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Philippe Bruneau

Fontes textuais e vestígios materiais: reflexões sobre a interpretação arqueológica


Philippe Bruneau. “Sources textuelles et vestiges matériels : Réflexions sur l’interprétation
archéologique”. In: Mélanges helléniques offerts à Georges Daux, pp. 33-42, Editions E. De Boccard, Paris.
(Tradução de Flávia Faleiros, Estagiária do MAE-USP)

A epigrafia pode se definir como o ponto de correntemente as fontes textuais da História de


encontro da Filologia e da Arqueologia: suas fontes não textuais, ou seja, arqueológicas.
contendo um texto de mesma natureza que Mas distinguir não é suficiente: é preciso juntar
aquele de um manuscrito ou de um livro uma prova de heterogeneidade. O tratamento
impresso, suscetível de ser lido, copiado, dos dados arqueológicos, com efeito, consiste
transmitido de várias maneiras, a pedra inscrita essencialmente numa emergência da linguagem:
possui ao mesmo tempo as características de os vestígios materiais, objeto da Arqueologia
um objeto arqueológico, porque tem um Local contêm informações virtuais, mas elas devem
de achado, uma forma particular, eventuais ser decriptadas e traduzidas num enunciado
funções arquitetônicas ou outras, numa palavra, verbal: elas só existem pela formulação. As
por sua unicidade e por sua materialidade das fontes textuais, ao contrário, se situam por
quais resulta a própria escrita, às vezes definição no nível da linguagem. Portanto, os
esclarecendo mais que o texto.1 vestígios materiais são heterogêneos em relação
Mas a epigrafia não é o único lugar à formulação do arqueólogo, enquanto os
onde se instauram as relações entre os textos e textos são homogêneos em relação ao
os vestígios arqueológicos. Estas relações, por comentário do filólogo.
mais paradoxais que pareçam, dado que a Esta etapa intermediária de enunciação
Arqueologia, por definição, toma por objeto de verbal que intervém no tratamento dos dados
estudo o não textual, são mais complexas. arqueológicos para fazê-los existir como
Pareceu-me pois, oportuno apresentar, em documentos, cria uma diferença entre eles e os
homenagem ao helenista que aqui honramos, textos: uns e outros não se situam no mesmo
algumas reflexões epistemológicas sobre este nível de abstração.
problema.2 Tanto mais que os especialistas do Estas considerações obrigam a rever o
domínio grego e romano com ele se texto antigo. Quando Tucídides (1, 8) trata das
confrontam especialmente: o desenvolvimento tumbas cárias descobertas em Delos, ele realiza
considerável da pesquisa arqueológica sobre um a passagem entre as coisas e o discurso; não
mundo tradicionalmente conhecido pelos podemos, pois, colocar o texto do historiador
textos convida a examinar as relações entre antigo no mesmo plano que o das tumbas
estes dois modos de informação. escavadas atualmente, mas naquele do
arqueólogo que as interpreta. Desta conclusão
1. Heterogeneidade das fontes textuais e resultam consequências não negligenciáveis,
das informações arqueológicas. que exporei mais abaixo.

1.1. Situação respectiva dos textos e dos 1.2. Confusões indevidas


vestígios arqueológicos.
A heterogeneidade dos textos e dos
Os estudiosos da Antiguidade parecem vestígios materiais é algumas vezes tão
considera-los como um par: eles distinguem insuficientemente percebida que, com o auxílio

1 E não somente do ponto de vista cronológico; mas, por qual pretende-se dar resposta a tudo: enquanto um arqueólogo
exemplo, se pensarmos no grafite, que durante algum tempo se estigmatiza os "profissionais da metodologia", um outro, sob o
espalhou pelos muros das cidades francesas, "Nixon assassin", nome de "considerações metodológicas", se enche de farsas não
quantas informações suplementares encontramos neste X em chegando a lugar algum (veja Rev. Archéol., 1971, p. 324), é certo
forma de cruz gamada e nestes dois pares de S traçados como que, em se tratando do método, as farsas não faltam (cf., ainda
os SS nazistas. recentemente, REG, 85, 1972, pp. 153-154, a respeito dos
2 Prefiro falar de "epistemologia"; o termo responde melhor ao métodos modernos de escavação, os propósitos desoladores de
seu propósito que "metodologia"; termo que, aliás, posto em um autor que ironiza sobre algo que ele provavelmente não
moda, se tornou uma temível fórmula vazia e pretensiosa pela compreende).

