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A política curricular e o currículo prescrito

Prof. Valricélio Linhares – IFCE/Itapipoca

O currículo prescrito como instrumento da política curricular

O currículo não pode ser estendido à margem do contexto social no qual se


configura e tampouco independente das condições em que se desenvolve; é
um objeto social e histórico [...] (SACRISTÁN, 2000, p. 107).

A política curricular, isto é, as decisões, regulamentações, elaboração e


propriamente a prescrição dos conteúdos a serem dispostos ao sistema de ensino,
assim como as formas de controle e avaliação, pressupõe o contexto social, cultural e
histórico. Então qualquer discussão que se pretenda substancial no sentido de
explicitar o significado do currículo em face da sociedade e da realidade escolar, seu
efeito sobre esta realidade, tem que levar em conta o contexto social mais amplo
(econômico, político, cultural, social, os aspectos históricos). De acordo com Lawton
(apud SACRISTÁN, 2000, p. 107) é difícil ou até impossível “discutir o currículo de
forma relevante sem colocar suas características num contexto social, cultural e
histórico, sendo parte muito significativa desse contexto a política curricular que
estabelece decisivamente as coordenadas de tal contexto.”

Vimos nas leituras anteriores a ideia de currículo como um sistema decorrente


do fato de ele envolver uma gama de subsistemas em seu entorno, de caráter político,
administrativo, de produção de materiais institucionais, pedagógico, de controle, etc.,
sendo por esta diversidade de níveis de configuração uma verdadeira organização
social. Conforme Sacristán, “o sistema curricular é objeto de regulações econômicas,
políticas e administrativas. O fato de ter o currículo implicações na ordenação do
sistema educativo e incidir na distribuição do professorado, incluímos também,
determinar os conteúdos e as finalidades da formação docente e mesmo a sua prática,
“é lógico”, considera Sacristán, “que um sistema escolar complexo e ordenado tão
diretamente pela administração educativa produza uma regulação do currículo. No
nosso entendimento, essa regulação atende a uma anterior racionalização e regulação
das instituições sociais por parte do Estado.

No sentido formal, para fins de uma definição clara, “A política curricular é toda
aquela decisão ou condicionamento dos conteúdos e da prática do desenvolvimento
do currículo a partir das instâncias de decisão política e administrativa, estabelecendo
as regras do jogo do sistema curricular”, sendo a política “um primeiro
condicionamento direto do currículo, enquanto o regula, e indiretamente, través de
sua ação em outros agentes moldadores.” (ibid, p. 108).
Toda nação estabelece os fins, os meios e as formas de controle sobre os
sistemas de ensino de modo a que ele expresse os interesses da sociedade (de
formação cultural propedêutica e de formação profissional, funcional ao trabalho), e
esses elementos de configuração que constitui toda a concepção de escola, o seu
papel social em face das demandas, sociais são concebidos e regulados em
conformidade com o equilíbrio de forças entre os grupos ou classes com interesses
contraditórios. É neste sentido, acrescentamos, que a política curricular não constitui-
se como prática institucional neutra.

Toda prática em torno do currículo é política, uma vez que a política curricular é
resultado das relações sociais em favor de sua reprodução ou de sua contestação e
superação, e sendo o caso de uma sociedade desigual baseada em relações de
exploração, atende aos interesses majoritários da classe dominante (opressores) em
desfavor da classe dominada (oprimidos). Daí que o campo progressista, ou de outro
modo, o campo dos pensadores e educadores da crítica da educação nas suas
diferentes matizes, defendem, por um lado, uma política curricular obedecendo aos
padrões de configuração e de regulação do currículo no sentido de valorizar e garantir
a socialização do conhecimento historicamente construído e sistematizado pela
humanidade, para que estes conhecimentos sejam assimilados pela classe
trabalhadora e funcionar como instrumento de acesso aos bens culturais e ao
trabalho, assim como instrumentalização da classe trabalhadora nas sua luta pela
democratização da sociedade e da educação; por outro lado, considerando a dimensão
cultural em sentido de corresponder aos valores, às experiências, às identidades e
diferenças de grupos historicamente marginalizados, o que inclui questões de classe,
étnicas, raciais, de gênero, de condição social imposta por mecanismos diferenciados
de opressão, este mesmo campo progressista de matiz cultural e popular, defendem
uma política curricular de crítica e de confrontação, ou de problematização da forma
curricular oficial, por esta forma de política curricular ser estruturada e concebida por
grupos ou classes sociais opressores, e em seu lugar defendem que se expresse no
currículo institucionalizado os seus interesses de classes ou grupo social no sentido de
superação da opressão. O ponto de partida desse campo progressista seria muito mais
a cultura popular e as culturas identitárias do que propriamente os conteúdos
sistematizados pela racionalidade moderna e contemporânea, ou pelo menos uma
configuração curricular oficial que incluam os interesses de classe ou grupo social
historicamente marginalizados.

O Currículo prescrito como Cultura Comum – aspectos para se pensar a questão do


currículo nacional em torno de uma base comum.

