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O Noticioso

HISTORIA
4

SANTIAGO DE COMPOSTELA

PORTUGAL DO CAMINHO
DA RECONQUISTA
ENTROU À RECONQUISTA
DO CAMINHO
HÁ 100 ANOS
NA GRANDE ROMEIROS

GUERRA
PENITÊNCIA
SECULAR NA ILHA
DE SÃO MIGUEL

IRENE FLUNSER PIMENTEL “EXISTE A TENDÊNCIA PARA UM REGIME PATERNALISTA”


Jornal de Notícias
N.º 02 / FEVEREIRO / 2016
TRIMESTRAL / 3,50 EUROS

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O Noticioso

02

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O Noticioso
A ABRIR

Pórtico ÍNDICE

Seguir em frente
olhando para trás
TEMA DE CAPA
O Caminho de Santiago
desde a Idade Média

DOCUMENTO
O “pio latrocínio”
Pedro Olavo Simões
de Diogo Gelmires
Coordenador editorial

“Caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar.” Os versos TRADIÇÃO


do sevilhano Antonio Machado (1875-1939), vulgarmente simplifi- Romeiros de São Miguel
cados na fórmula “o caminho faz-se caminhando”, fazem a ponte
entre o tema de maior destaque desta edição – o Caminho de San-
ENTREVISTA
tiago de Compostela – e a caminhada a que nos aventurámos com
Irene Flunser
esta revista, cujo segundo passo está nas suas mãos. Pimentel
Seguindo em frente com os olhos no passado, trilhamos uma
rota que, escrita com factos de outros tempos, fica marcada no
mapa como um percurso prazenteiro e, também, como guia pa- DESTAQUE 03
ra quaisquer peripécias que o futuro nos reserve. Assim é a His- Portugal
tória, algo que não se repete nem propicia dons divinatórios, mas na Grande Guerra
que dá força para percebermos os tempos que vivemos e os que
nos esperam.
MUSEU DO TRIMESTRE
Num tempo em que as peregrinações à Galiza estão na mo- MMIPO – Museu
da – uma moda mundial –, será útil perceber o que significam, de da Misericórdia
onde vieram, por que se popularizaram. E, no caso português, do Porto
entender como se ligam à própria circunstância de Portugal ha-
ver. Esse longínquo Portugal da Reconquista, que, tantos séculos
volvidos (um século lá para trás, na nossa perspetiva), se fez re-
publicano e combateu na Grande Guerra.
Esse Portugal que também caminha, não só nas rotas de pere-
grinação mediáticas, mas também, por exemplo, nessa deslum-
brante realidade periférica que é o arquipélago dos Açores, on-
de a penitência quinhentista micaelense se mantém, hoje, numa
prática quase intocada que aqui revelamos.
Esse Portugal que, pelo acolhimento caloroso dado a este pro- Capa: Soldados portugueses
jeto, nos estimula a caminhar. partem para a guerra, em 1917.
Foto: Agence Meurisse
(“Ilustração Portugueza” n.º 576)

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O Noticioso
A ABRIR

Acontece
Beja
Ano da Idade do Bronze
“12 Lugares, 12 Meses, 12 Histórias – a Idade do Bronze na
região de Beja” é um projeto que, até ao fim do ano, a Câmara
de Beja leva a cabo nas freguesias do concelho, como sensi-
bilização para o vasto património arqueológico do período
em causa. Em cada freguesia, uma conferência, uma expo-
sição e um percurso pedestre marcam a iniciativa, que tem,
daqui para a frente, a seguinte calendarização: Quintos (18
e 19 de março); Santa Vitória/Mombeja (22 e 23 de abril); Al-
bernoa/Trindade (6 e 7 de maio); Santiago Maior/S. João Ba-
tista (17 e 18 de junho); Santa Clara do Louredo (15 e 16 de ju-
lho); Salvador/Santa Maria (19 e 20 de agosto); Cabeça Gor-
Exposição em Tibães da (9 e 10 de setembro); Baleizão (7 e 8 de outubro); Neves (4 e
5 de novembro); São Matias (16 e 17 de dezembro).
Outra visão das catedrais
Prossegue a itinerância da exposição de fotografia “8 Es- Angola
paços para 7 olhares”, promovida pela Direção Regional de Achados
Cultura do Norte, no âmbito do projeto “Rota das Catedrais no Namibe
do Norte de Portugal”. Depois de ter estado, com assinalá-
vel sucesso, na Casa da Parra, em Santiago de Compostela, a Foi anunciada
04 mostra está agora montada no mosteiro de Tibães, em Bra- a descoberta, no Sul
ga, onde permanecerá até ao dia 13 de março. O desafio, lan- de Angola, de três
çado a sete fotógrafos, consistiu em proporcionar olhares estações arqueoló-
alternativos sobre algumas catedrais, mostrando o que está gicas ricas em ins-
para lá do habitual “postal ilustrado” ou da fotografia docu- trumentos da Idade
mental. Eis a lista dos fotógrafos, associada aos monumen- da Pedra (à espera
tos que lhes foram “confiados”: Egidio Santos (Concatedral
de Miranda do Douro – foto publicada acima); Inês d’Orey
de datação preci-
sa), duas no muni-
Barrancos
(Sé de Viana do Castelo); Luís Ferreira Alves (Sé do Porto); cípio de Tombwa e Intervenção no
Paulo Alegria (Sé de Lamego); Paulo Pimenta (Sé de Braga);
Pedro Lobo ( Sé de Vila Real); Rita Burmester (Antiga Sé de
a terceira nas ime-
diações da cidade de
castelo de Noudar
Bragança e Sé de Bragança – nova). Namibe. Os achados
mostram como a re- Erguido entre a ribeira de Múrtega e o
gião, hoje desértica, rio Ardila, o castelo de Noudar, um dos
desempenhou pa- mais notáveis monumentos do conce-
Megalitismo pel essencial no de- lho de Barrancos, vai ser alvo de obras
Museu interativo em Mora senvolvimento dos de requalificação, orçadas em 600 mil
povos pré-históri- euros e levadas a cabo pelo município.
Será inaugurado em breve, na vila alentejana de Mora cos em África. O Na- Reparar algumas patologias e danos
(distrito de Évora), o Museu Interativo do Megalitismo, in- mibe é, também, ri- estruturais (ver foto) e reforçar a pro-
tegrado num projeto de recuperação da estação ferroviá- co em arte rupestre, moção turística do local são os princi-
ria local. Mais de cem anos de escavações arqueológicas e as pesquisas, es- pais objetivos. Noudar teve foral de D.
no concelho têm resultado na recolha de milhares de pe- cassas em meios, Dinis em 1307 e aí foi instalado um dos
ças e na identificação de numerosos monumentos, e, ape- estão longe de cobrir primeiros “coutos de homiziados” –
sar de o museu ter destinado um acervo importante de um território que po- forma de povoamento empregue em
materiais megalíticos, o principal trunfo será a interativi- derá ser ainda mais terras de fronteira, pela qual condena-
dade com o visitante, em que hologramas e outras surpre- fértil em achados ar- dos pela justiça podiam fixar residên-
sas tecnológicas aguardarão os visitantes. queológicos. cia em locais estabelecidos.

NÚMEROS 500 anos de contactos entre Portugal e o


Vietname em mostra na Torre do Tombo 30 alunos de arquitetura de Oxford fazem
propostas de reabilitação em Évora

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O Noticioso

Censura
O “Santa
Maria”
vivido no JN
Fundado em 1888, o “Jor-
nal de Notícias” é uma fon-
te essencial para o estudo
da História contemporâ-
nea de Portugal, como to-
da a Imprensa escrita. Há,
porém, fatores que tornam
RICARDO JÚNIOR / GLOBAL IMAGENS
estas fontes lacunares, des-
Minas de São Pedro da Cova tacando-se a ação dos cen-
sores. Pinto Garcia, anti-
Património classificado posto à venda go jornalista do JN, viveu a
forma como a censura aba-
Classificados como Monumento de Interesse Público desde março de 2010, o cavalete do fou o noticiário respeitante
poço de São Vicente e o complexo mineiro de São Pedro da Cova, em Gondomar, estão ago- ao assalto ao paquete “San-
ra no centro de um processo bizarro. Sem terem alguma vez sido beneficiados por essa clas- ta Maria”, perpetrado por
sificação, que define ainda, como habitualmente, uma zona de proteção especial, o que se 23 homens liderados por
traduz pelo estado de abandono e degradação em que se encontram, os edifícios foram ago- Henrique Galvão (janeiro
ra postos à venda, segundo edital da Autoridade Tributária e Aduaneira divulgado pela Junta de 1961) no que foi uma das 05
da União de Freguesias de Fânzeres e São Pedro da Cova, A autarquia solicitou audiências a mais exuberantes ações
várias entidades, incluindo o Ministério da Cultura, para procurar soluções para este impor- de desafio à ditadura. É da
tante exemplar de arqueologia industrial. Descobertas no último quartel do século XVIII, “Operação Dulcineia”, ba-
as jazidas de carvão mineral de São Pedro da Cova foram exploradas durante perto de dois tizada pelo próprio Galvão,
séculos, embora a exploração tenha entrado em decadência logo após a II Guerra Mundial, e do modo como a informa-
com o surgimento de outras formas de produção de energia. Em 1942, por exemplo, das 580 ção que chegava às reda-
mil toneladas obtidas em Portugal, 360 mil foram extraídas das minas de São Pedro da Cova. ções era silenciada que tra-
ta «Como a Censura Assal-
tou o ‘Santa Maria’», livro
Museus Famalicão
Silenciamento
de Pinto Garcia, que coor-
denava o noticiário inter-
Entradas grátis no século XX nacional do matutino por-
vão ser O Museu Bernardino Machado,
tuense e guardou os telexes
riscados pelos censores.
alargadas localizado em Vila Nova de Fama-
licão, dedica o ano de 2016 ao te-
ma da censura em Portugal, entre
Estender a gratuitidade dos museus para cidadãos com 1910 e 1974. Um extenso progra-
idade até aos 30 anos, aos fins de semana e feriados, é uma ma de conferências sobre o tema
das linhas contidas nas Grandes Opções do Plano do Go- será complementado por duas
verno para a área da Cultura. Promover a criação do Arqui- exposições: a primeira – Os livros
vo Sonoro Nacional ou potenciar e consolidar os acervos proibidos pela ditadura” – está
de arte contemporânea são outras prioridades do Executi- patente até 13 de março. Depois,
vo, que pretende também lançar um programa faseado de entre 2 de junho e 17 de julho, po-
recuperação do património classificado, revitalizar as re- derá ser visitada uma mostra so-
des patrimoniais existentes ou dar maior autonomia às en- bre “A repressão da imprensa na I
tidades gestoras de museus e monumentos nacionais. República”.

60 metros tem uma barca funerária, com


4500 anos, descoberta em Gizé, no Egito 313 trabalhos de alunos de Vila Real honram
o foral dado à cidade por D. Manuel I

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O Noticioso
A ABRIR

História
Prémio
Alberto
Sampaio
Instituído em 1995
e interrompido em
2008, regressa o
Prémio de História Exposição
Alberto Sampaio”,
no valor de 6000 eu-
A Lusitânia
ros e financiado pelos
ORLANDO ALMEIDA / GLOBAL IMAGENS
dos romanos
municípios de Bra-
ga, Guimarães e Vi-
la Nova de Famalicão.
Viana do Castelo Até 30 de junho pode visi-
tar-se, no Museu Nacional
Passando a ser anual, “Gil Eannes” poderá acolher de Arqueologia, em Lisboa,
a exposição “Lusitânia Ro-
o prémio “destina -se
a galardoar um es- espólio dos estaleiros navais mana. Origem de dois po-
tudo de investigação vos”. Depois, poderá tran-
histórica, no âmbi- Acostado em Viana do Castelo, onde foi construído, o “Gil Eannes”, sitar para Madrid, e antes
to da história econó- navio-hospital que prestou assistência à frota bacalhoeira nos distan- esteve em Mérida. Resul-
mica e social portu- tes bancos da Terra Nova, poderá vir a acolher o espólio dos estaleiros tante do esforço conjunto
guesa, ou no âmbito navais da cidade. Funcionando há muito como espaço museológico, o do Museu Nacional de Arte
de outros domínios navio acolheu também a única pousada da Juventude flutuante exis- Romano (Mérida) e do Mu-
historiográficos as- tente em Portugal, instalada no que haviam sido enfermarias, encer- seu Nacional de Arqueo-
06 sociados ao legado rada em 2013. É para esse espaço, justamente, que está a ser estudada logia, a mostra é formada
de Alberto Sampaio”. a instalação do novo núcleo museológico. Tendo servido entre 1955 e por 207 bens culturais de
Os trabalhos podem 1973, este é o segundo navio portador do nome “Gil Eannes” que cum- grande interesse arqueo-
ser entregues até 31 priu as mesmas funções. O primeiro foi um dos navios apresados por lógico, histórico e artísti-
de maio. Devem ser Portugal à Alemanha, em 1916, ação de que resultou a declaração de co, pertencentes a 19 mu-
inéditos, em portu- guerra evocada nesta edição da “JN História”. Originalmente chama- seus ou instituições, 14
guês e com dimen- do “Lahneck”, viajou entre Portugal e a Terra Nova entre 1927 e 1955. portugueses e cinco espa-
são entre 20 mil e 40 nhóis. Composta por nove
mil palavras, estan- núcleos (I. O olhar do ou-
do interditos textos Braga Ílhavo
Cultura
tro; II. O contacto. O impac-
to da presença romana; III.
que resultem de pro-
vas académicas. Os
Câmara vai recuperar do mar A plena integração do ter-
concorrentes devem núcleo da cidade romana em prémio ritório lusitano; IV. As cida-
endereçar os traba- des lusitanas; V. Viver em
lhos à Academia das Um “Plano de Pormenor e Salvaguarda do Quar- Corre até 27 de sociedade; VI. A economia
Ciências de Lisboa, teirão da Ínsula das Carvalheiras” vai ser lança- maio o prazo de can- e as formas de produção;
responsável pela di- do, pela Câmara de Braga, de modo a preservar o didaturas ao Prémio VII. A vida rural; VIII. As
reção científica do importante núcleo arqueológico, vestígio de um Octávio Lixa Filguei- manifestações religiosas;
prémio. setor da antiga cidade romana identificado, em ras, do Museu Maríti- IX. A lenta transformação),
1983, no local onde estava prevista a construção mo de Ílhavo, desti- complementados por um
de um complexo pedagógico e desportivo. Além nado a promover in- décimo (a projeção de um
da valorização específica do núcleo arqueológi- vestigação, na área audiovisual sobre o legado
co (situado no miolo de um quarteirão delimita- das Ciências Sociais, romano em Portugal e na
do pelas ruas do Matadouro, do Visconde de Pin- sobre a cultura do espanhola Extremadura),
dela, da Cruz de Pedra e de S. Sebastião), o pla- mar. O prémio pecu- a exposição fecha os olhos
no visa a criação de infraestruturas associadas, a niário, de 3000 eu- ao mapa político atual, va-
reabilitação do edificado envolvente e a promo- ros, é atribuído pela lorizando o todo da Lusitâ-
ção turística do sítio. terceira vez. nia romana.

NÚMEROS 4 Mais de 4 milhões de pessoas visitaram,


em 2015 monumentos e museus da DGPC 300 dias é o prazo de execução do restauro
da igreja da Misericórdia de Leiria

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O Noticioso

Requalificação Monumento integra


património
da Humanidade

07

Forte da Graça
Elvas resgata joia da arquitetura militar
Fora do núcleo fortificado da cidade de Elvas, Também conhecido por “Forte de Lippe”, por
mas inserido em todo o conjunto classificado a construção ter sido ordenada, em 1763, pe-
como Património da Humanidade em 2012, o lo marechal Wilhelm von Schaumburg-Li-
Forte da Graça renasceu e está finalmente visi- ppe, que o Marquês de Pombal contratara pa-
tável, constituindo um importante exemplo do ra reorganizar o Exército português, o Forte da
que pode e deve ser a requalificação do patri- Graça está implantado num local cuja impor-
mónio edificado em Portugal. Entregue à ges- tância estratégica foi relevante desde as guer-
tão municipal em 2014, integrando um lote de ras da Restauração (1640-1668).
três dezenas de edifícios militares cedidos pe- É uma das mais notáveis fortificações abaluar-
lo Ministério da Defesa, o monumento havia si- tadas, não apenas em Portugal, mas em to-
do notícia, nos tempos precedentes, pelos pio- do o mundo, Agora, desde a reabertura de por-
res motivos: furtos, ações de vandalismo e tas (verificada em dezembro do ano passado),
degradação acentuada, resultantes da não uti- é essencialmente uma atração turística, va-
lização da estrutura, utilidade fora a de funcio- lorizada também pela musealização do espa-
nar como prisão política, da primeira Repúbli- ço e pelos melhoramentos em matéria de aces-
ca até 1975. sibilidades. O Forte da Graça visitável todos
A operação de requalificação, que durou 11 os dias (nos períodos entre as 10h00 e as 12h00
meses, envolveu duas centenas de trabalha- e entre as 14h00 e as 17h00), variando os pre-
dores e custou 6,1 milhões de euros, incidiu em ços entre os cinco euros (bilhete normal) e os
todas as estruturas, como sejam a cisterna, a 15 euros (visita guiada com acesso à cisterna).
prisão, as galerias de tiro ou a capela, bem co- Estudantes e cidadãos com mais de 65 anos
mo a recuperação da Casa do Governador, que pagam menos, e as crianças até 12 anos estão
encima o forte, ou das casas dos oficiais. isentas de pagamento.

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Abraçar a imagem
do apóstolo, no al-
tar-mor da catedral
compostelana, é um
dos muitos rituais da
peregrinação

Caminhos P
or ali determinaram os
romanos que acabava o
mundo. O Finis Terrae,
de que derivou Finis-
terra ou, na versão ga-

cruzados
lega, Fisterra, onde os
mais ortodoxos cami-
nheiros consumam a peregrinação, que
não sentem terminada em presença das
relíquias do apóstolo. Ora, nesse fim de

na rota de
mundo que era, grosso modo, o Noroes-
te da Península Ibérica, construiu a Cris-
tandade medieval, a partir do século IX,
um destino que poupava viagens a Roma
08 ou à Terra Santa. Hoje, Santiago de Com-

Santiago
postela é um fenómeno global, buscado
por razões piedosas, culturais ou mera-
mente lúdicas. E o Caminho Português,
embora de popularidade muito recente
no contexto contemporâneo, é cumpri-
do desde antes de Portugal haver.
Mas o que é, afinal, o Caminho? De
onde vem? Para que serviu e para que
serve? Interpretá-lo à luz da fé é dar o
Textos de Pedro Olavo Simões
Nascido nos alvores caso por resolvido. Mas a História ocu-
pa-se de outras coisas. Procura evidên-
da Reconquista, o cias documentadas e tenta discernir
através de esquemas mentais terrenos,
culto de Compostela não pela iluminação do espírito. Daí que
quando Ermelindo Portela, historiador
impulsionou a e professor catedrático da Universida-
de de Santiago de Compostela, nos fala
formação dos novos do “momento em que o túmulo do após-
tolo foi inventado”, embora ressalve que
reinos cristãos, deu a invenção é comummente usada, neste
contexto, enquanto sinónimo de acha-
corpo ao poder da do, não descarta o sentido literal da pala-
Igreja, abraçou toda vra: “Não temos nenhum argumento sé-
rio, como historiadores, para dizer que
a Europa e entrou está ali a tumba de S. Tiago”.
Se nos aventurarmos, usando essa
em decadência, máquina do tempo que é a imaginação
(ou o tal discernimento, mais científi-
para depois abraçar co do que a imaginação), até ao primeiro
século da nossa era, dificilmente acha-
o mundo inteiro remos sentido na trasladação do corpo

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O Noticioso

09

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

decapitado do apóstolo S. Tiago Maior,


de Jerusalém para o tal fim do mundo,
ainda por cima a bordo de uma barca de
pedra, que entrou na ria de Arousa e su-
biu o rio Ulla até aportar onde hoje é Pa-
drón. Só a fé dá sentido a tão improvável
feito. E a História não terá por que fazer
vista grossa à fé. Tem apenas de olhar,
também, para conceitos mais palpáveis,
como os poderes terrenos, a conjuntura
política, o quadro mental da época, os jo-
gos de influências locais e no contexto
europeu, isto é, da Cristandade. E se fi-
zermos a ponte para o presente, olhando
o extraordinário entusiasmo que a pe-
regrinação compostelana desperta em
todo o mundo, não podemos escapar a
outros jogos, como sejam a economia e,
dentro desta, a promoção turística.
Hoje, o Caminho também é feito de
fé, mas não podemos deixar de perceber
que resulta de uma estratégia de marke-
ting vencedora. E se o turismo é movido
por interesses culturais, não traz mal ao
mundo que tenhamos fé nele.
O culto de Santiago da Galiza, como
era comum dizer-se em tempos medie-
vais, popularizou-se com relativa faci-
lidade, e os séculos XII e XIII represen-
010 taram a idade de ouro da peregrina-
ção. Mas há que ter em conta, também,
que o achamento do túmulo, melhor di-
zendo, a oficialização de um túmulo co-
mo sendo o do discípulo de Jesus Cristo,
serviu muitos propósitos bem terrenos.
Foi, por exemplo, um sinal de legitima-
ção divina da Reconquista. Tal como, na
tradição portuguesa, o “milagre de Ou-
rique” surge como construção legiti-
madora do rei fundador, Afonso Henri-
ques, e do próprio reino de Portugal. Por
aí caminharemos.

Herdeiros dos reis godos


É a popularidade, presente e crescente,
do Caminho que justifica, agora, a im-
portância de se perceber não apenas co-
mo surgiu o mito do apóstolo sepultado a
quatro mil quilómetros de distância, em
linha reta, do local onde morreu. E tam-
bém, claro, como desse mito nasceu um
enorme poder eclesiástico, ou, ainda,
como a construção desse mito foi rele-
vante para a afirmação de Portugal. Peregrinação tados quando a maior parte da Penínsu-
Recuar a um tempo pressupõe visi- termina frente à im- la Ibérica foi ocupada por muçulmanos,
tar os contextos materiais e morais des- ponente fachada da num processo encetado com a inva-
se tempo, no espaço a que nos reporta- catedral, no Obra- são de 711. Do Norte da Península Ibéri-
mos. E no século IX vivia-se, ainda, a doiro, espelho do po- ca poderia, na verdade, dizer-se que re-
memória dos reis cristãos que houve- der da Igreja com- sistia ainda e sempre ao invasor, como a
ra em Toledo (católicos, a partir da con- postelana aldeia de Astérix, mas isso não seria ri-
versão de Recaredo, no ano de 587), afas- goroso, por duas razões: a presença mu-

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O Noticioso

011

PEDRO CORREIA / GLOBAL IMAGENS

çulmana nestes territórios foi muito es- foi, também, determinante para aí nas- na decapitada – bispos, poderes locais,
cassa, ou até nula, e a convivência entre cer o movimento belicista a que cha- aristocracia –, que manteve viva a cha-
muçulmanos e cristãos era, em boa par- mamos Reconquista e que, aos nossos ma dessa velha memória dos reis godos
te, tranquila e pacífica. olhos, surge como fenómeno fundador cristãos, católicos. Dessa memória que
Mas esse afastamento do Norte (po- (ou refundador) das atuais nações ibé- os impulsionaria a terçar armas contra
demos estabelecer o rio Douro como ricas. Foi essa falta de contacto, bem co- os infiéis (infiéis também eles, se vistos
fronteira definitiva a partir da presúria mo a manutenção, nas zonas setentrio- do lado de lá, mas essa relativização não
de Portucale por Vímara Peres, em 868) nais, do que restava da estrutura toleda- faria então qualquer sentido). E é um dos

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

tais poderes locais que começa a adqui- Cripta sob o altar-


rir uma dinâmica especial, proclaman- -mor da catedral
do, na transição do século VIII para o sé- guarda a urna com
culo IX: “Nós somos os sucessores dos as relíquias do após-
reis de Toledo”. tolo, que só no sécu-
“É praticamente certo que Afonso II lo XIX, reencontra-
[rei das Astúrias de 791 a 842] já reivindi- das após estarem
ca isso. Estabelece a sua corte em Ovie- desaparecidas per-
do e, a partir daí, nascem essas ideias de to de 300 anos, ga-
que estava ali o sucessor do rei de Tole- nharam esta visibi-
do e que tinha por missão reconstruir a lidade
monarquia católica perdida”, nota Er-
melindo Portela. Estamos aqui a falar
da semente da Reconquista, movimen-
to a que as referências serão mais claras
no reinado de Afonso III (rei entre 866 e
910), mas que já vinha sendo conceptua-
lizado desde aquele tempo mais recua-
do. A tudo isto temos de somar, no qua-
dro mental da época, um outro dado im-
portantíssimo: desde o século VI que
circulavam escritos vinculando S. Tia-
go Maior à prédica do Cristianismo na
Hispânia, o que levara a que fosse decla-
rado, mesmo antes de Afonso II, patro-
no especial de todos os cristãos do Nor-
te (continua a ser o patrono de Espanha).
É este o cenário que enquadra a des-
coberta, num local que a racionalidade
012 não chega para tornar verosímil, do tú-
mulo do apóstolo S. Tiago.

A invenção de Teodomiro
Reformulemos, então. Era uma vez, em
Oviedo, um rei que reclamava ser su-
cessor dos antigos reis godos de Toledo.
Um rei cristão, católico, que ocupava tal
posição por graça de Deus e que enten-
dia ser distinto de todos os outros, o que
lhe dava legitimidade para encetar a lu-
ta contra os pagãos. Poderia haver maior
reforço dessa legitimidade do que, em
terras que lhe estavam vinculadas (já fa-
lámos da adesão dos poderes locais nor-
tenhos a essa ideia), ocorrer a descober-
ta da sepultura do mais dileto discípulo
de Jesus Cristo? Não parece. Tudo o resto
são suposições ou interpretações, sejam
elas céticas ou piedosas. Mas que S . Tia-
go surge como uma forma de legitima-
ção da Reconquista é algo que não pode
ser contestado.
Ora, a chamada “invenção de Teodo-
miro” dá-se nesse contexto. E, embora
haja referências, logo a partir do sécu-
lo IX, ao achado e à sua confirmação co-
mo sendo o túmulo de S. Tiago Maior, a
verdade é que os relatos do sucedido são
bem mais tardios, aparecendo algures
na transição do século XI para o século
XII. Uma fonte documental essencial é

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O Noticioso

a Concórdia de Antealtares, documen- em 1879, procedendo-se a escavações


to de finais do século XII (formulado en- arqueológicas no interior da catedral
tre o bispo compostelano Diego Peláez compostelana, foram encontradas ossa-
e a congregação beneditina de S. Paio das que o Papa então validou como sen-
de Antealtares, que, como o nome indi- do as do apóstolo, ficando desde essa al-
ca, estava estabelecida frente aos alta- tura guardadas no referido recetáculo.
res de S. Tiago, no sentido de estes se re- Mas paremos com os solavancos
tirarem para outro local, cedendo espa- cronológicos e regressemos aos tem-
ço para ser erguida a catedral românica, pos medievais. E recuemos mais do
no lugar do primitivo templo asturia- que havíamos feito até aqui. Ou seja, até
no). Nesse acordo, que integra a Histó- antes de um túmulo na Galiza ser va-
ria Compostelana mandada fazer, anos lidado como sendo o de S. Tiago. Siga-
mais tarde, pelo poderoso bispo Diogo mos à boleia de José Marques, um dos
Gelmires, está contida a relação dos di- historiadores portugueses mais dedi-
tos sucessos, que podem contar-se mui- cados a estes temas, que se debruçou
to rapidamente: havia um eremita, de também sobre o que era a peregrina-
seu nome Pelágio (ou Paio, ou Pelayo), ção saída do ocidente peninsular, an-
que viu umas luminárias, umas figu- tes de haver Portugal e, ainda, antes de
ras de anjos, circulando nos céus, que o haver Santiago de Compostela. Jerusa-
levaram a algo que não podemos preci- lém e Roma eram os destinos primor-
sar – um túmulo, uma necrópole aban- diais, mas fixemo-nos apenas nas idas
donada – mas que Teodomiro, bispo de de gente destas paragens à Terra Santa,
Iria Flavia (junto ao que hoje é Padrón, a para as quais o antigo professor da Fa-
uma vintena de quilómetros de Santia- culdade de Letras da Universidade do
go de Compostela), determinou tratar- Porto traça “dois ciclos completamente
-se da sepultura de S. Tiago. diferentes: um anterior à invasão árabe
O século XII é, pois, um momento da Península Ibérica, iniciada em 711, e
fulcral para afirmar a peregrinação. É, outro, praticamente coincidente com o
também, um momento em que a Recon- início das Cruzadas do Oriente (1096) e
quista segue a toda a brida o seu cami- coevo dos primórdios da fundação do 013
nho. E é, enfim, o momento em que um Condado Portucalense (1095), que vi-
príncipe se declara rei. De quem? Dos ria a transformar-se em reino indepen-
portugueses. dente, com o nome de Portugal, que,
em momentos decisivos, beneficiou do
De Bretenaldo à massificação apoio militar dos expedicionários da
Na verdade, desde a invenção de Teodo- segunda e terceira cruzadas do Orien-
miro, a ideia do túmulo de S. Tiago na Ga- te, respetivamente, nas conquistas de
liza começou a ser aceite e, com ela, gen- Lisboa (1147) e de Silves (1189)”.
te começou a afluir ao local do achado. As notícias de peregrinações de gen-
Cada vez mais gente, de mais lugares. te deste recanto peninsular à Terra San-
Bretenaldo, um franco do século X, é o ta remontam ao século IV. Etérea (uma
primeiro peregrino de além-Pirenéus personagem obscura mas que se acre-
de que há notícia, tendo sido identifica- dita ser da região de Braga) é referen-
do por Ermelindo Portela. Fez a peregri- ciada como tendo ido ao Monte Sinai no
nação, instalou-se nas imediações do ano de 383, isto é, ainda antes de sur-
lugar santo e deu o mote a milhões que gir o primeiro bispo bracarense, Pater-
ainda hoje fazem do Caminho Francês no (entre os anos de 397 e 400). Seguem-
o mais concorrido de quantos levam à -se outros relatos de peregrinações, co-
catedral, onde, numa cripta sob o altar- mo a do presbítero Avito, que saiu com
-mor, é mantida a urna de prata com as vista a aperfeiçoar-se, teologicamente,
relíquias do apóstolo. Já agora, fique re- para combater a heresia do priscilianis-
gistado que essa urna de prata é contem- mo (que vingava no Noroeste peninsu-
porânea: foi feita no século XIX e surge lar), acabando fixado em Jerusalém, ou
como corolário de uma história longa e a de Paulo Orósio, que começou por ru-
curiosa, que remonta a 1589, ano em que mar ao Norte de África, para se encon-
o corsário inglês Francis Drake tentou trar com Santo Agostinho, tendo por este
tomar a Corunha. Falhou, mas em San- sido enviado à Palestina, ao encontro de
tiago de Compostela temiam que o ob- S. Jerónimo, e que regressou a Braga no
jetivo de Drake fosse roubar as relíquias ano de 416. Somam-se o bispo Idácio de
do apóstolo, pelo que foram escondi- Chaves ou o próprio S. Martinho de Du-
das, assim ficando quase 300 anos. Só me, que na Palestina terá bebido inspi-
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TEMA DE CAPA

