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Luís Greco

QUATRO ESTUDOS DE DIREITO PENAL

Organização e Tradução

eduardo Viana
Lucas MonteneGro
orLandino GLeizer

MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | SÃO PAULO


DOGMÁTICA E CIÊNCIA
DO DIREITO PENAL

A BERND SCHÜNEMANN, POR OCASIÃO DE


SEUS 70 ANOS EM 1º DE NOVEMBRO DE 2014

I.
A primeira dificuldade que toda tomada de posição relacio-
nada à dogmática e à ciência do direito encontra é a ausência de um
conteúdo claro para esses conceitos. Eu não quero discutir palavras.1
Evitarei, aqui, problemas conceituais, tentando encontrar um acesso
diferente aos fenômenos a serem discutidos. Esse acesso se dará por
meio da atividade que os professores de direito, enquanto profes-
sores de direito, exercem nas universidades alemãs. A expressão
“enquanto professores de direito” indica que não pretendo limitar-me
a descrição de uma situação real, mas ao mesmo tempo elaborar um
conceito que, de forma ideal, esteja, pelo menos implicitamente,
subjacente aos fenômenos.

1. Como já foi observado em fascículos anteriores dessa revista, ver


Lepsius, rescriptum 2013/1, 71 (71); Rieble, Rescriptum 2013/2, 163 (163 s.).
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A atividade dos professores de direito se revela problemática que é também correta. Os professores fazem mais: eles fazem ciência
quando se observa tudo o que ela implica. Socialmente, o título de do direito.
professor porta uma autoridade especial. Os contribuintes são obri- 2. O que é essa tal ciência do direito que fazem os professores,
gados a financiar não apenas professores, mas toda a sua equipe, enquanto professores? Incontestável, por enquanto, é que ela é mais
incluindo membros da cátedra ou do instituto e a respectiva infraes- do que didática e prática.
trutura. Aquele que deseja essa profissão precisa de fôlego para
trilhar um caminho em que terá de produzir dois grossos livros, sem a a) A ciência do direito trata daquilo que é direito, ou seja, do
garantia de, no final, ser recompensado pelo seu esforço.2 É necessário direito enquanto direito. A ordem jurídica é uma ordem coativa;
justificar à sociedade, aos contribuintes e à nova geração profissional entretanto, ela não quer ser apenas isso, porque o bando de ladrões
por que eles devem respeito, dinheiro e tempo de vida ao professor. de Santo Agostinho também o é.5 Todo aquele que possui poder pode
coagir; o direito começa no momento em que o poderoso se esforça
II. para justificar sua coação, e precisamente em relação àquele a quem
ela afeta. Direito é a tentativa de domar o poder por razões, ou melhor,
1. Poder-se-ia dizer que os professores educam os futuros de reconduzir a pura faticidade da voluntas à altura da ratio. Porque
juristas. No entanto, isso também é feito pelo docente não-professor, a vontade do poderoso só a ele interessa; a ela o afetado só pode opor
que dá aulas na universidade (Lehrbeauftragter), e até mesmo pelo sua própria vontade, que é fraca por definição. A relação entre os dois
repetidor, que ensina fora dela. A universidade não precisaria ser mais permanece uma relação de poder, o mais forte vence, o mais fraco se
do que um curso técnico para cumprir de forma adequada essa tarefa. curva. Entretanto, se o poderoso atua no plano da razão, ele não diz
Uma segunda tentativa: são os professores que, por seu trabalho inter- um simples “eu quero”, mas também um “porquê”, surgindo uma
pretativo, tornam sequer manuseável o direito positivo.3 Mas a neces- relação de direito, que não mais compele o mais fraco à obediência,
sidade é a mãe da criatividade: os práticos aprendem como manusear mas passa a merecer o reconhecimento de um racional.
seus instrumentos, eles escrevem artigos e comentários, com ou sem Mas e quanto aos termos “decisões valorativas do legislador”
a “ajuda” dos professores.4 Por isso, há quem prefira outra resposta, e “decisões judiciais”, que nós usamos sem preocupação? Nós não