1
da moda atual da Linguística, vemos às vezes heterogêneos: compreendidos em níveis
tratar-se o objeto da pesquisa arqueológica diferente de abstração, eles também não são de
como linguagem. Pretendendo “fazer os natureza idêntica e só apresentam entre si
objetos falarem” ou “ler uma estratigrafia”, analogias.
referindo-se ao “contexto de escavação”,
apenas adaptamos comodidades de expressão. 2. O papel dos textos na interpretação
Mas nos inquieta mais ler, por exemplo, vindo arqueológica
de um arqueólogo de renome, que “o solo
antigo se comporta como um texto em sentido Voltemos à relação que textos e
estrito, passível dos efeitos de uma verdadeira vestígios materiais mantêm enquanto modos de
sintaxe”. informação. A célebre fórmula “um livro de
Este é um dos aspectos de sua questão imagens sem texto” que repetimos durante anos
mais geral e frequentemente debatida, a das com relação ao mundo minoico, traduz bem a
relações da Arqueologia e da Linguística. Não convicção de muitos arqueólogos de que, sem o
se trata aqui de se examinar novamente a apoio de textos sua tarefa é mais difícil. Mas
possibilidade de um uso dos modelos não me pareceu que tenhamos definido
linguísticos em Arqueologia,3 mas somente claramente o papel destes textos. Podemos
contemplar o objeto mesmo destas duas considerar que, um pouco estranhos às
disciplinas. Assim, se falar e fabricar são primeiras etapas da pesquisa arqueológica
próprios do homem, é natural de se esperar que (escavação e classificação do material) e
entre estas duas atividades apareçam analogias. frequentemente também ainda nas etapas
Por exemplo, uma delas, fundamental, é seguintes (restituição e datação), eles intervêm
sugerida pelo próprio F. Saussure em uma sobretudo no último estágio, objetivo final da
simples comparação pela qual ele pretendia se Arqueologia: a interpretação, operação pela qual
fazer melhor compreender:4 os dois gêneros de o arqueólogo extrai informações dos vestígios
relação entre vestígios arqueológicos são materiais contribuindo para o conhecimento de
análogos aos dois eixos da linguagem, de uma uma dada etnia. É Pois, numa teoria geral da
parte, uma relação de associação in praesentia, interpretação que podemos reconhecer a
quer dizer, uma distribuição no espaço, de que contribuição dos textos para a pesquisa
a estratigrafia é a modalidade mais frequente; de arqueológica.
outra parte, uma relação de semelhança in
absentia, quer dizer, a classificação tipológica (as 2.1. A interpretação arqueológica: tentativa
noções de circulação e de emissão monetárias de definição
ilustram bem estes dois gêneros de relação).
Notemos brevemente que aí estão os dois Na verdade, é preciso que a
domínios para onde se conduziu principalmente Arqueologia seja ainda dotada de um aparelho
a pesquisa teórica das últimas décadas. teórico satisfatório, apesar das benéficas
Mas analogia não é identidade absoluta, influências que começaram a exercer a prática
e abusamos ao transplantar para a Arqueologia, das técnicas modernas de escavação e o desejo
direta e inconsideravelmente, o vocabulário da de colocar a serviço da Arqueologia os recursos
Linguística, porque o que pode ser somente da informática. A teoria da interpretação não
uma cômoda metáfora sugere perigosamente a parece ainda nem mesmo esboçada; é desejável,
identidade. O terreno arqueológico não é um portanto, acercar-se mais de tal noção.
texto: resultado do jogo conjunto da fabricação Todos os vestígios materiais que a
humana, que instaura um sistema técnico e de Arqueologia estuda estão ligados, de uma
fatores naturais que destroem entre sistema, ele maneira ou de outra, à presença e à atividade
é sem dúvida uma estrutura, mas lhe falta ser humanas; sem isto, caberiam a uma “ciência
estruturante, isto que é uma característica natural”, como a Geologia ou a Paleontologia, e
essencial da língua. Informações textuais e não a uma ciência humana. Mas alguns deles
vestígios materiais são, portanto, duplamente resultam da ação dos fatores naturais sobre os

