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Neuropsicologia e
Memória
Memória(s)
Continuando nosso bate-papo sobre as funções cognitivas o convite agora é o de
explorar o território das memórias!
Como você já deve ter percebido, nessa altura do campeonato, geralmente,
trabalhamos com conceitos amplos que abarcam “entidades” relativamente diferentes.
Com a memória não será diferente!
As memórias provêm das experiências. Por isso, é mais proveitoso falar em “memórias”
ao invés de “memória”, já que há tantas memórias quanto experiências possíveis.
É evidente que a memória da sua festa de casamento é diferente da memória de sua
casa da infância que, por sua vez, é diferente da memória de como dirigir o seu carro.
Algumas dessas memórias são adquiridas
instantaneamente como a de um cheiro ou sabor
desagradável. Não precisamos de muitas tentativas para
aprender a não repetir uma comida estragada.
Outras levam semanas ou meses como a de dirigir um
carro, outras requerem anos como o domínio de uma
profissão.
Umas são muito visuais, talvez como a casa da sua vó quando você era criança, outras
só olfativas, quem sabe aquele bolo de fubá quentinho, outras quase completamente
motoras ou musculares, como dirigir ou simplesmente andar.
Algumas dão prazer e outras são terríveis. Algumas memórias consistem em uma súbita
associação de outras memórias preexistentes, naquele momento de iluminação! Outras
não requerem qualquer conhecimento prévio, como a de um trauma após um acidente.
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Algumas misturam um apanhado de memórias, nem sempre lógicas ou reais, tais como
nos sonhos.
É evidente que os mecanismos de cada um desses tipos de memória não devem ser
os mesmos, tampouco, os componentes emocionais de cada uma delas. Vamos explorar,
então, quais são esses mecanismos e como são influenciados pelos diversos componentes
emocionais.
“Memória” significa aquisição, formação, conservação e evocação de informações.
A parte de aquisição, formação, conservação é o que também conhecemos como
aprendizado. Só “gravamos” aquilo que foi aprendido.
A evocação é aquilo que chamamos de recordação ou lembrança. Só lembramos aquilo
que gravamos, aquilo que foi aprendido.
Não podemos nomear uma cor que nunca vimos, nem contar uma história que nunca
ouvimos, aquilo que não esteja em nossa memória não nos é acessível. Nem fazem parte
de nós eventos que nunca vivemos. O “baú” de nossas memórias faz cada um de nós, um
indivíduo, para o qual não existe outro idêntico.
O termo memória pode ser tão amplo quanto se queira, extrapolando a esfera individual.
Você já deve ter escutado alguém dizer, por exemplo, temos que preservar nossas
memórias! Ao se referir a memórias comuns que caracterizam um grupo, povos, países,
civilizações, etc... esse conjunto de memórias conhecemos como História. O conjunto
dessas lembranças nos faz brasileiros, por exemplo. O mesmo acontece com os outros
países e as memórias de seus habitantes.
Em termos mais amplos, por exemplo, somos membros da civilização ocidental, nosso
registro coletivo de memórias, permite elos entre os diferentes grupos e com base na
memória coletiva fazemos novas associações. Para um brasileiro que desembarca na
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China, em geral, é mais fácil arrumar um amigo “ocidental”, algum outro “latino”, por
exemplo, do que com um nativo.
Amplamente falando, portanto, o termo “memória” comporta desde as peças eletrônicas
dos nossos aparelhos de uso diário, atualmente a tal nuvem de dados também, até a
história de cada cidade, país, povo ou civilização, incluindo as memórias individuais dos
animais e das pessoas.
Mas o termo “memória” será analisado caso a caso, porque os mecanismos de
aquisição, armazenamento e evocação são diferentes. Trata-se de uma função complexa,
que envolve diferentes processos e divide-se em tipos e subtipos variados.
A memória humana é muito parecida com a dos demais mamíferos quando pensamos
em seus mecanismos essenciais, neurobiologicamente falando. Difere, porém,
substancialmente quando pensamos em conteúdo.
Um ser humano lembra de poemas, histórias, canções, ou ainda o teorema de Pitágoras
ou a fórmula de Bhaskara; uma girafa, não!
Os seres humanos, desde muito cedo, fazem uso da linguagem para adquirir, codificar,
guardar ou evocar memórias. Porém, fora as áreas da linguagem, usamos mais ou menos
as mesmas regiões encefálicas e mecanismos moleculares que os demais mamíferos
construir e evocar memórias totalmente diferentes.
Basicamente, os sistemas neuronais de todas as espécies de mamíferos são muito
semelhantes seja um homem ou um rato. Os achados nessas espécies, podem ser
relacionados aos humanos com certa sensatez. Uma lesão do lobo temporal altera de
forma semelhante a memória tanto no homem quanto no rato, por exemplo. Alterações nas
reações bioquímicas no encéfalo do rato e do homem também surtem efeitos parecidos
sobre a memória, seja no rato ou seja no homem.
Grande parte do que conhecemos sobre a “memória” vem de estudos com animais. As
memórias são “criadas” pelos neurônios, armazenam-se em redes de neurônios e são
evocadas pelas mesmas redes neuronais ou ainda por outras. São moduladas pelas
emoções, pelo nível de consciência e pelos estados de ânimo. Veja como, mais uma vez,
a emoção, o “humor” e a disposição modulam nossa cognição.
Os maiores reguladores da aquisição, da formação e da evocação das memórias são
justamente as emoções e os estados de ânimo. Quem nunca percebeu que, como mágica,
“gravamos” a aula inteira de um professor que gostamos, ao passo que, a aula de outro
professor, que apaga qualquer ponta de animo que restava, parece “não entrar na nossa
cabeça” de jeito nenhum.
