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bullying-na-escola

Publicado em GESTÃO ESCOLAR 06 de Abril | 2018

Blog Direção

Como combater o bullying


na escola
A cultura de paz está no ideal pedagógico dos educadores e das
escolas, mas deve ser seguida de ações com conteúdo para evitar
essa forma de opressão
Cláudio Neto

Bullying na escola: difundir a cultura de paz ajuda a combater o problema


Foto: Getty Images

O bullying já é considerado um problema de saúde pública no Brasil. Uma pesquisa do


Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) aponta o Brasil como quarto país com
maior prática de bullying no mundo. Dados mostram que 43% dos estudantes de 11 a
12 anos disseram ter sido vítimas de violência física ou psicológica na escola pelo
menos uma vez em outubro do ano passado.

Algumas vezes, o bullying é erroneamente encarado como uma simples brincadeira,


mesmo no meio estudantil, principal ponto de encontro de crianças e adolescentes.

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No ambiente escolar, o bullying pode ser definido como uma forma de agressão
praticada por um ou mais estudantes contra outro(s), de maneira intencional e
repetidamente, que ocorre sem motivação evidente, causando dor e angústia – sendo
caracterizada também pela relação desigual de poder.
Com os recursos proporcionados pelas novas tecnologias há ainda outro
desdobramento dessa forma de violência: o ciberbullying, que é a prática do bullying
no ambiente virtual. Isso evidencia como essas manifestações de violência se
modificam e se atualizam de acordo com o contexto histórico-social e tecnológico. Para
alguns pesquisadores dessa área, essa forma de manifestação de violência contra a
dignidade do outro pode ser ainda mais devastadora do que aquela própria da
convivência ou do relacionamento direto entre agressor e vítima, porque o seu alcance
é ainda maior devido à capacidade de propagação nas redes virtuais.

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É fácil concluir, portanto, porque o bullying é considerado problema de saúde pública.


Ele afeta o relacionamento social, o desempenho escolar e a saúde de crianças e
adolescentes. As dificuldades de relacionamento entre pares na escola é uma realidade
comum. Muitas crianças e jovens não encontram condições para estabelecer um
vínculo significativo com os colegas. Geralmente, essas dificuldades estão relacionadas
a como as crianças e jovens se sentem em relação a traços específicos da identidade
(ser gordo, magro, alto, baixo, negro, usar óculos, o tipo de cabelo, o tipo de roupa que
usa, problema físico etc.). Os agressores passam a explorar isso para humilhar o outro.

Uma coisa importante para os educadores é identificar o bullying. Mesmo sabendo que
os jogos de ofensas entre os jovens são corriqueiros não se pode ignorar as
manifestações de violência, seja na sala de aula ou fora dela. A humilhação e os
ataques contra a dignidade humana não podem ser confundidos com brincadeiras, e o
que caracteriza o bullying é a opressão. Não negligenciar as situações de agressão é
fundamental para a superação do problema.

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escola

A cultura de paz está no ideal pedagógico dos educadores e das escolas, mas essa
harmonia será uma realidade se houver a atuação da organização escolar com vistas a
atingir esse objetivo. Logo, nunca é demais lembrar que toda aspiração pedagógica
deve ser seguida de um conteúdo programático que conduza a essa realidade. Nesse
sentido, eu descreverei um exemplo concreto de reversão da ordem, em que uma
escola sai da situação de violência e de indisciplina e passa a ser referência de inclusão
dos seus alunos.
Sala de aula na EMEF Infante Dom Henrique, onde 20% dos alunos são
estrangeiros Foto: Mariana Pekin

Quando eu e a minha equipe assumimos a gestão da escola Infante Dom Henrique, em


São Paulo, logo na primeira reunião com os professores, nós fizemos a seguinte
dinâmica: entregamos seis papeis para os professores e funcionários, sendo três da cor
azul e três da cor verde. Em seguida, as pessoas deveriam escrever em cada um dos
papeis azuis os problemas que identificavam na escola e em cada um dos papeis
verdes as propostas para se resolver esses problemas, de modo que cada uma das
pessoas tinha que apontar pelo menos três problemas e as três sugestões de
resolução desses problemas.

Feito isso, nós montamos um painel e criamos categorias a partir do que era
identificado nos papeis. Como resultado, identificamos três grandes problemas na
escola: a) a indisciplina; b) a violência (incluindo o bullying) e c) a falta de comunicação.
Constatamos várias formas de violência, a desagregação e o sentimento de impotência
dos educadores para lidar com esses problemas na escola.

A partir disso, reagrupamos as propostas de solução desses problemas que versaram


sobre incluir esses temas na pauta de formação da escola; trabalhar com projetos
voltados para a formação de valores; formas de ensino e de aprendizagem mais
colaborativas, para estimular a solidariedade entre os alunos e professores; criar
formas efetivas de comunicação como murais para professores e alunos e momentos
de conversas regulares para discutir problemas e a organização da escola, que demos
o nome de reuniões de articulação.