3 Dell Hymes. Linguistic Models in Archaeology. Cf. em C.M.R.S., Paris, 1970), pp. 91-120, a exposição de D. Hymes e a
“Archhéologie et calculateurs" (Colloques internationaux du discussão que se seguiu.
4 F. de Saussure, Cours de linguistique générale (1915), p. 171.

2
produtos da atividade humana (por exemplo: os Dito de outra forma, os vestígios materiais,
incêndios, os tremores de terra, etc.), enquanto como os homens no mito do “Banquete”, só
os outros são o produto de uma transformação são apreensíveis à Arqueologia amputados de
da matéria pela indústria humana. Este segundo uma metade: o que produziu este vestígios,
grupo é necessariamente o mais complexo: nele acontecimento natural ou programa técnico,
podemos distinguir diversos níveis, desde o nos permanece uma incógnita. A interpretação
simples deslocamento de objetos naturais, arqueológica não é outra coisa senão a
como a confecção de uma fogueira no centro restauração desta metade ausente que depende
de três seixos, até a fabricação de um utensílio de um modelo sociológico.
ou de uma imagem que assume valor de sinal.
Porém todos têm em comum o fato de possuir 2.2. Os meios de interpretar: textos e
um duplo aspecto: uma matéria transformadora postulados
segundo um programa;5 o estudo dos vestígios
do segundo grupo restabelece em suma uma Para tanto, é necessário anexar à
tecnologia. constatação morfológica, informações
Isto, porém, não explica tudo, e as suplementares, vindas de fora. Elas se oferecem
dificuldades permanecem consideráveis. Em apenas de dois gêneros, os textos e o que
primeiro lugar, a distribuição dos vestígios entre chamo de “postulados arqueológicos”:
os dois grupos distintos não é sempre evidente,6
e seria preciso conhecer melhor os critérios que 1. Sendo a linguagem perfeitamente
permitem distinguir o objeto fabricado da coisa apropriada à narração e à explicação dos
natural. Em segundo lugar, mesmo se a motivos e das intenções, os textos possuem um
distribuição é segura, os objetos fabricados do papel fundamental: ocorre que neles, os
segundo grupo colocam para a Arqueologia o acontecimentos sejam relatados, os programas e
seu mais difícil problema; com efeito, enquanto necessidades aos quais respondem sejam
geralmente compreendemos a finalidade de um indicados, e também, que neles seja atestada a
objeto contemporâneo ao mesmo tempo que existência de objetos materiais perecíveis, e,
consideramos o seu aspecto material, não portanto, não apreensíveis à Arqueologia, mas
ocorre o mesmo com os vestígios que nos cuja realidade pode importar grandemente para
restam das épocas antigas. Os únicos dados a interpretação.7
imediatamente apreensíveis à Arqueologia são 2. Infelizmente os textos podem faltar
materiais: nós vemos o objeto fabricado, mas o totalmente; e, mesmo que não faltem, no caso
programa nos escapa. E a dificuldade é ainda de civilizações antigas, o corpo dos textos
maior, que não poderíamos propor uma conservados não fornece resposta a tudo.
dependência necessária das formas e das Recorremos pois, geralmente sem dizer e
funções: é certo que objeto de formas diferente frequentemente sem nos apercebermos, a
podem assumir funções semelhante e que “postulados arqueológicos”, ou seja, a modelos
objetos de formas análogas podem exteriores. Mas estes modelos só podem ser
corresponder a programas diferentes. tomados como absolutamente universais, no
Os vestígios do primeiro grupo nos caso dos vestígios do primeiro grupo, onde
aparecem de forma semelhante, por exemplo: intervêm apenas os agentes naturais submetidos
no caso de um incêndio, nós compreendemos a às leis físicas. Dá-se de outra forma no caso dos
projeção material do acontecimento sobre o vestígios do segundo grupo: com efeito,
terreno, mas não o próprio acontecimento. tendendo cada grupo humano a se diferenciar

