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j Nascido na Praga do Império
I Austro-Húngaro em 1875, Rainer
I Maria Rilke não só exerceu enorme
|j influência sobre a poesia moderna POEMAS
I como também foi, ainda em vida,
objeto de um culto que se prolongou
para muito além de sua morte,
ocorrida na Suíça em 1926. A
imagem que se tem dele é a de um
; cidadão do mundo isolado em
' castelos cedidos por aristocráticos
: mecenas, enquanto, do lado de fora,
um sem-número de amadas — nobres
ou não — imploravam por uma
nesga de sua atenção. Epistológrafo
contumaz, ele as satisfazia por meio
de cartas. Elas, por sua vez,
retribuíram-lhe, depois de morto,
com, esta sim, uma verdadeira praga
— no dizer do poeta português Jorge
de Sena — de livros de recordações
sobre ele, semelhantes a hagiografias
ou vidas de santos.
Esse culto teve, como não podia
deixar de ser; prolongamentos no
Brasil. Numa Cecília Meireles — que
traduziu A canção de amor e de morte do
porta-estandarte Cristóvão Rilke —, no
Vinícius de Moraes da juventude,
mas sobretudo nos poetas da
chamada Geração de 45. Como todo
. objeto de culto, esse nosso Rilke
aculturado provocava simpatias e
antipatias exacerbadas, assim como
se abastardava nas mãos de
seguidores infinitamente menos
hábeis. Seu tom solene e metafísico
chegou a ser brandido contra dois
“excessos” de nossos modernistas:
o de brincadeira e o de realidade.
Suas metáforas de impacto
generalizaram-se numa aguaceira
imagética. Sua Gedankenlyrik, sua
lírica do pensamento, deu vazão
RAINER MARIA RILKE

POEMAS
Seleção, tradução e introdução:
JOSÉ PAULO PAES

3a reimpressão

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DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE

mil SBD-FFLCH-USP

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Copyright © 1993 by José Paulo Paes

Moema Cavalcanti

Preparação:
Márcia Copola ÍNDICE
Revisão:
Eliana Medeiros
Lucíola S. de Morais

Nota liminar — J. P. P...................... 9


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cn>) A luta com o anjo: uma introdução
(Câmara Brasileira do Livro, sr, Brasil)
à poesia de Rilke — J. P. P. . 11
Rilke, Rainer Maria. 187^1926.
Poemas / Rainer tíária-Rilke ; seleção, tradução e
introdução José Paulo Paes. - Sâo Paulo: Companhia das
4 Letras, 1993.
DE O LIVRO DE HORAS
isbn 85-7164-357-1

1. Poesia alemã 2. Rilke, Rainer Maria, 1875-1926. I. Paes,


José Paulo li. Título
“A minha vida eu a vivo em círculos crescentes”
cdd-831
("Icb lebe mein Leben in wachsenden Ringen"')..... 43
93-7715 “Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho"
índice para catálogo sistemático: (“£>«, Nachbar Gott, wenn icb dich manchesmal"') 45
1. Poesia : Literatura alemã 831
"Tu, Obscuridade de onde emana”
! (“Z)u Dunkelheit, aus der icb stamme"')..................
“Obreiros somos — mestre, aprendizes, serventes”
47

(“ Werkleute sind wir: Knappen, Jünger, Meister"') ...


“Deus, que será de ti quando eu morrer?”
(“ Was wirst du tun, Gott, wenn icb sterbe?"')......... 51
2001 “Tu és o herdeiro” (“Dw bist der Erbe'")........................ 53
“Se bem, como de uma prisão odiada e sofrida"
Todos os direitos desta edição reservados à (."Und docb, obwohl ein jeder uom sich strebt"')..... 55
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
“Durante o dia és o rumor que aflora”
04532-002 — São Paulo — SP (_uBei Tag bist du das Hõrensagen"')........................ 57
Telefone: (11) 3846-0801 “Ali vivem homens, pálida florada”
Fax: (11) 3846-0814 ("Da leben Menschen, weisserblübte, blasse"')........ 59
www.companhiadasletras.com.br