ração para o modelo monástico que de- ça que ficou conhecida como Reforma a autoritas, ou seja, a capacidade de defi-
pois implementou em terras minhotas, Gregoriana. A Igreja do Noroeste penin- nir o que está bem e o que está mal); de-
ou o monge Pascásio, célebre tradutor sular deveria integrar-se no conjunto da pois, temos o mito do reino, traduzido no
de grego dumiense, que também poderá Cristandade latina, e é de Gelmires o es- facto de a História Compostelana nunca
ter visitado os lugares pisados por Cristo. forço de colocar o culto compostelano falar em reino de Leão, mas na Hispânia,
Nota José Marques: “Não são mui- nessa realidade mais ampla. Sinais de tal reforçando a ideia dos herdeiros dos reis
tas as notícias de peregrinos do ociden- política são a atribuição ao Papa Calisto de Toledo, destinados a governar toda a
te peninsular na Palestina antes da in- II do livro essencial da Igreja compos- península, o que valeu ao bispo protago-
vasão árabe de 711, mas bastam como telana (o Códice Calixtino), a criação de nismo e influência; finalmente, Gelmi-
testemunho da vitalidade cristã nos lendas vinculando Carlos Magno ao cul- res conseguiu alargar e fixar as frontei-
confins ocidentais da Europa, nos sécu- to a S. Tiago naquele lugar e, ainda, uma ras do senhorio compostelano (centra-
los IV-VI”. Ora, essas raízes fundadas na relação muito mais estreita com a reali- do na cidade de que também era senhor),
Alta Idade Média formaram, justamen- dade europeia, materializada num notá- obtendo disso os benefícios e vários pri-
te, boa parte do fertilizante que veio a co- vel incremento do afluxo de peregrinos vilégios, como sejam, além da cunha-
roar de êxito, mais tarde, a peregrina- de além-Pirenéus. gem de moeda, a capacidade de admi-
ção compostelana. Mas o mais forte con- O grande fulgor de Santiago de Com- nistrar a justiça, a cobrança de impostos
tributo para essa rápida popularização postela, onde o fenómeno da peregrina- ou a organização do exército.
foi, como logo apontámos, a Reconquis- ção andava de mãos dadas com uma ati-
ta. Diz José Marques que a peregrinação vidade económica intensa, situava-se, Muitos caminhos portugueses
foi “favorecida pela dificuldade de livre no século XI, muito além do culto, fruto É Gelmires, pois, quem manda em Com-
acesso aos Lugares Santos da Palestina”, da ação de Gelmires. O melhor exemplo postela nos alvores da nacionalidade
algo que Ermelindo Portela corrobora , disso é o facto de o prelado ter obtido de portuguesa, quando se dá o já referido
apontando-o, ainda, como um dos fato- Afonso VI, quando o rei de Leão e Castela episódio do “pio latrocínio” (o roubo pie-
res que levam ao surgimento do movi- estava no fim dos seus dias, o privilégio doso, como se lê no relato feito por Hugo,
mento da cruzada, ou seja, “a conquista absolutamente excecional de cunhar arcediago de Compostela que veio a ser
dos lugares santos da vida de Cristo, pa- moeda, uma enorme fonte de benefí- bispo do Porto, das relíquias de santos
ra que se possa realizar a peregrinação”. cios. Na concessão do direito, o monarca que eram posse da arquidiocese de Bra-
Aliás, a Reconquista era pregada, tam- justificava-o com a intenção de acorrer ga) e, depois, quando o arcebispo braca-
bém, com o objetivo de chegar ao Medi- às necessidades decorrentes da cons- rense, S. Geraldo, vai a Roma queixar-se,
014 terrâneo e, daí, aceder mais facilmente trução do grande templo de Santiago. e quando, provavelmente (há opiniões
a Jerusalém, ou seja, uma etapa da pró- Há uma fonte incontornável para co- contraditórias a esse respeito), o conde
pria cruzada. nhecer este bispo, a História Composte- portucalense, D. Henrique, vai à Terra
lana, que ele próprio mandou elaborar e Santa. O mesmo conde D. Henrique de-
O poderoso Diogo Gelmires que é, em verdade, mais uma crónica do voto da peregrinação, que, em 1097, doa-
É neste contexto que encontramos Dio- seu próprio ministério do que uma his- ra a Correlhã (hoje no concelho de Pon-
go Gelmires (Diego Gelmírez, em caste- tória da cidade ou da catedral. Ali per- te de Lima) a Santiago de Compostela. O
lhano, Diego Xelmírez, em galego), bis- cebe-se com clareza, nota Ermelindo mesmo conde que, enfim, protagoniza-
po poderoso, um homem interessado Portela, como ele soube “definir muito va uma secessão na Galiza original.
na peregrinação e, sobretudo, o princi- bem a sua posição nos três âmbitos fun- Estava já enraizado, também, o mito
pal construtor da grandeza de Santiago damentais para entender a política des- de Santiago Matamoros, o Mata-mouros
de Compostela. Algo que fez, por exem- se tempo”: em primeiro lugar, a relação que terá aparecido aos guerreiros cris-
plo, ao manter uma dura rivalidade ecle- com a Cristandade, isto é, com o Papado, tãos na batalha de Clavijo, em 844, e que,
siástica com Braga (ver, adiante, o artigo e a forma como, no contexto reformista, em Portugal, até à revolução de 1383-85,
de Luís Carlos Amaral sobre o episódio soube incorporar, para seu benefício, a foi também incessantemente invocado
do “pio latrocínio”), mas, sobretudo, por ideologia hierática (os reis têm a potes- nas contendas. Dessa faceta guerreira
duas ordens de razões: uma terrena, tra- tas, isto é, a capacidade de mandar e or- do santo nasceu a ordem militar de San-
duzida pelos privilégios que obteve do ganizar as coisas, mas os sacerdotes têm tiago (e a cruz de Santiago, em forma de
rei Afonso VI de Leão; outra doutrinal, espada), que em Portugal foi importante
assente na reaproximação ao Papado. no processo de povoamento e definição
Comecemos por esta. RECONQUISTA ERA de fronteiras.
Antes de Gelmires, a Igreja do No- Os séculos XI e XII, na Europa, cons-
roeste peninsular estava distante do MAIS DO QUE UM FIM, tituíram um tempo em que as pessoas se
pontificado romano. Mantinha-se o rito SENDO PREGADA moviam, viajavam, iam à cruzada, des-
moçárabe, ligado à Igreja de Toledo (an- locavam-se às fronteiras orientais pa-
terior à invasão muçulmana), e formas COMO UM MEIO ra colonizar novos territórios, moviam-
de vivência monástica muito distintas PARA CHEGAR -se para sul na Península Ibérica, no âm-
das que existiam no resto da Europa, co- bito da Reconquista, deslocavam-se até
mo sejam as regras de Isidoro de Sevilha, AO MEDITERRÂNEO às cidades que nasciam e se multiplica-
de Frutuoso de Braga, ou de Martinho de E FACILITAR O ACESSO vam, viajavam rumo aos centros de pe-
Dume. Mas tudo isso tendia a desapa- regrinação. E Portugal também rumava
recer, no contexto da profunda mudan- A JERUSALÉM a Santiago, embora a generalidade da bi-

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bliografia sobre o Caminho só tenha em


conta a rota originária em França. Num
artigo intitulado “Vias portuguesas de
peregrinação a Santiago de Composte-
la na Idade Média” (1986), Humberto Ba-
quero Moreno demonstrou que “Cami-
nho”, nesses tempos primordiais, repre-
sentava uma teia bem mais intrincada
(e informal, também) do que os trilhos
atualmente sinalizados com setas ama-
relas, apontando o rumo aos peregrinos.
“Geralmente, quando pensamos em
caminho, pensamos naquele que era
mais frequentado, que tinha melhores
estruturas de apoio aos peregrinos, de
assistência, que tinha albergues, hos-
pitais... isso ajudou-nos a definir uma li-
nha, mas há caminhos a partir de todas
as localidades”, salvaguarda José Mar-
ques, em conversa com a JNH. Porém,
podemos estabelecer, de algum modo,
quais eram os principais, e, além da re-
de viária do Entre-Douro-e-Minho, que
havia sido estudada por Carlos Alberto
Ferreira de Almeida (vejam-se as duas
possibilidades de ir até Ponte de Lima,
por Braga ou por Rates e Barcelos, acres-
cendo uma menos usada via que seguia
pelo litoral, todas elas desaguando em
Valença), Baquero Moreno cruzou os 015
caminhos medievais conhecidos com
as notícias de peregrinos na Idade Mé-
dia e traçou uma complexa rede, do Al-
garve até à fronteira setentrional do rei-
no, sendo relevante notar, por exemplo,
que muitos dos peregrinos do Sul iam de
barco até ao Porto ou até Viana da Foz do
Lima (atualmente Viana do Castelo), só
depois seguindo a pé para Santiago de
Compostela.
O mapa de Humberto Baquero Mo-
reno, que reproduzimos nestas pági-
nas, apresenta os trajetos essenciais
usados pelos peregrinos que iam a San-
tiago, e que eram, também, usados por
estrangeiros (por exemplo, peregrinos
que vinham de certas partes de Caste-
RUI OLIVEIRA / GLOBAL IMAGENS
la e Leão podiam, a determinada altu-
O grande fulgor de Compostela, onde o fenómeno da ra, infletir para território português).
O próprio Fernão Lopes, na Crónica de
peregrinação andava de mãos dadas com uma ativida- D. João I, relatando a campanha mili-
de económica intensa, situava-se, no século XI, muito tar do mestre de Avis contra o castelo
de Bragança, refere a presença de mui-
além do culto, fruto da ação de Diogo Gelmires. O melhor tos almocreves e mercadores castelha-
nos, cujo destino era a festa de julho em
exemplo disso é o facto de o prelado ter obtido de Afon- Santiago de Galiza.
so VI, quando o rei de Leão estava no fim dos seus dias,
Abrandamento da peregrinação
o privilégio absolutamente excecional de cunhar moeda. Encarar o Caminho como um fenóme-
no eminentemente medieval poderá
parecer redutor, mas não é totalmen-

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TEMA DE CAPA

te desprovido de sentido. Os comos e testamentária, evidentemente na ex- no trouxe um notório agravamento


porquês estão nesses tempos, em que pectativa de que a caminhada, terrena e desse problema, a avaliar pelas medi-
a construção política não podia ser dis- póstuma, facilitasse o acesso à salvação das contra eles de que a documentação
sociada da construção espiritual, e é dos que expressavam tal vontade. disponível dá conta.
sabido que, embora nunca tenha dei- O Caminho foi-se tornando me-
xado de existir, a peregrinação entrou nos apetecido para reis e príncipes es- Popularidade global
em decadência face a fenómenos como trangeiros, e até os monarcas espa- No que toca à contemporaneidade, a
a crise dos séculos XIV e XV e a Refor- nhóis eram peregrinos meramente importância do Caminho é, podemos
ma Protestante. circunstanciais, como foi o caso de Fi- dizê-lo, coisa muito recente, associa-
Há, todavia, outros fatores que aju- lipe II (primeiro em Portugal), que pas- da, de um modo claro e pouco escondi-
dam a perceber essa alteração, incluin- sou em Santiago apenas porque ruma- do, à vertente económica. Não quer isso
do, até, as prédicas contra a peregrina- va a Inglaterra, para se casar com Ma- dizer que os motivos piedosos tenham
ção, provavelmente tão antigas como ria Tudor, filha e terceira sucessora de deixado de ser o sal da peregrinação.
esta. O historiador espanhol José Ma- Henrique VIII. O mesmo sucedeu já no Hoje, com o tratamento estatístico que
ría Lacarra (1907-1987) dá o exemplo século XVII, quando Filipe IV (terceiro é feito, percebe-se que o impulso da
de um pregador italiano que, em 1305, de Portugal) ali passou quando se diri- peregrinação é maioritariamente re-
alertava os fiéis do perigo das piedo- gia à Corunha, onde tropas embarca- ligioso. Grupos de peregrinos viajam
sas viagens, não apenas pelos riscos riam rumo à Flandres. A partir de mea- com sacerdotes, que celebram missa
em que incorriam caminho afora, mas dos da centúria quinhentista, verifica- nos lugares mais inauditos, dos alber-
também pela possibilidade, que dava -se que os peregrinos são, no essencial, gues aos recantos nos trilhos de mon-
como forte, de regressarem em peca- clérigos e gente sem grandes posses tanha. Mas será o apelo tão místico co-
do. Cita ainda uma passagem da “Imi- ou posição, como artesãos ou lavrado- mo o era depois do bispo Teodomiro?
tação de Cristo”, escrita por Tomás de res. Os cortejos de nobres ou de gran- Não o será, ou sê-lo-á de forma dife-
Kempis no século XV (“Qui multo pere- des mercadores, rumo à sepultura do rente, mas isso já não é matéria que in-
grinantur raro sanctificantur” – rara- apóstolo, eram coisa do passado. E se teresse à História. O Caminho de San-
mente se santificam os que muito pere- o povo era o garante da continuidade tiago atravessa, presentemente, um pi-
grinam), ou ainda Bernardino Ochino da peregrinação, também as crenças co de popularidade global, como nunca
(1487-1564), um padre católico italiano populares em redor do Caminho (prá- se viu. Os peregrinos não chegam dos
que veio a abraçar o protestantismo e ticas supersticiosas, por exemplo) ad- quatro cantos da Europa, mas das qua-
016 acusava os “homens carnais”, que em- quiriram maior força neste tempo. Tal tro partidas do mundo, em voos mais ou
preendiam o caminho de Santiago ou como a prevalência dos falsos peregri- menos baratos, de mochila às costas ou
qualquer outro, de acreditarem ser sal- nos, aqueles que tomavam o caminho com meios mais sofisticados de apoio,
vos pela peregrinação e não por Cris- para roubar, enganar, burlar. Exem- rumo a um destino que se vende global-
to. O protestantismo opunha-se à pe- plo disso são os falsos cativos, que, co- mente muito bem.
regrinação, sendo esta travada onde mo relatou Joan de Huarte, subprior Chegados à catedral, abraçam o san-
aquele vingava, mas outros fatores le- de Roncesvalles (o primeiro marco do to, vislumbram a urna com as relíquias,
varam ao declínio de que falamos, co- Caminho Francês em território espa- enfiam os dedos na coluna do Pórtico da
mo seja a substituição do imbricado nhol) na transição do século XVI para Glória, supostamente na marca deixa-
mosaico senhorial pela mais ampla o XVII, andavam “enganando as gen- da pelo próprio Jesus Cristo, quando fez
realidade dos estados-nações, que co- tes com histórias sobre o que teriam rodar a grande igreja, para que o altar fi-
locava novos obstáculos à mobilidade, padecido, em Argel, em Constantino- casse voltado para ocidente, encostam a
ou o surgimento de novas escapatórias pla, em Marrocos e em outras terras de cabeça à da estatueta do mestre Matteo,
para os que tinham sede de aventura: turcos e mouros, fingindo mil menti- arquiteto do templo, para dele sorverem
as guerras nacionais, os descobrimen- ras”. Os peregrinos fraudulentos exis- a sabedoria, pasmam com o ritual do
tos, o comércio longínquo... tem desde que há peregrinação, sendo “botafumeiro” (um gigantesco turíbulo
Mas isso não significava que os aven- já referenciados no “Liber Sancti Iaco- que oscila no transepto da catedral, em
tureiros não se fizessem ao caminho, na bi” (século XII), mas o período moder- algumas celebrações)...
transição entre tempos medievais e mo- Os peregrinos, que a partir da Épo-
dernos. Aliás, escrevem Lacarra e Luis ca Moderna eram muitas vezes encara-
Vásquez de Parga, “no século XV inicia- FENÓMENOS dos, pelos súbditos de todo o reino, como
-se um novo tipo de peregrino cavalhei- gente de má índole (“chusma herética
resco, para o qual a meta piedosa da via- COMO A CRISE DOS que anda por Espanha vestida e disfar-
gem era pouco menos do que um pretex- SÉCULOS XIV E XV çada em peles de cordeiro, quando são
to para ter oportunidade de ver países e lobos contra a religião cristã”, escreveu o
costumes exóticos, frequentar cortes OU A REFORMA atrás referido subprior Huarte), são hoje
estrangeiras e exibir o seu valor, habili- PROTESTANTE o ganha-pão de uma indústria diversifi-
dade e destreza nos torneios”. À passa- cada e muito lucrativa. Mas isso é o desti-
gem para o século XVI, começam tam- CONTRIBUÍRAM PARA no, e é apesar dos males do destino, mes-
bém a tornar-se frequentes as peregri- ALGUMA DECADÊNCIA mo assim belo e amado, que se faz a pe-
nações por delegação, ou, ainda, as que regrinação. Ama-se o Caminho mais do
ficavam encomendadas por disposição DE COMPOSTELA que a meta.

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Milagres da Rainha Santa


nas viagens à Galiza
Conde D. Henrique e D. Manuel I também foram peregrinos

017

Representação Entre os monarcas portugue- tá documentada a passagem por tico da Glória, à entrada do tem-
da chegada da ses que fizeram a peregrinação Vila do Conde, onde a comitiva plo compostelano), hoje entre-
Rainha Santa Isabel a Santiago, já levada a cabo an- régia contribuiu, material e con- gue aos cuidados da Confra-
a Santiago tes da nacionalidade, pelos con- ceptualmente, para as obras da ria da Rainha Santa Isabel, em
de Compostela des portucalenses D. Henrique igreja matriz (cujos traços ma- Coimbra.
e D. Teresa, ressaltam as figuras nuelinos são evidentes). Só no Às peregrinações da Rainha
de D. Manuel I, que rumou a Com- regresso o monarca, a partir de Santa, a tradição associa ainda
postela em Dezembro de 1502, Valença, seguiu para Ponte de Li- a ocorrência de vários milagres,
e, sobretudo, da Rainha Santa ma e Braga. Quanto a D. Isabel, que José Marques assim descre-
Isabel, que o fez em 1325 (e ou- está, por exemplo, assente que ve, num artigo sobre “Os san-
tra vez, dez anos mais tarde, fa- atravessou o rio Cávado na Barca tos dos caminhos portugueses”
zendo então questão de manter do Lago, em Esposende, ou se- (Revista da Faculdade de Letras,
secreta a viagem), já depois da ja, bem longe do percurso mais Porto, 2006): “Quando se deslo-
morte de D. Dinis e antes de fixar usado pelos peregrinos. cava de Coimbra para o Porto, em
residência em Coimbra, junto ao Em Santiago de Compostela, fi- Arrifana, curou uma menina, ce-
mosteiro de Santa Clara. zeram oferendas ao apóstolo. ga de nascença; sara um lepro-
Ambos os percursos, da Rainha Sabe-se que a Rainha Santa dei- so gravemente ferido na cabeça;
Santa e de D. Manuel, demons- xou na catedral galega alfaias li- com o sinal da cruz e com um bei-
tram que havia caminhos secun- túrgicas, joias e paramentos, re- jo; em Quinta-feira Santa, cura o
dários mais próximos da cos- cebendo em troca o bordão de cancro de uma leprosa, que tinha
ta, alternativos ao que era a his- peregrina em forma de tau (se- comparecido ao lava-pés; em
tórica via romana que conduzia a melhante àquele com que o Alenquer, mudou a água em vi-
Braga. No caso de D. Manuel, es- apóstolo é representado no Pór- nho e converteu o pão em rosas”.

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TEMA DE CAPA

Uma aventura
recheada
de perigos
Viajar na Idade Média era, por desadequado que o termo possa ser à
época, uma aventura. Sendo a criminalidade tão “mais antiga pro-
fissão do mundo” como qualquer outra, os perigos eram imensos,
não só no que respeita a assaltos violentos como a uma prática a
que os peregrinos estavam particularmente sujeitos, a do desenga-
no e da vigarice. E ir a pé não era uma opção piedosa ou penitencial,
mas a forma normal de deslocação para a maioria das pessoas.
Como nota o historiador José Marques, “era frequente e aconselhá-
vel viajar em pequenos ou grandes grupos, conforme as circunstân-
cias o permitiam, não só por uma questão de entreajuda, mas até
para evitar assaltos ou deles se defender”. Essa era uma prática co-
mum entre os almocreves, que tinham em conta não apenas a se-
gurança pessoal, mas, também, a integridade das mercadorias que
transportavam. Veio a ser, igualmente, adotada pelos que rumavam
a Santiago de Compostela em busca de consolo espiritual.
E se as rotas mais usadas eram aquelas onde havia estruturas de
apoio, que permitissem, por exemplo, pernoitar debaixo de algum
teto (era mais seguro viajar à luz do dia), tal não constituía garan-
018 tia por aí além. Numa comunicação feita ao I Congresso interna-
cional dos caminhos portugueses de Santiago de Compostela, em
1989, Ana Arranz Guzman demonstrou que os peregrinos encon-
travam nas estalagens e albergarias (não olhemos estes concei-
to à luz dos nossos dias, pois tratava-se de estruturas muito pre-
cárias), justamente, aquilo de que tentavam fugir: furtos e “peri-
gos de ordem moral”.
Abundam testemunhos de peregrinos que dão conta de todos es-
ses perigos. O historiador Humberto Baquero Moreno (1934-2015)
encontrou alguns exemplos. É o caso de um casal de alemães, Pe-
Rocamadour
(ou Rocamador), em
França, era destino
Romarias e
dro e Jacomina, que, em meados do século XV, cumpriam o traje-
to entre Castelo de Vide e Nisa (Santiago de Galiza era o destino final
de uma das mais im-
portantes peregri- peregrinações
na Idade
da viagem) e queixaram-se a Álvaro Dias, juiz da segunda daquelas nações medievais
vilas, contra três vaqueiros que os assaltaram e, ainda, “tomaram a
dicta molher e per força dormjram com ella”.
No que respeita às “afrontas e enganos” sofridos pelos peregrinos,
designadamente nas estalagens (não necessariamente portugue-
sas, mas é perfeitamente legítimo assumir que, nestas, o panora-
Média
ma seria idêntico), o próprio “Liber Sancti Iacobi” (uma compila-
ção de escritos do século XII) traça um feio retrato dos esta- Além dos mais afamados
lajadeiros, que davam aos peregrinos maus aposentos (à
luz da época, o que significa mesmo muito maus) e ser-
santuários, muitas eram
viam carne e peixe deteriorados, com vários dias de uso, as rotas piedosas, mais ou
que causavam doenças e, muitas vezes, a morte dos via-
jantes. Pelo caminho, se houvesse epidemias de peste, os
menos longas e muitas vezes
peregrinos eram acusados, pelas populações, de serem por- coincidentes com as feiras
tadores do contágio, sofrendo represálias. Pelo caminho,
encontravam, ainda, falsos padres que lhes extorquiam di-
nheiro a troco da celebração de missas, e quando chegavam a
Compostela nem por isso encontravam a paz: cambistas e co-
merciantes estavam preparados para os depenar de tudo o
que houvesse resistido à viagem.

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O Noticioso

019

Escreve Maria Helena da Cruz Coe- por todo o lado (muitos deles estão refe- citano que designa a localidade fran-
lho que “o homem medieval conhecia ridos no cancioneiro medieval). A eles cesa hoje chamada Rocamadour), a
os caminhos – dos caminhos do gado, estava também associado, frequente- virgem negra, ou “Virgem Morena”.
da água, da lenha, do trabalho, aos ca- mente, o culto mariano, que teve forte Muitas vezes erradamente descrito
minhos do carreto dos frutos para o ce- impulso no século XIII e estava disse- como ficando nos Pirenéus (por se lo-
leiro senhorial ou da justiça e serviços minado por Portugal inteiro. calizar na região Midi-Pyrénées, em-
na sede do concelho. Não desdenha- Desta religiosidade penitencial bora bem longe da cordilheira que se-
ria pois os caminhos da feira, da roma- das peregrinações transparecia, cla- para França de Espanha), o culto de
ria, das peregrinações” (Nova História ro, a ideia de que em muitos casos só Rocamador rivalizou de algum mo-
de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de o milagre poderia representar a cura do com a peregrinação compostela-
Oliveira Marques, vol. III, pp. 303-308). das mais graves maleitas, fossem elas na. Em Portugal, por exemplo, tal po-
Ora, os trajetos ligados à fé assumiam, contraídas ou congénitas. E a força pularidade levou a réplicas desse cul-
naturalmente, dimensões muito va- milagreira adquiria, digamos assim, to, como seja em Soza (hoje freguesia
riadas. Jerusalém, Roma e, claro, San- portabilidade, estendendo-se a ob- do concelho de Vagos), a partir de on-
tiago de Compostela eram espécies de jetos ou, simplesmente, a terra reco- de foi impulsionada a criação de vá-
nec plus ultra das peregrinações, mas a lhida junto ao local de culto. Mais po- rios hospitais-albergarias, entre eles
piedade peregrina tinha muitos desti- derosa ainda seria essa força quan- o do Porto, que ficou conhecido, justa-
nos de mais fácil e próximo acesso. do presente em relíquias dos próprios mente, como de Rocamador.
As peregrinações coincidiam, mui- santos, mas essas não eram acessíveis Havia outros locais de peregrinação
tas vezes, com a realização de feiras. No a qualquer um, o que também tornava longínquos, sendo exemplo, também
S. João rumava-se à Guarda, pelo S. Pe- florescente o negócio em torno desses em França, o de Santa Maria de Puy,
dro a Monsanto, por Santiago a Évora, o materiais sagrados. bem como diversos em território hoje
S. Martinho era em Gaia... e por aí fora. No que respeita à Virgem, a mais espanhol, casos de Santa Maria de Vi-
Existia, também, o hábito de rumar ao afamada de todas, na Idade Média, era la Sirga, da Virgem de Tudía ou de San-
santo de devoção especial, e havia-os Santa Maria de Rocamador (termo oc- ta Maria de Sala.

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A terrível razia
do grande Almançor
Caudilho do Al-Andalus atacou Compostela em 997,
feito que as crónicas muçulmanas de então descrevem
com os habituais exageros panegíricos

020
“Almançor chegou nesta época ao mais zia, é nítida a perfeita noção que havia,
alto grau de poder. Socorrido por Alá em particular no lado inimigo, da im-
nas suas guerras contra os príncipes portância do santuário compostelano:
cristãos, marchou sobre Santiago, ci- “A igreja de Santiago é para os cristãos
dade de Galiza, que é o mais importan- como para nós a Caaba”.
te santuário cristão de Espanha e das Sobre a famosa expedição de Al-
regiões próximas do continente”, co- mançor a Santiago sabe-se isso mes-
meça por descrever o cronista. O tex- mo, que foi famosa. Ou seja, que foi
to de Al-Bayano’l-Mogrib, recolhido enaltecida pelos que a relataram, sen-
por António Borges Coelho na célebre do sempre necessária alguma precau-
coletânea “Portugal na Espanha Ára- ção quanto ao rigor destes textos en-
be”, dada à estampa em 1972 (consul- comiásticos. E o relato a que aqui nos
támos a edição original, publicada pe- reportamos, embora curto, é nitida-
la Seara Nova), descreve uma das mais mente concebido para o engrandeci-
famosas incursões militares de Abu mento do líder guerreiro do al-Anda-
Amir Muhammad ibn Abdullah ibn lus. Tal verifica-se, por exemplo, na di-
Abi Amir, al-Hajib al-Mansur, normal- mensão dada à tomada da “orgulhosa
mente referido apenas como Alman- cidade de Santiago”, onde não terá fi-
çor, justamente aquela em que se dá cado pedra sobre pedra. “Tinham-na
testemunho da redução a escombros abandonado os seus habitantes e os
de Santiago de Compostela, em agos- muçulmanos apoderaram-se de todas
to de 997. as riquezas que nela acharam e derri-
Num contexto que tendemos a baram as construções, as muralhas e
apontar como a Reconquista, pois ve- a igreja de tal maneira que não ficaram
mos o movimento usando os filtros do vestígios”, escreve-se, surgindo a ideia
lado cristão, testemunhos como estes reforçada logo à frente: “Mas todos os Almançor
dão conta do outro lado, neste caso o do formosos palácios, solidamente cons- perpetuado numa
grande jihadista da época, o que movia truídos, que se erguiam na cidade, fo- estátua em Alge-
a guerra santa contra os infiéis (os cris- ram reduzidos a pó, e não se teria sus- ciras, na espanhola
tãos, entenda-se), Almançor. E, se bem peitado, depois do seu arrasamento, província de Cádis
que haja claro exagero no relato da ra- que tivessem existido ali na véspera”.

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CATEDRAL DE SANTIAGO

021
A memória de duas muralhas em Santiago de Compostela, Ora, quanto a formosos palácios, no
século X, estamos conversados. O que
percetível na malha urbana que a imagem de satélite revela, Almançor atacou foi um espaço muito
restrito, delimitado pela cerca primi-
mostra uma realidade única no contexto peninsular. A cerca tiva da cidade, que anos antes (meados
primitiva (que Almançor atacou e está assinalada a verme- do século X) havia sido mandada erguer
pelo bispo Sisnando II, preocupado com
lho) é a que o bispo Sisnando II mandou erguer, em meados possíveis ataques, não dos muçulma-
do século X. Guardava o templo, a residência episcopal, al- nos mas dos homens do Norte (os nor-
mandos), sendo hoje perfeitamente vi-
guns mosteiros e pouco mais. Já a segunda, também hoje ine- sível, olhando fotografias de satélite,
xistente e revelada pela linha azul, é significativa por duas ra- por onde passava essa muralha. O dina-
mismo da cidade era crescente, mas es-
zões: o perímetro e o facto de ter sido construída no século XI ta estava ainda longe de ser sumptuosa.
Voltando a Almançor, não é só a face-
pelo bispo Crescónio II. Essa muralha, que definiu a cidade na ta guerreira que é usada para construir
Idade Média (hoje o centro histórico), revela um processo pre- o mito. Também o lado misericordioso
é importante no retrato da personagem.
coce. Não no contexto europeu, pois o desenvolvimento urba- Fica claro, no relato, que colocou guar-
no medieval é desse tempo, mas na Península Ibérica, onde o das em redor do sepulcro do apóstolo,
para o “fazer respeitar”, impedindo as-
fenómeno foi mais tardio. Isso mostra como a peregrinação, sim que a fúria da soldadesca se abates-
na primeira centúria do segundo milénio, gerou uma dinâmi- se sobre o sagrado. E mais. No final do
texto conta-se que, ao chegarem ao se-
ca intensa, que ultrapassava o afluxo temporário de foras- pulcro, os muçulmanos viram que um
velho monge ali permanecia sentado.
teiros e que, no século XII, fazia de Santiago um meio em que “Por que estás aí”, perguntou-lhe o pró-
eram as atividades urbanas que mais ocupavam os seus ha- prio Almançor. “Para honrar Santiago”,
respondeu o ancião. Ouvindo isto, deu o
bitantes (artesãos, mercadores, estalajadeiros...). chefe aos seus homens ordens para que
o deixassem em paz.

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De Braga a Compostela
te, que muito tem influenciado a apre-
ciação dos investigadores e do público
em geral, ou seja, a História posterior,

com relíquias pelo meio


mais concretamente, o processo de for-
mação do reino de Portugal. Resulta de
tudo isto um cenário que podemos ima-
ginar sem grande esforço: procurou-se
reconstruir, explicar, interpretar e até
Texto de Luís Carlos Amaral justificar este ou aquele acontecimen-
Historiador / Faculdade de Letras to, esta ou aquela ação de determinada
da Universidade do Porto personagem, em função do seu contri-
buto favorável ou desfavorável no pro-
cesso de afirmação da independên-
cia política portuguesa. Nesta perspe-
tiva, o futuro não só ordena e esclarece
o passado, como, sobretudo, o legitima,
conferindo-lhe um sentido e, em conse-
quência, legitimando-se também.
Sendo verdade que muitas das
ações e das formas de proceder que
descobrimos na fase inicial do gover-
no de Afonso Henriques decorrem da
anterior administração condal portu-
calense, não é menos certo que, tal co-
mo se apresentavam as relações de po-
der no interior da monarquia de Leão e
Castela nos inícios do século XII, a sor-
te das terras e das comunidades a sul
do Minho podia ter sido bem distinta.

1
022 A criação do reino de Portugal não foi,
Talvez não seja exagerado em suma, um acontecimento histori-
afirmar que a leitura de uma camente inevitável e, menos ainda, um
qualquer História medieval produto do acaso.
da Península Ibérica, mais es- Neste contexto, não é fácil sintetizar
pecificamente dos capítulos e explicar em todas as suas dimensões
dedicados aos séculos XI e XII, um tempo histórico que integrou tan-
proporciona aos eventuais tas e tão importantes mudanças, que
leitores, mesmo aos mais avisados, um marcaram decisivamente a configura-
cenário histórico invulgarmente com- ção posterior das sociedades ibéricas.
plexo. Duas imagens muito fortes ga- Assistiu-se não só à afirmação e ao de-
nham imediata nitidez. Em primeiro senvolvimento de comunidades e de
lugar, aquilo que, algo impropriamen- territórios que haviam desencadeado
te, seríamos levados a interpretar como o seu processo identitário ainda antes
uma espécie de aceleração do tempo do Ano Mil, como também à emergên-
histórico, em razão da qual um conjun- cia de novos espaços e respetivos gru-
to alargado de personagens e de aconte- pos humanos que começaram a exi-
cimentos relevantes desenvolveu entre bir uma clara individualidade política.
si uma malha de relações muito dinâ- Não admira, portanto, que, sobretudo
mica. Em segundo lugar, a natureza efé- no plano político-militar, as forças e
mera e a vulnerabilidade que, não raro, as tendências de unificação e de frag-
essas relações assumiram. O que dize- mentação alternassem entre si, pare-
mos resulta muito do caráter fragmen- cendo ensaiar diversas, senão mesmo
tário e desconexo de parte considerável todas as combinações possíveis. Do
dos vestígios documentais que chega- mesmo modo, não causa estranheza
ram até hoje. E também da circunstân- que a grande massa dos dependentes e
cia de estarmos a escrever à distância de Chegada do conde D. dos súbditos olhasse para certos prín-
nove séculos dos acontecimentos, inte- Henrique consumou a se- cipes e para os monarcas e reconhe-
grados numa sociedade que desenvol- paração entre a Galiza e as cesse neles os seus naturais senhores
veu e cultiva conceções e valores mui- terras a sul do rio Minho e governantes, e aceitasse que duques
tos distintos dos da época medieval. e condes pudessem aspirar a transfor-
Contudo, outra razão de peso subsis- mar-se em reis.