5 Meu colega e amigo Jean Gagnepain, professor de Linguística 6 Por exemplo, procurei recentemente (BCH, 92, 1968, pp. 687-
da Universidade de Haute-Bretagne (Rennes), em um curso de 688) arrolar os traços morfológicos que permitissem considerar
3º ciclo em 1971-72, tratando de tecnologia, propunha que se as partículas de madeira carbonizada, que em Delos estão
definisse o objeto fabricado como constituído de um misturadas aos solos de terra batida, como resultantes de um
"fabricante" e de um "fabricado", da forma como o signo procedimento técnico e não como traços de incêndio.
linguístico é tanto "significante" como "significado". 7 Por exemplo, para interpretar os askoi helenísticos de dois
Acrescento brevemente que esta dependência entre a matéria e recipientes sobrepostos como azeiteiras-vinagreiras, precisava
o programa me parece, à primeira vista, comprometer o sistema primeiro estar certo do emprego do vinagre (BCH, 90, 1966,
de interpretação por níveis superpostos de E. Panofsky. Essais pp. 131-143).
d'iconologie (tradução francesa de Studies in Iconology, Paris, 1967),
pp. 13-31.

3
dos outros sem contanto consegui-lo entretanto, ainda mais prejudicial, pois
completamente, sua atividade técnica é sempre multiplica o erro. Ora, é inútil dizer que neste
“etnicizada”, mas sem por isto deixar de manejo dos postulados, muito frequentemente
apresentar os traços universalmente implícito, as confusões são inumeráveis:
característico de toda atividade técnica humana. algumas de caráter ontológico, consistem em
Ou seja, não somos autorizados a utilizar de confundir o possível e o existente ou o
imediato em algum lugar um sistema de frequente e o necessário;9 outras, de caráter
explicação válido em outro: por exemplo, uma sociológico, consistem em confundir o
imagística pode depender de um simbolismo universal e o “etnicizado”; outras, ainda, de
zodiacal, mas é sem fundamento explicar desta caráter tecnológico, consistem em confundir a
forma a imagística grega. configuração e a função, supondo que a
identidade da segunda resulte da identidade da
2.3. Estabelecimento e manejo dos primeira.10
“postulados arqueológicos”
2.4. Arqueologia e Sociologia
A tarefa é, pois, dupla: de um lado, seria
preciso dispor de uma teoria do objeto Se a Arqueologia se apodera dos
fabricado, ou seja, de uma tecnologia geral que vestígios materiais deixados por grupos
deve ainda ser criada, mas à qual fariam humanos “etnicizados”, a interpretação supõe a
referência alguns dos postulados postos em formação de uma Sociologia para cuja
jogo na interpretação; de outro lado, e em constituição contribuem os textos. De um
direção inversa, é preciso constituir para cada ponto de vista operacional, ocorre, que a
grupo humano uma Sociologia que permita Arqueologia com A maiúsculo existe
fazer a separação entre os postulados válidos certamente em função de uma problemática e
universalmente e aquele que não o são, bem um método que lhe são específicos; mas
como estabelecer a validade destes últimos. também, que somos autorizados a distinguir
A validação de cada postulado é, com Arqueologias particulares, e que hoje
efeito, uma necessidade urgente: uma surpreendentemente abusamos acreditando que
interpretação geralmente só é verificável com um arqueólogo pode ignorar a língua das
relação a uma parte da série considerada; ora, civilizações que estuda no terreno.
segundo um processo que futuramente deverá De um ponto de vista teórico, a
ser inserido em uma teoria mais abrangente da constituição desta Sociologia não se dá sem
certeza arqueológica,8 nós estendemos, na colocar problemas: cada vez que falta a
maioria das vezes, esta interpretação à série informação textual, é a própria Arqueologia que
inteira, e esta é realmente uma das funções funda a Sociologia. Para retomar a imagem de
específicas da classificação arqueológica; todo um de meus amigos, os dados sociológicos
recurso a um postulado incompatível é, parecem se situar ora à frente, ora atrás do