Sacristán observa que “a prescrição de mínimos e de diretrizes curriculares para um


sistema educativo ou para um nível do mesmo supõe um projeto de cultura comum
para os membros de uma determinada comunidade” (ibid, p. 111), afetando a

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escolaridade obrigatória de todos os cidadãos. “A ideia do currículo comum na
educação obrigatória é inerente a um projeto unificador de educação nacional”, de
modo que

Numa sociedade autoritária expressa o modelo de cultura que o poder


impõe. Numa sociedade democrática tem que aglutinar os elementos de
cultura comum que forma o consenso democrático sobre as necessidades
culturais comuns e essenciais dessa comunidade.

Mirando sociedades de configuração cultural mais homogênea, Sacristán


considera que nestas a determinação de um núcleo comum de cultura é menos
conflitivo comparativamente a sociedades ou sistemas que acolhem culturas
heterogêneas ou com minorias culturais de diversos tipos. Pensemos em países com
menor mistura étnicas e raciais. Neste caso, o estabelecimento de um núcleo comum
nacional de conhecimentos, ou de cultura, por assim expressar a totalidade do saber
sistematizado, numa sociedade de traços culturais homogêneos não enfrentará
dificuldades ou tensões decorrentes de sua natureza étnica, racial ou religiosa, embora
ainda assim, não deixe de expressar conflitos por razão das desigualdades de classe,
seja por questões de hierarquias funcionais e salariais, seja por divisões propriamente
de classes, entre trabalhadores e detentores do capital econômico (que expressa
dominação econômica – poder material) ou do capital cultural (que expressa
dominação simbólica pelo fato de deter para si e controlar o acesso ao saber).

A complexidade maior, como podemos deduzir, está mesmo na definição de


uma base nacional curricular, ou de um núcleo comum nacional, em sociedades mais
desiguais e culturalmente heterogêneas, o que é o caso de sociedades marcadas por
processos civilizatórios de exploração, do colonialismo moderno e contemporâneo,
como países africanos dominados pela colonização inglesa, ou países conquistados ou
configurados sob a colonização espanhola ou portuguesa no continente americano e
no caribe a partir do século XV.

Mas a questão da complexidade em estabelecer um nucleou comum de


conhecimentos ou de cultura para os sistemas educativos, ou sistemas de ensino, não
encerra apenas aspectos de homogeneidade ou heterogeneidade por razão étnico ou
cultural, como pudemos notar. Se considerarmos o que é mais determinante na
sociedade que são as relações de produção material da subsistência, que implica em
relações de classe entre os que se apropriam dos meios de produção e dos frutos do
trabalho por um lado, e de outro lado a grande massa de trabalhadores e
trabalhadoras assalariados/as, a definição de uma base comum nacional é algo muito
problemático. Implica em estabelecer um currículo comum para uma escola comum,
um currículo que expresse as demandas arbitrárias do setor produtivo, do mundo do
trabalho, para formar as funções subalternas da sociedade, procurando reproduzir
assim as relações sociais de classe. O que se procura justificar com essa Idea de um

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currículo mínimo comum para uma pretensa escola comum seria o intento de facilitar
uma escola frequentada por todos os alunos, sem distinção social, seja em nível
fundamental (primário) ou em nível médio (secundário), conforme observa Sacristán.

Mas, contudo, se aproximando de uma perspectiva não neutra, isto é se pondo


ao lado de uma abordagem crítica, Sacristá (ibid, p. 111) defende que

Partindo do fato de que em nossa sociedade existem diferenças culturais e


desiguais oportunidades ligadas a desigualdades socioeconômicas e
culturais, a definição do núcleo curricular mínimo - ou de qualquer cultura
normatizadora - não é uma decisão inocente e neutra para as diferentes
coletividades sociais, cujas experiências culturais extra-escolares e suas
expectativas de futuro conectam desigualmente com essa cultura comum e
com o que fique fora dela. Numa sociedade heterogênea e com desiguais
oportunidades de acesso à cultura, o currículo comum obrigatório tem que
ser enfocado inexoravelmente desde uma perspectiva social.

Ele nota que em um sistema educativo com uma rede privada e uma rede
pública, como temos em nosso país, que recebe diferentes tipos de alunos, “a
existência de mínimos curriculares regulados deve expressar uma cultura que se
considere válida para todos”, supondo “uma política educativa progressista (para que
não seja taxada de igualadora com os menos dotados, desvalorizando assim o sistema
educativo e a qualidade do ensino), a necessidade de acompanhá-la dos meios para
tornar essa cultura comum efetiva, que realmente garanta uma educação de qualidade
aos que têm menos recursos para enfrentá-la com sucesso, buscando a igualdade de
oportunidades” (ibid, p. 112).

Por fim, ele considera que “A definição de mínimos para o ensino obrigatório
não é, pois, um problema puramente técnico ou de regulação burocrática do currículo,
mas sim adquire uma profunda significação cultura e social, expressando uma
importante opção política, da qual é preciso examinar todas as consequências.” (ibid).
Eis então a complexidade da política curricular. Ela envolve questões culturais e
políticas que caracterizam as sociedades marcadamente desiguais em termos de
acesso aos bens materiais e culturais. Numa perspectiva democrática, a política
curricular, quando se quer uma base nacional comum de cultura, precisa estabelecer
efetivamente uma cultura comum e os meios de acesso devem ser assegurados aos
que não dispõem de condições sociais, evitando assim a perpetuação de práticas
curriculares reprodutoras da desigualdade social.

REFERÊNCIA

SACRISTÁN, Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Tradução de Ernani F. da F.


Rosa. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.

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