L
ir “Dá a cada um a sua própria morte, Senhor.”
(“O Herr, gieb jedem seinen eignen Tod.") . 61
Oitava elegia (Die achte Elegiè) ,
Nona elegia (Die neunte Elegiè).
133
139

DE O LIVRO DAS IMAGENS DOS SONETOS A ORFEU

Noite de lua (Mondnacht).. 65 LI ... 147


Dia de outono (Herbsttag).. 67 13 ■ ■ 149
Hora grave (Emste Stundè) 69 1:10 . 151
I 14.. 153
11:3 - 155
DOS NOVOS POEMAS II 10 157
II 12 159
Pietà (Pietà). 73 11:13 161
A morte do poeta
[ (Der Tod des Dichters). 75 II 15 163
L’ange du mé léridien (L'ange du méridierí) .77 11.18 165
Morgue (Morguè) ............................................................. 79 11:21 167
—A pantera (Der Panther) .................................................. 81
O unicórnio (Das Einborri)................................................ 83
Sarcófago romano (Rômische Sarkophagè)...................... DOS POEMAS ESPARSOS E PÓSTUMOS
85
O poeta (Der Dichter)......................................................... 87 (1906-1926)
Fonte romana (Rõmische Fontãnè)................................... 89
~ “Ai de mim, que minha mãe me desarvora.”

I
e
Bailarina espanhola (Spaniscbe Tãnzerirl)...................... 91
Orfeu. Eui ("Ach webe, meine Mutter reisst micb ein.").................. 171
jrídice. Hermes (Orpheus. Eurydike. Hermes) 93
“Rosa, ó pura contradição, prazer”
(“Rose, oh reiner Widerspruch, Lust")............................. 173
Baudelaire (Baudelairè)........................................................... 175
DE RÉQUIEM “Um signo no espaço, também isto: a pomba que pousa”
(?Auch dieses ein Zeicben im Raum.- dies
Para Wolf, conde Von Kalckreuth Landen der Taube")........................................................... 177
(Für Wolf Graf Von Kalckreuth).... 101 —> “Meus adeuses, dei-os todos.”
(“Tous mes adieux sontfaits. ”)....................................... 179
“Que calma penetra em nós, que calma”
DAS EIEGIAS DUINENSES (“Quel calme noctume, quel calme")............................ 181
“Caminhos que vão a parte nenhuma”
Segunda elegia (Die zweite Elegiè) (“Chemins qui ne mènent nullepart").......................... ,183
113
Terceira elegia (Die dritte Elegiè)... 119
Quinta elegia (.Die fünj'te Elegiè) .... 125
r
NOTA LIMINAR

Conforme lembra Arnaldo Saraiva em seu estudo Para a


história da leitura de Rilke em Portugal e no Brasil (Porto,
Árvore, 1984), o rilkianismo grassou no Brasil durante os anos
r40-50 e com maior intensidade entre os poetas mais jovens,
para quem o culto do soneto, a invocação dos anjos e o elogip
da morte passou a ser então uma espécie de artigo de credy.
Se a essa moda se deve debitar o saldo negativo de poemas
elegíacos, artificiais e epigônicos, de que hoje poucos lem­
bram, nem por isso se pode deixar de creditar-lhe o saldo
positivo de ter divulgado entre nós a poesia e a prosa desse
extraordinário poeta. Isso graças sobretudo a obras como o
ensaio pioneiro de Cristiano Martins, Rilke: o poeta e a poesia
(Belo Horizonte, Panorama, 1949), e a bela tradução de Dora
Ferreira da Silva, feita diretamente do alemão e acompanhada
de úteis comentários, das Elegias de Dutno (São Paulo, s. i. e.,
1956).
Enquanto poeta, voltado que estava para preocupações de
ordem bem diversa, não me senti nem um pouco atraído pela
moda rilkiana. Mas, espicaçado por ela, fiz naquela época as
primeiras leituras do poeta, em traduções espanholas e france­
sas. Só muitos anos mais tarde, depois de haver adquirido uns
rudimentos de alemão, foi que finalmente pude ter acesso aos
textos originais e com eles confrontar as traduções lidas e
relidas. Como essas traduções se preocupavam apenas com o
sentido literal dos poemas, negligenciando-lhes aspectos for-