8 A constituição de tal teoria me parece muito necessária, dadas intemporal, os dados que nas etapas sucessivas da pesquisa
as consequências que dela podem decorrer para a prática funcionaram como indícios e aqueles que serviram de
arqueológica. Seja, por exemplo, no caso da verificação: seja confirmações. O caráter sempre lacunar da informação (devido,
qual for o modo de raciocínio arqueológico empregado irredutivelmente, à existência de inumeráveis vestígios materiais
(raciocínio por convergência de argumentos, por recurso a um ainda não escavadas), e mesmo o acaso que preside
modelo, etc.), e seja qual for o problema em causa (restituição, tradicionalmente a coleta de informação, aparecem como
datação, interpretação), a verificação parece consistir na vantajosos e necessários; e deste ponto de vista teórico, segue-
descoberta de um dado novo que, posterior a uma solução que se que, uma situação onde o pesquisador disporia da totalidade
tenha sido proposta, insere-se perfeitamente na proposição da informação antes de propor a solução de um problema seria
(sendo que a ausência inicial deste dado se explica pelo estado prejudicial ao estabelecimento da certeza arqueológica dada a
da exploração arqueológica ou pelas lacunas de informação impossibilidade de verificações.
pessoais do arqueólogo). A natureza deste novo dado não difere 9 Não compreendemos, por exemplo, como podem os
da dos outros dados, que estavam disponíveis antes da numismatas tomar a "lei de Gresham" por uma "lei": ela só
formulação da solução e que constituem seu fundamento. É o exprime os hábitos, por assim dizer, gerais dos emissores de
acaso da pesquisa arqueológica, que determina o papel de moeda.
indícios às informações disponíveis antes da formulação da 10 Igualmente os linguistas distinguem a marca e o sema*, por
solução e o de confirmações àquelas que intervém depois. A exemplo, em francês, a identidade material do –s como marca
verificação não é, pois, dissociável da história da pesquisa, e do plural ou da segunda pessoa do singular não carrega
duvidamos cada vez que, por cuidado de clareza ou por receio nenhuma identidade semiológica.
pessoal de se expor, reunimos a posteriori, em uma formulação