Caminhando um pouco mais na cadeia evolutiva, percebemos que, mesmo em espécies
distantes, como aves ou até invertebrados os mecanismos essenciais de formação das
memórias são semelhantes aos dos mamíferos e podem ser considerados, portanto,
propriedades básicas dos sistemas nervosos em geral, seja qual for a espécie.
Qualquer que seja o animal, desde uma formiga até uma baleia, percebe que se um
estímulo é desagradável a melhor coisa a se fazer numa próxima oportunidade é evitá-lo!
Essa é uma forma básica de aprendizagem chamada esquiva inibitória.
Uma criança aprende, geralmente de primeira, a não colocar nuca mais o dedo na
tomada. Um ditado equivalente é “Macaco velho não põe a mão na cumbuca!”
Experimentos levam a crer que neurônios na amígdala* podem “aprender” a responder
certos estímulos associados à dor, e, uma vez aprendidos, esses estímulos passam a
evocar o medo como resposta.
Geralmente, essa é uma das formas de aprendizagem mais utilizada nos estudos
biológicos sobre a memória, por algumas razões simples, se adquire em uma única vez,
permanece por muito tempo (às vezes, por toda a vida) e tem um valor biológico
importante.
*
Amígdala – Núcleo com formato de amêndoa no interior do lobo temporal.
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Tipos de Memórias
liberados por esses axônios, que vêm de estruturas muito distantes, modulam
intensamente as células do lobo frontal que se encarregam da memória de trabalho.
Isso, possivelmente, explica o fato tão conhecido de que um estado de ânimo negativo,
por exemplo, por falta de sono, por depressão ou por simples tristeza ou desânimo,
perturba nossa memória de trabalho. Todos nós alguma vez tivemos a experiência de
quanto custa ler ou ouvir e entender algo, ou simplesmente recordar um número telefônico
por tempo suficiente para discá-lo, quando estamos distraídos, desanimados, cansados ou
sem vontade.
Para Lembrar:
A memória de trabalho não deixa traços, diferente dos demais tipos de memória. Ela
depende, simplesmente, da atividade elétrica dos neurônios dessas regiões: há neurônios
que “disparam” seus potenciais de ação no início; outros, no meio; e outros, no fim dos
acontecimentos, sejam estes quais forem. Dessa forma muitos autores não consideram a
memória de trabalho como um verdadeiro tipo de memória, mas como um sistema
gerenciador central que mantém a informação “viva” pelo tempo suficiente para poder
eventualmente entrar ou não na memória propriamente dita.
As células que detectam o início e o fim dos acontecimentos denominam-se neurônios-
on e neurônios-off, encontrados não só no córtex pré-frontal, mas também em todas as
vias sensoriais. Alguns autores usam o termo memória sensorial, justamente por essa
“brevidade” e associação com os sistemas sensoriais.
Os neurônios-on-off são muito estudados nas vias visuais. Podemos perceber a
“persistência” da atividade elétrica desses neurônios quando olhamos fixamente uma
imagem por muito tempo, ela se “mantem” em nossa “memória visual” mesmo após
pararmos de olhar a imagem e focarmos em uma parede branca, por exemplo.
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Segue uma brincadeira abaixo, fixe o olhar na imagem abaixo por uns 30 segundos e
depois olhe imediatamente para uma parede branca!
Memórias Declarativas
São as memórias que registram fatos, eventos ou conhecimento. Como o próprio nome
sugere são chamadas declarativas, porque nós, podemos “declarar” que existem, dessa
forma, são memórias exclusivamente da espécie humana.
Entre elas, encontram-se as memórias referentes a eventos aos quais assistimos ou
participamos. Por exemplo, aquela aula bacana ou ainda sua festa de casamento. Essas
memórias denominam-se episódicas ou autobiográficas. As memórias de
conhecimentos gerais, são denominadas semânticas. Por exemplo, as capitais dos
estados brasileiros, caso ainda tenha elas na sua memória.
Quase sempre, as memórias semânticas são adquiridas por meio de memórias
episódicas. Por exemplo, para aprender matemática, você precisa ter ido às aulas de
matemática!
Geralmente, conseguimos lembrar os episódios nos quais adquirimos memórias
semânticas. As aulas de matemática que tivemos que encarar! Dificilmente, porém,
conseguimos estabelecer o limite entre o começo e o fim de um episódio. Na realidade, é
praticamente impossível para nós, “aqui do lado de fora”, determinar o início e o fim da
aquisição de cada memória declarativa. A determinação do início e do fim de cada episódio
envolve uma interação entre memória declarativa e memória de trabalho por meio de suas
respectivas regiões neuroanatomicas3.
Figura 7.5 – Núcleo caudado e cerebelo - (Fonte: http://www.brainfacts.org/3d-brain - © Society for Neuroscience - Editada)
Referências
1
Izquierdo, I. Memória. 3. ed. Porto Alegre. Artmed. 2018
2
Izquierdo, I.; Furini, C. R. G; Myskiw, J. C. Fear memory. Physiological Reviews. 96:795-850. 2016.
3
Piolino, P.; Desgranges, B.; Eustache, F. Episodic autobiographical memories over the course of time:
cognitive, neuropsychological and neuroimaging findings. Neuropsychologia. 47:2314-2329. 2009.
4
Izquierdo, I.; Medina, J. H.; Vianna, M. R. M.; Izquierdo, L. A.; Barros, D. M. Separate mechanisms for
short- and long-term memory. Behavioural Brain Research. 103(1):1-11. 1999.
5
Izquierdo, I.; Barros, D.M.; Mello e Souza, T.; de Souza, M.M.; Izquierdo, L.A.; Medina, J. H.
Mechanisms for memory types differ. Nature. 393(6686):635-636. 1998.