enxergamos no direito, acima de tudo, voluntas, auctoritas, e não
ratio, veritas? Talvez o voluntarismo positivista, o qual muitos cien-
2. Na Alemanha, a palavra Professor compreende, fundamentalmente, tistas do direito declaram subscrever, tenha conseguido, impercebido,
apenas o professor titular (detentor de uma Professur) e o catedrático (detentor penetrar na linguagem da disciplina. No entanto, parece significativo
de um Lehrstuhl). Só Somente pode ostentar essa titulação quem é nela que nós não demos aos atos dos juízes enquanto juízes o mero nome
investido por uma universidade, o que, em princípio, só apenas ocorrerá depois
de um doutorado e de uma habilitação, consistentes, cada qual, principalmente de decisão, senão também de julgamento ou juízo; no passado, fala-
em respectivas teses – os dois grossos livros de que fala o texto – e do êxito va-se em conhecimento ou veredito. Diante de decisões, o afetado
em um concurso em outra universidade, diversa daquela em que o candidato se se curva enquanto mais fraco; diante da verdade, ele a reconhece
habilitou. A idade tida como normal para que se inicie a carreira de professor enquanto ser racional.
está, assim, em torno dos 40 anos. A atividade docente na universidade não é
exercida apenas pelos professores, como também pelos assistentes científicos Com isso, parece evidente haver uma relação, talvez singular
(wissenschaftliche Mitarbeiter) adscritos às cátedras e pelos Lehrbeauftragte, em termos teórico-científicos, entre a ciência jurídica e o seu objeto,
literalmente: encarregados de docência, que são juristas práticos que cultivam o direito. Seria, é verdade, exagerado afirmar que a ciência do direito
uma relação de proximidade com a universidade.
3. Assim Augsberg, rescriptum 2014/1, 63 (64): a dogmática “garante,
sobretudo, que pelo menos se possa decidir”.
4. Ver (bem exagerado) Fischer, em: Michalke et alii (Orgs.), Festschrift 5. Santo Agostinho, Vom Gottesstaat (A Cidade de Deus), traduzido por
für Hamm, 2008, p. 63 ss.; de forma crítica, Schünemann, GA 2011, 445. Thimme, Arthemis Editora Zurich, 1955, livro 4, cap. 4, p. 213.
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produz seu objeto. No entanto, certamente, essa afirmação tem algo o termo política-criminal – não podem permanecer no campo das
de correto: por faltar qualquer poder à ciência do direito enquanto abstrações não vinculantes, que são assunto das seções introdutórias
ciência, já que opera apenas na esfera das razões, ela contribui para a dos manuais jurídicos, mas devem ser projetados sobre as concretas
juridicidade do direito. Que o legislador tenha o poder de criar leis, e conclusões que se extraem do direito positivo.8
o juiz de tomar decisões, essa ciência toma como fato. Mas é a ciência cc) E assim se chega à dogmática jurídico-penal. Tentarei mais
do direito que, no seu cotidiano, coloca à prova a pretensão, implici- uma vez iniciar sem uma definição; abrirei mão, acima de tudo, da
tamente existente, de que esses atos sejam mais do que simples atos explicação sobre a relação entre dogmática jurídica e ciência jurí-
de poder. A ciência do direito, portanto, como um “quarto poder” dica. Como consequência do princípio da proteção de bens jurídicos,
impotente,6 vigia se as atividades dos outros três poderes potentes a proibição jurídico-penal, em princípio, só se orienta a condutas
se sustentam em razões. Ela não pratica essa vigilância por meio de perigosas; isso significa, concretamente, que as condutas que não
força corporal, senão racional, a fim de que essas razões também representam perigo juridicamente relevante não são objeto dos tipos
suportem seus resultados. Ela obriga o poderoso a prestar contas de penais. O princípio do nullum-crimen obriga a que se enxergue nos
suas decisões e o denuncia quando as razões indicadas por ele, na tipos penais não uma mera descrição de condições equivalentes umas
verdade, são uma racionalização insincera. A ciência do direito é, às outras, sine quibus non de um resultado, mas, mais do que isso, que