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DIREITOS RESERVADOS

2
023
A época que decorreu en- co e senhorial dos arcebispos. Contudo, bispos a readaptação dos objetivos e das
tre os finais do século XI é igualmente verdadeiro que tal apoio e estratégias da sua Igreja, procurando
e as primeiras décadas da benefícios implicavam contrapartidas, assim um melhor ajustamento à nova
centúria seguinte conhe- consideradas indispensáveis à afirma- conjuntura regional.
ceu alterações de mon- ção da autoridade e da administração Ora, a eleição de Geraldo para a cáte-
ta no interior do reino de condais. De tudo isto resultou uma arti- dra de Braga (1097/99-1108) represen-
Leão e Castela e, em par- culação muito estreita e, em certos mo- tou, em si mesma, uma primeira res-
ticular, na região do Noroeste penin- mentos, uma quase completa identifi- posta aos renovados desafios e solicita-
sular. Com a chegada do conde D. Hen- cação entre os interesses, as estratégias, ções que então se colocaram. O antigo
rique de Borgonha a este território os objetivos e as ambições dos prelados monge da abadia francesa de Moissac e
(1095/96-1112), já então casado com a de Braga e os dos senhores portucalen- chantre da Sé de Toledo, protegido pe-
infanta D. Teresa, e a simultânea cria- ses. Pensamos ser esta a principal linha lo arcebispo Bernardo e apoiado quer
ção do Condado Portucalense, consu- de rumo que orientou a governação do por Afonso VI de Leão e Castela (1065-
mou-se a separação entre a Galiza e as primeiro arcebispo de Braga e dos seus 1109), quer, sobretudo, pelo conde D.
terras a sul do Minho. Mudanças desta sucessores imediatos. Henrique, dava garantias, à partida,

3
envergadura não podiam passar des- de total fidelidade aos princípios da re-
percebidas à instituição eclesiástica Quando um novo prelado forma eclesiástica romana e ao primaz
e, sobremaneira, à Igreja de Braga, que chegou finalmente a Bra- toledano, e de subordinação à autori-
prontamente assumiu um papel in- ga, algures entre os finais dade régia e condal. Não surpreende,
terventivo nas sucessivas e intrinca- de 1097 e os começos de portanto, que, ao observarmos o epis-
das conjunturas, que não demoraram 1099, eram já visíveis im- copado de Geraldo, logo se nos impo-
a promover a completa recomposição portantes mudanças na nha como uma evidência a consciência
do cenário político e religioso das ter- organização do Noroeste que o prelado parece ter sempre das ta-
ras mais ocidentais da monarquia. ibérico. A vinda do conde borgonhês e refas que devia cumprir e de como de-
Se a instalação dos condes portuca- a criação do Condado Portucalense en- via cumpri-las.
lenses garantiu à diocese bracarense cetara a fase derradeira e decisiva da se- Pouco depois da sua chegada, e com
um apoio do qual nunca desfrutara até paração entre os territórios de aquém o patrocínio interessado do conde D.
aí, proporcionou-lhe também outros Minho e a Galiza nuclear, processo es- Henrique, alcançou, junto da cúria ro-
benefícios que logo se manifestaram, te que viria a culminar na formação do mana, o reconhecimento do estatu-
quer no engrandecimento do senho- reino de Portugal. Alterações tão signi- to metropolitano da sua diocese (1099-
rio, quer no reforço do poder eclesiásti- ficativas exigiram de Braga e dos seus 1100). Tratou-se de uma vitória mui-

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e face a tão gravosa situação, Geral-


do dirigiu-se a Roma logo nos primei-
ros meses de 1103, a fim de se queixar
do prelado galego e encerrar de vez o
processo da restauração metropolita-
na. Nada tendo obtido no que respei-
tava à devolução das relíquias, con-
seguiu, ainda assim, que o Papado
promulgasse uma sentença decisiva
sobre a questão da metrópole, entre-
gando-lhe o pálio e o privilégio cor-
respondente e estabelecendo o rol das
dioceses sufragâneas: Astorga, Lu-
go, Tui, Mondonhedo, Ourense, Porto,
Coimbra, Viseu e Lamego. Do ponto
de vista dos interesses de Braga, esta
viagem representou um novo e im-
portante sucesso, visível, sobretudo,
to importante, nomeadamente face às Diogo Gelmires na integração de Coimbra, Viseu e La-
crescentes ambições eclesiásticas e representado, mego na província bracarense, quan-
políticas dos prelados compostelanos, à esquerda, numa do estas dioceses, situadas na antiga
mas, ainda assim, incompleta, tendo em miniatura do Tombo província da Lusitânia, dependiam,
conta que não ficara estabelecido o con- de Toxos Outos. historicamente, de Mérida.
junto dos bispados sufragâneos. Porém, Para Geraldo afigurava-se concluí-
e como não raras vezes ocorre, sucessos do, e em termos definitivos, o restabe-
imprevistos encarregaram-se de alte- lecimento da metrópole de Braga, sal-
rar de forma muito significativa o rumo vaguardado que estava o essencial das
dos acontecimentos. suas reivindicações e o seu domínio so-

4
024 bre as estruturas eclesiásticas da Gali-
Em novembro de 1102, postellana”, que contém a história da za e do Condado Portucalense. Apenas
Diogo Gelmires, bispo sede apostólica desde que se fixou ficara de fora a diocese compostela-
de Santiago de Compos- em Compostela (1095) até 1140, ano da na, à qual Roma concedera o privilégio
tela (1100-1140), deslo- morte de Diogo Gelmires. de isenção, em 1095. Não decorreriam
cou-se a Braga à frente O arcediago Hugo, que viria a trans- muitos anos, porém, até que a sempre
de uma importante co- formar-se no primeiro prelado da dio- volátil conjuntura hispânica revelasse
mitiva, com o objetivo cese do Porto (1112-1136) após a sua a fragilidade do cenário construído no
aparente de assegurar e reafirmar os restauração definitiva, era de origem tempo do santo arcebispo, e demons-
seus direitos e jurisdição sobre as igre- francesa e cedo revelou inegáveis ca- trasse que as decisões papais eram tu-
jas de S. Vítor e de S. Frutuoso, situa- pacidades eclesiásticas e políticas, do, menos irrevogáveis.
das nos arredores da cidade de Braga tendo logo granjeado o apoio e favor de Peça literária de elevado significa-
e cujo senhorio há muito era disputa- Diogo Gelmires, que, depois da sua as- do histórico, o relato do arcediago Hugo
do pelas sedes de Braga e de Compos- censão à cátedra apostólica, não dei- testemunha assim, de forma eloquente,
tela. A boa receção que Geraldo pro- xou de favorecer o clérigo francês. Nos o complexo cenário político e eclesiásti-
porcionou ao compostelano e aos que inícios de 1102, Hugo foi promovido à co que então se desenrolava no Noroes-
o acompanhavam não impediu que alta dignidade de cardeal diácono e, te peninsular e que assumiu nos en-
fosse levado a cabo o verdadeiro e in- ainda nesse ano, integrou o séquito que frentamentos entre Braga e Compos-
confessado motivo da viagem, ou se- acompanhou o prelado compostelano tela uma das suas manifestações mais
ja, despojar a Igreja bracarense do seu na sua deslocação à terra portucalense. poderosas. Como facilmente se adivi-
mais valioso e prestigiado conjunto de O teor geral do relato de Hugo, teste- nha, esta conjuntura muito particular
relíquias, limitando seriamente as hi- munha presencial dos acontecimentos, não tardaria a desembocar na forma-
póteses de Braga se transformar num obedece às características formais de ção do reino de Portugal e na constru-
relevante destino de peregrinação, uma translatio, trasladação, o que pa- ção de uma Igreja portuguesa. Impõe-
à imagem de Santiago de Composte- rece querer significar e confirmar que a -se sublinhar, por último, que a narra-
la. Este episódio, que ficou conhecido motivação primordial da deslocação de tiva do pio latrocínio revela, outrossim,
pela algo ingénua designação de “pio Diogo Gelmires a Braga não foi outra se- a personalidade culta e hábil do futuro
latrocínio”, o roubo piedoso, consti- não a de transferir para Compostela as bispo do Porto.
tui o cerne do texto que foi expressa- veneradas relíquias de S. Silvestre, de S. Mas o melhor mesmo é saborearmos
mente redigido pelo arcediago Hugo, Cucufate, da virgem e mártir Santa Su- esta prosa que, velha de mais de nove
cerca de 1109, para integrar a volumo- sana e, acima de tudo, as de S. Frutuoso. séculos, mantém intactos o seu vigor e
sa crónica intitulada “Historia Com- Seja como for, consumado o roubo, teatralidade.

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Relato
feito por Hugo,
arcediago de
026

Compostela
e futuro bispo
do Porto

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QUANDO (D. DIOGO GELMIRES) dia. Após a celebração da missa, dirigiram-se para
PARTIU PARA PORTUGAL a mesa da refeição e, depois da refeição, o arcebis-
po conduziu o bispo, acompanhando-o respeitosa-
1. Para que a sua pessoa em nada diferisse, tanto mente, à sua própria câmara e, depois de lhe ofere-
quanto humanamente é possível, da máxima que cer os seus aposentos, foi para outro quarto para aí
afirma: «O que quer que a tua mão puder fazer fá-lo pernoitar. Pois bem, nesse dia, o bispo de Santiago
com paixão» (Ecl. 9,10), em tudo o que se empenhou permaneceu na residência do arcebispo de Braga.
esforçou-se afincadamente, para que o fugaz ze- No dia seguinte, porém, depois de os irmãos da
lo da vida não sepultasse o seu espírito sob o monte mesma Igreja se terem saudado e de lhes ter sido
dos intentos terrenos. Assim, quando entrou em ter- dada a bênção, o referido bispo, na companhia do
ritório portucalense, inflamado pela graça divina, arcebispo, chegou à igreja de S. Vítor, de cuja jurisdi-
realizou o que nas páginas seguintes se lê, com o au- ção a metade se diz pertencer à cidade de Braga, e aí
xílio de Deus. foi recebido como um senhor o é nos palácios do rei.
Entretanto, ao percorrer as suas igrejas, ao visi-
TRASLADAÇÃO DE S. FRUTUOSO, tá-las e nelas celebrar a solenidade da eucaristia,
S. SILVESTRE, S. CUCUFATE E DA VIRGEM vendo os corpos de muitos santos que, parcialmen-
E MÁRTIR S.ta SUSANA PARA COMPOSTELA te enterrados, nelas careciam da honra devida, sol-
tava gemidos com piedosa ternura e, movido pe-
2. Ora, no ano da incarnação do Senhor de 1102. o lo zelo da piedade, revolvia o terno coração, o qual
venerável padre Diogo II (D. Diogo Gelmires), pela mais tarde saciou com o auxílio divino: efetiva-
excelsa graça divina bispo da Igreja de S. Tiago da mente, com ardente zelo ele imaginava de que for-
Sé de Compostela, no segundo ano do seu episcopa- ma podia extrair preciosas pérolas a partir de lu- 027
do, determinou visitar – como é de justiça – as igre- gares indecentes e transportá-las para a cidade
jas, capelas e herdades que se sabe que, localizadas de Compostela. Por conseguinte, tendo os seus ir-
em território português, são da jurisdição da Igre- mãos clérigos sido convocados e tendo aprovado
ja de Compostela. Efetivamente, é obrigação de um em conselho o que ele pretendesse fazer e o modo
bom pastor cuidar tanto dos bens externos da sua como o pretendesse, abriu a reunião afirmando:
Igreja, como dos internos e, se encontrar neles algo «Irmãos caríssimos, vós sabeis que nós viemos a
deteriorado ou desordenado, que a sua prudência o estas paragens com o intuito de, se algo nestas igre-
restaure e o componha. Tomou, então, as mais im- jas ou herdades tivesse sido arruinado ou posto em
portantes pessoas da sua Igreja e pôs-se a caminho desordem, a nossa presença aqui restaurasse, orde-
do território portucalense, tal como decidira. nasse e mudasse para melhor estado o que encon-
Ao aproximar-se da cidade que se chama Braga, trássemos em má situação. Agora, porém, não pas-
enviou um mensageiro seu ao arcebispo desta cida- sa despercebida à vossa atenção as irregularidades
de para lhe anunciar a sua chegada. Então o arce- que nestes lugares se acham: efetivamente, desco-
bispo, chamado Geraldo, varão prudente e religio- bristes muitos corpos de santos que não têm o cul-
so, ao ter conhecimento de que o bispo de Santiago to da veneração, mas jazem nus e à vista de todos
vinha à sua cidade, encheu-se de grande alegria e, em diferentes lugares das igrejas, os quais não igno-
tendo reunido todos os seus clérigos, com as cruzes rais que carecem da veneração devida. Portanto, se
e restantes ornamentos da sua igreja, foi ao seu en- a vossa prudência nos pedir conselho, nós teremos
contro e recebeu o bispo de Compostela na procis- o cuidado de remediar a situação e esforçar-nos-e-
são com grande veneração; e com o clero a cantar, mos por trasladar para a Sé de Compostela alguns
ele próprio o introduziu na sua igreja, pegando-lhe corpos dos preciosíssimos santos, aos quais não é
na mão direita, e conseguiu, com grandes rogos que aqui prestado qualquer culto. Todavia, será neces-
lhe fez, que se dignasse celebrar a eucaristia nesse sário proceder às escondidas, não vá acontecer que

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a gente indisciplinada desta terra, espoliada de tão que as gloriosas cinzas do corpo do bem-aventura-
valioso tesouro, mova contra nós a sua súbita ira e, do Frutuoso, confessor e pontífice, fossem de igual
assim, nos arrependamos de em vão haver tentado modo trasladadas e colocadas em lugar mais con-
o que ousámos tentar». veniente. Por conseguinte, dois dias depois chega-
Como os seus clérigos aprovassem tal conselho, ram à igreja do bem-aventurado Frutuoso e aí D.
pois era um conselho surgido por inspiração divina, Diogo celebrou a eucaristia com solenidade. Ter-
e afirmassem que não se devia adiar, o venerável minada a missa, envergando as vestes sagradas,
bispo, com o espírito a transbordar de alegria, res- abeirou-se do seu sepulcro. Mas porque S. Frutuoso
pondeu afirmando: «Que o Senhor Jesus Cristo, na era o defensor e padroeiro daquela região, foi com
misericórdia de quem nós confiamos, cumpra pe- maior temor e silêncio que ele o levou, num pio la-
la sua piedade o nosso desejo e digne-se conduzir a trocínio, para fora da sua igreja, a qual o santo erigi-
bom porto o voto do nosso propósito». ra enquanto fora vivo, e, daí levado, foi confiado aos
Depois, entrando na igreja de S. Vítor e aí celebran- seus fiéis guardas para ser guardado. E dado que es-
do missa, mandou escavar do lado direito do altar- te feito a todos fosse escondido, exceto aos confiden-
mor. Em breve foi aí encontrada, debaixo de terra, tes deste conselho, na noite seguinte de modo ne-
uma admirável arca de mármore e subtilmente fabri- nhum o bispo pôde dormir sossegadamente: temia,
cada. Quando a abriram na presença do senhor bis- de facto, perder o que se alegrava de ter consigo.
po, encontraram dentro duas cápsulas de prata. En- Mas quando amanheceu, ele verificou que não fora
tão, o referido bispo, pegando nelas com grande re- divulgado o que fizera e, transportando o seu secre-
verência e tendo glorificado o nome do Senhor com to tesouro com regozijo e alegria para uma quinta de
salmos e orações, abriu-as. Numa delas ele mostrou Santiago que se chama Correlhã, lá chegou em mar-
028 que eram as relíquias do Nosso Senhor Santo Salva- cha acelerada como quem empreendia uma fuga.
dor; na outra, as relíquias de muitos santos. Depois de Ora, na Correlhã, chegou aos ouvidos do prela-
fechadas e hermeticamente seladas, ele confiou-as do um rumor popular, referindo que o bispo de San-
aos seus fiéis clérigos para as guardarem. tiago praticara um ato indigno e que ele se prepara-
Porém, noutro dia, dirigiu-se à igreja da bem-a- va para trasladar para a sua cidade os santos tira-
venturada Susana, virgem e mártir, que não fica lon- dos da terra portucalense e que eram os defensores
ge da igreja de S. Vítor, e nela celebrou a eucaristia e patronos da pátria. Ao ouvir isto, o varão de suma
com extrema devoção. Depois de a ter celebrado, es- prudência e exímia piedade, receoso de perder, a
tando ainda paramentado com as vestes sagradas, qualquer momento e pela violência, a preciosa car-
abeirou-se do coração agitado dos túmulos dos már- ga, confiou os corpos dos santos a um seu fiel arce-
tires S. Cucufate e S. Silvestre, que jaziam na mesma diago e instruiu-o com palavras sábias acerca do
igreja, ergueu dos inapropriados sarcófagos, às es- modo como os devia transportar por caminhos se-
condidas, os gloriosos corpos deles, envolveu-os em cretos até à cidade de Tui.
limpo tecido de linho e mandou que, com grande re- Permanecendo o pontífice na Correlhã, o arcedia-
verência, fossem transportados por idóneos e fiéis go caminhou, de acordo com as indicações dadas,
servidores, sem conhecimento dos restantes, para os até ao rio Minho, o qual corre ao lado de Tui, e aí che-
seus aposentos e que fossem fielmente guardados. gou em segurança. Ora, o rio agitara-se e com tão ri-
Uma vez chegado ao túmulo da virgem S.ta Susana, gorosas tempestades nos três dias anteriores, que
a soluçar e com as lágrimas nos olhos, pegou no ve- não podia ser atravessado por nenhuma embarca-
nerável corpo dela e, às escondidas, entregou-o para ção. Porém, depois de os corpos dos santos serem co-
que o guardassem com os outros. locados sobre a margem do rio, pareceu que o rio sen-
3. Além disso, sabendo o varão de Deus que, por mi- tiu a reverência deles por a aspereza do forte vento
sericórdia divina, lhe fora concedida a graça de ser ter amainado e por ter sido dissipada a intempérie at-
ele a honrar os corpos dos santos, mandou ainda mosférica; e conta-se que o rio concedeu aos santos

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O Noticioso

a transportar tanta permissão de transporte, quanta calçar-se, ele e os que o acompanharam, e os cléri-
a superfície da sua água pôde prover; e, apaziguadas gos, que envergavam vestes sagradas e de pés des-
as vagas, a corrente deslocava-se com tão grande calços, tal como o bispo havia ordenado, atrás dos
tranquilidade, que nem a água se agitava pela mais quais seguia uma multidão, receberam os gloriosos
pequena flutuação. Colocaram os santos, transpor- corpos dos santos, e, indo à frente o bispo e o clero, le-
tados pela tranquilidade do rio, no cenóbio de S. Bar- varam-nos para a sua cidade, ao som de hinos e cân-
tolomeu, que se situa no subúrbio da cidade de Tui. ticos e com pia devoção, e foram colocados na igreja
Então, o arcediago, confiando os corpos ao encargo do apóstolo S. Tiago da Sé de Compostela.
de um fiel guarda, diácono e cónego de S. Tiago Após- 5. O corpo de S. Frutuoso, confessor e pontífice, foi co-
tolo, regressou à Correlhã para junto do bispo e infor- locado junto do altar de S. Salvador, na cripta maior
mou-o acerca do que acontecera na viagem e onde da mesma igreja. Todavia, decorridos quatro anos,
ele deixara os santos de Deus. Mais tarde, o diácono, pareceu melhor ao referido pontífice e aos seus cléri-
a quem já dissemos que foi atribuída a guarda, levou gos que o bem-aventurado Frutuoso, da morada de
religiosamente os referidos santos, por ordem do pon- quem eles se tinham encarregado, , tivesse uma mo-
tífice, para a igreja de S. Pedro de Cela, a qual havia rada individual. Assim, em sua honra foi construído e
construído o bem-aventurado Frutuoso. Aí, duran- dedicado um altar e, pelo mesmo bispo, foi consagra-
te dez dias, enquanto se aguardava pela chegada do do na ala esquerda da mesma igreja, na cripta que es-
bispo, foi-lhes prestada a devida veneração. tá entre a porta que dá para o claustro e o altar de S.
4. Quando o bispo teve conhecimento de que os Tiago. Aí, portanto, foi colocado o corpo do bem-a-
santos já tinham transposto o rio Minho e que esta- venturado Frutuoso, foi tumulado e, como que em se-
vam em lugar seguro – este rio, efetivamente, deli- de própria, descansa até ao fim dos tempos, glorio-
mita a terra portucalense da Galiza –, preparou tu- so pelos seus milagres. O altar de S. João, apóstolo e 029
do o que havia para preparar e depressa chegou ao evangelista, recebeu o mártir S. Cucufate, e o corpo do
mosteiro onde os santos haviam sido colocados; e mártir S. Silvestre foi tumulado junto ao altar dos bem
tendo aí tomado os santos, iniciou viagem, agora -aventurados apóstolos Pedro e Paulo, no corpo da
sem receios, através das aldeias de Santiago, em di- mesma igreja. A bem-aventurada Susana, virgem e
reção à cidade de Compostela, com grande venera- mártir, descansa, honorificamente colocada, na igre-
ção e alegria. Porém, ao chegar à aldeia que se cha- ja que se sabe ter sido fundada em honra do Santo Se-
ma Gogilde, enviou à frente mensageiros seus ao pulcro e de todos os santos, no lugar que antes costu-
clero e povo de Compostela, a anunciar-lhes a che- mavam chamar Outeiro dos Potros.
gada dos santos e a adverti-los da forma como o Eu, Hugo, cónego e arcediago da referida Sé com-
bispo desejava que fossem recebidos. postelana, que tive conhecimento do referido segre-
O clero de Compostela e o povo muito se alegra- do e que também fui um fidelíssimo conselheiro e di-
ram ao ouvirem que, por misericórdia divina, fo- ligente colaborador, presente em corpo e devoto em
ra permitido que os corpos dos santos tivessem sido espírito, na descoberta e gestão de tão grande e pre-
trasladados da cidade de Braga para a de Composte- cioso tesouro, relatei cuidadosamente o sucesso do
la. Na verdade, achavam que, que pelos méritos e in- referido evento para que não adormecesse na es-
tercessões deles, que pela piíssima proteção do após- curidão do esquecimento e, com fidelidade, o entre-
tolo S. Tiago – é pela presença do seu santíssimo cor- guei à memória dos vindouros. Por conseguinte, os
po que a cidade de Compostela é célebre –, estariam corpos dos Santos foram trasladados e, tal como foi
protegidos de toda a peste e doenças. Portanto, os clé- referido, tumulados no dia 19 de dezembro, no rei-
rigos, descalços, saindo ao seu encontro, acompa- nado de Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem é devida
nhados do povo de toda a cidade, caminharam re- honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém.
ligiosamente até ao lugar que se chama Milladoiro.
Quando o bispo chegou a esse lugar, começou a des- Documento traduzido por Manuel Francisco Ramos

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

Despojamento
e partilha na alma
do peregrino
Ovídio Vieira, veterano do Caminho
Português, ataca a gestão economicista
do Caminho de Santiago

Estava-se em 2009, e o dia 19 de ju- rer montes e veredas peninsulares: “A


lho havia sido marcado na agenda co- Galiza já entregou o Caminho todo à
mo o da abertura do albergue muni- área do turismo”.
cipal de Ponte de Lima, cuja gestão Há, portanto, uma batalha entre
tinha sido entregue pelo então pre- duas formas de gestão do Caminho
030 sidente da Câmara, Daniel Campe- de Santiago: a cultural e a económi-
lo, a um funcionário municipal, Oví- ca, sendo que uma não anulará a outra
dio Vieira, em regime de voluntaria- e faltará o equilíbrio. Lá iremos. Des-
do que ainda hoje articula com o cargo te entusiasta português interessará
de diretor do teatro Diogo Bernardes, mais perceber o que é o Caminho, por
entretanto assumido. Faltavam dois exemplo, na vertente imaterial, aque-
dias e davam-se os últimos retoques la que mais impulsiona os peregrinos.
na obra, quando duas peregrinas bel- Descrevendo a experiência como “um
gas bateram à porta. Após breve troca ato de introspeção”, cita uma outra
de impressões, acabaram por ficar, e adepta do Caminho, Helena Bernar-
os nomes delas são os primeiros no li- do, para sintetizar: “Uma plástica para
vro de registos. É isto o Caminho: por- a alma”. E é, sobretudo, “uma realida-
tas que não se fecham, solidariedade, de individual, em que cada um encara
retribuir a outros o bem que se rece- o seu caminho de uma forma única”,
beu quando se andou nos trilhos que o que torna despropositadas referên-
levam ao apóstolo. cias ao número de vezes que o Cami- “PASSADIÇOS
Mas se isso, juntamente com o des- nho foi feito, em vários percursos, co-
pojamento que o curioso viajante ad- mo o primitivo, o francês, o inglês e, NA PRAIA NÃO SÃO
quire à medida que se vai tornando claro, o português. CAMINHO, E ANDA AÍ
peregrino, é a essência da busca de Na essência, poderá entender-se
Santiago, tal não significa que seja a como Caminho de Santiago qualquer A PINTAR-SE MUITA
realidade em que, no século XXI, se percurso que um peregrino tome para SETA AMARELA QUE
transformou a descoberta do túmulo chegar à catedral galega, mas é tam-
do discípulo de Jesus, que o bispo Teo- bém verdade que o Caminho, enquan- NÃO É CAMINHO...”
domiro validara na décima centúria to fenómeno cultural, terá de assentar
da nossa era. “O caminho está na mo- em raízes históricas. Diz Ovídio Viei-
da e é turismo barato”, lamenta Oví- ra: “Uma coisa é certa: passadiços na
dio Vieira, notando que a descarac- praia não são Caminho, e anda por aí a
terização parte dos que mais deviam pintar-se muita seta amarela que não
combatê-la, ou seja, quem governa o é Caminho...”.
destino desta gente que, dos quatro As setas amarelas encontram-se
cantos do mundo, se dispõe a percor- entre as melhores amigas dos peregri-

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O Noticioso

031

RUI OLIVEIRA/GLOBAL IMAGENS

nos. Foi esse o símbolo concebido para as suas mochilas. Razões de seguran- vativo necessário a obter a compos-
ajudar quem caminha (ou vá de bici- ça foram invocadas para justificar es- tela (diploma que testemunha a pe-
cleta, ou a cavalo, os outros meios váli- sa medida, só que a mesma foi acom- regrinação realizada), são negócio
dos para a peregrinação ser reconhe- panhada da criação de uma infraes- exclusivo da catedral de Santiago.
cida) a não perder o rumo, um pouco trutura para depósito das mochilas, Mas o Caminho, para peregrinos
como as estrelas que, conta a lenda, le- bicicletas e cajados. Deixar uma bi- como Ovídio Vieira, é a terra, as pe-
varam ao achamento do túmulo de S. cicleta custa três euros, pela mochi- dras, as árvores... Enfim, Caminho
Tiago e de dois dos seus discípulos. Só la pagam-se dois, pelo cajado um eu- acaba por ser o espaço onde cada um
que o brilho em terras compostelanas, ro: sabendo-se que em 2015 chega- se reencontra com a sua essência.
diz o responsável do albergue de Pon- ram a Santiago, oficialmente, 262 515 Mesmo que as razões eminentemen-
te de Lima, é outro: “Eles não veem pe- peregrinos, e mesmo supondo-se que te históricas que o levaram a ir pela
regrinos, veem os euros a passar...”. nem todos fizeram uso desse serviço, primeira vez, em 2002, permaneçam
O destino da peregrinação, é, de dá para perceber que é lucrativo. Tam- vivas (tem formação na área e o apelo
facto, um grande negócio, visível até bém as credenciais que identificam o que sentiu vinha do conhecimento so-
em pequenas coisas. Por exemplo, há peregrino, dando acesso a albergues bre o Caminho na Idade Média), a ver-
anos passou a ser proibido aos pere- e servindo, devidamente carimba- dade é que a curiosidade foi dando lu-
grinos entrar na catedral carregando das ao longo do percurso, de compro- gar a outra coisa: “Aprendi a ser pere-

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TEMA DE CAPA

ro albergue a abrir portas em Portu-


gal foi o de S. Pedro de Rates (Póvoa
NÚMEROS
de Varzim), em 2004. Depois abriu o
de Valença, a seguir Rubiães, Ponte
de Lima, Tamel, Barcelos... Somam-
-se outras estruturas de apoio aos pe-
178
A compostela, di-
regrinos, particularmente a partir de ploma que compro-
Lisboa, sendo que, por exemplo, tam- va a peregrinação,
bém as pousadas de juventude aco- foi levantada por ci-
lhem quem apresentar a credencial. dadãos de 178 paí-
“Quando se começou a perceber que ses em 2015.
havia estes equipamentos, sensivel-
mente de 25 em 25 quilómetros, o Ca-
minho português passou a consti-
tuir-se como alternativa ao francês”, 7,93%
nota Ovídio Vieira, explicando ainda Não chegam a 8%
outro fator decisivo para a crescen- do total de peregri-
te popularidade: “O principal mila- nos aqueles que ex-
gre do Caminho português é o Aero- cluíram a religião
como razão para fa-
porto Francisco Sá Carneiro, com os
zer o Caminho.
voos low-cost. Parece que até já há se-
tas amarelas pintadas à saída do ae-
roporto”.
No albergue de Ponte de Lima,
os sinais são evidentes. Em 2015, fo-
90%
ram ali acolhidos mais de 10 600 pe- Maioria dos pe-
regrinos vai a pé
regrinos, o que representou um cres-
(9,65% usam a bi-
cimento acima dos 19% em relação cicleta, 0,29% vão a
ao ano precedente. Mas, como não cavalo e 0,03% em
032 há bela sem senão, também é preci- cadeira de rodas).
so lidar com o fenómeno dos “turigri-
DIREITOS RESERVADOS
nos”, como lhes chama Ovídio Viei-
grino e a ver que conseguimos viver Cruz dos france- ra. Não falta quem obtenha a creden-
com muito pouco”. ses, na Labruja, é al- cial de peregrino para, depois, viajar
Encontros, congressos, tertúlias... vo de um perma- em transportes públicos e usufruir de
formas de materialização de um co- nente atentado am- alojamento baratíssimo. Daí decorre
nhecimento cada vez maior do Cami- biental perpetrado também, em parte, um problema que
nho permitiram que muitos, entre os por peregrinos, que, era típico do Caminho francês, mas já
quais Ovídio Vieira, contribuíssem julgando dar um si- se sente em Portugal: a corrida às ca-
para a solidificação do Caminho por- nal de despojamen- mas, que leva peregrinos a caminhar
tuguês. Como? Proporcionando o que to, deixam ali lixo de de noite (correndo riscos e perdendo o
faltava, ou seja, estruturas de apoio. toda a espécie que de melhor tem a experiência), pa-
O Caminho português, no sentido ra poderem estar entre os primeiros a
funcional em que o entendemos, era chegar ao albergue seguinte e, assim,
uma realidade recente. Em 1965, o li- assegurar a dormida.
miano Conde d’Aurora publicara uma A saída para o problema existirá
obra sobre o assunto e, depois disso, no dia em que o Caminho regressar
outros escritos iam surgindo, mas só à normalidade. “O Caminho só pre-
na segunda metade da década de 1990 cisa de respeito, nada mais”, diz Oví-
se pode falar em recuperação deste dio Vieira, para quem “este boom vai
itinerário. Esse esforço começou do acabar, um dia, e vai surgir outra mo-
lado da Galiza, onde alguns cidadãos da qualquer”. “Mas peregrinos have-
espanhóis, como José António de La rá sempre”, garante. Os tais que des-
Riera, recuperaram o Caminho por- cobrem, no trajeto para Santiago, a tal
tuguês de Santiago a Tui. Só depois força de descoberta interior que só
disso houve, do lado de cá da frontei- quem por lá anda poderá compreen-
ra, a preocupação de reconstituir o ca- der, e que não terá necessariamente
minho entre Valença e o Porto. de ter um suporte místico. Um olhar
Começaram a surgir peregrinos, para dentro que, com certeza, era já
mas só mais tarde houve, digamos as- partilhado pelos primitivos viajantes
sim, quem cuidasse deles. O primei- medievais.