4
objeto arqueológico: se um contexto infelizmente, não é uma caricatura; mesmo se,
arqueológico é previamente conhecido, ele por cortesia, não nomeio ninguém.
intervém na interpretação do objeto Primeiro caso, os textos faltam
arqueológico; se, ao contrário, este contexto é completamente ou quase completamente: a
ainda inexistente, é a interpretação do objeto Arqueologia se torna um “quebra-galho”, um
que aflui para constituí-lo. substituto da informação textual ausente ou
Paradoxalmente, a Sociologia aparece lacunar. É a concepção que subentende a ideia
neste caso como o objetivo da interpretação sempre viva de que a História, definida então
arqueológica bem como o meio de conduzi-la a por seu modo de informação e não por seu
termo. Na realidade, o procedimento é só objeto, começa com os textos; havendo
aparentemente circular: não se trata de uma primeiramente a Arqueologia, fazemos como
Arqueologia e de uma Sociologia monolíticas, podemos.
mas de uma multidão de dados arqueológicos e Segundo caso, a informação textual é
de fatos sociológicos, e o vai e vem de um suficientemente abundante; como para o
domínio a outro descreve não um círculo, mas mundo grego e romano: neste caso, a
uma espiral. Arqueologia aparece muito frequentemente
Não saberíamos porém nos dissimular como uma simples ilustração, com imagens de
dos perigos inerentes a esta situação: que ela se fatos previamente conhecidos; esta situação se
funde em parte sobre os textos ou realiza, em sentido estrito, em uma publicação,
exclusivamente sobre a informação onde vemos ainda muitos autores, imbuídos de
arqueológica, a Sociologia arrisca ser, na prática, um certo chovinismo filológico, associar
um grilhão para a interpretação arqueológica. reproduções de documentos arqueológicos a
Ela inspira, com efeito, a tentação de reduzir o seu texto apenas para obedecer à crescente
desconhecido ao conhecido; ao extremo, a moda do livro ilustrado. Numa tal visão,
interpretação eliminaria, assim, a originalidade fundamentalmente redutora, esta Arqueologia,
de toda descoberta arqueológica e rejeitaria de ilustração, é somente um luxo, dado que os
todos os novos dados que não pudessem se fatos sociológicos saídos do objeto não
inserir em uma determinada Sociologia. Talvez possuem nenhuma chance de se diferenciar
seja como reações inconscientes ao perigos de daqueles que serviram para interpretá-los:
uma Sociologia redutora, que se expliquem as situada a reboque de uma história já constituída,
várias interpretações desordenadas que vemos ela não saberia modificar as posições desta.
surgir a cada ano. Quando o arqueólogo se Sendo a maior parte dos dados
propõe a interpretar, o rigor lógico nunca é arqueológicos geralmente de caráter idiótico
demais para manter o equilíbrio entre a (habitats, sepulturas, mobílias de particulares
esterilidade e a extravagância. anônimos), é preciso, com efeito, que sejam
adequadamente inseríveis em uma problemática
3. Especificidade da informação histórica limitada àquela que a informação
arqueológica textual sustenta; a maior parte deles corre o
risco de aparecer como desprovida de
Tal é, portanto, a relação da importância “histórica” e não é outra a
Arqueologia e da Sociologia, a segunda se explicação para a impulsão de certos
colocando ora “à frente”, ora “atrás” da arqueólogos em sempre querer associar a
primeira. De fato, esta Sociologia se constitui descoberta arqueológica a “acontecimentos
de forma diferente à medida que a civilização históricos”. No melhor dos casos, a
enfocada nos tenha ou não deixando fontes investigação arqueológica serve para completar
textuais. Num caso, uma informação os textos ou retificá-los (por exemplo, ela
sociológica fornecida pela massa dos textos permite “recuar” a data de uma lenda conhecida
preexistente à investigação arqueológica; por textos tardios ou corrigir os erros ou
noutro, a relação é inversa. Entretanto, nos dois generalizações prematuras de um autor); mas a
casos, a Arqueologia pode, ainda hoje, passar Arqueologia me parece ser ainda
por medíocre. A situação é, com efeito, a que se frequentemente tida como um tipo de pesquisa-
segue, e acredito que minha descrição, pirata paralela (quantas vezes não dizemos “a