portanto, a ciência da distinção entre direito e poder. condições próximas e distantes sejam diferenciadas umas das outras.
bb) Essa sua tarefa diferenciadora tem ainda mais importância Isso significa também que o princípio conduz a uma diferenciação
no direito penal. A pena é o instrumento mais odioso e violento do entre autores e partícipes, no sentido de que só os primeiros praticam
poder. A ela é inerente uma colisão entre a poderosa ordem jurídica o tipo penal (conceito restritivo de autor). Do princípio da culpabi-
e o impotente indivíduo. Justamente por isso, ela é extremamente lidade se extrai que considerações de necessidade de pena só são
carente de justificação e, na melhor das hipóteses, passível disso. pertinentes quando já está claro que o destinatário realmente merece
Uma pena tem que poder satisfazer a exigência de respeitar o seu uma pena. Isso significa, concretamente, que os “erros de direito” não
destinatário como ser racional. Muitos dos tradicionais princípios do podem ser irrelevantes, e que, no mais tardar, portanto, os erros de
direito penal são possivelmente7 deduzidos dessa exigência – dentre proibição inevitáveis devem afastar a pena. E, de forma ainda mais
outros: o princípio de que o direito penal deve atuar para a segurança concreta, significa que considerações de ordem preventiva, no melhor
das condições de uma vida conjunta pacífica, ou seja, que deve servir dos casos, podem influenciar apenas secundariamente na a determi-
à proteção de bens jurídicos; o princípio de que a pena pressupõe nação da evitabilidade de um erro de proibição, ou seja, que só podem
uma cominação legal prévia, ou seja, o princípio do nullum-crimen, entrar em cena quando a pergunta anterior, sobre se a pena em si é
nulla poena; e o princípio de que nenhuma pena deve ultrapassar a merecida, já tiver sido afirmada.
medida do merecimento, o chamado princípio da culpabilidade. Esses b) Com isso, fica claro a quais perigos, sobretudo a quais tenta-
princípios da legitimação da pena – que podem ser resumidos sob ções, a ciência jurídica é exposta,9 e por que razão ela é dependente
do ambiente institucional, que, afortunadamente, ainda existe na
6. Pioneiramente, Schünemann, em: Schünemann et alii (coords.), Alemanha.
Festschrift für Roxin, Berlin/New York, 2001, p. 1 ss. (8 s.); próximo, em
substância, Gimbernat, ZStW 82 (1970), 379 (405 ss.); Rieble, rescriptum
2013/2, 163 (166 s.).
7. O que não pode ser aqui desenvolvido em detalhe; para uma aproximação 8. Pioneiramente, Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, 2ª. ed.
ao problema, ver Greco, Lebendiges und Totes in Feuerbachs Straftheorie, 1973 (= Política criminal e sistema jurídico-penal, 2ª. ed. 2002).
2009, 253 ss., 303 ss., 484 ss. (= Lo vivo y lo muerto en la teoría de la pena de 9. Para esses perigos, também Lepsius, rescriptum 2013, 71 (74); ver
Feuerbach, trad. Dropulich/Béguelin, Madrid etc., 2015, p. 184 e ss., 228 e ss., também Vogel, em: Beck et alii (coords.), Strafrechtsvergleichung als Problem
373 e ss.) und Lösung, 2011, p. 205 (207 ss., 210).
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Um olhar para fora torna clara essa relação de dependência. independente, na medida em à medida que eles não se deem por satis-
Em todos os lugares do mundo, há docentes (“Lehrer”) do direito feitos em com ensinar estudantes e juízes a como passar em provas
e práticos comentadores; mas uma figura correspondente à do ou a como escrever sentenças, e, sobretudo, na medida em à medida
Professor alemão, que faz ciência jurídica, é, comparativamente, que insistam em acompanhar de perto e criticamente o trabalho dos
algo bem especial, e isso até mesmo na Europa. Muitos países nem legisladores e dos juízes.
diferenciam professores de docentes (Lehrer), mas utilizam a mesma
nomenclatura para ambas as profissões. Faculdades de direito são, III.
frequentemente, nada mais do que simples prédios com salas de aula