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INFOGRAFIA

Vias portuguesas de peregrinação Principais caminhos de Santiago


a Santiago de Compostela na Idade Média na atualidade
Mapa elaborado
por Humberto
SANTIAGO DE COMPOSTELA
Baquero Moreno

ESPANHA

ORENSE

TUI Inglês
VALENÇA
V. N. DE CERVEIRA Finisterra Norte
Primitivo
CAMINHA
BRAGANÇA
P. DE LIMA
PORTELA
Francês
VIANA DO CASTELO DO HOMEM CHAVES
BARCELOS
ESPOSENDE BRAGA
PÓVOA DE VARZIM VILA POUCA DE AGUIAR
GUIMARÃES Português
AZURARA
Prata
MINDELO VILA REAL
MATOSINHOS POIARES
PORTO
LISBOA
MOSTEIRO DE GRIJÓ LAMEGO
MOSTEIRO DE PEDROSO

SERNANCELHE
SEVILHA
TRANCOSO

VISEU
ÁGUEDA GUARDA

033
AVELÃS DE CAMINHO

COIMBRA
COVILHÃ
262 515
peregrinos em 2015*

FIGUEIRÓ DOS VINHOS


Por sexo Por grupo etário
CASTELO
LEIRIA BRANCO

BATALHA
NISA
ALCOBAÇA
ALPALHÃO CASTELO DE VIDE
CALDAS
DA RAINHA
CRATO
SANTARÉM ALTER DO CHÃO 53% Homens 16,7% Mais de 60 anos
TORRES
FRONTEIRA
47% Mulheres 28,5% Menos de 30 anos
VEDRAS
54,8% 30 anos a 60 anos
SINTRA ESTREMOZ
Países com mais peregrinos
LISBOA
ÉVORA MONTE ESPANHA 46,6%
SETÚBAL
ÉVORA ITÁLIA 8,4%
ALCÁCER DO SAL ALEMANHA 7,2%
EUA 5,2%
PORTUGAL 4,7%
FEREIRA DO ALENTEJO
BEJA
Caminhos com mais peregrinos
CAMINHO FRANCÊS 172 244
CAMINHO PORTUGUÊS 43 149

ALMODÔVAR
Principais pontos de partida do caminho português
TUI 13 799

LAGOS LOULÉ
PORTO 13 201
TAVIRA

FARO * estatísticas oficiais (com pedido de diploma comprovativo)

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O Noticioso

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O Noticioso
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Séculos
de penitência
nos trilhos
de São Miguel 035

Durante uma semana, o fotojornalista


Rui Oliveira conviveu com os romeiros de Ponta
Garça, retratando uma ancestral tradição
açoriana que nos é explicada por Carmen Ponte,
cujo doutoramento incidiu sobre o tema

Texto de Carmen Ponte Fotografias de Rui Oliveira

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TEMA DE CAPA

Xaile, lenço e bordão


são elementos essen-
ciais, desde sempre,
no trajo dos romeiros
micaelenses

N
o contexto da his- de (no seio do rancho, tratam-se to- O rancho, em marcha, adota uma
tória religiosa dos dos por “irmão”), assim como a exerci- formação convencional, constituída
Açores, a fé popular tação do canto da Ave Maria, das “Sal- por três alas. As laterais são compos-
foi sempre um fa- vas”, das orações nas igrejas e ermidas tas pelos romeiros, estando à frente de
tor bem presente e ou, ainda, a indumentária e o com- cada uma os guias. A ala do meio in-
real. Festas religio- portamento a ter são alguns dos te- tegra o mestre, o contramestre, o lem-
sas, procissões e ro- mas aí abordados. No dia da saída do brador das almas, o procurador das
marias estão entre os atos tradicionais rancho, antes do alvorecer, o romei- almas e o cruzado. O mestre é a pes-
que ritmam a vida da população das ro reveste-se com o seu xaile aberto soa mais importante do grupo. Con-
036 ilhas, e a prática “Romeiros de São Mi- sobre os ombros, para o proteger do dutor dos homens, é acessível a todos,
guel” – também denominada “Roma- frio, um lenço à volta do pescoço pa- mas as ordens que dá são inquestio-
rias quaresmais” e outrora designada ra lhe cobrir a cabeça nos momentos náveis. Compete-lhe decidir e orien-
“Visita às casinhas de Nossa Senhora” de vento e chuva, uma saca ou “ceva- tar o rancho, tarefa que hoje é parti-
– constitui um fenómeno etnográfico deira” às costas, para transportar al- lhada, de certa maneira, com o gru-
de grande interesse, pela originalida- guma roupa e comida, um bordão, pa- po coordenador das romarias. Além
de e pela persistência revelada ao lon- ra servir de apoio nos caminhos e ata- disso, é um dos principais oradores do
go dos séculos. lhos difíceis, e um ou mais terços para rancho, pelo que deve ter um conheci-
A prática é levada a cabo por grupos a oração. Pelas cinco da manhã, ro- mento minucioso das orações e cânti-
– ou ranchos – de penitentes do sexo meiros e familiares dirigem-se à igre- cos, assim como de alguns textos re-
masculino, que, durante uma semana ja paroquial, onde é celebrada a “mis- ligiosos. O contramestre coadjuva o
da Quaresma, percorrem a pé a ilha de sa da despedida”. As vozes do mestre e mestre e, se necessário, pode subs-
São Miguel, visitando todas as igrejas do contramestre findam a celebração tituí-lo. O procurador e o lembrador
e ermidas onde esteja exposta a ima- com o cântico do “Adeus”, momento das almas são duas figuras muito im-
gem da Virgem Maria (cerca de cem de profunda emoção em que as famí- portantes. Ao primeiro compete a re-
templos), cantando e rezando duran- lias se despedem dos romeiros, dese- colha e a contagem dos pedidos de
te todo o percurso. Os ranchos de ro- jando-lhes muita coragem e uma boa oração feitos pelos habitantes ou por
meiros constituem-se por freguesia viagem. De seguida, saem da igreja e pessoas exteriores ao rancho. Quan-
e têm dimensão variável (de 30 a 200 iniciam a caminhada, cantando a tra- to ao segundo, anuncia e pede as ora-
romeiros, sensivelmente). O percur- dicional ave-maria dos romeiros. ções especiais e intenções particula-
so é sempre feito no sentido dos pon- É o ritmo lento deste canto, o seu res. Deve fazê-lo num momento mui-
teiros do relógio, ou seja, sempre com carácter rigorosamente monódico e to preciso, interrompendo o canto da
o mar à esquerda. O cumprimento de pungente, o peso atribuído a certas sí- ave-maria, em voz alta, com uma Sal-
uma promessa, o agradecimento por labas, o tom de voz austero e triste, que va (“Seja bendita e louvada a Sagra-
uma graça recebida, a penitência, a se perpetua como forma de tradição da Vida, Paixão, Morte e Ressurrei-
curiosidade, o desafio ou o desejo de oral e memória coletiva. É a ave-ma- ção de Nosso Senhor Jesus Cristo”), ao
transcendência são, hoje, as motiva- ria dos romeiros que anuncia a chega- que todos respondem: “Seja para sem-
ções principais dos romeiros. da do rancho a cada freguesia. Toda a pre louvado com Sua e Nossa Mãe, Ma-
Antes da partida, há, na paróquia, gente a conhece, mas é apenas canta- ria Santíssima”, seguindo-se o pedido.
reuniões de preparação prática e dou- da e entoada durante a romaria, tor- Aos guias cabe a condução do rancho,
trinal. A criação de um espírito de nando-se, assim, o distintivo musical, pois são eles os melhores conhecedo-
amizade, solidariedade e fraternida- a oração por excelência desta prática. res do itinerário tradicional. Já o cru-

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Tradicionalmente, a origem desta prática é situada na


centúria quinhentista, mas textos de cronistas do século
XVII tornam mais provável que, nos moldes atuais, a tra-
dição remonte às catástrofes naturais de 1630, que ficou
na memória como o “ano da cinza”.

zado, que geralmente é uma criança, de acolhimento há um conjunto de re-


transporta o crucifixo. Além destas fi- gras, tradições e atos simbólicos que
guras, há dois ou mais ajudantes que se trocam entre o romeiro e a famí-
acorrem às necessidades dos romei- lia. De madrugada, o mestre, do adro
ros (alimentos, água e fármacos, en- da igreja, toca a campainha de forma
tre outros). a chamar e reunir todos os romeiros
Se, atualmente, cada rancho inte- que, ao chegarem, se saúdam entre si e
gra esses membros com funções bem preparam-se para mais um dia de pe-
definidas, é provável que, outrora, o nitência, rezando e cantando a dolen-
038 mestre fosse o único responsável pe- te ave-maria dos romeiros.
lo desempenho de todas as funções. A Esta prática, tradicionalmente vis-
presente forma de organização leva- ta como um movimento autónomo
-nos a refletir sobre a questão repre- muito mais próximo da religiosidade
sentativa de unidade social. Há uma popular do que das instâncias ecle-
certa estrutura hierárquica, mas que, siásticas, vê surgir em 1962 um regu-
ao mesmo tempo, apaga traços carac- lamento escrito, aprovado e publi-
terizadores da vida social corrente, cado pela Diocese de Angra. O docu-
como conflitos, diferenciação social mento, que dita as normas e condições
ou individualismo. No seio do grupo, da romaria, já foi atualizado duas ve-
durante toda a romaria, o que sobres- zes (1989 e 2003). Nele ficou estabele-
sai são, sobretudo, os valores de hu- cida a criação de um grupo coordena-
mildade, igualdade e fraternidade pe- dor das romarias.
la forma de tratamento mútuo – irmão
– e pelo abraço, modo habitual de sau- Origem incerta
dação. A harmonia vivida no grupo, As romarias quaresmais evoluíram
assim como o espírito de fraternida- ao longo de séculos. Se, segundo a
de e de igualdade são características convicção atual, tiveram origem nos
que marcam o romeiro. Alguns teste- terramotos e erupções vulcânicas do
munhos são particularmente signifi- século XVI, uma certa ambiguidade
cativos a este propósito: “nós somos dos textos de cronistas da época, co-
uma grande família”; “ sentimos uma mo Gaspar Frutuoso e frei Diogo das
união muito forte”; “no rancho somos Chagas, e a falta de detalhes não nos
todos irmãos”. permitem certificar que a prática te-
É nesse espírito que percorrem es- nha nascido das catástrofes de 1522 e
tradas, caminhos e veredas da ilha du- de 1563. Os textos do século XVI que
rante oito dias, pernoitando em igre- descrevem tais calamidades mencio-
jas ou casas de particulares, regra ge- nam apenas a realização de procis-
ral desconhecidos que lhes oferecem sões em que participavam tanto ho-
comida e dormida, bem como água mens como mulheres. Mas, se avan-
quente com sal, para os pés fatigados çarmos para o século XVII, é certo
e sofridos da caminhada. Nas casas que, a partir de 1630 (ano de grandes

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O “cruzado”,
normalmente uma
criança que trans-
porta o crucifixo, é
um elemento central
no piedoso rancho

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

tremores de terra e erupções vulcâ-


nicas), esta prática tomou uma forma
semelhante à verificada atualmente.
Esta catástrofe, considerada como a
maior das erupções registadas após a
colonização dos Açores e descrita pe-
los cronistas da época – Luís Maldo-
nado, António Cordeiro e frei Agosti-
nho de Monte Alverne – ficou conhe-
cida por “Ano da Cinza”.
040 Frei Agostinho de Monte Alver-
ne, na obra “Crónicas da Provincia de
S. João Evangelista das Ilhas dos Aço-
res”, ao relatar a vida dos eremitas
do Convento do Vale de Cabaços, em
Água de Pau, faz referência às roma-
rias feitas pelos habitantes da ilha. Ci- Óleo de Domingos Rebelo, datado de 1926,
ta uma penitência encetada pelos mi- está à guarda do Museu Carlos Machado, em
caelenses que visitam, a pé e descal- Ponta Delgada, e mostra como a tradição se
ços, de dia como de noite, as casas de mantém nos mesmos moldes, deixando
Nossa Senhora existentes na ilha, que adivinhar uma presença feminina na romaria.
diz serem 61. O padre Manoel da Pu-
rificação (f. 1678), ministro desta con-
gregação eremítica, deixa-nos alguns
detalhes sobre as romarias, num ma-
nuscrito redigido em 1665. Aí, narra a
vida dos eremitas e descreve, embo-
ra de forma muito sucinta, as romarias
feitas pelos micaelenses. Na margem
da primeira página deste capítulo, fo-
ram acrescentados dois elementos: o
ano de 1650, o último em que os eremi-
tas se encontravam na ermida de Nos-
sa Senhora da Conceição do Vale de
Cabaços; e uma nota em que se lê “Ori-
gem da devoção que tem os moradores
desta Ilha em vizitar as Cazas de Nos-
sa Senhora”, o que faz crer que o autor
da nota associa a origem da devoção à
catástrofe de 1630. Se em 1635 o núme-
ro de ermidas visitadas era de 61, ob-
serva-se que em 1650 os romeiros ti-

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O Noticioso

leitura de um conjunto de visitas pas- da Igreja não impediu a continuação


torais a paróquias da ilha, referentes da prática nos séculos seguintes. Por
aos anos de 1705 e 1707, permitiu con- exemplo, John Webster (1793-1850)
cluir que em todas as paróquias visi- confirma que no século XIX as ro-
tadas houve referência às romarias, o marias constituíam uma prática en-
que nos leva a crer que eram, já então, raizada no sistema cultural e religio-
prática comum. so da ilha, relatando que a penitência
mais comum consistia em percor-
“Desordenados apetites” rer a ilha descalço, rezando em todas
O capítulo do texto da visitação refe- as igrejas e capelas e diante de todas
rente a esta manifestação começa por as imagens e cruzes. Do mesmo mo- 041
citar aspetos de caráter lúdico e fes- do, Francisco Maria Supico, num tex-
tivo, como os bailes, as pernoitas em to intitulado “Romeiros e Romagens”,
casas de romagem e o uso de instru- redigido, provavelmente, no início do
mentos musicais. Segue-se, depois, o século XX, afirma que ainda subsistia
papel regulador da Igreja perante tais o costume das romagens quaresmais.
nham no percurso de 60 a 70 templos práticas, apontadas como indecentes No entanto, ao descrever a prática, Su-
de invocação feminina. Manoel da Pu- e indecorosas, por conduzirem a “de- pico cita apenas a participação do se-
rificação afirma, igualmente, que tan- sordenados apetites” e à promiscui- xo masculino, salientando que os ran-
to os homens como as mulheres, e até dade. Na segunda parte do capítulo, o chos só saíam das freguesias e que, às
mesmo as crianças, participavam, o visitador ordena ao poder masculino vezes, excediam a centena.
que deixa transparecer que a prática (maridos, pais, irmãos e tios) que in- Também um decreto de 1839, redi-
era mista. Além destes aspetos, o au- tervenha no impedimento da parti- gido pelo prefeito da Província Orien-
tor evoca que os romeiros percorriam cipação feminina. A não observação tal dos Açores, com o objetivo de proi-
a ilha a pé e descalços, num percurso destas determinações impunha mul- bir as romarias, menciona a prática das
que durava vários dias e era feito tan- tas e outras penas. A terceira parte é mesmas, rotulando-as de peregrina-
to de dia como de noite. Por outro lado, dirigida aos párocos, que deviam ler o ções tumultuárias. Estes dados permi-
salienta que apesar de as romarias se capítulo aos seus fregueses e vigiar os tem confirmar que as romarias conti-
realizarem durante todo o ano, ocor- transgressores. As acusações de pro- nuavam a realizar-se no século XIX. No
riam sobretudo no verão. miscuidade e de graves erros e peca- entanto, é muito provável que as críti-
No seguimento do texto anterior, dos em que a mulher era considerada cas e medidas repressivas das autori-
Manoel da Purificação faz alusão à como a principal agente e responsável dades eclesiásticas, no século XVIII, e
caridade dos romeiros, que provi- vão justificar a proibição absoluta do das autoridades civis, nos séculos XIX
nham, sobretudo, de meios rurais, e género feminino nas romarias. e XX, tenham levado à restrição da par-
sublinha mais uma vez a presença de Apesar das determinações expos- ticipação feminina. O facto de os pa-
mulheres, sendo muitas delas espo- tas pelas autoridades eclesiásticas, as dres fecharem as portas das igrejas aos
sas e filhas dos próprios romeiros. Se romarias continuavam a ser pratica- ranchos mistos contribuiu, certamen-
os manuscritos do século XVII mos- das, pois em 1743 a questão da proibi- te, para a redução significativa do nú-
tram claramente a participação femi- ção volta a ser focada. No entanto, des- mero de mulheres nas romarias. Ape-
nina nas romarias, constata-se que ta vez, a proibição não se aplica ape- sar disso, a presença da figura femini-
os do século XVIII fazem alusão à sua nas ao sexo feminino, mas às próprias na encontra-se bem visível em obras
proibição pelo prelado diocesano. A romarias. Todavia, a ação repressiva da primeira metade do século XX. Ur-

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

042

bano Mendonça Dias, em “Romeiros la ausência do bordão e por se encon- ticipação feminina nos finais dos anos
da Quaresma”, é um dos poucos auto- trar acompanhada pelo romeiro mais 50 do século XX é imposta pela Dioce-
res que mencionam a participação da velho a seu lado, aspetos que nos fazem se de Angra.
mulher nas romarias quaresmais da crer que se trata, provavelmente, de Durante o século XX, no entanto,
primeira metade do século XX. Já Do- uma mulher, filha ou sobrinha do di- as romarias foram alvo de outras proi-
mingos Rebelo, que retratou costu- to romeiro. Os vários testemunhos e as bições e críticas. Trabalhos recentes
mes, tradições e usos do povo açoria- histórias vividas de algumas romeiras defendem que entre 1911 e 1918 a ma-
no, pintou em 1926 o quadro “Romei- que entrevistámos permitiram-nos nifestação esteve interrompida, ar-
ros em S. Gonçalo”, em que são visíveis concluir que, até 1957, mulheres inte- gumentando que a instauração da Re-
vários elementos específicos da roma- graram-se em ranchos. Apesar de no pública, em 1910, e o anticlericalismo
ria, como a indumentária do romeiro, o regulamento oficial dos romeiros de foram as causas principais. A análise
rancho em duas alas ou o ambiente pe- 1962 e seguintes não constar nenhum do Livro de Registo de Licenças pa-
sado de penitência. Em primeiro plano capítulo sobre a exclusão da mulher, ra Atos Religiosos do Fundo do Go-
estão duas figuras que apresentam di- observa-se, porém, que a partir de 1958 verno Civil de Ponta Delgada permi-
ferenças significativas. A personagem as romarias são realizadas exclusiva- te pôr em causa essa tese, visto que se
mais jovem releva uma certa ambigui- mente pelo sexo masculino. Segundo encontram registadas várias licenças
dade, pelos traços finos do rosto, pe- testemunhos orais, a proibição da par- e autorizações concedidas relativas a

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O Noticioso

043

AO LONGO romeiros. Durante o governo de Ho- voções noturnas nas igrejas. Apesar
rácio de Medeiros Franco (1921-1923), disso, 16 romarias foram autorizadas
DOS TEMPOS, a tradição foi proibida na ilha inteira em 1919. Assim, inclinamo-nos mais
por motivos de “salubridade pública”, para a hipótese de as “razões de salu-
SUCEDERAM-SE pois “parece” que a ilha de São Miguel bridade” terem sido o pretexto para
MEDIDAS PARA foi vítima da gripe espanhola, e o risco proibição das romarias quaresmais.
de contágio teria sido, naturalmente, a Apesar disso, segundo fontes orais,
IMPEDIR A causa principal da proibição. Mas isso a proibição prolongou-se durante al-
PARTICIPAÇÃO levanta algumas dúvidas. A pandemia guns anos.
propagou-se nos Açores desde 1918 e Em 1929, os jornais micaelenses “A
FEMININA NOS prolongou-se até 1919. Nesse perío- Crença” e “O Autonómico” anuncia-
RANCHOS do, em circular enviada ao clero pa- ram o regresso das romarias. Mas, se-
roquial, o bispo de Angra (1915-1922), rá que realmente todos os grupos de
D. Manuel Damasceno da Costa, apre- romeiros obedeceram às proibições?
senta as precauções a tomar, sendo Parece-nos que não. Pudemos cons-
uma delas o adiamento e impedimen- tatar, ao longo desta história de proi-
to das solenidades religiosas e das de- bições, que sempre houve uma certa

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

resistência e transgressões às leis im- negativa que a prática adquirira. Hoje


postas. A realização clandestina da em dia, o clero, que muitas vezes igno-
romaria parece mais que provável. rava e criticava as romarias, defende-
É de salientar igualmente que, mui- -as e encontra-se muito envolvido ne-
tas vezes, a passagem por Ponta Del- las. É realmente curioso notar que es-
gada e por algumas sedes de concelho tas romarias, consideradas durante
(como a Ribeira Grande e Vila Franca séculos autónomas e populares e, por
do Campo) fazia-se em silêncio e ge- conseguinte, marginalizadas, despre-
ralmente com o xaile pela cabeça, a zadas ou ignoradas pelos detentores
fim de evitar possíveis denúncias ou dos poderes civil e eclesiástico e seto-
o escárnio e desprezo, sobretudo por res progressistas da sociedade, são ho-
parte das classes dominantes e elitis- je totalmente integradas na paróquia e
tas. Para estas passagens, a autoriza- valorizadas socialmente como marca
ção concedida pela autoridade admi- indelével de identidade etnocultural
nistrativa do distrito era obrigatória. do povo açoriano. O atual prelado dio-
No entanto, possuir autorização ofi- cesano, ao integrar durante um dia um
cial para realizar a romaria era uma rancho de romeiros, deixou bem cla-
exigência que existia já no século XIX ra a posição da Igreja Católica. Contra-
e que se prolongou até ao século XX. riamente ao que acontecia ainda du-
Qualquer evento e manifestação de rante parte do século XX, em que os ro-
ordem pública realizava-se sob con- meiros passavam pela capital da ilha
trolo do Governo Civil. Convém subli- em silêncio, assistimos agora à forma-
nhar também que, na época, a romaria ção de ranchos em paróquias da cida-
quaresmal não era ainda reconhecida de de Ponta Delgada. Mais: nos vários
e oficializada pela Igreja. Considera- ranchos de romeiros, encontramos in-
va-se uma prática autónoma e mar- divíduos de todas as categorias profis-
ginal, realizada fora do contexto reli- sionais – camponeses ou pescadores,
gioso e institucional. Tal é espelhado mas também empresários, bancários,
pelo facto de, no livro dos pedidos das professores universitários, profissio-
044 licenças para atos religiosos, os reque- nais liberais ou padres – e originários
rimentos serem feitos pelos próprios de lugares diferentes – da ilha de São
romeiros, mestres ou principais res- Miguel, das várias ilhas dos Açores, de
ponsáveis pelos ranchos. Não pelos Portugal continental, do Brasil, do Ca-
párocos. Segundo fontes orais, esta nadá, dos Estados Unidos, da Alema-
condição imposta aos romeiros exis- nha, das Bermudas.
tia ainda em 1959. Se a instauração de um regulamen-
to oficial permitiu um maior e melhor
Do desdém à valorização conhecimento mútuo dos respon-
Apesar de um certo declínio das ro- sáveis de cada rancho, assim como a
marias, devido à imagem de “parente uniformização de certos aspetos ine-
pobre de cultura” que se foi instilan- rentes à romaria ou, ainda, a uma me-
do no seio de setores da sociedade mi- lhor organização das romarias, so-
caelense, a imprensa local, os intelec- bretudo no que diz respeito à pernoita
tuais e artistas (Francisco Carreiro da dos ranchos nas freguesias, tornar-
Costa, Padre josé Jacinto Botelho, Pa- -se-á fundamental, no entanto, que o
dre Ernesto Ferreira, Domingos Re- mesmo não modifique nem suprima
belo, Urbano Mendonça Dias, Manuel costumes ou regras orais, que foram
Inácio de Melo) contribuíram para di- transmitidas de geração em geração,
vulgar, valorizar e manter a tradição. ou que se tenda a “folclorizar” as ro-
Lendo jornais publicados na ilha (“A marias quaresmais como produto tu-
Crença”, “Correio dos Açores”, “O Auto- rístico. Não se trata, pois, de uma tra-
nómico” e “Diário dos Açores”), verifi- dição fixa e padronizada, porque no
ca-se que a partir da segunda metade fundo existe uma diversidade infini-
do século XX há um aumento significa- ta de romarias, cada romaria conten-
tivo de artigos relativos à defesa e va- do aspetos que diferem de rancho pa-
lorização dos romeiros de São Miguel. ra rancho, de mestre para mestre e até
O reconhecimento oficial pela Dioce- mesmo de freguesia para freguesia. É
se de Angra e Ilhas dos Açores, através sobretudo este processo complexo de
da publicação do regulamento dos ro- transmissão, sempre aberto e móvel,
meiros, em 1962, permitiu, sem dúvi- que permite dar continuidade a um
da, atenuar e mesmo apagar a imagem passado sempre presente.

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O Noticioso

Os romeiros dão
a volta à ilha de São
Miguel no sentido
dos ponteiros
do relógio, tendo
sempre o mar
à sua esquerda

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O Noticioso
TEMA DE CAPA

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O Noticioso

Tradição
eminentemente
piedosa e penitencial
quebra barreiras
sociais e valoriza a
convivência fraternal
entre romeiros

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O Noticioso
CAMINHOS DO PATRIMÓNIO

Antas e menires
– monumentos
Joel Cleto
arqueólogo para os mortos
ou dos vivos?
Há bem mais de cinco mil anos,
Castro Laboreiro
048 no atual território português, Anta da
o Homem ergueu grandes Barrosa

monumentos em pedra. Viana do Castelo

Construções megalíticas que se Anta de


Vila Real
Santa Marta
alicerçam, até hoje, como uma Porto
Serra da
Aboboreira
das mais antigas arquiteturas
pétreas em todo o mundo. Mas só
aparentemente eram monumentos OCEANO
ATLÂNTICO
Anta da Viseu
Arquinha
funerários. Eles destinavam-se de Moura
Dólmen
fundamentalmente aos vivos. Para da Orca
que serviam? Quem os ergueu? Coimbra

Onde os podemos visitar?

Cromeleque
dos Almendres
Lisboa

Évora
Anta Grande
do Zambujeiro

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O Noticioso

ANTÓNIO PEDRO VALENTE / ARQUIVO JN

T
al como hoje, há cerca de dez mil gisto arqueológico, estas comunidades neolíticas Cromeleque
anos o nosso planeta conhecia uma preocuparam-se em erguer grandes monumen- dos Almendres,
fase de aquecimento. As grandes tos aos mortos. Em pedra. No nosso território foi há em Évora, remete- 049
manchas geladas e os enormes gla- mais de cinco mil anos, nos meados do IV milénio -nos para rituais,
ciares que dominavam uma parte a.C., que no interior das suas construções megalí- mitos e cosmovi-
significativa da superfície terres- ticas, erigidas com enormes pedras, começaram sões. É a mais im-
tre começaram a recuar. As águas a ser depositados aqueles que se ausentavam do portante concentra-
do oceano subiram e estabilizaram aproximada- mundo dos vivos. Estruturas em muitos casos ver- ção de menires da
mente nas cotas e praias que hoje conhecemos. dadeiramente impressionantes, não só pela sua Península Ibérica
Após cerca de cem mil anos, terminava, então, a dimensão, não só porque as pedras eram muitas
Idade do Gelo, a glaciação de Wurm… vezes provenientes de locais afastados, mas tam-
E, num curto espaço de tempo, tais profundas bém porque estamos perante comunidades que se
transformações climáticas acarretariam igual- encontravam ainda a longos séculos de distância
mente novas e radicais alterações no modo de vida do conhecimento e da prática da metalurgia, pelo
do Homem. Aquela que foi provavelmente a maior que não foram utilizados instrumentos metálicos
revolução na sua História tinha agora início: a neo- na extração e deslocação das enormes pedras, e
lítica. Depois de mais de dois milhões de anos de na posterior construção destas “catedrais pré-his-
nomadismo e de atividades exclusivamente pre- tóricas”. E esta foi uma tradição arquitetónica que
dadoras (caça e recoleção) para assegurar a sua perdurou mais de 1500 anos, até aos inícios do II
subsistência, o Homem tornava-se agora produtor, milénio a.C., na Idade do Bronze inicial. Um fenó-
através da prática da agricultura e da pastorícia, e, meno que coincidirá praticamente no tempo (em-
concomitantemente, sedentarizava-se. E, como bora as datas obtidas pelo método do Carbono 14
escreveu o famoso arqueólogo Richard Leakey, para alguns dos monumentos portugueses sejam
ao lançar à terra as primeiras sementes agrícolas, das mais antigas) num vasto território, que inclui,
o Homem lançava também as sementes da agres- grosso modo, não só o nosso país, mas também to-
sividade. Trata-se, obviamente, de uma imagem da a fachada atlântica da Península Ibérica, a Bre-
metafórica, mas que não deixa de sublinhar o facto tanha, o norte de França e as ilhas britânicas, alon-
de ter sido com estas primeiras comunidades hu- gando-se até à Dinamarca.
manas que se fixaram no território que entrámos Mas, para que serviam estas construções?
num rápido e irreversível processo de complexifi- A função que de imediato associamos às antas
cação, segmentação e hierarquização social. (ou dólmenes, numa designação de origem bre-
Mas, mais do que estruturas destinadas aos vi- tã) é funerária. E, de facto, estamos perante verda-
vos, cujas aldeias, construídas em materiais pere- deiros jazigos coletivos destas primeiras comu-
cíveis, deixaram poucos e ténues vestígios no re- nidades de agricultores e pastores, na sua maioria

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O Noticioso
CAMINHOS DO PATRIMÓNIO

reutilizados durante longos períodos. As inuma-


ções (ou deposições dos corpos) eram geralmen-
te acompanhadas por objetos de uso quotidiano,
designadamente vasos cerâmicos, elementos de
adorno (como colares) ou utensílios ligados à prá-
tica agrícola, como machados polidos, enxós, lâ-
minas de foices em pedra…
A tipologia destes monumentos, que se cons-
tituem como a primeira arquitetura em pedra da
Europa ocidental, é muito variada. Basicamente,
eram constituídos por uma câmara funerária (que
hoje designamos por anta), construída com gran-
des lajes (os esteios), e coberta posteriormente por
um monte de terra e de pedras (popularmente de-
signado por mamoa). De facto, quando hoje con-
templamos um dólmen estamos a observar “ape-
nas” uma ruína do monumento original, que era
bem mais complexo. Quando este foi construído, a
anta, debaixo da sua mamoa, não era visível. Ape-
nas se observava um monte pétreo totalmente re-
coberto por blocos de pequenas e médias dimen-
sões. O acesso à câmara funerária fazia-se deslo-
cando o único elemento do dólmen que, no topo do
montículo, permanecia à superfície: a tampa da
anta. No caso dos monumentos mais “evoluídos”
e de maior dimensão, o acesso à câmara fazia-se,
não pela tampa (de enorme peso e cuja deslocação
poderia fazer colapsar toda a estrutura), mas atra-
vés de corredores: verdadeiros túneis, igualmente
050 construídos em pedra, que “perfurando” o monte
constituído por terras e pedras, ligavam a periferia
da mamoa ao interior do dólmen.
Monumentos destinados aos mortos? Só apa-
rentemente. Estamos, afinal, perante o erguer de
imponentes marcas que se evidenciavam na pai-
sagem e que apropriavam simbolicamente um
território. Algo crucial, se pensarmos que esta- Dólmen da Orca turas de enterramento coletivo e, cada vez mais,
mos perante as primeiras comunidades seden- (ou Lapa da Or- destinadas a um número reduzido de utilizado-
tárias, que precisam de balizar e assegurar a pos- ca), em Carregal do res. A uma elite que não tem ainda a força, o po-
se de um território para as suas práticas agríco- Sal, é uma de mui- der e o prestígio para obrigar o resto da comuni-
las e de pastoreio. Um território cuja apropriação tos exemplos de an- dade a construir-lhe monumentos excecionais. A
é, deste modo, legitimada também pela presen- ta despida da sua co- sua afirmação funerária far-se-á pelo espólio que
ça destes monumentos onde moram gerações bertura, a mamoa, acompanha o defunto, com objetos de prestígio,
de antepassados que, desde há muito, o explora- que permanece in- como armas metálicas (em cobre e bronze) e obje-
ram e habitaram. De resto, e nestes últimos anos, tacta na anta da Ar- tos de adorno, em pedras raras e até em ouro.
quer em Portugal quer noutros locais ricos no fe- quinha da Moura (fo- Mas, além das antas, o megalitismo caracteri-
nómeno megalítico (ver o caso paradigmático de to menor), em Ton- zar-se-á por outro tipo de monumento: os meni-
Stonehenge, em Inglaterra) a arqueologia vem dela, também no res. Isolados ou em grupo. Em longas filas (os ali-
revelando que, nos átrios fronteiros a estes mo- distrito de Viseu nhamentos) ou em círculos (os cromeleques).
numentos e em torno destas necrópoles, se desen- Neste caso, não estamos perante estruturas fune-
volviam relevantes rituais e, seguramente, mani- rárias, mas notoriamente para os vivos. Uma vez
festações de representação social. Dos vivos. Pa- mais em recintos rituais e, certamente, relaciona-
ra quem a posse do território e o domínio sobre os dos com as suas religiões, mitos e cosmovisões. E –
outros se ia acentuando. cada vez mais evidente nas investigações arqueo-
De resto, e tendo em conta a sua longa perdu- lógicas – perante dispositivos astronómicos que,
ração no tempo, as antas foram também testemu- na relação/alinhamento dos menires com a paisa-
nhas privilegiadas da crescente hierarquização gem e com as estrelas e/ou com os locais do nascer
social. E não deixa de ser sintomático que, na sua e do pôr do sol ao longo do ano, marcariam o calen-
fase final, o megalitismo se caracterize por mo- dário e as estações do ano. Algo cujo conhecimen-
numentos de dimensão crescentemente mais re- to era crucial, uma vez mais, para os agricultores.
duzida. Eles passam a ser, cada vez menos, estru- Para os primeiros agricultores do nosso território.