Criamos, então, o Projeto Político-Pedagógico (PPP) intitulado “Valores que não têm
preço”, sendo que cada valor (tema) passou a ser trabalhado bimestralmente. O
primeiro valor foi o respeito, em seguida a amizade, a família e a solidariedade. Para
iniciar o trabalho com o tema respeito foram distribuímos folhas para todas pessoas e
de todos os segmentos da escola (alunos, professores, funcionários, coordenadores,
gestores) com a seguinte frase a ser completada: “Me sinto desrespeitado quando”... As
respostas resultaram em um painel imenso que ocupou duas paredes de um dos
corredores da escola. A participação foi efetiva, todos aderiram à proposta, e ficou
evidente que muitas pessoas na escola estavam incomodadas e queriam dar um basta
naquela situação.
Esses temas eram transversais e projetos interdisciplinares foram criados, inclusive no
campo das artes visuais com quadros pintados pelos alunos, que foram emoldurados,
transformados em obras de arte e distribuídos pela escola, além de produções
literárias, algumas das quais publicadas no livro “Talentos Literários”, organizado por
uma das nossas escolas parceiras, cabendo a nós um dos capítulos com dez textos e
uma ilustração para esse capítulo. Desde então, um desses textos passou a ser
também a epígrafe do nosso PPP.

O diretor Cláudio (à direita) com o coordenador Carlos, e os alunos sírios


Mohamed e Mayas acompanhados da mãe Sharazad Foto: Mariana Pekin

Em relação à comunicação e à participação. nós reorganizamos o grêmio estudantil e


criamos o conselho de representantes de classe, sendo que cada uma das 20 classes,
distribuídas em dois períodos, tinham direito a dois representantes. Esse conselho se
reúne quinzenalmente com o grêmio para discutir a situação da escola. Criamos
também os conselhos bimestrais participativos com a presença dos alunos de cada
sala, os seus professores, membros da coordenação e direção e dos pais ou
responsáveis.

Dois anos depois, a situação foi alterada completamente. Antes, prevalecia a violência,
a indisciplina e o desrespeito, até mesmo a violência física (os alunos saíam em vias de
fato). Carteiras eram atiradas em professor. Depois, passou a imperar a disciplina, o
respeito e a solidariedade entre todos, inclusive em relação aos alunos estrangeiros.
Esses eram os que mais sofriam o preconceito e a discriminação na escola. Nesse caso,
a formação em serviço foi importante para compreendermos que o bullying existia na
escola, mas esse conceito não podia ser aplicado em casos de alunos estrangeiros, pois
o tipo de violência que eles sofriam era a xenofobia. Ou seja, além do bullying, que não
era um problema simples de resolver, nós tínhamos também a xenofobia, que é o
temor, a antipatia e/ou preconceito contra o estrangeiro.

Resumindo, o nosso ideal de escola passou a ser algo possível de se conquistar a partir
de um conteúdo programático que consistiu na identificação dos problemas, na
discussão das formas de resolução e nas estratégias para alcançar os efeitos desejados.
Os resultados obtidos de fevereiro de 2011 até dezembro de 2017 foram
impressionantes. Até dezembro de 2014, nós superamos a violência física, o bullying, a
xenofobia e a desorganização da escola. Em 2015, a escola foi a 2ª colocada no Prêmio
Educação em Direitos Humanos, promovido pela Secretaria de Direitos Humanos da
cidade de São Paulo. Em janeiro de 2017, a instituição foi certificada pela UNESCO e
passou a ser uma de suas escolas associadas. Nesse mesmo ano conquistamos quatro
prêmios, três dos quais em projetos de inclusão e integração entre os alunos,
principalmente em relação aos alunos estrangeiros, que correspondem a 20% do total
de estudantes da escola.

É importante destacar que entre as crianças e jovens a tiração de sarro está entre as
formas de socialização mais frequentes. As brincadeiras fazem parte de um conjunto
de práticas relacionais entre esses sujeitos. É por meio delas que eles fazem amizades
e, às vezes, ganham até prestígio entre os colegas por essa habilidade de se divertir, de
divertir os outros e de animar as rodas de conversa. No entanto, em muitos casos, a
linha que separa a brincadeira do bullying é tênue.

O bullying como forma de violência passa a ser real quando há a violação da dignidade
do outro e contém uma gravidade intrínseca. É uma agressão intencional e repetida,
que passa pela desqualificação do outro em forma de constrangimento. Esse
constrangimento, na maior parte das vezes, é feito ao apontar características físicas ou
identitárias da vítima.

Apesar de ser um problema complexo e presente na sociedade brasileira, o bullying


pode ser combatido ou minimizado no ambiente escolar, se os gestores e professores
o enxergarem com um problema. Não como um problema no sentido de ser algo ruim
ou que não tem solução. Ele deve ser visto como um problema na acepção que essa
palavra comporta, no sentido de reconhecer o impasse ali colocado, olhar para ele e
buscar soluções coletivas, primando pelo diálogo, inclusive conscientizando os
agressores, para que o respeito e a dignidade sejam os valores que balizem as
interações sociais na escola.

Tanto mais valor terão as ações criadas para combater o bullying, as escolas e os seus
professores quanto mais se entender que as crianças e jovens poderão se tornar seres
humanos mais excepcionais a partir das oportunidades que lhes são oferecidas no
ambiente educativo. A esse respeito já dizia Simone de Beauvoir: “É do ponto de vista
das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições”.

Para saber mais

CEATS - CENTRO DE EMPREENDEDORISMO SOCIAL E ADMINISTRAÇÃO EM TERCEIRO


SETOR. FIA - Fundação Instituto de Administração. Bullying escolar no Brasil: relatório
final. São Paulo, 2010. CD-ROM.

SILVA, A. B. B. Bullying: Projeto Justiça nas Escolas - Cartilha 2010. Brasília, DF: MEC,
2010.

Cláudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São
Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar,
indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Indisciplina e Violência Escolar:
dilemas e possibilidades.

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