e, eventualmente, com uma biblioteca e uma cafeteria, as duas de A alegação, não raramente formulada também entre penalistas,
de que a ciência jurídica e a dogmática seriam peculiaridades alemãs
mais ou menos mesmo tamanho; não existem institutos, cátedras e,
sem futuro na Europa,10 revela-se, assim, de todo questionável.11 Lá
por consequência, secretários, colaboradores científicos e estudantis.
onde legislador e juiz podem formular sua pretensão de juridicidade
Aulas são dadas por práticos, que não precisaram superar o penoso
sem temer a vigilância crítica de uma instância independente, eles
caminho alemão dos dois livros espessos. O que falta a esses países
se tornam descontraídos, preguiçosos, mesmo desavergonhados. Se,
não é necessariamente ciência jurídica, mas, sem dúvida, o suporte
em algum lugar, tipos penais são conceituados como proibição de
institucional do qual a ciência jurídica é dependente. Com isso, a
causação (como no art. 110 do CP italiano), a ciência jurídico-penal
ciência jurídica se sustenta com pés de barro; e sua qualidade advém
tem que se lembrar de que, com isso, o apelo “mate-o” é elevado à
antes de virtudes individuais, do talento e, em especial, da coragem.
qualidade de conduta típica de homicídio e o princípio nullum-crimen
A ciência jurídica não oferece poder, senão razões; o poder é esvaziado de significado. Se, ainda em outro lugar, é defendido o
não se interessa por razões enquanto razões, mas pelo seu suporte error iuris nocet por razões de prevenção,12 é trabalho da ciência
de legitimação. Onde existe ciência jurídica, mas lhe falta proteção jurídico-penal acentuar que o indivíduo, dessa forma, não está sendo
institucional por meio de uma universidade independente, com julgado pela sua culpabilidade, senão por interesses próprios de quem
obrigações apenas em relação ao próprio direito, a ciência jurídica o julga e, consequentemente, sendo misturado aos objetos do direito
se torna corruptível; ela ameaça se degenerar em um discurso de das coisas.
legitimação, ou seja, em ideologia. O cientista que é, em primeiro A ciência e a dogmática do direito, exercidas por professores
lugar, advogado ou juiz pensará duas vezes antes de tecer críticas ao enquanto professores, devem desnudar o que é um ato nu de poder.
legislador e, sobretudo, aos julgamentos de juízes superiores. O fato Isso, sobretudo, no direito penal e também na Europa.
de isso ser menos perceptível na Alemanha já é consequência dessa
proteção institucional; consequência de haver, aqui, um intercâmbio
científico, em grande parte, mais livre dessas preocupações. Essa
10. Lepsius, rescriptum 2013, 71 (10 s.); em relação à literatura penal, por
proteção institucional conduziu a uma nítida distinção entre ciência exemplo, Tiedemann, JZ 2000, 145; Vogel, GA 2002, 517 (524, 532); idem, JZ
desinteressada e ideologia orientada por interesses. Na Alemanha, até 2012, 25; Volk, em: Pieth/Seelmann (coords.), Prozessuales Denken als Innova-
mesmo o advogado ou o juiz que publica cientificamente não o faz, tionsanreiz für das materielle Strafrecht, Kolloquium zum 70. Geburtstag von
idealmente, enquanto advogado ou juiz, senão enquanto professor. Krauß, Basel et alii., 2006, p. 89 ss. (90): “A dogmática alemã se tornou muito
complicada. Assim, não se pode nem aplicá-la nem exportá-la.”; Rotsch, ZIS
Essas relações são recíprocas. O dispendioso ambiente insti- 2008, 1.
tucional colocado pelas universidades à disposição dos professores 11. Crítico, também Schünemann, FS Roxin I, p. 11; idem, GA 2002,
501 (511); Silva Sánchez, GA 2004, 679 (682); Puppe, ZIS 2008, 67; Robles
tem que ser, por sua vez, justificado à sociedade, sobretudo aos Planas, ZIS 2010, 357 (361 s.).
contribuintes. Essa justificação ocorrerá apenas à medida que os 12. Como no direito penal inglês, cf. as referências em Safferling, Vorsatz
professores se reconheçam obrigados ao ideal de uma ciência jurídica und Schuld, 2008, p. 386 ss.

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