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O Noticioso

Roteiro de visita
Estão identificados alguns milhares de mo-
numentos megalíticos no nosso país. Alguns
encontram-se isolados. Muitos concentram-
-se em autênticas necrópoles que podem ser
constituídas por várias dezenas de megáli-
tos. Na sua esmagadora maioria, os dólme-
nes encontram-se em locais de difícil acesso,
mal sinalizados e deficientemente valoriza-
dos, do ponto de vista histórico, patrimonial,
educativo e turístico. Possuímos em Portugal
uma das mais velhas arquiteturas em pedra
do mundo e, no entanto, temos-lhe prestado
muito pouca atenção.
Neste breve roteiro aconselhamos alguns
dos sítios e monumentos mais emblemáti-
cos e, apesar de tudo, bem preservados e es-
tudados. No Norte aconselhamos uma visita
à Anta da Barrosa (Vila Praia de Âncora, Ca-
minha) ou à Anta de Santa Marta (Penafiel).
Obrigatória é uma deslocação à Serra da Abo-
boreira (Marco de Canaveses, Baião e Ama-
rante) onde encontramos a segunda maior
concentração de dólmenes do Norte (a maior
fica em Castro Laboreiro) e que, nas déca-
das de 80 e 90 do século passado, se conver-
teu no mais bem estudado conjunto megalí-
tico do nosso país. Uma visita que deverá in- 051
cluir o dólmen de Chã de Parada (Ovil, Baião)
e o Museu Municipal de Baião.
O Centro, nomeadamente a região de Viseu,
é igualmente rico em monumentos megalí-
ticos. Aqui encontramos alguns exemplares
RUI DA CRUZ / GLOBAL IMAGENS
não só com a sua mamoa relativamente bem
preservada, mas também com interessantes
vestígios, que chegaram até aos nossos dias,
da arte gravada e pintada nos esteios. Sir-
vam-nos, apenas como exemplo, as antas da
Lapa da Orca (Carregal do Sal) e da Arquinha
da Moura (Tondela).
É no Sul, no entanto, que encontramos os
mais significativos e monumentais exem-
plos. Caso da Anta Grande do Zambujeiro
(próximo de Valverde, Évora) – o maior dól-
men da Península Ibérica; ou os cromeleques
dos Almendres (não muito longe do anterior,
igualmente em Évora) ou o de Xerez (Reguen-
gos de Monsaraz), que possui a particularida-
de de ter sido “deslocalizado” e salvo do pro-
gresso, materializado no enchimento da al-
bufeira do Alqueva.
DIREITOS RESERVADOS

Monumentos mega- Antas de menor ta-


líticos constituem a manho traduzem
primeira arquitetura início de uma hierar-
em pedra europeia quização social

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O Noticioso

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O Noticioso
ENTREVISTA

“HÁ EM PORTUGAL
UMA APATIA POLÍTICA QUE,
DE VEZ EM QUANDO,
DESAPARECE” Irene Flunser Pimentel
Chegou tardiamente ao ofício, mas tornou-se
um dos nomes mais reconhecidos da historiografia
portuguesa atual. Não tanto por ter ganho o Prémio Pessoa,
053
em 2007, como por estudar um tempo que desperta paixões
– o Estado Novo – e, em especial, por saber transmitir o
conhecimento ao grande público.
Textos de Pedro Olavo Simões
Fotografias de Orlando Almeida / Global Imagens

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O Noticioso
ENTREVISTA

“A PIDE FAZIA CONSTAR


QUE TINHA MAIS EFICÁCIA
DO QUE REALMENTE TINHA”

E
ncontramo-la em ca- quando fui para doutoramento, é que promovia. E mais: fazia constar, até,
sa, um oásis de sere- encarrilei mesmo para o século XX que tinha mais eficácia do que real-
nidade no coração de português. Primeiro, ainda ia falar mente tinha e que estava por todo o
Lisboa, onde se pro- sobre o corporativismo, mas, depois, lado, que era omnipotente e omni-
duz boa parte do que é esse assunto começou a maçar-me. O presente. Esse lado da omnipotên-
o nosso conhecimen- corporativismo, o trabalho nacional, cia e da omnipresença teve muito su-
to do século XX por- esses coisas... cesso, por más razões, junto da opo-
tuguês. Historiadora de grande rele- sição ao regime, pois os elementos da
vo, Irene Flunser Pimentel mostra-se, Demasiado institucional e pouco oposição também tinham essa ideia,
também, como algo que sempre foi: próximo das pessoas... uma ideia ainda muito mais exagera-
uma cidadã fortemente empenhada Exatamente. Depois, de repente, a da do que de facto era. A gente acha-
nas suas opiniões, não só políticas. E gente está a estudar instituições, e va que a PIDE estava por todo o lado e
054 que convive bem com a jovem que foi, ainda pensei dedicar-me a uma ou escutava tudo, que escutava os tele-
apesar de a revolucionária clandesti- outra, mas acabou por ser a PIDE. A fones todos, e, veio-se a ver, nem ti-
na, arrumada no passado, ter dado lu- questão é que já havia um trabalho nham capacidade técnica para fazer
gar a uma reformista. sobre a PVDE, uma tese de mestrado, isso. De vez em quando, escutavam
e uma colega minha estava a fazer a alguns. Depois tinham era outras
Como historiadora, estuda, sobretu- PIDE na Guerra Colonial. Então, aca- coisas com alguma eficácia, como a
do, o regime que se dispôs a comba- bei por fazer uma tese sobre a PIDE, na colaboração com muitas instituições
ter quando adquiriu consciência po- chamada metrópole, de 1945 a 1974. A do próprio regime, dos correios, com
lítica. A cientificidade e a maturida- PIDE/DGS. a interceção postal, às várias polí-
de dão solidez aos seus combates de cias, aos presidentes de Câmara, aos
juventude? Encontrou surpresas em relação ao governadores civis, a todas as insti-
Eu não fui logo para a História con- que percecionava no seu tempo de tuições do regime.
temporânea. Aliás, quando comecei oposicionista?
a fazer o mestrado, que é quando nos Basicamente, a ideia que eu tinha con- A sua faceta de cidadã interventiva,
especializamos e escolhemos épo- firmou-se. Mas houve aspetos que, de por exemplo, nas plataformas da In-
cas, tanto queria estudar o Egito anti- facto, me surpreenderam. Por exem- ternet, compensa, de algum modo, o
go como o século XVIII, os iluminis- plo, eu achava que aquilo era tudo mui- dever de neutralidade enquanto his-
mos e o século da Revolução France- to secreto, mas, de repente, apercebi- toriadora?
sa, ou a História contemporânea... Na -me, e não tinha dado por isso quando Sim, sim... Aliás, durante muito tem-
realidade, o que eu queria mesmo era era jovem, de que a PIDE fazia questão po, eu não tinha esse tipo de interven-
a História contemporânea, para ten- em publicitar e fazer constantemen- ção. Digamos que fiz uma certa tra-
tar perceber um pouco melhor se eu te notas oficiosas nos jornais. Achei is- vessia do deserto, que toda a gente
estava enganada, se tinha lugares- so interessante, pois, ao fim e ao cabo, deve fazer, a dada altura da vida. Não
-comuns, ideias feitas, preconceitos era para mostrar que eles eram mui- passar de uma fase para outra rapida-
sobre aquele regime. E, por acaso, até to bons. Era uma autopropaganda, di- mente. Eu sou daquela geração, da es-
peguei logo num assunto que não ti- zendo: “Atenção, nós estamos muito querda radical, e durante muito tem-
nha nada a ver comigo, que eram as atentos, somos muito eficazes e pren- po andei completamente fora das coi-
organizações femininas do Estado demos esta gente toda”. sas. Depois, a própria História era, de
Novo: a Mocidade Portuguesa Femi- facto, o meu campo de intervenção,
nina, em que não andei, porque esti- Seria, então, uma forma de atemori- mas laboral. E é verdade que temos
ve no Liceu Francês, andei só na quar- zação para compensar fragilidades? de tentar ser o mais neutrais possível,
ta classe, e a Obra das Mães. Depois, Era uma polícia secreta que se auto- sabendo que essa neutralidade não

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O Noticioso

“Temos de tentar ser


o mais neutrais possível,
sabendo que essa
neutralidade não existe.
Temos de combater
permanentemente
a tendência para a
parcialidade.”

055

existe. Temos de combater perma- ver com os próprios meios: primeiro uma grande separação entre a His-
nentemente a tendência para a par- a blogosfera, mas agora fico-me pelo tória e o resto. É evidente que, na es-
cialidade. Facebook, que é rápido e barato... colha dos assuntos, acabam por estar
um pouco estampadas as minhas op-
Isso representa um esforço muito A História surge na sua vida de uma ções políticas e as minhas opiniões.
grande? forma relativamente tardia, após Mas tento sempre estudar temas que
Não, chega uma dada altura em que uma existência prévia eminente- não têm nada a ver comigo. É a manei-
nos habituamos a isso mesmo e di- mente política. A política, o feminis- ra que tenho de me defender. As orga-
vidimos os espaços de atuação. En- mo ativo e esse tipo de de intervenção nizações femininas, que não têm na-
quanto cidadã (aliás, também não in- de que falávamos, permanente e rá- da a ver comigo, a biografia do cardeal
tervenho, não estou em nenhum par- pida, é uma forma de a alimentar, en- Cerejeira, que fiz a seguir à do Zeca
tido político nem nada do género), quanto mulher de causas? Afonso, para contrabalançar... Inte-
é uma coisa mais recente, que tem a Sim, mas continuo a dizer que faço ressa-me mais ver as instituições e as

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O Noticioso
ENTREVISTA

“A chamada linha fascista,


que contaminou todos os
anos 30 e 40 do século XX,
aqui, de uma certa forma,
foi abafada pelo próprio
Salazar.”

figuras do regime, que não têm nada a riografia é uma ciência. Mas, quando Mas Portugal, por acaso, é dos países
ver comigo, como é evidente. analisamos a crise de 29, e sabemos onde eu vejo que o perigo desse tipo
que há crises cíclicas, económicas e de contaminação é menor, e isso tem
Há alguma vertente pragmática no financeiras, como a de 2007/2008... a ver com razões históricas.
que produz, ou seja, evitar a repeti- o desemprego, a desagregação da so-
ção de erros, ou o historiador tem de berania do estado-nação, ao mes- Como assim?
reprimir esses desejos? mo tempo que há uma globalização, Por exemplo, o fascismo – que é uma
Ainda agora escrevi um texto para a uma mundialização e europeização, palavra muitas vezes mal utilizada,
rádio, sobre as eleições francesas e evidentemente que, depois, ao as- assim como o terrorismo –, a chama-
sobre o conhecimento da História do sistirmos a partidos que são xenófo- da linha fascista, que contaminou to-
século XX, para iluminar, um pouco, bos, racistas e nacionalistas, isso faz- dos os anos 30 e 40 do século XX, na
aquilo que se está a passar, embora eu -nos recordar como, na Alemanha, foi Europa, com matizes um bocadi-
056 diga sempre (não gosto disto do “eu também pela via eleitoral que o regi- nho diferentes uns dos outros, aqui,
diga sempre”, acho uma coisa horrível me nazi se implantou. de uma certa forma, foi abafada pelo
as pessoas autocitarem-se, mas a gen- próprio Salazar.
te tem essa tendência) que a História Há uma incapacidade permanente
não se repete (não se repete, de forma de aprender com a História ou a ten- Está a falar do movimento nacional-
nenhuma, da mesma maneira, por- tação totalitária e nacionalista está -sindicalista...
que são épocas diferentes e contextos sempre latente, à espera de um im- Sim, o nacional-sindicalismo. Ha-
diferentes) e, por isso, também não pulso que a traga à superfície? via uma matriz mais conservadora e
sabemos o que é que vai acontecer, ou reacionária, ligada à Igreja Católica,
estaríamos a profetizar. Mas é verda- É um dos lados do ser humano. Há o do salazarismo. Claro que ele não po-
de que para a questão dos refugiados, lado também solidário, há outros la- dia permitir que houvesse, por exem-
hoje, serve muito saber o que aconte- dos. Mas um dos lados do ser humano plo, radicais, mesmo à sua direita. Por-
ceu durante a II Guerra Mundial, pa- é a questão do poder, e o poder auto- tanto, travou o seu caminho e, de certa
ra tentar analisar o que se está a pas- ritário, ou totalitário, evidentemente forma, por isso (não é o único dos fato-
sar atualmente, embora sejam coisas que tem muita apetência. E esse tipo res), nunca o fascismo ou o radicalis-
diferentes: vêm de situações diferen- de matriz acontecerá sempre. Depois, mo da extrema-direita foi aqui tão for-
tes e locais geográficos diferentes, fo- será de formas diferentes. Agora, por te como noutros países, como é o ca-
gem de regimes diferentes, que nem exemplo, acho que as pessoas não es- so de França. Depois, ainda por cima,
sequer existiam na altura... Mas é cla- tão a ver muito bem o perigo imediato nós tivemos o 25 de Abril, e não só o an-
ro que ajuda imenso. do que se está a passar. Com a segun- tigo regime, autoritário, foi completa-
da volta das eleições ficou tudo mais mente posto de parte, mesmo pela di-
Já a vi fazer, recentemente, o para- aliviado, mas o certo é que os votos reita que veio a seguir ao 25 de Abril,
lelismo entre os resultados do Front estão lá, e até houve mais votos para como também houve uma espécie de
National, em França, e a implemen- a Frente Nacional do que na primeira diabolização de todo aquele regime e
tação da Alemanha nazi.... volta. O que aconteceu foi que, depois, dos fascismos. Isso faz com que a gen-
Aí está! A História não se repete, na juntaram-se e houve uma mobiliza- te não tenha grandes movimentos a
mesma forma, mas a História é uma ção para travar esse caminho. esse nível. Mas estou admirada...
agência humana, é feita pelos homens
e são os homens que intervêm na His- Imagina que este tipo de fenómeno Essa diabolização, de que fala, pa-
tória. É a diferença para a Biologia ou possa, por exemplo, vir a contagiar rece-lhe que tenha sido genuína ou,
qualquer outra ciência, embora eu um país como Portugal? de certo modo, estratégica ou instru-
não goste muito de dizer que a histo- Claro. Normalmente, eles contagiam. mental?

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O Noticioso

Claro que há sempre aquele lado do cer que a própria História francesa rural fugir à crise era através da emi-
virar da casaca... Mas houve uma ge- tem contido esta matriz da extrema- gração, e isso tudo também fez com
nuinidade. De repente, era errado -direita xenófoba. Se a gente for ana- que não haja, depois, uma atitude po-
pertencer ao antigo regime ou sim- lisar o século XIX francês, é muito lítica interventiva .
patizar com o antigo regime. A PIDE, mais anti-semita, nacionalista, xe-
por exemplo, foi diabolizada. É curio- nófobo e de extrema-direita do que, Quer isso dizer que a reação dos por-
so, também, porque foi criminaliza- por exemplo, a Alemanha na mesma tugueses, enquanto povo, é a fuga?
da. Apesar de as pessoas se esquece- época. Depois, tivemos o terrível sé- É a fuga, mas, ao mesmo tempo não
rem – eu estou agora a estudar isso –, culo XX. Mas também tivemos a Fran- tem a ver com o que se diz de os portu-
foi criminalizada e foram até sujeitos ça de Vichy, que entregou aos nazis os gueses serem maníaco-depressivos
a processos criminais. Curiosamen- judeus, primeiro os estrangeiros, de- ou, então, que são “suicidas”, apoian-
te, ao Marcelo Caetano e aos minis- pois os franceses. Isto está lá contido. do o que é mau para eles. Não é as-
tros do Interior, que tutelavam a PI- Quando houve as manifestações por sim, pois essa fuga é, ao mesmo tem- 057
DE, não aconteceu nada. Mas como causa do aborto, houve manifesta- po, uma prova de vitalidade: ‘Aqui não
eram aquelas figuras mais próximas ções contra, em França, que não hou- posso, logo vou procurar outro lugar,
dos portugueses, houve logo um ódio ve em Portugal. Mas isso também tem onde possa sobreviver e não me dei-
enorme. Não se podia ser da PIDE e tu- a ver com o facto de nós sermos pou- xar, ao fim e ao cabo, morrer à fome’.
do era fascista... Agora, isto não quer cos e haver uma certa apatia política.
dizer que não possa vir... Por exemplo, Que é o que está a acontecer, agora,
o populismo está latente por aí. Não A proverbial brandura portuguesa? numa outra escala...
tem tido muito sucesso, aqui em Por- É. Há uma apatia política que, de vez Numa outra escala e de forma dife-
tugal, mas eu até me admirei, nas úl- em quando, desaparece, como na al- rente, com outro tipo de emigração.
timas eleições, pois esperava que ti- tura do 25 de Abril, em que toda a gen-
vesse um resultado mais expressivo. te ia para a rua, discutia política e es- Aquilo a que se chama “emigração
colhia um partido... mas logo a seguir, qualificada”, certo?
Mas há outro tipo de populismo, co- como diz o José Gil, há uma não ins- E que é muito triste. E tudo isso tem
mo se viu, a propósito do acordo à es- crição, um silenciamento e uma apa- razões históricas. Assim como há ra-
querda, com o reavivar, por exemplo, tia na atividade de cidadania... zões históricas para o tipo de elites
dos fantasmas do PREC... portuguesas, o tempo que demorou
Ah, sim, claro... O que é muito sui ge- Vê isso como uma questão “gené- a monarquia absoluta e o pouco tem-
neris, em Portugal, é que dentro do tica”, ou haverá alguma falência no po que teve a monarquia constitucio-
partido de direita que se diz social- sistema educativo, no que respeita à nal, relativamente a outros países...
-democrata, o PSD, que tinha so- formação de cidadãos ativos e inter- Tudo aqui é tardio. A República, real-
ciais-democratas lá dentro, houve ventivos? mente, é precoce, em 1910, mas caiu
uma viragem totalmente para a di- Isso sim, mas não vejo como um pro- em muitos erros e não foi democráti-
reita, e para uma direita liberal... Li- blema genético, não acho que cada ca. Foi esse o grande problema da Re-
beral também é um termo mal esco- povo tenha uma essência diferente de pública, que não deixava as mulhe-
lhido, porque depois, na prática, são outro povo. Somos, basicamente, to- res e os analfabetos votarem, ou seja,
estatais, mas defendem o livre mer- dos iguais e reagimos da mesma for- o grosso da população. E não conse-
cado e esse tipo de coisas. Mas é uma ma. Depois, os tipos de sociedades são guiu fazer qualquer coisa de alterna-
direita que não se vê, por exemplo, em diferentes. Nós fomos uma socieda- tivo, pelo que, depois, perante a crise,
França, o que faz com que em França de muito rural, durante muito tempo, tivemos um golpe militar e, a seguir, o
haja mais espaço para a extrema-di- depois fomos uma sociedade de emi- Salazar e o Marcelo Caetano durante
reita. Mas também não se deve esque- gração. Ou seja, a forma de esse meio aqueles anos todos.

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O Noticioso
ENTREVISTA

Há em Portugal um evidente fascínio “Eles” é uma entidade omnipresen-


por tudo o que diga respeito ao Esta-
“As contas na ordem te...
do Novo... do Salazar são em cima Sim... “Eles” não pagam impostos,
E a Salazar, sobretudo... “eles” são ricos, “eles” não sei quê...
do quê? De emigração, Nós estamos completamente de fora.
Sim, qualquer livro que tenha Sala- de pobreza, miséria...
zar em título vende como pãezinhos É difícil dar a volta?
quentes... As pessoas querem esse Muito difícil... É um bocadinho aque-
E as editoras querem isso mesmo. Já tipo de sociedade e ter la coisa de não nos enxergarmos, de
tive essa experiência. não nos vermos verdadeiramente ao
as contas em ordem? espelho.
Como se explica, por exemplo, que Penso que não.”
Oliveira Salazar tenha sido escolhi- Se pudessem ser decretadas medi-
do como o “grande português”, num das para combater isso, quais se-
passatempo televisivo? riam?
Acho que é pelas mesmas razões. Evi- Não há medidas para isso. A questão
dentemente, Salazar foi uma figu- da educação e do conhecimento é o
ra cuja importância não pode ser ne- tinha posto as contas na ordem – a principal, e, evidentemente, a filo-
gada.. Há, de vez em quando, indiví- propaganda era toda feita nesse sen- sofia e o conhecimento histórico são
duos muito importantes, para lá da tido –, e agora vem-se a ver que não é fundamentais, bem como a língua e,
sociedade, das elites e dos outros in- bem assim. E as contas na ordem do claro, também as matemáticas... Mas
divíduos, mas também há que ver Salazar são em cima do quê? De emi- isto de se ter reduzido a História ou a
que houve muitas outras pessoas que gração, de pobreza, miséria... As pes- Filosofia, que é o que nos faz pensar,
participaram em todo este processo, e soas querem esse tipo de sociedade porque nós somos muito maus em
também houve muitas outras pessoas e ter as contas em ordem? Penso que matemática, é um absurdo, até por-
que nada fizeram contra esse proces- não. Quando, por exemplo, vou num que a matemática é muito próxima da
so. Por exemplo, a própria oposição, táxi, custa-me ouvir aquelas argu- lógica filosófica. Quanto à História,
durante muito tempo, não defendeu mentações e pergunto sempre a mes- como não conhecemos nada do que
a independência das colónias. Nem ma coisa: “O senhor estudou?. “Eu está para trás, vamos cometer sem-
058 o próprio Partido Comunista, muito não, minha senhora. Só fiz a quar- pre os mesmos erros. Repetimo-los e
menos os republicanos, que até eram ta classe”. “E acha bem? E os seus fi- é como se estivéssemos a começar tu-
bastante colonialistas... lhos?”. “Ah, os meus filhos já estão na do de novo. Nascemos hoje.
universidade”. “E antigamente é que
Persiste a mitologia do chefe? era bom?”. Há um empolamento da ideia de que
Sim, mas também é muito potenciada. o ensino deve ser tecnocrático, prag-
As editoras, quando põem permanen- E ficam sem argumentos... mático... onde é que a História e as
temente o Salazar, estão a dizer que só o Ficam, mas só por um instante. A se- ciências sociais ficam no meio dis-
Salazar é que interessa. Quanto à ques- guir, entra outra pessoa e repetem as so tudo, embora já tenha dito que não
tão da RTP, lembro-me de ter havido mesmas coisas. gosta de falar na História enquanto
uma discussão, na altura, sobre se de- ciência?
via ou não apresentar a própria figura Voltamos à tal mitologia do chefe, Eu não tenho nada contra ciências so-
do Salazar. Na Alemanha, por exemplo, que, de algum modo, se reflete no ciais e humanas, porque a gente já sa-
não apresentaram o Hitler. Tiveram facto de se votar mais depressa em be que não é bem ciência, é social e hu-
medo. Depois, acho que aquilo foi mui- pessoas do que em ideias... mano. É no sentido de que, por exem-
to mal gerido pela RTP, porque foram Absolutamente. Nas últimas legisla- plo, em História, cada acontecimento
buscar algumas pessoas... deram mais tivas houve essa grande discussão. é completamente singular. Não va-
importância a umas pessoas do que a Toda a gente sabe que a gente elege mos poder profetizar por conhecer-
outras, e acabou por redundar naquilo. um Parlamento, mas muita gente diz mos. O que podemos, quando muito, é
Embora eu ache que é, também, uma que elegeu uma pessoa. Claro que, aí, dizer: “Isto, em tempos, deu isto, por-
prova de ignorância. Nós não sabemos os partidos também têm responsabi- tanto, se calhar, é melhor travarmos
nada, mas, como sabemos que havia o lidade, porque personalizam, mas há o caminho, se a gente não quiser es-
Salazar, então o Salazar é que foi. uma tendência, que vem do Salazar e se caminho”. Agora, não podemos ter
que durou muito tempo, de um pater- a certeza de que isto vai dar automati-
Há aquela ideia de ter sido ele quem nalismo, de um regime paternalis- camente aquela consequência..
pôs as contas na ordem, e as pessoas ta (“ele há de tratar de mim; quando
valorizam isso, não é? eu estiver muito, muito mal, eu con- Para qualquer explicação históri-
Olhe ainda há pouco tempo... mas isto to com ele”...). Isso é uma caracterís- ca é preciso recuar a Adão e Eva, se
já é política, não é História... tica muito portuguesa, a de achar que for preciso, ou ao Big Bang ou ao que
“eles têm que... têm que me apoiar”, quer que seja?
Venha a política. quando as pessoas é que têm de fazer Não é só isso. Há uma carga subjeti-
Bom, também se dizia que o Gaspar de forma a que haja apoios. va maior. A História é uma forma de

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narrar um passado, sem ser ficcional, ao longo do tempo, evidentemente, Irene Pimentel
baseada nas fontes que temos e nu- mas digamos que a ditadura acaba considera que os bons
ma procura de verdade no seio des- num dia e, a partir daí, podemos es- historiadores se
sas fontes. Isto joga com interpreta- tudar todo esse processo, porque sa- destacam dos maus
ção e com subjetividade. Também bemos o fim dele. Agora, depois do 25 pela forma como
nas outras ciências há subjetividade. de Abril, o que é que é História e o que preenchem os vazios
Se o investigador, nesse dia, está com é que já é jornalismo? Eu, por exem-
dor de cabeça ou a passar por alguma plo, acho que, claramente, pelo me-
desgraça amorosa, se calhar, não vê a nos até à entrada na União Europeia,
mesma coisa ou não está atento àqui- é História, porque é um processo que
lo. Agora, nas chamadas ciências so- acabou. Agora, há outro processo, que
ciais é mais complicado, porque es- ainda estamos a viver, que é dentro da
tudamos o comportamento dos seres União Europeia... Por acaso, se a Eu-
humanos e nós também somos seres ropa acabar, se nós formos... mas isso
humanos. é se, se, se, se... se formos corridos ou
quisermos sair, qualquer coisa assim,
É mais determinante o que as fontes aí já podemos, de facto, estudar o pro-
dizem ou a forma como são questio- cesso a partir de 1986.
nadas?
As duas coisas, mas a parte da inter- A democratização, em Portugal, é um
pretação e da escolha é fundamen- processo ainda não consumado?
tal. Aliás, o Paul Ricoeur, que faz essa É um processo que, como em toda a
análise, mostra que há uma primeira parte do mundo, está sempre, sem-
fase, que é escolher as fontes, uma se- pre em processo, ou seja, está sem-
gunda fase, que é analisar, e uma ter- pre a ser feito. E pode voltar comple-
ceira ou quarta fase que já é a narrati- tamente atrás. Nós estamos, clara-
va, isto é, a escrita da História. Há vá- mente, num processo democrático.
rios significados para História, desde Aliás, penso que as coisas até estão a
“o que se passou no passado”, o pro- funcionar, mas, há pouco tempo, di-
060 cesso, mas também a investigação e ríamos que não era bem assim, ou ha-
tudo isso a gente chama História, a in- via muita gente a achar que já não es-
terpretação histórica e a escrita, por- távamos num processo democrático,
que fazer História é escrevê-la. E isso porque temos de estar a vigiar, nesse
varia sempre, quer pela escolha das processo, todas as suas componentes.
fontes, quer, depois, pelo modo como Por exemplo, se a Justiça não estiver a
são interpretadas. Além de termos funcionar não há processo democrá-
outro problema, que é a ausência de tico. A própria Comunicação Social
fontes. Muitas vezes, temos de preen- tem uma determinada tendência para
cher esses vazios, de forma verosímil, a mentira, para a manipulação, etc....
e aí é que o bom historiador se destaca também há qualquer coisa que não
do mau. Por exemplo, a História con- está a funcionar. O problema é que is-
temporânea tem muito mais fontes to nunca será perfeito. Portanto, es-
do que as outras, como a medieval. Se tamos sempre no processo de tentar
formos estudar o século XX, ainda te- que isto seja o mais perfeito possível.
mos fontes orais e o cinema, a rádio,
essas coisas todas. Eu pergunto-me, e Trouxe à baila a comunicação so-
isso não sei dizer, como é que vai ser cial, e, com ela, podemos voltar à
daqui a uns anos... questão dos historiadores do futu-
ro. Imagina-se que o trabalho de crí-
A História disto que é o nosso regime tica de fontes, daqui a umas dezenas
democrático, do 25 de Abril para cá, de anos, será algo muito complicado,
continua a ocupar mais os jornalis- não?
tas do que os historiadores. Porquê? Não vai ser o meu problema, mas dis-
Nós não estudamos determinadas so já temos hoje um bocado. O que eu
épocas que um jornalista investi- me pergunto é como é que se vão ge-
ga. Um processo tem de estar acaba- rir as fontes que estão na nuvem e que
do para um historiador o estudar. Por estão online...
exemplo, o Estado Novo, claramente,
acabou. Ainda por cima, temos mui- Por exemplo, o debate de ideias pro-
ta sorte porque sabemos que acabou cessa-se hoje, em grande parte, nos
naquele dia. Depois também variou meios digitais...

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No imediato, nesses meios, com rapi- rorismo, terror. Mas foi variando ao eventualmente matavam-se grandes
dez... Quase que a gente não vai conse- longo do tempo. Dizia-se, por exem- responsáveis por isto, aquilo ou aque-
guir apanhar as coisas na sua substân- plo, que os guerrilheiros eram terro- loutro... Agora, não é nada disso... ma-
cia, porque quando estamos a estudar ristas. Depois, os que lutavam pela ta-se o máximo de pessoas, e pessoas
um processo já está outro a caminho. Te- Palestina eram terroristas. E tinham que não têm nada a ver, que estão ali,
rá de haver aqui muitas alterações, mas métodos terroristas. Agora, aquilo naquele sítio. Como é que se combate
eu não faço a mínima ideia quais. Pri- que se está a passar, e a que nós cha- isto? Não sei.
meiro, porque não profetizamos e, por mamos também terrorismo, não tem
outro lado, porque há aqui coisas que nada a ver com o que se passava. É um É uma ideia que está espalhada, mas
ainda não entendemos. Estamos a ser fenómeno com parecenças, mas no- nós continuamos a ter a ilusão de en-
influenciados por esses fatores, e ainda vo. Por isso, também não sabemos co- carar o Daesh, a al-Qaeda e similares
não vemos bem quais são. Há bocadinho, mo é que o vamos combater. O que se como entidades orgânicas, quando
por exemplo, estávamos a falar nos ter- está a passar com o Daesh é absoluta- têm uma natureza muito mais difu-
mos. Veja-se o termo “terrorista”. A gen- mente aterrador, porque, por exem- sa...
te já o utiliza, pelo menos, desde o final plo, o terrorismo da OLP, ou da Fatah, E o Daesh já é diferente da al-Qaeda,
do século XIX, com os anarquistas. Ter- o que é que era? Desvios de aviões, porque na al-Qaeda as pessoas iam lá,

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“História da PIDE”,
resultado da tese de
doutoramento, é a
obra mais emblemá-
tica da historiadora

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O Noticioso

aos campos, tinham treino e, se qui-


sessem fazer qualquer coisa noutro
país, eles tinham de dar autorização.
Agora, é ao contrário. Eles agarram
numas armas, matam as pessoas em
determinado sítio e, depois, reivindi-
cam em nome do Daesh, e o próprio
Daesh reivindica aquilo, mas não tem
relação orgânica com aquelas pes-
soas. E agora, como é que se combate
isto? Com securitarismo? Mas a Fren-
te Nacional também está a fazer e, pe-
los vistos, as pessoas estão a acreditar
mais nesse tipo de securitarismo, dos
muros contra os refugiados e contra
os estrangeiros. E estão a votar nessas
pessoas...

E o securitarismo acaba por ser o êxi-


to do Daesh...
É como se a Frente Nacional e o Daesh
estivessem juntinhos a combinar:
olha, eu faço isto e tu amanhã fazes
aquilo. Porque um reforça o outro. E
nós estamos aqui no meio.

Numa entrevista disse, a propósito


do tempo que passou em França, na
juventude, que a função de uma co-
munista era o incitamento à revolta. 063
Os pressupostos vão mudando, mas
a atitude mantém-se, ou não?
Bom, muita gente dirá que eu sou uma
social-democrata. Já fui criticada por
isso, sendo que o termo social-demo-
crata tem uma conotação pejorativa
que eu não lhe dou, e que tem muito a
ver com partidos de direita que se di-
zem sociais-democratas...

Ninguém se lembra que os partidos


comunistas nasceram da social-de-
mocracia...
É isso. É terrível. Mesmo as lingua-
gens... A gente não pode dizer “so-
cial-democrata”, que logo a seguir al-
guém pergunta: “Tu és social-demo-
crata? Mas quê, és do PSD?”. E então
vou ter de explicar, justamente, como
é que foi a segunda Internacional e a
terceira Internacional, e como é que
toda a gente estava em conjunto, na-
quela altura, e depois a evolução dis-
to tudo...

Para concluir que o PSD não é social-


-democrata?
Eu não lhe chamo social-democrata.
Digo o PSD, assim pela sigla. Agora,
muita gente diz “o Partido Social-De-
mocrata” ou “os sociais-democratas”.

