, a um desenvolvimento progressivo,
se gradualmente
apenas se apodera das variações que se apresentam e que são por elaboração de
úteis a cada indivíduo nas relações complicadas da sua existên- novas partes, que
não se encontravam
cia. (DARWIN, 1979, p. 120) no germe. Para os
preformistas (como
Aqui está a diferença fundamental entre o Darwinismo e o Lamarckismo, diferença Mauperuis, De
que não costuma ser ensinada nas aulas de Biologia. Fundamental, porque fala de uma gran- Graff, Lineu, entre
outros) o novo ser
de novidade introduzida pelo pensamento darwinista: a idéia de que a natureza é resulta- existe em miniatura
do de um processo histórico, que tem um tanto de contingência e imprevisibilidade. e por inteiro no
germe – seja no
Se fosse possível rodar o filme da evolução novamente, a história poderia ser di-
espermatozóide
ferente do que foi. Para Lamarck (como para Chambers), ao contrário, haveria uma ten- (como acreditavam
dência nessa mudança, e as espécies mudariam numa única direção. Para Lamarck, fazia os animaculistas),
seja nos ovos
sentido falar em “progresso” na mudança dos organismos, idéia que Darwin recusava. (ovistas).
A seleção natural pressupõe a ocorrência de variação cega, não dirigida pelo meio
ambiente. O papel do meio ambiente é posterior – ele seleciona as variações mais vantajo-
sas. Mesmo considerando o mecanismo lamarckista como uma das explicações possíveis
para a “transmutação das espécies”, Darwin propôs outro, que rompeu de maneira radi-
cal com qualquer idéia de direção dessa mudança.
Daí a razão dele não ter utilizado o termo “evolução” em A origem das espécies. Se-
gundo Gould (1992), nem Darwin, nem Lamarck, nem Haeckel (os maiores evolucionistas
do século XIX na Inglaterra, França e Alemanha) usaram a palavra “evolução” nas edições
originais de seus trabalhos. Darwin utilizou a expressão “descendência com modifica-
ções”, Lamarck, “transformismo” e Haeckel, “Teoria das Transmutações”.
Saiba mais
Atividade complementar 7
Pesquise que significados os dicionários dão à palavra “evolução”? Consulte mais
de um dicionário, e compare os significados encontrados.
A idéia de uma natureza sujeita aos acidentes da história, onde as coisas poderiam
ser radicalmente distintas do que são hoje é uma das bases do pensamento de Darwin, e
um dos fundamentos da Biologia contemporânea. Esclarecer a ruptura representada por
essa concepção darwinista da natureza pode ajudar muito na compreensão dos princípios
conceituais de nossa disciplina. Em vez disso, os livros-texto insistem em enfatizar o uso e
o desuso e a herança de caracteres adquiridos. Além disso, repetem os velhos exemplos.
Um caso conhecido é o dos pescoços das girafas. Lamarck apresentou muitos ou-
tros supostos casos de herança de caracteres adquiridos, como uma explicação para o
fato das cobras serem ápodes e cilíndricas, em virtude de seu modo de vida rastejante,
que exige que elas passem por vãos estreitos. Por que não explorar também esses outros
exemplos? E os supostos casos de uso e desuso e de herança de caracteres adquiridos
citados por Darwin?
Surge, entretanto, uma dificuldade importante. Se os professores de Biologia ain-
da não dispõem das traduções dessas obras, como podemos aprender uma História da
Biologia que nos ajude a ensinar Biologia com melhor qualidade? Há boas notícias nesse
campo. Embora não haja muitas traduções, existe, entre os pesquisadores em ensino de
Biologia no Brasil, um número crescente de pessoas trabalhando com o uso da História da
Biologia no ensino. Muitos trabalhos já estão disponíveis em português, e vemos que cada
vez mais pessoas se interessam pelo assunto.