5
Arqueologia e a História”?), ora substituta, ora funcionais muito estreitas, possuem o reflexo
parente pobre da História-pelos-textos.11 das culturas de que emanam”.12 A hierarquia
Esta hierarquia dos textos e dos frequentemente admitida entre textos e
vestígios arqueológicos não é mais aceitável. vestígios arqueológicos tende, portanto a se
Sua situação respectiva, tal como foi definida modificar, à medida que os textos exprimem
no início desta exposição, ao contrário, obriga a uma compreensão necessariamente incompleta
melhor descobrir o valor específico da e subjetiva do que é contido nos vestígios
informação arqueológica: situado não no plano arqueológicos. Igualmente, no caso de uma
dos vestígios materiais, mas naquele de um contradição entre a informação textual e a
arqueólogo ou de um historiador atual, o autor informação arqueológica, a segunda tem muita
antigo só exprime aquilo que emergiu à chance de ser mais digna de crédito que a
consciência do mundo onde ele vivia. De fato, primeira.
todo objeto, sem nenhuma dúvida, detém uma Consequentemente, a Arqueologia,
riqueza de informação que absolutamente não é detectando no objeto informações que
esgotada pelo que dela aprendem os escapavam à consciência dos usuários, não
contemporâneos, bem como não o é pela aparece mais nem como uma ilustração nem
descrição que o arqueólogo dela faz hoje. É isto como um “quebra-galho”; longe de só valer
que ilustra, entre outras coisas, a noção de negativamente, ela é investida de uma função
estilo: um estilo se define por um conjunto de positiva como abordagem sociológica dos
caracteres abstratos comuns a formas diversas, vestígios materiais. Isso me parece impor a
por exemplo, falamos naturalmente de um prática da Arqueologia mesmo no estudo do
“barroco helenístico” ao qual são igualmente mundo moderno. Não obstante seu nome, a
imputáveis as imagens de máscaras de teatro, de Arqueologia não pode mais permanecer ligada à
metamorfoses, de velhos, de moribundos, de uma única antiguidade; no máximo, a situação
esqueletos e o uso da ilusão de ótica das particular da informação nas civilizações antigas
pinturas murais ou dos mosaicos de piso. Estas oferece condições especialmente favoráveis à
formas, à primeira vista muito dispares, evidenciação do papel específico da
compõem todas uma definição abstrata do Arqueologia e à formulação do seu método.
barroco helenístico: a sensibilidade para a Mas é indispensável fundar uma Arqueologia
falaciosa ambiguidade das aparências e para a do mundo moderno e contemporâneo, que já
perpétua mutabilidade das coisas. Mas, sob a está sendo incorporada pelos sociólogos. Isto
multiplicidade e a variedade destas formas, há deveria ser, entre outros, um dos propulsores
uma enorme chance de que tal definição tenha desta especialidade ainda mal definida que
permanecido em grande parte velada à chamamos de História da Arte.13
consciência das pessoas da época, inclusive dos
artistas. Rennes.
Portanto, esta situação é permanente.
Encontro esta observação em A. Leroi-
Gourhan: “Podemos considerar que os carros
de corrida ingleses, italianos e americanos estão
em um estado de aproximação funcional, dado
que conservam um estilo étnico apesar das
exigências de aero dinamismo que deveriam
fazê-los idênticos. Não é menos surpreendente
ver a que ponto os foguetes e satélites
americanos e russos, apesar das restrições

11 Encontrado recentemente em um sítio da Ásia Menor, um Primeiro, por seu objeto: mesmo se a História da Arte
jovem epigrafista alemão, que interrogávamos a respeito da consentisse em não mais selecionar previamente seus objetos de
identidade de um monumento próximo, nos respondeu, talvez estudo com critérios estéticos geralmente pessoais, e se abrisse
para se livrar de interrogadores inoportunos, mas invocando de para o estudo das "technai" (simultaneamente “artes” e
qualquer forma um pretexto revelador: “eu não sou arqueólogo, “técnicas”), a Arqueologia ainda a suplantaria em extensão,
mas especialista em História Antiga”. dado que se interessa não somente pelos objetos que o homem
12 A. Leroi-Gourhan. Le geste et la parole, II (Paris, 1965), p.130. fabrica, mas também pelas projeções dos acontecimentos sobre
13 Mas que não me associem a confusionismo: compreendo que tais objetos e sobre os lugares ocupados pelos homens.
a Arqueologia e a História da Arte são irredutíveis uma à outra.

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