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O Noticioso
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Os sociais-democratas do PSD estão melhor. O que temos é de tender para história maravilhosa. Porque a nossa
todos a sair ou a serem corridos... mas sociedades em que o ser humano res- história também é essa, não é? Quem
isso já é outra coisa. plandeça e não seja subjugado ou tri- é que é europeu puro? Os americanos,
turado, como no nazismo ou noutro por exemplo, sabem muito bem, que
Há um vazio no espaço que era da so- tipo de regimes. Não vejo outra forma um é porto-riquenho, outro não sei
cial-democracia europeia? além da democracia, pela qual temos quê... mas lá está: há os “verdadeiros”,
Há, e com responsabilidade dela pró- permanentemente de estar a lutar. aqueles que vêm dos ingleses...
pria. No fundo, eu sou a favor do Esta-
do social, que é a última bandeira e es- É uma forma de resistência em de- Como é que ser historiadora a enri-
tá muito em perigo. Ao fim e ao cabo, mocracia? quece e, por outro lado, o que lhe pa-
a importância do Estado para contri- Penso que sim. Defender a democra- rece que ganham os que a lêem?
buir para combater as grandes dife- cia, os meios democráticos... Depois, Bom, não vou falar daqueles que me
renças sociais que existem. No fundo, as pessoas dirão que um sítio onde há leem a mim, mas, de um modo geral,
é isso. Não luto pela revolução como pobres e ricos não é democrático. E das pessoas que conhecem a Histó-
lutava, até porque acho que as alter- eu, realmente, tenho também de con- ria e que têm apetência por esse co-
nativas revolucionárias acabaram cordar com isso. Mas a democracia nhecimento. É ter a noção de que não
todas por falhar, de uma certa forma. pode permitir que aquelas pessoas somos os primeiros, de que o mundo
Pelo menos, as que a gente conheceu. que, por razões de azar, ou de casuali- não começou connosco. Já existia e
Sou mais uma reformista. dade, nasceram em famílias onde não vai continuar a existir para além de
tiveram oportunidade para nada, se- nós. É descentrar, porque o ser huma-
Isso é desilusão ou evolução? jam postas de parte? E eu agora estou no tem de relativizar a sua importân-
Eu acho que é evolução. Claro que já só a falar no nosso mundo dito ociden- cia, perceber que há um antes e que
me desiludi, mas isso era quando ti- tal, porque se a gente for comparar nós somos o produto, em parte, desse
nha ilusões. Não acredito é naquela com as áfricas e outras coisas ainda antes, e vamos deixar também uma
perspetiva que antigamente tinha. Já é mais complicado, e isso tem de ser herança...
não tenho a mesma. tudo resolvido. Esta história dos refu-
giados: há muitos, muitos anos, fazía- A semente do depois.
Pelo tempo que passou, pelo que mos uma espécie de filme de ficção e Do depois. Essa visão de uma reali-
passou a conhecer... imaginávamos os povos todos africa- dade que tem um antes e um depois.
064 E pelo que vi das consequências, nos e da Ásia, na altura, a virem por aí E isso responde também à forma co-
também, do que nós defendíamos. fora, até à Europa, para poderem vi- mo a História me enriquece, porque
Se as pessoas defendiam a China do ver... e não é um bocado isso que está muitas vezes não só me ajuda mui-
Mao e, depois, ficaram a saber o que a acontecer? to... até posso estar a analisar tudo
é que acontecia na China do Mao, co- mal, não é?, mas ajuda-me a analisar,
mo também na União Soviética, como O que sempre aconteceu. Alguém po- por exemplo, um determinado dis-
por aí fora... Nós não podemos ignorar deria falar em “hordas de bárbaros”, curso (“ele está a fazer a mesma coi-
tudo o que aconteceu. Quando se ten- com o sentido negativo que nasce do sa, que aquilo que me lembro não sei
ta fazer, de fio a pavio, uma sociedade desconhecimento... de quê...”) e também esta forma de re-
perfeita, muitas vezes quem se lixa é Mas eles não chegavam aqui, até por- lativização. Muitas vezes, se, peran-
o ser humano. que havia o colonialismo. Agora, me- te o horror e o desespero, a gente não
tem-se num barco e morrem. Isto é perceber o que pode fazer, o conheci-
Nesse tempo haveria uma boa perce- que tem de se resolver, e isto é uma mento da história também ajuda a re-
ção teórica, que talvez hoje não exis- coisa mundial, não é nós, aqui na Eu- lativizar um pouco. Temos o exemplo
ta, mas falhava a informação sobre o ropa, querermos continuar com a de que as pessoas já estiveram em si-
que de facto acontecia? nossa boa vida. Acho que devemos lu- tuações terríveis, como no holocaus-
Mas também me pergunto se ainda tar para que ela continue, isso é ób- to, nos campos de extermínio, e mes-
estamos no tempo das grandes ideo- vio, mas, por outro lado, isto não po- mo assim o ser humano continuou.
logias, que davam a explicação glo- de continuar. Dentro do pessimismo, isso dá uma
bal a tudo. O marxismo explicava tu- certa esperança.
do, desde a forma de comer à forma de Como é que se percebe que os euro-
trabalhar, à forma de pensar, à forma peus tenham essa ideia de serem eu- De alguma forma, está a dizer que a
cultural, intelectual, tudo. Esse tipo ropeus puros, quando, na verdade, História proporciona aquilo que, nor-
de coisas é que desapareceu. resulta de tantas misturas ocorridas malmente, vem da idade e da expe-
ao longo do tempo? riência.
Mantém-se como uma forma de reli- Uma misturada. E o que a Europa já Também. Não vou aqui defender a mi-
giosidade. Será assim? andou a fazer aos outros? A escrava- nha idade, mas incomoda-me muito
Sim, há pessoas que ainda têm uma tura, o colonialismo, as duas guerras certa presunção. Antigamente, a anti-
certa fé religiosa em determinados mundiais, só para falar agora no últi- guidade era um posto, e eu odiava isso,
caminhos, que eu não tenho. O ser hu- mo século. Também podia falar na In- até porque era nova, mas agora dizer
mano é muito complexo, muito dife- quisição e em tudo isso... E achamos que a juventude é um posto também
rente um do outro, é capaz do pior e do que somos maravilhosos e temos uma é uma coisa completamente errada, e

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O Noticioso

Revolucionária
na juventude, Irene
Pimentel vê-se,
agora, mais como
uma reformista

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O Noticioso
ENTREVISTA

o pôr de lado pessoas porque são mais ele é um empecilho, até? E o problema verdade. Os animais não se torturam.
velhas, porque são imediatamente é que ele ainda está a querer trabalhar Há coisa pior do que torturar alguém?
tantãs, e não aproveitar a sabedoria e eu não arranjo emprego. Mas, aqui, Só o ser humano é que tortura, só o ser
dessas pessoas, o que essas pessoas os governos que incentivam isto é que humano é que viola, mata por prazer
viveram... Lá está: isso é a História. são, quanto a mim, bastante crimino- ou de forma gratuita.
sos. Veja-se a ideia de que “a gente não
Esse mundo dos jovens, em que os vai ter segurança social, porque esta- E de onde vem esta nossa capacida-
mais velhos são encostados ou re- mos a pagar a reforma destes”. Eu bem de de continuar sempre a ter fé no ser
metidos, tantas vezes, para espa- sei que isto tudo está em crise e tem humano?
ços onde não incomodem, tem rela- de ser visto, mas acho que é absoluta- Porque, mesmo assim, há outros la-
ção com a desvalorização do estudo mente desumano... dos do ser humano que são fabulosos.
das humanidades? Fico completamente siderada ao ver o
Completamente. Se eu acho que nas- É a desumanização ou a humanização, que se está a passar, por exemplo, em
ci hoje e que o mundo nasceu hoje, pa- já que o ser humano é o único capaz de termos de tecnologia. A tecnologia é
ra que é que eu hei de estar a tratar de produzir maldade deliberadamente? feita pelos seres humanos, não é? Eu
um que já nasceu há mais tempo, se Pois... isso já é muito filosófico, mas é fico siderada...

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O Noticioso

“A HISTÓRIA
É, reconhecidamente, uma das per- nha, que é a Margarida Ramalho, que
sonalidades da nossa historiografia é sobre um episódio na II Guerra Mun-
mais reconhecidas pelo grande públi- dial, com refugiados, que mostra mui-

SÓ É
co, talvez por ter ganho o Prémio Pes- to o que pode acontecer se não se apoia-
soa em 2007... rem estes refugiados da atualidade.
Tive a sorte de isso me acontecer, mas Trata-se de um comboio, com judeus

INTERESSANTE
também tive a sorte de encontrar óti- do Luxemburgo. Estavam todos den-
mas editoras, que se preocupam um tro de um comboio e vieram escolta-
pouco com isso. A História só é inte- dos por elementos da Gestapo, para en-
ressante se for divulgada e transmiti- trar em Portugal, e não conseguiram.

SE FOR da para fora, mas isso é como tudo. A te-


levisão, por exemplo, é um ótimo meio
para divulgar História e nem sempre
Resultado: isto passa-se em 1940, e o
comboio foi recambiado para França,
que já estava ocupada, com as pessoas

DIVULGADA”
faz isso. Há coisa mais fabulosa do que todas. Uma parte conseguiu fugir, e os
os arquivos visuais e sonoros das rá- que não conseguiram fugir ficaram em
dios e da televisão? campos de internamento franceses, e
quando começou o holocausto, em
Preocupa-se em escrever de uma for- 41-42, foram para Auschwitz. Em 40,
ma inteligível, acessível a um público quando isto se passou, não se sabiam
variado? os riscos que aquelas pessoas estavam
Sim, em fazer com que as pessoas per- a correr, é verdade, mas o que é cer-
cebam. Para nós, é muito mais fácil es- to é que, ao não deixá-las entrar, foi-se
crever de forma académica, como se cúmplice da morte deles. Outra coisa é
diz, e fechada. Assim com aqueles ter- o meu pós-doutoramento, que é sobre
mos, que são sempre os mesmos. E não o processo de justiça política, a seguir
se trata só de usar uma linguagem mais ao 25 de Abril, relativamente à PIDE.
acessível, mas nós só conseguimos De que forma é que as pessoas foram
transmitir o que achamos que acon- julgadas ou não. Há a ideia de que nin-
teceu, por exemplo, se também perce- guém foi julgado, mas foram. Ao fim e
bermos muito bem o que é que aconte- ao cabo, tornando a coisa mais geral, de 067
ceu. Se não, estamos a divulgar os tais que forma a justiça, na transição para a
erros. Eu já divulguei muitos erros. democracia, tem influência ou não na
Porquê? Na altura, achava que aquilo própria democracia atual.
era o mais próximo da verdade. Só que,
depois, novas fontes vêm-nos trazer Que tipo de justiça era essa?
outras perspetivas É outra razão pela Este tipo de justiça está a ser muito es-
qual isto não é uma ciência... tudado na Argentina, no Chile, no Bra-
sil, na África do Sul... mas na lógica pós
Mas isso acaba, também, por ser esti- Guerra Fria, que é a dos Direitos Huma-
mulante. nos. Ou seja, há a ideia de que, para de-
É a coisa melhor do mundo. Veja-se: fender os direitos humanos, há que jul-
houve um período em que só existia a gar as pessoas que os violaram e res-
História narrativa e a História política: sarcir as vítimas. Na altura do 25 de
século XIX. Depois, ali com os Annales, Abril, ainda estávamos em plena Guer-
as estruturas é que contam, as conjun- ra Fria e, portanto, era uma lógica de
turas. Depois, isso foi posto em causa e justiça política, dentro da Guerra Fria:
é outra vez a narrativa... Agora, já está a os fascistas, capitalistas... E havia leis
haver outra vez outro tipo de modifica- que hoje em dia não são consideradas
ções e, à medida que isto se vai modifi- de um Estado de Direito. Por exemplo,
cando, vai-se sempre também um bo- a retroatividade. Os elementos da PIDE
cadinho mais longe, e isso é que é mui- foram criminalizados pela sua ativida-
to fascinante. de criminosa antes do 25 de Abril, sen-
do que antes do 25 de Abril a sua ativi-
Que podemos esperar de si, proxima- dade não era considerada criminosa.
mente? Isso não faz parte do Estado de Direito,
Se eu ainda tiver saúde, vou continuar mas foi a forma que se encontrou para
a trabalhar... eles serem julgados, porque se não não
eram. Eles estavam a obedecer a or-
Mas está a trabalhar em quê? dens do regime. Aliás, eram funcioná-
Estou a fazer duas coisas ao mesmo rios públicos com o nome posto no Diá-
tempo. Um livro, com uma colega mi- rio do Governo.

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O Noticioso
DESTAQUE

Participação portuguesa

A guerra,
100 anos
depois Texto de Maria Alice Samara
Instituto de História Contemporânea
Universidade Nova de Lisboa

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O Noticioso

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O Noticioso
DESTAQUE

No dia 6 de março de 1916, a Alemanha


declarou formalmente guerra a
Portugal, embora os dois países já se
digladiassem em África desde 1914.

E
m março de 2016 recor- bre um soldado; no Porto, encontramos
damos os cem anos da a mesma figura de um soldado, de pé,
declaração de guerra segurando a sua arma. Mas, terá razão
da Alemanha e a conse- Robert Musil quando afirma que não
quente entrada de Por- há nada no mundo tão invisível quanto
tugal num dos confli- os monumentos? Muitos de nós podem
tos mais marcantes do passar por estes locais de memória sem
século XX. Chamaram-lhe, ao tempo, os ver, ou olhá-los sem relembrar os mi-
a Grande Guerra, sem poder saber que lhares de homens chamados a comba-
pouco mais de vinte anos depois o mun- ter nesta guerra, os prisioneiros, os feri-
070 do se veria enredado numa outra guer- dos, os estropiados e os mortos. É neste
ra mundial – a segunda. No tempo em sentido que podem ser invisíveis: estão
que a Europa dominava e explorava o lá, mas não os vemos, não recordamos
mundo, no quadro de rivalidades eco- os seus significados, não os lemos.
nómicas e políticas entre as potências Se o espaço das nossas cidades não é
europeias, da criação de um sistema de neutro em relação à memória da I Guer-
alianças e de uma sucessão de crises po- ra Mundial, o mesmo não se pode dizer
lítico-diplomáticas (Marrocos, Bósnia, do tempo. O calendário oficial não con-
Agadir), a eclosão da guerra não foi uma templa, ao contrário de outros, o dia 11 de
surpresa para boa parte dos políticos e novembro – o armistício que pôs fim à I
da opinião pública europeia – incluin- Guerra Mundial. Nos anos subsequen-
do os políticos republicanos. Inusitada tes à guerra, o dia 9 de abril teve, contu-
foi, desde logo, a sua duração, os longos do, uma importância significativa. Em
anos de uma guerra mundial que se re- 1921, foram trasladados para o mostei-
velou crua, sangrenta e massificada. ro da Batalha dois soldados desconhe-
Se nas histórias familiares portu- cidos, um vindo da Flandres e outro de
guesas (a minha avó paterna recorda- África, e, desde 1922, realizaram-se vá-
-se de um familiar que foi lutar para as rias “romagens patrióticas” ao túmulo
trincheiras) a memória deste conflito é, do Soldado Desconhecido. A Comissão
porventura, rara e difusa, enfraquecida dos Padrões da Grande Guerra e a Liga
pelo correr do século XX e outros tantos dos Combatentes da Grande Guerra ti-
acontecimentos traumáticos, pelo con- veram papel significativo na dinamiza-
trário, em muitas cidades e vilas de Por- ção e manutenção das homenagens aos
tugal esta ficou marcada em pedra ou mortos da guerra.
em bronze. Tomemos dois exemplos: Muito embora o 9 de abril, dia da ba-
em Lisboa, na Avenida da Liberdade e talha de La Lys, tenha sido comemorado
no Porto, na Praça de Carlos Alberto, en- em Portugal, já não surge como um dia
contramos monumentos que preten- de memória no nosso calendário oficial
diam imortalizar o esforço português, atual. Assim, no correr do ano nada nos
dedicados aos “mortos na Grande Guer- evoca oficialmente, enquanto coletivo,
ra”. Em Lisboa, uma figura feminina, a a participação portuguesa na guerra.
Pátria, segura uma coroa de louros so- No entanto, não se pode dizer que esta

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O Noticioso

Solicitado pelos britânicos, Página anterior:


o apresamento dos navios Desembarque
alemães surtos em portos de tropas portuguesas
portugueses motivou a de- em Porto Amélia,
claração de guerra, dando aos Moçambique (1916)
republicanos da corrente be-
ligerante a oportunidade por
que havia tanto esperavam
(foto de Joshua Benoliel, in
“Ilustração Portugueza”).

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DIREITOS RESERVADOS

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O Noticioso
DESTAQUE

MUITOS
PORTUGUESES
SAÍRAM PARA A
RUA, EMPUNHANDO
BANDEIRAS, EM
MANIFESTAÇÕES DE
APOIO ÀS NAÇÕES
ALIADAS.

esteja esquecida. Além de muitos inves- tava no poder em Portugal um gabinete seja, da luta contra a monarquia antes
tigadores e estudiosos que têm vindo a chefiado por Bernardino Machado. Em de 1910) que um dos traços distintivos
trabalhar estas temáticas, também gru- agosto de 1914, podemos ver, nas foto- do movimento republicano era a sua
pos e associações mantêm viva esta me- grafias de A. Garcez, que muitos portu- vertente anticlerical. Não se constitui
mória e as datas mais significativas. gueses vieram para a rua, empunhan- assim como uma surpresa a promulga-
O que nos propomos fazer neste ar- do bandeiras, em manifestações de ção da Lei da Separação do Estado e das
tigo é uma espécie de viagem no tem- apoio às nações aliadas. Estas imagens, Igrejas, em abril de 1911. Tendo em men-
po, voltando aos primeiros anos do re- que capturam um momento no tempo, te um projeto de sociedade laica, os re-
gime republicano e a 1916, esse longín- mostram-nos essa espécie de entusias- publicanos pretendiam afastar a esfe-
quo ano da declaração de guerra, para mo inicial. Mas, em Portugal e noutros ra religiosa do mundo político. A lei con-
072 um retrato de um país, necessariamen- países beligerantes, as formas de pen- tinha alguns aspectos duros e acintosos,
te incompleto e imperfeito. sar e de sentir vão mudando, e a guer- não sendo de estranhar que se assistisse
Ao tempo, Portugal era uma repúbli- ra pesaria, inexoravelmente, no ânimo em Portugal a uma clivagem entre a hie-
ca, implantada a 5 de outubro de 1910. das populações. Não está nas fotogra- rarquia da Igreja Católica e os políticos
O regime estava politicamente isolado fias, contudo, a insuficiência da propa- republicanos, abrindo assim o que foi
numa Europa que ainda era esmagado- ganda intervencionista, nem a feita con- chamado de questão religiosa.
ramente monárquica – mas este mapa tra a guerra, ou germanófila. À oposição do campo católico podia
político mudaria drasticamente depois Para se compreender que país era es- somar-se o combate de monárquicos
do final da I Guerra Mundial, tal como te que entraria em guerra em 1916 é im- contra o regime, nomeadamente os reu-
muitas das características desse “ve- portante traçar algumas das linhas ge- nidos em torno de Paiva Couceiro, que
lho mundo”. Olhemos os países euro- rais do que era o regime, de como fora comandou as duas incursões monár-
peus beligerantes: no Reino Unido, on- recebido pelo país e quais os seus prin- quicas, respetivamente em 1911 e 1912.
de o último rei de Portugal, D. Manuel II, cipais problemas e desafios, de mo- Muito embora o regime tenha sobrevi-
tinha sido acolhido, reinava Jorge V, ne- do a perceber, como veremos, as gran- vido a estas tentativas, tal não significa-
to da Rainha Vitória; a Rússia tinha ain- des questões políticas da conjuntura da va que as conspirações contra a Repú-
da à frente dos seus destinos – por pou- guerra – e as diferentes posições dos di- blica tivessem terminado e, sobretudo,
co tempo, contudo, – o czar Nicolau II; na ferentes grupos políticos e sociais. pareciam fazer sentido e ter sucesso na
Alemanha, o Kaiser era Guilherme II; na conjuntura de crise dos anos de guerra.
Áustria-Hungria, Francisco José I este- Projeto de modernização A relação entre os republicanos e o
ve no trono até 1916, sendo sucedido por Portugal era um país periférico, embo- movimento operário organizado era
Carlos I; finalmente, em Itália reinava ra com um vasto património colonial – um dos pilares de apoio do regime, es-
Vítor Emanuel III. Entre estes países eu- que para muitos parecia estar em peri- sencial para a sua sobrevivência. An-
ropeus, a exceção era a França republi- go, na mira de interesses de potências tes da implantação do regime fora cons-
cana (à qual se poderia somar a neutral europeias – ainda essencialmente ru- truída uma aliança que tinha por base
Suíça). Em Espanha, que não partici- ral, pouco industrializado e com altas expectativas comuns em relação a um
pou na I Guerra, reinaria, até 1931, Afon- percentagens de analfabetismo. Diag- país socialmente mais justo, com me-
so XIII. nosticando uma situação de decadên- lhores condições de vida para as classes
A 28 de junho de 1914, quando Ga- cia, os republicanos traziam consigo trabalhadoras. Depois de estarem no
vrilo Princip matou o herdeiro do trono um projeto de modernização do país, poder, os republicanos, que precisavam
austro-húngaro, em Sarajevo, capital da com uma vertente política, cívica e cul- de manter esta sua base social de apoio,
Bósnia, disparando simbolicamente os tural muito importante. geriram de forma controversa a deno-
primeiros tiros da I Guerra Mundial, es- Desde os tempos de propaganda (ou minada questão social, entrando em

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O Noticioso

antagonismo com o movimento operá-


rio organizado. Nas vésperas do defla-
grar do conflito europeu era necessário,
sabia-o bem Bernardino Machado, ten-
tar responder a algumas das exigências
do mundo do trabalho. Mas, como vere-
mos, a situação económica não melho-
rou, antes pelo contrário.
É importante, ainda, acentuar três
pontos que ajudam a enquadrar o con-
texto dos anos da guerra. Em primeiro 073
lugar, é preciso fazer referência às debi-
lidades estruturais de um Portugal defi-
citário a nível produtivo, o que implica-
va que o país tinha de recorrer à impor-
tação de bens alimentares. Em segundo
lugar, e decorrente do primeiro ponto,
é importante ter em conta a dependên-
cia económica face à Inglaterra, ape-
sar de um peso e importância da Ale-
manha que não deve ser negligenciado.
Por último, falta fazer alusão à questão
do equilíbrio orçamental, promessa re-
ARQUIVO GLOBAL MEDIA GROUP
publicana dos tempos de propaganda.
O Sul de Angola e o Norte de Moçambique confrontavam Afonso Costa, na qualidade de ministro
das Finanças e de presidente do Minis-
com as possessões coloniais alemãs (hoje Namíbia e Tan- tério, conseguiu apresentar orçamen-
zânia, respetivamente), e aí se materializou primeiro, de tos que cumpriam o objetivo de sanea-
mento e equilíbrio das contas públicas.
facto, a participação portuguesa na Grande Guerra, que, O que significava que era frágil o equilí-
brio conseguido e que o mesmo não re-
no caso da África oriental, perdurou até ao fim. A imagem sistiria ao impacto económico e finan-
que aqui reproduzimos, publicada pela “Ilustração Por- ceiro decorrente do conflito.
A traços muito largos, era esta a situa-
tugueza” a 5 de março de 1917, mostra tropas de infanta- ção em agosto de 1914: uma recém-im-
ria portuguesas atravessando uma ponte de campanha plantada República, com um projeto de
transformação e modernização do país,
na bacia do Rovuma. enfrentando vários desafios, entre eles
a sua própria consolidação.
Imediatamente após o início do con-
flito, o governo português afirmava que
estava ao lado de Inglaterra, numa neu-

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O Noticioso
DESTAQUE

074

tralidade condicional e logo não equi- que tinham fronteiras com os territó- vos de debate e discussão. Por maioria
distante, mas sem querer hostilizar a rios alemães. O esforço militar no tea- de razão, a ocupação de Quionga (perdi-
Alemanha. Em janeiro de 1917, no “Re- tro africano, ao contrário da ida para a da para a Alemanha em 1894) foi recebi-
latório acerca da participação de Por- Flandres, foi consensual na sociedade da com entusiasmo e aclamação.
tugal na Guerra Europeia”, assumindo portuguesa. Aliás, para diferentes sen- Os exércitos portugueses em Áfri-
que esta era uma “guerra de alianças”, o sibilidades políticas, a beligerância só ca enfrentaram várias vezes as forças
governo explicava como não podia des- fazia sentido se levada a cabo nos terri- alemãs, sem que tal tenha originado o
curar uma aliança multissecular, “um tórios coloniais. A quebrar o ambiente rompimento das relações diplomáticas
pacto internacional que é o mais anti- de unanimidade, um grupo anarquista ou a declaração de guerra. O governo
go que se tem mantido na Europa”. No e sindicalista em torno do jornal “A Au- enfrentou dois problemas no teatro de
entanto, ao outro parceiro da aliança, à rora”, do Porto, levantou a questão da in- guerra africano: por um lado, as forças
Grã-Bretanha interessava-lhe mais que coerência da manutenção do “jugo co- alemãs; por outro, as revoltas das popu-
Portugal se mantivesse numa posição lonialista” por aqueles que defendiam o lações. As colónias africanas eram um
menos definida, mas, claro está, cola- direito à independência dos povos. Mas território a proteger, mas também ob-
borante. Um eventual esforço de guer- se a premissa inicial era consensual – jeto de planos e políticas de desenvolvi-
ra português acabaria por pesar sobre a a defesa do que era considerada a Áfri- mento que visavam reforçar o controlo
própria Grã-Bretanha. ca portuguesa – já a condução da políti- sobre os mesmos territórios. Vejamos, a
Pouco tempo depois do início da ca de guerra e, sobretudo, os insucessos título de exemplo, alguns dos aconteci-
guerra partiram as primeiras expe- militares (nomeadamente Naulila, Ro- mentos nas colónias portuguesas. Ime-
dições para as colónias portuguesas, vuma e Nevala) são, obviamente, moti- diatamente após a eclosão da guerra re-

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O Noticioso

Reservistas
de Lourenço Marques
(hoje Maputo) estacio-
nados em Porto Amélia
(hoje Pemba), no Norte
de Moçambique,
em 1916.

gistou-se o ataque alemão ao posto de nistério da Guerra, e Augusto Soares,


Maziúa em Moçambique. Pouco tempo nos Negócios Estrangeiros. A 24 de fe-
depois, em outubro de 1914 registaram- vereiro de 1916, depois do pedido in-
-se os ataques alemães a Naulila e Cuan- glês, foi publicado o decreto das requi-
gar, em Angola. O receio de uma “inva- sições, justificado como necessário fa-
são de Angola” forçou o governo a enviar ce ao problema das subsistências, que
mais reforços militares em novembro permitia o apresamento de navios ale-
de 1914. A 18 de dezembro, as forças por- mães fundeados nos portos nacionais:
tuguesas bateram-se num violento re- “Chegou-se, porém a um momento em
contro com as alemãs em Naulila, sendo que já não era possível, nem se poderia
obrigadas a retirar. Pouco depois, deu- explicar que esses navios permaneces- 075
-se a chamada insurreição de indígenas sem imóveis quando o país inteiro se de-
de Cuanhama. A violência da repressão batia com uma temerosa crise de subsis-
destas campanhas chegou mesmo a ser tências”, escrevia-se no Relatório acerca
objeto de discussão nas sessões secre- da participação de Portugal na Guerra
tas que se realizaram em 1917. Europeia. A 9 de março de 1916 foi entre-
Na reunião extraordinária do Con- gue ao ministro dos negócios estrangei-
gresso da República (união das câma- ros português a declaração de guerra do
ras dos deputados e dos senadores) de Governo Imperial, que corresponde à
novembro desse ano, o governo foi auto- forma como foi feita a leitura oficial dos
rizado a participar na guerra ao lado de acontecimentos pelos responsáveis ale-
Inglaterra. No entanto, no início de 1915, mães. Por exemplo, a aliança, argumen-
HAVIA CONSENSO ano difícil para os aliados, o que parecia to utilizado pelo governo português, foi
ser o desenrolar de uma política inter- entendida como um sinal da “vassala-
QUANTO À DEFESA vencionista sofreu um revés, com a che- gem” de Portugal face a Inglaterra. A de-
DAS POSSESSÕES gada ao poder de um gabinete chefia- claração terminava: “O Governo Impe-
do por Pimenta de Castro, prontamente rial vê-se forçado a tirar as necessárias
AFRICANAS, MAS considerado pelos republicanos demo- consequências do procedimento do Go-
A CONDUÇÃO DA cráticos como uma “ditadura”. Apenas verno Português. Considera-se de ago-
depois da denominada revolução de 14 ra em diante como achando-se em esta-
GUERRA de maio de 1915, que afastou aquele mili- do de guerra com o Governo Português.”
tar e teve igualmente como consequên- (Diário das Sessões do Congresso da Re-
ERA POLÉMICA cias a renúncia de Manuel de Arriaga e pública, 10 de março de 1916, pág.8). Se-
a eleição de Bernardino Machado para guiu-se o rompimento das relações di-
a Presidência da República, foi possível plomáticas com a Áustria.
retomar a política intervencionista. O governo liderado por Afonso Cos-
Em novembro de 1915, regressan- ta apresentou a demissão, defendendo a
do ao poder o democrático Afonso Cos- necessidade de um executivo que não
ta, constituiu-se o “gabinete de guerra”, fosse apenas de um partido. A 16 de mar-
claramente intervencionista, que con- ço constituiu-se o governo de “União
tava, além do já citado presidente do mi- Sagrada”, formado pelo Partido Demo-
nistério, com Norton de Matos, no mi- crático, pelo Partido Evolucionista e por

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um independente, que se revelaria frá- da participação de Portugal na Guerra minista Ana de Castro Osório, que es-
gil e efémero. A ideia era comprometer Europeia”. Aí se afirma, em janeiro de creveu “De como Portugal foi chamado
as diferentes forças políticas no que po- 1917, que as razões de participação na à Guerra. História para crianças”. Mas o
deria ser um objetivo comum, mas, na guerra europeia não se prendem com a esforço feminino foi mais vasto do que
realidade, este governo deixava de fora “ânsia de conquistas” nem com a “sede vozes singulares: com a Comissão Fe-
partidos e sensibilidades republicanas, de recompensas”, ou seja, a distancia- minina “Pela Pátria”, fundada em 1914, e
monárquicos e socialistas. ção face a políticas agressivas. A nar- com a Cruzada das Mulheres Portugue-
rativa oficial acentuava a importância sas, presidida por Elzira Dantas Macha-
Duas opções fundamentais de uma aliança sólida com a Inglater- do (mulher de Bernardino Machado),
A conjuntura política reflete não só as ra, mas esta, na tradição republicana fundada em 1916 e prestando especial
diferenças de posição em relação à in- dos homens que lutaram contra o Ulti- atenção aos mobilizados e suas famí-
tervenção na guerra, mas as duas dinâ- matum britânico de 1890, tinha de ser lias. A mobilização feminina teve uma
micas – pró e contra – que se cruzaram entre iguais, recusando a ideia de pro- importante vertente assistencialis-
com outras questões políticas no seio tetorado ou de “vassalagem”. Os polí- ta, muito embora, idealmente, pudesse
dos republicanos. Havia duas opções ticos portugueses, e o que, com as de- servir para provar o valor da mulher nu-
fundamentais: os que consideravam vidas distâncias, poderíamos chamar ma sociedade que não o reconhecia de-
que havia razões válidas justificando a de opinião pública, eram maioritaria- vidamente. Estas mulheres, organiza-
entrada de Portugal na guerra e os que, mente pró Inglaterra, mantendo, si- das na Comissão Feminina e na Cruza-
pelo contrário, se opunham. Nos ter- multaneamente, a proximidade com da, não tiveram, contudo, o exclusivo da
mos da época, falamos de guerristas e a França, essencial na cultura política criação de instituições com este tipo de
de anti-guerristas. Depois desta aná- republicana. Não só Portugal depen- preocupações e âmbito de ação; outras
lise da sucessão de acontecimentos dia da Inglaterra (como credora – no- mulheres, algumas com sensibilidades
que culminaram na entrada de Portu- meadamente com a negociação dos políticas diferentes, mobilizaram-se
gal na guerra, é preciso elencar as ra- empréstimos de guerra –, abastece- em torno de organizações como a As-
zões e perceber os discursos justifica- dora e transportadora), como era esta sistência das Portuguesas às Vítimas da
tivos, levando em linha de conta o que a “velha aliança”, a ligação diplomáti- Guerra e as Madrinhas de Guerra.
foi discutido na altura e a forma como ca estabelecida e estruturante. O apoio Os democráticos entendiam que
hoje podemos interpretar esses argu- às potências centrais ou o germanofi- Portugal tinha de cumprir o seu papel e
mentos. No entanto, é necessário fazer lismo, embora existente, não era mui- as obrigações da aliança, desejavelmen-
076 esta ressalva, a questão da guerra es- to significativo no panorama nacional, te fundada na igualdade entre os dois
teve sempre ligada a outras, nomeada- muito embora se possa surpreender a países. Mais do que isso, a entrada na
mente a política. Ou, dito de outra for- sua existência no seio de monárquicos. guerra, ao lado dos aliados, poderia fun-
ma, da dinâmica da discussão, quer O Relatório usava ainda o argumento cionar como um motor no projeto de um
da participação de Portugal no teatro de que esta era uma guerra das peque- novo país que se queria construir: coe-
europeu, quer das políticas militares, nas nacionalidades que o imperialismo so, moderno, desenvolvido e sem abdi-
económicas ou sociais decorrentes alemão quis esmagar e, nesse sentido, car do património colonial. Em 1914, o
do conflito, não esteve ausente a com- defensiva. Ora, se se identificava Por- líder democrático, Afonso Costa, con-
petição entre partidos republicanos e tugal com a categoria de pequena na- siderava que o equilíbrio das contas pú-
de outros grupos políticos, nomeada- cionalidade “com profundas raízes his- blicas permitiria dar prioridade à “causa
mente monárquicos na sua luta contra tóricas e um património histórico con- patriótica” da defesa nacional, que, além
a República. As diferentes sensibilida- quistado à custa de heroísmos de que a da importância que teria para o exército
des republicanas aproveitaram a con- humanidade largamente aproveitou”, e para a marinha, poderia ter um efeito
juntura para criticar a hegemonia do concluía-se que o país defendia “a sua multiplicador nas indústrias nacionais
Partido Democrático de Afonso Cos- vida” e “o seu património”. Mas a ideia (fardamentos, viaturas, munições).
ta, um dos rostos popularmente asso- de defesa parecia mais fácil de articu- No entanto, além dos discursos ofi-
ciados à guerra. Os opositores do regi- lar e de aceitar quando se falava do caso ciais, é percetível a ideia de consolidar
me procuravam oportunidades, ex- africano do que quando o tema era o tea- a sua República através da legitimidade
plorando o descontentamento social e tro de guerra europeu. acrescida pela participação num esfor-
político, para reverter a situação. Sem a A argumentação oficial, tal como as ço internacional. Um objetivo coletivo
desejada estabilidade, os anos da guer- fotografias das pessoas nas ruas a vito- nacional – e patriótico – constituiu-se
ra foram, pelo contrário, palco para di- riarem as nações aliadas, escondia as como uma estratégia de fortalecimen-
ferentes movimentos, conspirações profundas divisões que atravessaram to do regime, quer a nível interno, quer
e golpes. O sidonista, de 5 de dezem- a sociedade portuguesa, mesmo no seio externo. Se é certo que o Partido De-
bro de 1917, não se resumiu à oposição dos partidos que estiveram no governo. mocrático apresentou uma frente uni-
a Afonso Costa, mas constitui-se como Os homens do Partido Democrático da, o desgaste político inerente à crise
uma experiência que pretendia lançar (que herdou o essencial da estrutura do dos anos de guerra abriu clivagens no
o regime em novos caminhos políti- Partido Republicano Português) foram seu seio, nomeadamente depois do fim
cos, de “tipo novo”, com uma feição au- os mais dinâmicos defensores da parti- do governo de “União Sagrada”, em 1917.
toritária moderna. cipação portuguesa na guerra, na fren- As vozes discordantes não questiona-
Comecemos por olhar para a versão te europeia. Entre as vozes associadas vam a política de guerra de per se, mas
oficial plasmada no “Relatório acerca ao intervencionismo conta-se a da fe- punham em causa a sua condução, no-