É claro que as aulas de Biologia não devem se transformar em aulas de História
da Biologia, perdendo seu conteúdo conceitual, mas a História da Biologia, inserida nas
aulas de Biologia, pode melhorar muito a qualidade do ensino dessa disciplina. Ela pode
ajudar no entendimento dos processos e fenômenos que levaram à construção de certos
conceitos e contribuir para a correta compreensão dos próprios conceitos.
www.
Visite o site de algumas revistas que trazem bons trabalhos sobre História da Biologia:
Revista Latinoamericana de Filosofia e História da Ciência:
http://www.scientiaestudia.org.br/revista/edicoes.asp (apresenta, além dos artigos,
algumas traduções de artigos clássicos)
Revista Ciência e Educação: http://www.fc.unesp.br/pos/revista/npublicados.htm
A Revista Ciência Hoje traz muitos artigos sobre o tema: http://cienciahoje.uol.com.br/
Veja também o artigo de Lílian A.P. Martins, A História das Ciências e o ensino da
Biologia, em: http://ghtc.ifi.unicamp.br/pdf/lacpm-12.pdf
Há um site português interessante sobre História da Ciência em geral:
http://scientia.artenumerica.org/
Além disso, ela introduz um componente emocionante nas aulas, colocando o alu-
no em contato com os debates envolvidos na construção dos conceitos, e com os equívocos
e contradições não somente dos “vilões” (os cientistas que tiveram suas hipóteses refuta-
das), mas também dos “heróis” (os cientistas cujas teorias continuamos a aceitar) de nossa
ciência. Mostrar aos alunos esses fatos pode tornar as aulas muito mais interessantes, e
contribuir para apresentar aos estudantes as dificuldades, contradições e becos escuros
desse empreendimento humano que é a ciência. Além disso, é preciso reconhecer o quan-
to de criatividade está envolvido na construção das idéias científicas – idéias que são, elas
mesmas, variações sujeitas à “seleção natural” feita pelos cientistas.
Os professores de Biologia podem ganhar muito se incluírem em seus estudos, uma
preocupação com este aspecto do conteúdo. A internet oferece um grande número de sites
que trazem as fontes primárias, alguns em português. (mas a maioria, como assinalamos,
está em outros idiomas). Algumas revistas de ensino já trazem artigos voltados para o
tema, estes em português.
À medida que for crescendo o número de professores que se interessem pelo as-
sunto, que exijam das editoras traduções das obras clássicas e que reflitam sobre o assun-
to, estaremos cada vez mais próximos de usar a História da Ciência de forma mais rica.
Uma História da Ciência que não se limite a um relato cronológico de fatos, mas
que também sirva como uma introdução aos debates e conflitos que ocorrem no interior
das disciplinas científicas – que revelam, mais o que qualquer coisa, a natureza essen-
cialmente humana (e, portanto, imperfeita, contraditória e, por isso mesmo, emocionan-
te) do empreendimento científico.
Sugestão de leitura
GUERRA, A.; BRAGA, M. ; REIS, J.C. Breve história da ciência moderna. Rio de Janei-
ro: Zahar, 2004.
HELLMAN, Hal. Grandes debates da ciência: dez das maiores contendas de todos os
tempos. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
TATON, R. História geral das ciências. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959.
CARNEIRO, M.H. ; GASTAL, M.L. História e filosofia das ciências no ensino de Biolo-
gia. Ciência e Educação, 11(1): 33-39, 2005.
GASTAL, M. L. Nem heróis, nem vilões: por uma história da biologia que dê sentido
ao ensino de Biologia. Cadernos de Educação, 15(26), Pelotas, 2006. (no prelo).
______. A division of worms. Natural history, 108(1): 19-27, New York, 1999.
______. Histoire naturelle des animaux sans vértebres. Primeiro Volume. Paris: Ver-
diére, 1815.
______. Recherches Sur l’organisation des corps vivans. Paris: Maillard, 1802.
MATTHEWS, M.R. Science teaching: the role of history and philosophy of science.
New York, Routledge, 1994.