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meadamente os problemas de organi-


zação do Corpo Expedicionário Por-
tuguês (CEP). As vozes críticas entre os
democráticos insistiam na necessidade
de um governo que não fosse compos-
to por homens de um só partido, de mo-
do a evitar o desgaste decorrente da cri-
se económica e social que, inevitavel-
mente, os penalizaria.
O Partido Evolucionista, chefiado
por António José de Almeida, partilhou
muitos dos principais argumentos pró-
-intervencionistas. A sua prestação co-
mo presidente do ministério da “União
Sagrada” e a experiência de governo de
coligação também desgastaram o seu
partido, que sofreu uma cisão da qual
nasceu um “bloco das direitas”, menos
entusiasta e mais crítico em relação à
questão da guerra. Fotografia icónica
Brito Camacho, líder do Partido de Joshua Benoliel,
Unionista, tinha uma posição clara- mostrando a parti-
mente menos entusiástica em relação à da de soldados pa-
participação de Portugal. Sem compro- ra França, foi publi-
meter a aliança com a Inglaterra, Por- cada, na “Ilustração
tugal deveria responder às solicitações Portugueza”, com a
feitas, mas dentro das suas possibilida- legenda “A caminho
des económicas, financeiras e militares. do dever, um adeus
Brito Camacho temia – e não era o único carinhoso”.
078 – que o exército português não estives-
se preparado para uma guerra que exi-
gia organização, equipamento e logís-
tica modernos. Aliás, no seio das Forças
Armadas Portuguesas podemos divisar
igualmente a preocupação com a falta de
meios e com a preparação das tropas.
O deputado socialista Costa Júnior
leu na reunião do Congresso a declara-
ção do seu partido, na qual se afirmava
que “todos os verdadeiros socialistas”
estavam “ao lado da Pátria” (“Diário das
Sessões do Congresso da República”, 10
de março de 1916, p. 14). Ou, dito de ou-
tra forma, apoiavam o esforço de guer-
ra. Muito embora alguns socialistas te-
nham aceitado a intervenção de Portu-
gal na guerra, desde que solicitada pela
Inglaterra, existiu uma divisão inter-
na em relação à questão da guerra e da
participação de Portugal. Aliás, por to-
do o lado, muito do pacifismo e do anti-
militarismo dos anos que precederam a
guerra cedeu face ao que era entendido
como o interesse nacional.
Entre os anarquistas, à semelhança
do que se passava internacionalmente,
também podemos detetar a divisão en-
tre guerristas, o grupo Germinal, liga-
do a Emílio Costa, e anti-guerristas, em
torno de outros dois órgãos de impren-
sa, “A Aurora”, do Porto, e “A Sementei-

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oposição às políticas republicanas. Ha-


via, entre os monárquicos, alguns que
alinhavam pelos impérios centrais, que
defendiam valores que lhes eram mais
próximos e, sobretudo, consideravam
que a sua vitória poderia dinamizar ou
permitir uma eventual restauração da
monarquia em Portugal.
Os católicos, num processo de auto-
nomização política em relação aos mo-
nárquicos, aproveitaram a conjuntura
para se organizarem enquanto agen-
tes autónomos na arena política e, nes-
se sentido, investiram na sua própria
organização. É certamente uma vitó-
ria que, nesta República da Lei de Se-
Soldados portugueses manuseiam um paração, tenha sido possível obter a as-
lança-morteiros nas trincheiras. A “Ilus- sistência religiosa em campanha. Mas
tração Portugueza”, principal veículo da nos anos da guerra e das aparições de
iconografia da Grande Guerra, publicou Fátima, em 1917, não estava ainda, con-
essa foto a 8 de abril de 1918, na véspera tudo, pacificada a chamada questão re-
da batalha de La Lys. ligiosa.

Muitas deserções
À semelhança do que se passava no res-
to da sociedade, não existia uma posi-
ção unânime no seio do exército e da
marinha, sendo de registar o descon-
tentamento e a crítica de parte do cor-
080 po castrense. É compreensível que se
questionasse se se estava preparado
para travar uma guerra moderna, com
exigências tremendas a nível material,
organizacional e humano. Não é difí-
cil perceber as dificuldades, dúvidas e
receios dos soldados mobilizados para
lutar nas trincheiras da Flandres, dei-
xando para trás a vida, a terra, a famí-
lia. Os altos números de deserções dão-
-nos a medida deste descontentamento,
e não é de estranhar que se dissesse “Pa-
ra Verdun não vai mais nenhum” e “Para
o Somme nem mais um homem”.
Independentemente do posiciona-
ra”, de Lisboa, contando ainda com as mento face à questão da participação de
Juventudes Sindicalistas e militantes Portugal e da simpatia ou afinidades po-
da União Operária Nacional (a central líticas e ideológicas com as nações alia-
de sindicatos). A discórdia centrava-se das, a guerra abriu uma profunda cri-
em torno de argumentos como a defe- se económica. Em traços muito largos,
sa da democracia face ao perigo alemão, podemos caracterizá-la pela escassez
por um lado, e, por outro, o princípio de de géneros, sobretudo os alimentares,
que esta era uma guerra imperialista, e a alta de preços associada à desvalori-
que pesaria e castigaria os trabalhado- zação dos salários e rendimentos fixos.
res e os mais desfavorecidos. Tudo isto resulta num brutal aumento
No campo monárquico podemos ver do custo de vida, que penaliza as clas-
diferentes posicionamentos. D. Manuel ses mais desfavorecidas. A crise, sem
II, exilado em Londres, considerava que surpresa, aumentava o descontenta-
era necessária uma pacificação políti- mento face à política de participação na
ca no contexto da guerra, o que não te- guerra e, simultaneamente, fazia cres-
ve eco em muitos dos monárquicos que cer a oposição aos governos republica-
não se coibiram de manifestar a sua nos, que, numa visão que pode pecar

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por simplista, tinham conduzido o país


à guerra. Nos campos e nas comunida-
des rurais multiplicaram-se os levanta-
mentos e a recusa de saída de géneros;
Cronologia
nas cidades, os assaltos a estabeleci- pelo governador geral de Angola
mentos comerciais. Era um mundo com 1914 contra os alemães aí residentes.
medo da fome, sobretudo para aqueles
cujos corpos resistiam com tão pouco. 28 de junho 12 de julho
Da parte do movimento operário orga- É assassinado, em Sarejevo, o Rendição da colónia alemã do
nizado, a luta passava pelas greves, nu- arquiduque Francisco Fernan- Sudoeste às forças da União Sul-
ma tentativa para subir os salários para do, herdeiro do trono da Áustria- -Africana.
fazer face ao aumento do custo de vida. -Hungria.
Para quem os viveu, os anos de guerra, 23 de novembro
mesmo ainda antes de 1916, foram du- 7 de agosto O Congresso da República, em
ros e difíceis. Manifestações em Lisboa de reunião extraordinária, autori-
Após a declaração de guerra, o go- apoio aos Aliados. za Portugal a participar na guer-
verno “tratou de efetivar a participa- ra, ao lado de Inglaterra, e a ce-
ção portuguesa na guerra europeia. 12 de agosto der 20 mil espingardas, com
Mobilizou-se o exército, procedendo- Governo português decreta a or- 600 cartuchos cada, e 56 peças
-se à instrução intensiva das forças” ganização e o envio de expedi- de artilharia aos militares bri-
(“Relatório acerca da participação de ções militares para Angola e Mo- tânicos.
Portugal na Guerra Europeia”) que de- çambique.
viam seguir para esse teatro de guerra. 30 de dezembro
E assim, a bandeira de Portugal – a nova 15 de Agosto Governo britânico sonda Portu-
bandeira republicana, podemos acres- Ocupação de Quionga (Moçam- gal sobre a possibilidade de apre-
centar – flutuaria nos campos de bata- bique) pelos portugueses. A lo- samento dos navios alemães
lha da Europa, dizia o citado Relatório. E calidade havia sido tomada pelos surtos em portos portugueses.
mais: a versão oficial defendia que Por- alemães em 1894.
tugal se mostrara digno das suas tradi-
ções, do seu passado e “das esperanças 10 de setembro 1916 081
do seu futuro”, da sua liberdade e inde- Partem as primeiras expedições
pendência. Assumem a pertença a uma militares para Angola e Moçam- 23 de fevereiro
“nobre civilização”, na qual as ideias de bique. Numa operação comandada pe-
direito e justiça eram “noções sagradas lo capitão-de-fragata Leote do
e invioláveis” (“Relatório acerca da par- 27 de outubro Rego, é encetado o apresamen-
ticipação de Portugal na Guerra Euro- Portugal cede 20 mil espingar- to de todos os navios alemães
peia”). A República procurava, assim, o das a Inglaterra. estacionados nos portos portu-
reconhecimento e o prestígio interna- gueses.
cionais na pertença a uma comunida- 31 de outubro
de construída e constituída por valores Respondendo ao incidente de 9 de março
progressistas, diferenciava-se de Espa- Naulila, tropas alemãs atacam o Na sequência do apresamento
nha, que se mantivera neutral – procu- posto fronteiriço do Cuangar, no dos navios, a Alemanha declara
rando combater fantasmas da sua inter- Sul de Angola, matando toda a guerra a Portugal.
venção na política portuguesa –, e om- guarnição.
breava com a Inglaterra. 10 de abril
No início de 1917, o Corpo Expedi- 30 de novembro Forças portuguesas retomam
cionário Português partiu para a guer- É estabelecida em Portugal a Quionga, no Norte de Moçam-
ra, para a Flandres. Ficou célebre a foto- censura para notícias militares bique.
grafia de Joshua Benoliel do embarque não oficiais.
das tropas, capa da revista “Ilustração 20 de abril
Portuguesa”, em que um soldado segu- 12 e 13 de dezembro É decretada a expulsão de todos
ra o queixo de uma mulher no que po- Tiroteio entre patrulhas portu- os súbditos alemães residentes
deria ser um gesto de despedida, talvez guesas e alemãs no Sul de Ango- em Portugal.
o prenúncio de um beijo. Na legenda lê- la. Alemães invadem Cunene.
-se: “A caminho do dever: um adeus ca- 4 de maio
rinhoso”. Ao lado, outro soldado olha Criação em Portugal da Inten-
para o chão, e outro ainda (ficou fora do 1915 dência dos Bens dos Inimigos,
enquadramento de capa) fita a câmara, destinada a administrar, fiscali-
sem sorrir. 27 de janeiro zar, gerir e liquidar os bens arrola-
Esperava-os a dura vida – e a morte – Ministro alemão em Lisboa pro- dos aos súbditos alemães, após a
nas trincheiras. testa contra medidas tomadas declaração de guerra.

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DESTAQUE

9 de junho
Afonso Costa, ministro das Fi-
nanças, e Augusto Soares, mi-
nistro dos Negócios Estran-
geiros, partem para Paris, co-
mo participantes na Conferência
Económica dos Aliados.

21 de junho
Afonso Costa parte para Londres,
para negociar condições da parti-
cipação portuguesa na guerra.

15 de julho
A Grã-Bretanha convida Portu-
gal a participar, ativamente, nas
operações aliadas na Europa.

22 de julho
Constituição formal do Corpo Ex-
pedicionário Português, com-
posto por 30 mil homens.

24 de agosto
Realiza-se em Lisboa um dos
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mais importantes comícios de
apoio à participação portuguesa. 18 de janeiro condenado à morte no decurso Ofensiva alemã no Somme im-
Fernando Tamagnini de Abreu da guerra. pede a rendição do Corpo Expe-
31 de agosto comandante do Corpo Expedi- dicionário Português.
082 Parlamento português vota a cionário Português. 8 de outubro
pena de morte em situação de Bernardino Machado, Afonso 4 de abril
guerra. 30 de janeiro Costa e Augusto Soares partem Insubordinação de tropas portu-
Parte para França a primeira bri- em visita oficial a França e Ingla- guesas na Flandres. Nova insu-
3 de dezembro gada do Corpo Expedicionário terra. Três dias depois, estão jun- bordinação no dia seguinte.
Pela primeira vez, os alemães Português. Desembarcam em to das tropas portuguesas.
atacam território português fo- Brest, no dia 2 de fevereiro, e a 8 9 de abril
ra de África, com um submarino a estão já na Flandres. Batalha de La Lys. Entre mortos,
disparar sobre o Funchal. Ataques 1918 feridos, desaparecidos e prisio-
do género serão perpetrados, de- 4 de abril neiros, Portugal sofreu cerca de
pois, contra Ponta Delgada e con- Tropas portuguesas chegam às 18 de janeiro sete mil baixas.
tra S. Vicente (Cabo Verde). trincheiras, registando-se a pri- É instalada em Ponta Delgada
meira morte de um soldado luso uma base naval norte-americana. 4 de julho
28 de dezembro na frente francesa, de seu nome Reorganização do Corpo Expe-
Governo francês manifesta in- António Gonçalves Curado. 2 de março dicionário Português, para asse-
teresse no envio para França de Ataque alemão contra o setor gurar continuidade da participa-
pessoal de artilharia português. 19 de maio português na Flandres. São apri- ção portuguesa na frente de ba-
Racionamento e carestia levam sionados 70 militares do Corpo talha.
as populações, em Lisboa e no Expedicionário Português.
1917 Porto, a assaltar mercearias e ar- 11 de novembro
mazéns, levando à declaração do 21 de março Pelas 07h00, através do posto ra-
3 de janeiro estado de sítio. Arranque da “Kaiserschlacht”, diotelegráfico de Monsanto, chega
Acordo luso-britânico relativo ao forte ofensiva germânica na a Portugal a notícia do armistício.
envio de tropas portuguesas pa- 30 de maio frente ocidental.
ra França. Corpo Expedicionário Pela primeira vez, o Corpo Expe- 12 de novembro
Português fica às ordens das tro- dicionário Português é respon- 22 de março Rendição das forças alemãs em
pas britânicas. sabilizado por um setor da frente Lançado decreto que decide a Moçambique.
de batalha. rendição do pessoal em servi-
7 de janeiro ço do Corpo Expedicionário Por- 23 de novembro
Acordo luso-francês leva à cria- 16 de setembro tuguês. Regressam a Portugal os primei-
ção do Corpo de Artilharia Inde- É fuzilado, na Flandres, um mi- ros soldados do Corpo Expedi-
pendente. litar português. Foi o único a ser 27 de março cionário Português.

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Mitologia nacionalista
Homenagem
aos combatentes
da Grande Guerra, a

no desastre de La Lys
9 de abril de 1964,
na Praça de Carlos
Alberto, no Porto

Episódio mais marcante e traumático da presença


portuguesa na Grande Guerra faz sombra sobre
uma campanha bem mais complexa
Texto de Pedro Olavo Simões

“Vêm depois, por Lestrem e Lagorgue, (ou “Ofensiva da Primavera”), o último Exército, a não ser o nosso, inflige aos
os quarteis generais de divisão, com as grande ataque alemão na frente ociden- seus soldados o suplício intraduzível
suas muitas e variadas secções: esta- tal, lançada a 21 de março, abatendo-se de lhe dizer que estão ali para sempre,
do-maior, comandos de engenharia e sobre o setor entregue ao CEP. até que um tiro, um estilhaço ou uma
artilharia, chefia dos serviços de saú- Naquilo a que se chamou a “Avenida tuberculose os tire desta guerra, cuja
de, serviços administrativos, servi- dos alferes”, ou seja, as trincheiras da duração ninguém pode prever”, es-
ços postais, etc., etc.. Tudo isto se agi- frente, que os oficiais de baixa paten- creveu o major Cristóvão Aires (apud
ta de automóvel, enverga peliças e bra- te partilhavam com as praças, reinava Filipe Ribeiro de Meneses, “A Grande
çais, calça botas luzentes e pimponeia um ambiente de prolongada desmora- Guerra de Afonso Costa”, p. 401).
de cabeça alta.” – voluntário médico lização, marcado por insubordinações Não obstante, a forma como os por-
084 na frente de batalha, o também histo- de um contingente que, nas palavras tugueses sustiveram o poderoso ata-
riador Jaime Cortesão escreveu isto, de Isabel Pestana Marques (in “Histó- que germânico (não constituindo ato de
nas suas “Memórias da Grande Guer- ria da Primeira República Portugue- heroísmo que se destaque do resto das
ra (1916-1919)”, quando descrevia a for- sa”, 2009), estava “na iminência de um tropas aliadas) foi notável, acabando
ma como o Corpo Expedicionário Por- colapso físico e psicológico”. A rendi- por fazer gorar alguns dos objetivos do
tuguês (CEP) se dispunha na frente de ção das tropas por outras forças aliadas inimigo, como seja a passagem dos rios
guerra da Flandres. Não se contavam havia sido decidida em março e esta- Lys e Lawe, a 9 de abril. “Apesar de tudo,
esses, os pimpões da retaguarda, en- va agendada para 10 e 11 de abril, sendo a resistência portuguesa em Laventie e
tre as perto de sete mil baixas (maiori- evidente que o curso dos acontecimen- o contra-ataque em Lacouture travou o
tariamente prisioneiros) sofridas em tos não a possibilitou. ímpeto germânico e deu tempo aos in-
abril de 1918 na Batalha de La Lys, a que Esse desgaste está expresso no diá- gleses para se reorganizarem” (Isabel
o próprio Cortesão chamou, pondo tal rio do próprio Tamagnini de Abreu, co- Pestana Marques, ob. Cit.).
expressão na boca de um militar feri- mandante do CEP: “Tenho a certeza de
do, “o Alcácer-Quibir do CEP”. que se em Lisboa tivessem força (que Uma divisão contra quatro
“Às 4 horas e 10 minutos da manhã não têm tido) de mandar oficiais, refor- Números da batalha, no que às tropas
do dia 9 do corrente mez teve início um ços e muares, o Corpo português pode- portuguesas diz respeito: muito mais
violento bombardeamento de artilha- ria fazer alguma coisa. Como está, che- prisioneiros (6585) do que mortos (398).
ria inimiga de todos os calibres e de gaz” gando a faltar nalguns batalhões 300- Era uma divisão portuguesa, ou o que
– é assim que o alferes Raul Pereira de 400 homens, oficiais na infantaria e dela restava, contra quatro divisões
Araújo, autor de um “Relatório de com- artilharia, não havendo gado para pu- alemãs. Um pedaço, apenas, da frente
bate de 9 a 12 de Abril de 1918”, estudado xar os carros, faltando-nos camions, e de 16 quilómetros da batalha do Lys, em
e publicado por Guilhermina Mota (Re- estando em vésperas dos que ainda fa- que, conta Martin Gilbert, “foram des-
vista Portuguesa de História, 2006), dá zem serviço deixarem de o fazer por es- carregadas 200 mil toneladas de gás de
início à descrição dos eventos que lon- tarem gastos, é um verdadeiro milagre mostarda, fosgénio e difenilcloroarsi-
gamente ficaram gravados na memó- aguentar-se mais”. na contra as forças britânicas, incapa-
ria dos portugueses (enquanto hou- Estava-se em pleno sidonismo, e o citando 8000 homens, dos quais mui-
ve sobreviventes do conflito, não para- regime do presidente-rei, muitas ve- tos ficaram cegos, e matando trinta”.
ram as romagens, a cada 9 de abril, aos zes apelidado de germanófilo (Sidónio Na verdade, a batalha de 9 de abril tem
monumentos em memória dos com- Pais havia sido ministro de Portugal de ser vista como um episódio (mar-
batentes da Grande Guerra). Esse “vio- em Berlim), falhava continuamente na cante e doloroso episódio, é certo) do
lento bombardeamento” era nem mais necessidade de reforçar o CEP, sendo que foi a participação de 55 mil portu-
nem menos do que a “Kaiserschlacht” alvo de duras críticas. “Nenhum outro gueses na frente de combate da Flan-

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HENRIQUE MOREIRA/ ARQUIVO JN

dres, marcada por muitas outras situa- do Novo, foi crucial para a construção “As aldeias ardiam como archotes
ções, muitos outros feitos, muitos ou- do mito, que foi tão bem elaborado e im- alumiando a noite!”, acrescentava outro.
tros dramas. plantou-se de tal forma nas consciên- O terceiro ia mais longe, relatando a
E há ainda que ter em conta que, por cias nacionais que atravessou incólu- valentia dos muito menos numerosos, os
conveniências várias, o mito heróico da me os três períodos”. exaustos e mesmo assim heroicos portu-
batalha de La Lys (a transformação de Pondo de lado a construção do mito, a gueses. Já aí se assistia à mitificação: “De-
uma derrota em gloriosa epopeia) foi batalha do Lys existiu, factual e terrível. pois, ao vir da manhã, atacaram. Ataca-
sendo construído a partir de então, co- Para falar em factos, talvez as memórias ram em massa, às ondas, sempre em on-
mo assinala Henrique Manuel Gomes de Jaime Cortesão, cuja escrita é vinca- das, numa catadupa de homens. Só muito
da Cruz em dissertação de mestrado damente emocional, possam não ser a perto os vimos surgir do nevoeiro espes-
apresentada, em 2014, à Faculdade de melhor referência. Mas é imperioso que so da manhã. De nós os que ficámos, raros
Ciências Sociais e Humanas da Univer- regressemos a elas e aos relatos deixa- intactos, resistimos até à última. Houve
sidade Nova de Lisboa: “A forma como a dos na boca de militares feridos, entre- cargas de baioneta. Uma fúria! Tu sabes:
imprensa abordou o tema ainda duran- gues aos cuidados do médico Cortesão. a coisa que mais detesto são os falsos he-
te a República (primeiro no período si- “Eu vi, eu vi: Ao atravessar os cam- róis. Mas ninguém, ninguém faria mais. E
donista e depois até 1926), posterior- pos as granadas caíam aos milhares! tu conheces como estávamos cansados...
mente no período da Ditadura Militar Alevantavam o chão todo! A terra fervia A seguir, abateram ou manietaram tudo à
e finalmente nos anos iniciais do Esta- em cachão!”, dizia um. força de número”.

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O Noticioso
HISTÓRIAS CÓSMICAS

Asas derretidas
e alimentadas
Miguel Gonçalves pela mesma
estrela
Coordenador Nacional
da Sociedade Planetária

De como a exploração espacial toca a mitologia


clássica e cumpre a ficção, em busca de finais felizes

“S
e a ficção científica é a mitolo-
gia da tecnologia moderna, en-
086 tão o seu mito é trágico”. Quem
o afirma é a escritora Ursula
K. Le Guin, que deslumbra em
vários géneros literários, do
infantil à ficção científica e à
poesia. A essa provocante asserção, presente nu-
ma coletânea de ensaios da autora (“Dancing at
the Edge of the World: Thoughts on Words, Wo-
men, Places”, 1997), segue-se a ideia de que a fic-
ção que viaja pela tecnologia e ciência modernas
retrata feitos heroicos (à imagem de Hércules ou
de Prometeu) e triunfantes (a exploração do es-
paço, a conquista da morte, um melhor futuro),
mas também tem a companhia da tragédia (apo-
calipses, holocaustos mais ou menos nucleares,
mais ou menos humanos).
É curiosa esta interseção entre mitologia,
ciência, tecnologia e ficção científica. E há duas
missões espaciais que a consubstanciam.
Reza o mito que Dédalo, encerrado com o filho
Ícaro, pelo rei Minos, no labirinto que ele próprio
idealizara e construíra para aí aprisionar o he-
diondo Minotauro, concebeu, para escapar da ilha
de Creta, asas artificiais, feitas com cera de abe-
lhas e penas de gaivotas. Um par para ele próprio,
outro para o filho, a quem fez um pedido: que não
voasse para perto do Sol, pois a cera derreteria. Po-
rém, o encantamento da nossa estrela superou os
avisos paternais, e Ícaro, batendo os braços já des-
providos de asas, caiu para a morte no Mar Egeu.
“Solar Probe Plus” é o nome do Ícaro científi-
co dos nossos tempos. Esta sonda será lançada em

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O Noticioso

Jacob Peter Gowy, 2018 e, se tudo correr bem, sentirá o tórrido abra- bitar Júpiter: talvez encontrassem a chave que ex-
discípulo de Peter ço da corona do Sol, a sua atmosfera mais exterior. plicasse o insucesso da missão anterior e o desa-
Paul Rubens, pintou Vai, assim, tocar a nossa estrela e sentir a sua inten- parecimento do astronauta David Bowman. No
a queda de Ícaro, sidade em tais proximidades – 500 vezes superior livro, publicado em janeiro de 1982, Bowman che-
no século XVII à que sentimos na Terra! Os seus escudos térmicos, ga a explorar e a encontrar formas de vida aquá-
que aguentarão temperaturas próximas dos 1370o ticas por baixo da superfície de Europa. Quando
C, terão... cera de abelhas? Eis uma curiosidade par- as tripulações terrestres presentes em tais zonas
tilhada pelo mito e pela tecnologia: um dos princi- são informadas por entidades extraterrestres de
pais constituintes de tal cera é o ácido cerótico, uma que deveriam fugir o mais rapidamente possível
densa camada de átomos de carbono. Quanto ao de tal zona, uma enorme mancha negra repleta de
protetor térmico da futurista sonda: terá uma es- monólitos apodera-se de Júpiter, desencadean-
ponja, com 2,4 metros de diâmetro e 114 centíme- do uma fusão nuclear que transforma o gigante
tros de espessura, feita de... carbono! planeta numa estrela (um tópico de deliciosa ex-
Longe vão os tempos em que até mesmo um trapolação científica que daria uma outra cróni-
distinto astrónomo como Sir William Herschel ca). É então que recebem uma inquietante mensa-
(1738-1822) admitia que seria perfeitamente pos- gem: “Todos estes mundos são vossos, exceto Eu-
sível existir vida no interior da nossa estrela; Char- ropa. Não tentem pousar ali!”. O “novo Sol Júpiter”
les Palmer, cientista e teólogo, em 1798, jurava que o poderia ser a fonte de energia necessária para a vi-
Sol é feito de gelo e apenas “parece quente” devido da subaquática de Europa. A Humanidade não de-
ao brilho de Deus. Pois os mistérios que esta sonda veria interferir em tal desenvolvimento. Em 2013,
tentará esclarecer prendem-se com as estranhas a ficção científica voltou a alertar-nos para os “pe-
variações de temperatura desde a superfície até às rigos” da exploração desta lua, quando, no fil-
altas camadas da atmosfera solar e, no fundo, com- me “Europa Report”, uma outra equipa terrestre
preender melhor os humores energéticos do Sol e a se perdeu nos desfiladeiros e oceanos de Europa
sua influência na Terra. Ícaro estará com esta sonda sem qualquer explicação.
– esperemos que não no trágico fim. Em meados da segunda década deste século, e
E quando a ficção científica e a ciência se per- após oito anos de viagem espacial, uma sonda ori-
seguem mutuamente? O que hoje é ficção, ama- ginária da Terra irá orbitar Europa. Durante dois
nhã será cientificamente realista. Ontem, este anos e meio, cada metro de Europa será preciosa-
período demoraria semanas, meses. Hoje é ama- mente cartografado, fotografado, o seu calor me- 087
nhã. Amanhã será, quiçá por algumas horas, algo dido e uma armada de instrumentos tentará son-
servido em doses iguais de magia, proeza e cui- dar o seu interior com um poder tecnológico que
dadosa preocupação. esta lua nunca sentiu – será praticamente despida
Se, num jantar de amigos, os quiser impressio- por uma emissária da Terra. Num daqueles raros
nar de uma maneira cientificamente estontean- momentos em que a política parece acompanhar
te, faça-lhes a seguinte pergunta: em todo o Siste- a excitação da ciência, o Congresso norte-ameri-
ma Solar, onde está localizada a maior quantidade cano concedeu mais dinheiro para a NASA incluir
de água salgada? Provavelmente, os seus amigos em tal missão um robô que irá aterrar na lua, algo
pensarão nas paradisíacas paisagens líquidas das que não estava originalmente contemplado. Que
praias terrestres e nos 11 quilómetros de profun- mensagem receberemos de Europa? Como sere-
didade da Fossa das Marianas – a Terra, eviden- mos recebidos? Será a ficção científica de ACC e
temente! Pois... mas o que nos conta a Ciência ho- de tantos outros sobre Europa uma antecâmara de
je é que, provavelmente, a resposta está numa Eu- sonhos premonitórios? Um belo conto mitológico
ropa – mas a excitante, a que, em forma e categoria da tecnologia moderna?
de lua, orbita Júpiter. Po r baixo da gélida superfí- Para fecharmos o círculo de toda esta odis-
cie deste mundo, um oceano global, com cerca de seia da alma e da ciência do Homem, um por-
cem quilómetros de profundidade, envergonha- menor delicioso; neste momento, vai a caminho
rá todos os mares da Terra. Os três mil milhões de de Júpiter uma sonda com um nome mitológi-
quilómetros cúbicos da tal massa líquida de Eu- co: Juno (a mulher de Júpiter, pois). Irá chegar ao
ropa (europeia? europeana?) reduzem a um ridí- rei dos planetas a 4 de julho deste ano. De todas
culo geocentrismo os 1400 milhões de quilóme- as notáveis características técnicas e científi-
tros cúbicos da água salgada terrestre. E Arthur cas que tem, há uma que a torna ainda mais ad-
C. Clarke (ACC), o grande mestre da ficção cientí- mirável: pela primeira vez, a Humanidade che-
fica, não chegou a conhecer estes números, ape- ga até ao reino de Júpiter utilizando como fonte
nas as suspeitas de que ali haveria algo invulgar e energética... o Sol! São os enormes painéis sola-
interessante. ACC fez desta lua um dos lugares de res desta sonda que lhe dão vida energética. O
mistério do livro “2010: Segunda Odisseia”, injus- Sol – que derreteu a mitológica cera das asas de
tamente penalizado pelo sucesso do livro e filme Ícaro, constituídas pelo mesmo carbono da “So-
anteriores, “2001: Odisseia no Espaço”. Uma mis- lar Probe Plus”. O Sol – que alimenta uma sonda
são conjunta de americanos e soviéticos leva-os até Júpiter, onde habita uma lua que tanto, cien-
até aos míticos monólitos que se encontram a or- tífica e literariamente, nos provoca!

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O Noticioso
MUSEU DO TRIMESTRE

Museu da Misericórdia do Porto

088

FOTOS: IGOR MARTINS/GLOBAL IMAGENS

Passado de uma Perplexidade primeira é a escura matéria só-


lida que, cá fora, parece jorrar do Museu da Mi-
sericórdia do Porto (MMIPO) e acumular-se no

instituição chão da Rua das Flores. Importa que falemos de-


la à partida, pois a escultura de Rui Chafes, re-
centemente distinguido com o Prémio Pessoa,

poderosa traduz todo o programa da instituição: nasce da


mais emblemática e valiosa obra ali guardada e
traduz o diálogo com a cidade que é essencial ao

é também montra museu, inaugurado no ano passado.


Intitulada “O meu sangue é o vosso sangue”, a
obra vanguardista representa a integração do

do crescimento MMIPO no programa de arte pública da cida-


de, um dos legados do vereador Paulo Cunha e

e progresso
Silva. E faz transbordar para a rua o sangue de
Cristo, a fonte de vida – Fons Vitae – represen-
tada no quadro flamengo, do primeiro quartel

da cidade
do século XVI, que é o do museu, embora este vá
muito além da retórica de uma só obra ou, até,
das pias temáticas dominantes em irmandades
sem as quais é impossível entender a história da
assistência em Portugal.
Fundada em 1499, a Santa Casa da Misericórdia
do Porto não abre mão da natureza assistencia-
lista. Daí que as boas-vindas ao visitante sejam
dadas pelas 14 obras de misericórdia – sete cor-

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O Noticioso

Espaços
Igreja
e pátio
coberto
completam
a visita
Não deixa a igreja pri-
vativa da Misericórdia
do Porto de ser espa-
ço dedicado ao culto,
numa instituição em
que este ocupa pa-
pel primordial, mas é
também um dos pon-
tos centrais da visita
ao museu. Na realida-
de, é algo que se im-
põe antes da própria
visita, na medida em
que a fachada princi-
pal é um dos mais be-
los exemplos de co-
mo o traço do pintor e
arquiteto toscano Ni-
colau Nasoni marcou
a cidade do Porto. Ini-
ciada a construção do
Escultura de Rui Chafes, Musealização templo em 1555, foi 089
na fachada, integra moderna mostra a intervenção levada
programa municipal coleções que antes a cabo no século XVIII
de arte pública estavam escondidas que lhe deu a definiti-
va grandiosidade. En-
tre os espaços para-
porais e outras tantas espirituais – estampadas lelos à área expositiva
nas paredes. Todavia, o conceito transcende em contam-se, também,
muito o que seria, de forma redutora, o museu a sacristia, amplia-
de uma instituição. da em 1667 (onde até
Paula Aleixo, diretora do MMIPO, sublinha que, ao século XIX estava o
“não sendo um museu da cidade, é o de uma ins- quadro “Fons Vitae”)
tituição que acompanhou o desenvolvimento ou a galeria dos ben-
da cidade e foi, também, construtora da cidade”. feitores, que constitui
De facto, ao longo de muito tempo, era normal um importante exem-
as elites locais coincidirem, por exemplo, na ve- plar da arquitetura do
reação e na Mesa da Misericórdia, daí que es- ferro oitocentista, es-
sa permeabilidade surgisse muito naturalmen- paço privilegiado pa-
te. E é essa uma das linhas programáticas deste ra exposições tem-
moderno espaço museológico. Além de “mos- porárias e eventos de
trar que a Misericórdia está no terreno, ainda natureza muito diver-
hoje”, como diz o historiador e mesário Francis- sa (originalmente um
co Ribeiro da Silva, toda a exposição permanen- pátio a céu aberto, de-
te está pensada, explica a diretora, no sentido de ve o nome ao facto de,
“combater a ideia de que a Misericórdia é uma antes da criação do
coisa antiga, que ficou parada no tempo”. MMIPO, ser o local on-
Vários núcleos compõem o percurso: Miseri- de estavam expostos
córdia do Porto: história e ação; benfeitores; pin- os retratos de benfei-
tura e escultura; ourivesaria e paramentaria; tores da Santa Casa,
sala da igreja; Administração; Fons Vitae; sa- entretanto desloca-
la da memória, a Misericórdia e uma cidade vir- dos para outro espaço
tual; galeria, igreja e sacristia. do museu).

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O Noticioso
MUSEU DO TRIMESTRE

Fons Vitae,
óleo sobre madei-
ra quinhentista, é a
obra maior do MMI-
PO. Em meados do
século XIX, quando o
ministro da Prússia
em Portugal, histo-
riador de arte, salien-
tou a importância da
pintura, foi transfe-
rida da sacristia para
a Casa do Despacho
(a sala de sessões da
Mesa Administrati-
va), justamente o es-
paço que hoje em
dia lhe é exclusiva-
mente dedicado. Não
há certezas quan-
to à autoria, mas é
comum atribuí-la a
Colijn de Coter, pin-
tor flamengo que vi-
veu entre os séculos
XV e XVI. Junto à fon-
te de vida que emana
do Cristo crucificado
estão representados
090 D. Manuel I e a famí-
lia real. “Fons Pietatis
Fons Vitae Fons Mi-
sericordiae” é o título
completo da obra.

INFORMAÇÃO ÚTIL Além das formas tradicionais de promoção do nos mostra), não será, todavia, a obra mais repre-
acesso, para pessoas com mobilidade reduzida sentativa da instituição. Esse papel cabe a uma
S. Bento
ou portadores de deficiência visual ou auditiva, peça muito recente, dos nossos dias, a que cha-
R. das Flores o MMIPO apresenta soluções tecnologicamen- maram Cálice da Confiança, uma alfaia litúrgi-
MUSEU te avançadas para o público em geral, como a dis- ca produzida, em 2014, pelo ourives Manuel Alci-
R. de Mouzinho
da Silveira
ponibilização de aplicações para smartphone, no, com ouro resultante da fusão de alianças que
que complementam ou enriquecem a visita (há haviam sido, ao longo dos tempos, legadas à Santa
RUA DAS FLORES, 15 wi-fi em todo o edifício), ou até equipamentos de Casa. Em janeiro último ficou, ainda, assegurada
4050-265 PORTO realidade virtual, para quem não possa aceder à a aquisição de uma nova joia da coroa para o mu-
220906960 sala onde é projetada a simulação do que seria a seu, com a compra, em leilão, de um quadro de Jo-
O MMIPO, na sede cidade se, como chegou a ser projetado, a Rua de sefa de Óbidos, “A Sagrada Família com São João
histórica da irman- S. João tivesse sido prolongada até ali, dando à fa- Batista, Santa Isabel e Anjos”, arrematada por 250
dade, está aberto chada de Nasoni teria a visibilidade desejável. mil dólares (cerca de 228 mil euros).
todos os dias. O bi- “Fons Pietatis Fons Vitae Fons Misericordiae”, o Ultrapassada, em cinco meses, a meta dos dez
lhete custa cinco eu- quadro que é a joia da coroa do museu, provavel- mil visitantes (40% dos quais cidadãos estran-
ros, mas, por 11, um mente a peça central de um retábulo cujos volan- geiros), o MMIPO pode, por exemplo, ser visi-
bilhete conjunto dá, tes se perderam, é onde qualquer visita desagua, tado mediante a aquisição de um bilhete único,
também, acesso à onde os olhos se demoram e onde compreende- válido, também, para o Palácio da Bolsa e para
Torre dos Clérigos e mos a natureza da tal escultura que vimos na rua. a Torre dos Clérigos. Essa parceria levou ali, no
ao Palácio da Bolsa. Sendo o símbolo maior do museu (que tanto mais perído referido, 15 a 20% dos visitantes.

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O Noticioso

091

Camisa-de-forças,
originária do Hospital
do Conde de Ferrei-
ra, é um entre muitos
objetos que retra-
tam a ação da Mise-
ricórdia ao longo dos
tempos

Um dos dois cálices Fachada


ditos de Arouca, pro-
duzido no primei- A discreta maravilha
ro quartel do século de Nicolau Nasoni
XVI e executado em
prata dourada e es- Expostos no museu estão os desenhos feitos
maltes. Do Mostei- por Nicolau Nasoni, quando teve a cargo a tare-
ro de Arouca saíram fa de tornar deslumbrante a fachada da igreja da
para a posse de Mi- Misericórdia. Que o toscano o conseguiu é certo,
sericórdia em 1860, mas muitos se intrigam sobre o porquê de a cons-
através de uma doa- trução barroca, feita para ser vista e para impres-
ção ao Recolhimen- sionar os crentes, estar tão escondida, à entra-
to das Meninas Órfãs da da estreita (pelo menos, como hoje a perce-
de Nossa Senhora da bemos) Rua das Flores. A verdade é que estava
Esperança. previsto que a Rua de S. João, que sobe a partir da
Praça da Ribeira, fosse prolongada em linha re-
ta até ali, ficando a igreja a coroar, triunfante, a su-
bida. Esse projeto, que não se concretizou, renas-
ceu, virtualmente, no museu.

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O Noticioso
SABOR DA HISTÓRIA

Divino deleite
de um monstro
Hélio Loureiro
Chefe de cozinha
diabólico

A
Ainda hoje responsável por História da lampreia é tão
grande e extensa como a da
092 sentimentos contraditórios, Humanidade. Este ciclóstomo
a lampreia era, em tempos foi até perseguido e proibido,
ganhando aura de lutador pe-
idos, tanto demonizada la sua liberdade culinária. Os
como adorada. Iguaria judeus, por exemplo, de acor-
do com as suas crenças, que veiculavam muitas
sazonal única, não normas sanitárias quando foram escritas, estão
escapou, no século XVII, a vedados de comê-la, por não ter escamas. Já a
Igreja Católica, sobretudo as ordens mendican-
marcar presença no mais tes, via nela a exortação à gula: pela sua forma,
antigo livro de receitas pelo sangue encorpando o molho e, sobretudo,
pelo vinho que se utiliza tanto na confeção como
português. na degustação. Sempre estigmatizada pelo as-
peto de serpente, a lampreia remetia para o pe-
cado original ou para o veículo da tentação que
levou Eva à desobediência. A mulher foi, desde
sempre, ensinada pela religião a odiar a serpen-
te e, sendo assim, a lampreia não poderia fazer
parte do seu ideal culinário. Não obstante, mui-
tas mulheres cozinhavam-na, embora não a co-
messem e a repudiassem.
Os reis protegiam os seus rios da pesca de
peixes, mas também destas raridades cíclicas,
que já nesses tempos idos eram pitéu de ricos e
deleite de pobres. O rei francês Luís IX (S. Luís),
por exemplo, era um afamado apreciador, e
com a sua corte circulavam barricas de madeira
cheias de água dos rios Dordogne e Garonne, na
Tida por exortação da gu- região de Bordéus, transportando gordas lam-
la, era também associa- preias com as quais haveriam de se banquetear.
da, pela forma de serpen- Como vimos, a religião judaica excluía a lam-
te, ao pecado original preia, e a influência dos sefarditas na cultura

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O Noticioso

LAMPREIA
À MODA
DE PENACOVA
INGREDIENTES:
1 LAMPREIA AMANHADA;

o
1 FOLHAS DE LOURO;
1 L DE VINHO MADURO TINTO
DA BAIRRADA;
4 COLHERES DE VINAGRE
DE VINHO TINTO;
1 RAMO DE SALSA FRESCA;
SAL E PIMENTA Q.B.;
2 DENTES DE ALHO;
NOZ-MOSCADA Q.B.
Depois de limpa a
lampreia, coloque-a
num alguidar e jun-
te sal, o louro, a noz-
-moscada ralada, os
alhos esmagados, os
alhos-porros parti-
dos, um bom ramo
de salsa e a pimenta.
Regue as lampreias
com vinho, até fica-
rem cobertas, e me-
xa tudo. Coloque
portuguesa levou a que o consumo fosse de re- sim consumida pelos minhotos. num tacho bastante
duzida relevância e, até, tido como pouco orto- Está desde há muito presente no receituário azeite. Junte-lhe ce-
doxo. Tal também contribuiu para que sempre nacional. Uma deliciosa empada de lampreia é bola e alho picados, 093
tenha havido fortes sentimentos em torno desta garbosamente descrita no primeiro livro de co- deixe alourar, acres-
iguaria única, associada ao pecado da gula e ao zinha português, datado de 1680 e composto por cente a lampreia es-
pecado original. Duplamente pecaminosa e por Domingos Rodrigues, chefe de cozinha de Suas corrida, verta a ma-
tantas coisas quase proibida, até pelo preço proi- Majestades Fidelíssimas, mas, se recuarmos ao rinada passada por
bitivo por que às vezes é vendida. século XV, encontramos uma receita de lam- um passador e dei-
A lampreia à bordalesa é a forma mais di- preia com salsa e coentros, escrita num caderno xe cozinhar lenta-
vulgada de comer o pitéu. Originária de Bor- que Dona Maria, infanta de Portugal, levou para mente, em lume mui-
déus, França, a receita foi sofrendo alterações, e Itália, com algumas receitas da corte lusa. to brando, por cerca
do original, por vezes, resta apenas o nome. Os Atualmente, podemos encontrar lampreia de 45 minutos. Reti-
alhos franceses foram trocados por maior quan- confecionada de diversas formas menos usuais: fique os temperos,
tidade de cebolas e o vinho de Bordéus por vi- com molho de chocolate, à transmontana, no es- adicione o vinagre,
nho da região onde é confecionada. Segundo o peto, de fricassé, de escabeche, de conserva, em deixe levantar fer-
gastrónomo Mário Varela Soares, o nome da re- empadas e por aí fora. vura e retire-as do
ceita chegou a Portugal por intermédio de uma Um estudo muito recente identifica a exis- lume. Sirva com ar-
empresa conserveira – a Amieux Frères –, que tência em Portugal de seis espécies de lampreia. roz branco, tostas de
em 1913 terá estreado a expressão “bordalesa” A lampreia-marinha, a lampreia-de-rio e a lam- pão torrado e grelos
(até aí falava-se em lampreia com alhos france- preia-de-riacho foram as primeiras a ser iden- salteados.
ses ou à moda de Bordéus). O acompanhamento tificadas, juntando-se-lhes depois a lampreia-
era, além das tostas, um molho com cogumelos. -da-costa-da-prata, a lampreia-do-nabão e a
A lampreia à moda do Minho, esta verdadei- lampreia-do-sado. A lampreia-marinha (Pe-
ramente nossa, é feita com cebola, sangue e ver- tromyzon marinus) é aquela que consumimos
de tinto, esse vinho tão desprezado e mal ama- entre janeiro e março, levando multidões a fa-
do pelos que se deixam impressionar pelo fácil zer longos percursos gastronómicos, em bus-
e vulgar, remetendo para a ruralidade e provin- ca da melhor receita. E também daquele sabor
cianismo um produto com características úni- que é único, para os entendidos, ou não fosse a
cas, essencial na confeção da nossa lampreia cozinha o prazer de comer, a memória. A lam-
e no seu acompanhamento. Mas não é só este o preia-de-rio (Lampetra fluviatilis) e a lampreia-
modo de confeção tipicamente português. Por -de-riacho (Lampetra planeri), não sendo con-
exemplo, a lampreia era seca ou fumada, quan- sumidas, são as mais raras e estão em vias de
do o transporte e a conservação não permitiam extinção, segundo o “Livro Vermelho dos Verte-
o recurso a outros métodos, mas ainda hoje é as- brados de Portugal” (Assírio & Alvim, 2005).

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O Noticioso
ROSTOS DA HISTÓRIA

Alexandre Herculano
1810-1877

Q
ue não se possa separar o Herculano his- trumental que dava à História (procurava estudar temas que
toriador do Herculano diplomatista é ób- ajudassem a dar corpo às reformas que se queriam pôr em
vio, mas o mesmo terá também de valer prática, sendo o caso do municipalismo o mais paradigmáti-
para o literato, o deputado, o bibliotecá- co) impedia que, de facto, protagonizasse grandes avanços na
rio ou o soldado que militou nas fileiras busca de um conceito hoje dificilmente aceitável, o da “verda-
liberais. O grande vulto de Alexandre de histórica”. Também o maior interesse pelo social, em detri-
Herculano de Carvalho Araújo (Lisboa, mento da História individualizante, da História dos heróis, re-
1810-Santarém, 1877) é, em Portugal, ex- presentou com este autor uma importante viragem.
pressão plena do Romantismo, enquanto programa cultural A escrita da História teria de passar pelas fontes docu-
e vanguarda de um pensamento político. mentais, e Herculano associava ao repúdio dos mitos fun-
Herculano sintetiza, na realidade portuguesa, várias face- dadores da nacionalidade a busca dos velhos pergaminhos
tas do intelectual romântico. É o historiador com uma ambi- que o ajudavam a estabelecer a tal “verdade histórica”, mes-
ção totalizadora, como Jules Michelet, o romancista histórico, mo que, sem assumir a natural subjetividade do que escre-
como Walter Scott, o grande diplomatista, como o Barão vom via, admitisse a possibilidade de cometer erros de interpre-
Stein, o poeta na linha de Victor Hugo... tação. Do seu afã resulta a mais importante recolha
Se na literatura usava a estética romântica – o e publicação de documentos medievais, que deu
094 macabro, o tempestuoso, a apologia do “belo corpo aos “Portugaliae Monumenta Histori-
horrível” – como instrumento propagador ca”, coletânea documental inspirada na ale-
de um nacionalismo típico da época e de mã “Monumenta Germaniae Historica”, do
doutrinação moral, muito mais a Histó- atrás referido Stein, e prosseguida depois
ria lhe serviria para cumprir tais propó- da morte de Herculano.
sitos. Herdeiros dos movimentos que, Muito mais vasto do que atrás se disse
na Alemanha do último quartel do sé- foi o trabalho de divulgação da História
culo XVIII, haviam funcionado como que desenvolveu, disperso não apenas
reação ao excessivamente racionalis- por numerosos artigos como pela cria-
ta iluminismo francês, como o Sturm ção literária. Mas, um homem que se in-
und Drang (tempestade e ímpeto) ou titulava “paleógrafo, antiquário, viajan-
os conceitos nacionalistas românticos, te, bibliógrafo, tudo” era muito mais do
assentes na busca do volksgeist (espíri- que isso. Era, sobretudo, o cidadão em-
to do povo), os historiadores românticos penhado, nascido do jovem que, por con-
rompiam com os precedentes pela exalta- tingências familiares, acabou por não fre-
ção dos momentos fundadores das suas na- quentar a Universidade e preparar-se para
ções. Ou seja, da Idade Média, demonizada e o funcionalismo na Aula de Comércio (época
falsamente rotulada de idade das trevas pelos em que estudou Diplomática na Torre do Tom-
que com ela primeiramente haviam rompido, os bo), esse mesmo jovem que frequentava círculos
homens do Renascimento. literários e que, depois de se revoltar contra o miguelis-
Daí que a obra maior de Alexandre Herculano enquanto mo, partiu para o exílio. Esse mesmo que, em Inglaterra e
historiador, uma História de Portugal em quatro volumes, pu- França, frequentou importantes bilbiotecas, antes de che-
blicada entre 1846 e 1853, não tenha ido além do reinado de D. gar aos Açores, onde, ao lado de Garrett, integrou o Batalhão
Afonso III (o quarto volume é dedicado ao municipalismo, de Académico que desembarcou com D. Pedro IV em Areno-
que era fervoroso adepto). Mas, se são importantes esses as- sa do Pampelido, que se desmobilizou e foi 2.º bibliotecá-
petos, digamos assim, programáticos, inseridos num espírito rio da Real Biblioteca Pública do Porto (hoje Biblioteca Pú-
de refundação nacional, muito importante é, também, a vira- blica Municipal do Porto), então fundada, que em 1836 ru-
gem metodológica a que o autor deu forma em Portugal. mou a Lisboa e foi bibliotecário-mor do reino. O homem que
Com Alexandre Herculano, a historiografia ganhou, em fez jornais, que foi deputado e se desiludiu, que calcorreou o
Portugal, a cientificidade que até então lhe faltava, e, à luz da- país recolhendo documentos, que se retirou, na parte final
quele tempo, tal não era incompatível com os imperativos éti- da vida, para a Quinta de Vale de Lobos, perto de Santarém.
cos e patrióticos que o moviam. Nem mesmo a vertente ins- Soldado, historiador, académico, lavrador, tudo.

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O Noticioso
LIVROS

PORTUGUESES
QUE NOS VEEM
DE DENTRO
E DE FORA
ÁLVARO CUNHAL – UMA RACISMOS — DAS CRUZADAS
Tema da Grande Guerra BIOGRAFIA POLÍTICA AO SÉCULO XX
está presente nas sugestões JOSÉ PACHECO PEREIRA FRANCISCO BETHENCOURT
bibliográficas para o trimestre Temas e Debates | 480 páginas | 24,40 € Temas e Debates | 582 páginas | 24,40 €
Mais uma etapa da grandio- Notável exercício de História
sa biografia política de Álvaro comparada, retratando os racis-
Cunhal, também uma História do mos no mundo ocidental. Foi es-
PCP e da oposição à ditadura. É crito em inglês pelo português
abarcado o período entre a fuga Francisco Bethencourt, regen-
Nunca está tudo dito, mas já muito se escreveu de Peniche (1960) e a queda de te da cátedra Charles Boxer no
sobre o quarto volume da biografia de Álvaro Salazar da cadeira (1968). A for- King’s College, de Londres, para
Cunhal, por José Pacheco Pereira, que encabeça a ma como Cunhal dirigiu o partido quem “é preciso ainda percorrer
nossa lista de sugestões bibliográficas. Pelo volu- a partir do exílio é tratada com um longo caminho para cumprir
me em si, claro, mas, sobretudo, pela grandeza da recurso a muitas fontes inéditas. o sonho da dignidade humana”.
obra cuja compleição, à medida que se completa,
a torna incontornável entre as referências da His-
096 tória da oposição à ditadura em Portugal.
É notória, no mercado editorial português, a ape-
tência por estudos relacionados com o século XX,
ainda mais intensa quando o período em causa é
o Estado Novo, mas tal não sucede com estas pro-
postas, excetuando o trabalho de Pacheco Perei-
ra e, de certa forma, o estudo de Nuno José Lopes,
em torno do controlo exercido sobre os magis-
trados judiciais de 1910 a 1945. É a Primeira Repú-
blica, com a pertinência dada pelo centenário da
participação portuguesa na Grande Guerra, que
assume presença mais vincada, tanto pelo gran-
de trabalho de Filipe Ribeiro de Meneses, em tor-
no do papel de Afonso Costa nesse período, co-
mo pelo inédito estudo de José Medeiros Ferreira,
desaparecido em março de 2014, que nos dá uma
perspetiva nova sobre as motivações da corrente A GRANDE GUERRA A ORGANIZAÇÃO CIENTÍFICA
beligerante que há cem anos vingou. DE AFONSO COSTA DO TRABALHO EM PORTUGAL
A propósito de Filipe Ribeiro de Meneses, em-
parelhemo-lo aqui com Francisco Bethen- FILIPE RIBEIRO DE MENESES ANA CARINA AZEVEDO
court, cujo notável trabalho sobre racismos no D. Quixote | 544 páginas | 27,90 € Nota de Rodapé | 128 páginas | 18,50 €
mundo ocidental, dado à estampa em 2013, es- Português radicado na Irlanda, A ideia subjacente a este estu-
tá finalmente traduzido e disponível. O pon- o autor é referência no estudo do está em verificar de que mo-
to de contacto entre os dois autores é o facto de do século XX português. Neste do a organização científica do
serem historiadores portugueses radicados no volume, procura “reconstruir o trabalho, associada ao desenvol-
estrangeiro. Bethencourt, que dirigiu a Biblio- pensamento e a ação de Afonso vimento industrial e económico
teca Nacional de Portugal e o Centro Cultural Costa” durante a Grande Guer- noutros países, foi relevante em
da Gulbenkian em Paris, tem agora como base ra e perceber por que razão es- Portugal. A premissa de que o foi
o King’s College, em Londres, enquanto Ribeiro ta pôs termo à sua carreira go- cria, por si, uma rutura com a ge-
de Meneses, o primeiro biógrafo académico de vernamental, não obstante, em neralidade das teses preceden-
Salazar, fez toda a carreira, desde a licenciatu- Paris, ter acalentado o sonho de tes, assentes na falta de estudos
ra, no Trinity College, de Dublin. voltar para formar Governo. sistemáticos agora colmatada.

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A REPÚBLICA CORRIGIDA BOTÂNICA, MEDICINA E CULTURA JUÍZES TERRAMOTO


E AUMENTADA NOS COLÓQUIOS DE GARCIA DE ORTA SOB TUTELA DOUTRINAL

JOSÉ MEDEIROS FERREIRA ADELINO CARDOSO E PALMIRA F. DA COSTA (ORG.) NUNO JOSÉ LOPES CARLOS A. MOREIRA AZEVEDO
Edições 70 | 242 páginas | 16,90 € Edições Colibri | 256 páginas | 16 € Afrontamento | 348 páginas | 18 € Temas e Debates | 274 páginas | 18,80 €
Este livro póstumo propõe uma Garcia de Orta, notável cientista Versão quase integral da disser- O oratoriano João Moutinho es-
visão inovadora da política ex- do Portugal quinhentista, fixou, tação de doutoramento do autor. creve longa carta aberta ao rei
terna da República, com ênfase nos “Colóquios”, um diálogo en- O recurso, inédito, ao arquivo D. José, em 1755. Carlos Aze-
na participação portuguesa na tre ocidente e oriente que, embo- histórico do Conselho Superior vedo resgata do quase desco-
Grande Guerra (1914-18). Me- ra com ênfase nas questões liga- da Magistratura possibilita esta nhecimento não só o documen-
deiros Ferreira concluiu que as das à botânica e às plantas medi- visão que, partindo da forma co- to, em que a Igreja portuguesa
motivações de caráter econó- cinais, é também testemunho do mo eram disciplinados e contro- era apontada como herética, por
mico e financeiro foram as mais encontro entre diferentes cultu- lados os juízes portugueses, tra- manter a Inquisição, mas a pró-
fortes, retirando primazia à ma- ras, ou seja, da descompartimen- ça um amplo perfil da classe pro- pria figura do autor, que o mar-
nutenção das colónias. tação do mundo. fissional, de 1910 a 1945. quês de Pombal exilou em Roma.

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AUGUSTO DE REVOLUCIONÁRIO ENTRE O MACARRÃO À DESCOBERTA


A IMPERADOR DE ROMA DOIS IMPÉRIOS DE ESTALINE DOS LUGARES
ADRIAN GOLDSWORTHY FILIPA LOWNDES VICENTE JON RÖNSTRÖM E ANDERS EKMAN RUI ALCÂNTARA CARREIRA
Esfera dos Livros | 584 páginas | 29 € Tinta da China | 352 páginas | 17,90 € Bertrand | 144 páginas | 16,60 € Novembro | 112 páginas| 12 €
Otávio César Augusto foi o pri- Uma grande Índia, duas índias Eventos do passado são asso- Um livro infanto-juvenil, em
meiro imperador de Roma, mas coloniais. Este estudo versa a ciados a iguarias. O macarrão de que o autor, professor do Ensino
Adrian Goldsworthy, nesta bio- perceção que os britânicos ti- Estaline, que também Churchi- Secundário, constrói uma histó-
grafia lançada em 2014, evita a nham da Índia portuguesa, espa- ll e Roosevelt comeram em Ial- ria cuja meta vai muito além do
palavra, pois traduz um concei- ço colonial cuja decadência con- ta, é um exemplo, a par do Gu- entretenimento. Trata-se de um
to que só nos séculos posterio- trastava com a pujança do gran- lache partilhado por ingleses e meio de sensibilização dos mais
res faria sentido. Princeps era. de Império Britânico, de 1800 a alemães, nas trincheiras, ou do novos para a importância de
O primeiro. Uma figura central, 1940. Esta leitura mostra duas li- arenque comido por Bobby Fis- apreciar, preservar, defender e
que governou por 44 anos, até nhas distintas de apreciação: o cher, antes de se tornar cam- divulgar o património históri-
morrer de velhice, mas que as exemplo a não seguir e as vanta- peão do Mundo de xadrez e ban- co. Acaba por ser, também, uma
pessoas tendem a ignorar. gens que haveria na anexação. deira ocidental na Guerra Fria. ação dirigida a toda a família.

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PONTES NO TEMPO

A guerra dos
Trinta Anos no Islão
José Pedro Lutas intestinas no mundo cessariamente, os irmãos de fé, ou os que professa-
Teixeira Fernandes vam outras confissões, ou outras religiões. A “rai-
Professor muçulmano, atualmente, son d’état” — ou seja, a ambição de poder —, falava
seriam percebidas com facilidade mais alto do que a religião. A católica França não dei-
xou de se aliar com a protestante Suécia e o islâmico
pelos europeus seiscentistas, Império Otomano, para conseguir os seus objetivos
de poder na Europa. O inimigo não eram os protes-
habituados às disputas políticas tantes, como seriam num genuíno conflito religio-
dissimuladas pela religião so, mas os irmãos de fé católicos, os imperadores Ha-
bsburgos.

3
A invasão norte-americana do Iraque, em

1
2003, parece ter, de forma inadvertida, de-
Para os europeus, os conflitos em curso no flagrado uma nova era de lutas religiosas,
mundo árabe e islâmico no Médio Oriente são entre sunitas e xiitas. A democracia conti-
dificilmente inteligíveis. Na maioria dos ca- nua a ser uma miragem no deserto da Me-
sos, não são conflitos clássicos, travados en- sopotâmia: aí apareceu a barbárie do Daesh. A que-
tre exércitos convencionais, nem guerras de da do Iraque para o lado xiita foi percebida, pelos su-
Estado contra Estado. Não são, também, confronta- nitas, como uma inadmissível perda de um território
098 ções imbuídas de ideias nacionalistas nem de ideolo- simbólico do Islão. Até aí, o Iraque era dominado por
gias políticas seculares. Provavelmente, os europeus um governo sunita autoritário, apoiado no clã de Ti-
teriam mais facilidade em compreender essas con- krit, de Saddam Hussein. Para a Arábia Saudita — on-
frontações sangrentas, que dizimam milhares de de a imensa riqueza do petróleo alimenta uma von-
pessoas, ou até milhões, se tivessem uma mentalida- tade expansionista, sob a capa virtuosa do Islão su-
de pré-moderna. É paradoxal, especialmente quan- nita (wahhabita) —, foi uma considerável derrota que
do se tem interiorizado o quadro mental do progres- favoreceu o arqui-inimigo: o Irão xiita. Quanto ao
so e do secularismo como rumo da história. Os eu- Irão, desde a revolução de 1978/1979 — que marcou
ropeus têm-no, desde o Iluminismo do século XVIII. a chegada do Ayatollah Khomeini ao poder e a sua
Mas nem sempre foi assim. Tal como no mundo ára- transformação num Estado teocrático —, está empe-
be e islâmico de hoje, também na Europa do passado nhado em exportar a sua própria influência e domí-
as divisões religiosas — e disputas teológicas — dissi- nio, sob a forma de Islão xiita (duodecimano).

4
mularam fraturas políticas e/ou culturais profundas
e lutas de poder bem terrenas. O clássico tratado po- Para além do campo de batalha do Ira-
lítico de Thomas Hobbes, “Leviatã” (1651), espelha a que, vários outros pontos críticos do Mé-
violência da primeira metade do século XVII, de uma dio Oriente são locais de confronto: Sí-
“guerra de todos contra todos”. ria, Líbano, Bahrain, Iémen, etc. A Síria é a

2
que mais se aproxima de uma hobbesia-
A Reforma Protestante, no século XVI, e a na “guerra de todos contra todos”. O Irão suporta o re-
Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foram gime de Bashar al-Assad e a minoria alauita próxi-
fratricidas querelas religiosas da Cristanda- ma do xiismo. A Arábia Saudita financia os grupos is-
de ocidental. Na realidade, também foram lamistas-jihadistas que se opõem a este. Os curdos
amplamente instrumentalizadas por lu- pretendem a sua independência. A imagem da guer-
tas políticas e ambições de poder. A Europa do Norte ra dos Trinta Anos vem à mente. Trava-se uma guer-
aproveitou para se libertar do domínio do Papa e dos ra fratricida ente sunitas e xiitas. Tal como na Europa
imperadores Habsburgos católicos. Não foi apenas do século XVII, nem os aliados nem os inimigos são
por divergências teológicas que a Inglaterra, a Ho- sempre os supostos irmãos de fé. Alianças de uma
landa, a Suécia e a maior parte dos estados do Nor- cínica realpolitik não faltam: a Arábia Saudita com
te da Alemanha se tornaram protestantes. Uma igre- os “infiéis” EUA; o Irão com a potência tradicional do
ja de estado, separada de ingerências externas, per- Cristianismo Ortodoxo, a Rússia. Déjà vu. Na guerra
mitia consolidar o poder político soberano. Nessas dos Trinta Anos do Islão, as querelas teológicas mas-
guerras, nem os aliados nem os inimigos foram, ne- caram muito humanas lutas políticas.

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