9

mais como rimas, metrificaçào etc., veio logo a tentação de


buscar recuperá-los em português. Nasceram assim minhas pri­
meiras versões de Rilke, cujo elenco cuidei de ampliar ulterior-
mente a fim de ter material bastante para uma antologia mini­
mamente representativa. É esse mínimo que o presente volume A LUTA COM O ANJO
busca oferecer àqueles que queiram tomar o primeiro contacto
com a poesia de Rilke. Uma introdução à poesia de Rilke
Escuso-me de aqui repisar aquilo que, na nota liminar à
tradução dos Poemas de Hõlderlin, deixei dito acerca das limi­
tações do meu mudo alemão de autodidata. Restrinjo-me ape­
nas a arrolar, além dos Werke in drei Bãnden (Frankfurt, Insel,
1966) do próprio Rilke, sobre cujo texto foram feitas as versões
aqui recolhidas, as principais traduções que consultei para diri­
mir dúvidas e aclarar obscuridades do original. São elas: Poèmes,
trad. Lou Albert-Lasard, Paris, Gallimard, 1937; Libro de horas, trad. De seu compatriota e coetâneo Rainer Maria Rilke disse o
Marcos Fingerit, La Plata, Cayetano Calomino, 1942; Les élégies romancista Robert Musil que se tratava de “um homem mal
de Duino/Les sonnets à Orphée, trad. J.-F. Angelloz, Paris, 1945; adaptado aos tempos atuais”.' Com efeito, embora tenha sido
Poemas, as Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, trad. Paulo um dos poetas mais importantes do século xx, Rilke nem parece
Quintela, Porto, O Oiro do Dia, 1983 (nova ed.); Les élégies de haver pertencido a ele, peío menos no que diz respeito ao seu
Duino/Les sonnets à Orphée, trad. Armei Gueme, Paris, Seuil, estilo de vida e a certas opiniões bem arraigadas. Os velhos
1972. Foram-me também úteis, como fontes suplementares de castelos onde escolheu escrever parte de sua obra, tanto quanto
cotejo, poemas citados em tradução na bibliografia sobre Rilke > o mecenato aristocrático de que sempre dependeu para prover à
referida nas notas de rodapé da introdução do presente volume. própria subsistência, dir-se-ia que o inculcam uma espécie de
Essa introdução, como as de outras traduções e antologias último abencerragem do Império Austro-Húngaro. De outra par­
que tenho feito, é um trabalho de divulgação, sem nenhuma te, sua confessa aversão ao mundo da velocidade, da máquina e
da produção em série, a que contrapunha a nostalgia de tempos
! pretensão erudita. Contentei-me em compilar e reelaborar em
linguagem mais pedestre informações colhidas na bibliografia avoengos em que a convivência de gerações com os mesmos
ao dispor, entremeando-as de quando em quando com anota­ objetos de uso lhes conferia o que chamava “valor lárico” —
ções pessoais tomadas ao longo do meu convívio com a poesia valor ausente, a seu ver, das modemas coisas “vindas da Améri­
de Rilke. No tocante a fontes bibliográficas, cabe uma palavra ca, coisas vazias, indiferentes" —,2 cheira antes a passadismo do
final de agradecimento aos amigos que prestimosamente puse­ que a modernismo.
ram à minha disposição a maior parte delas: Alberto da Costa e Entretanto, comungaram na mesma nostalgia antiquária ou­
Silva, Antonio Fernando De Franceschi, Fernando Paixão, Massaud tros poetas apicais do século xx, entre eles Pound, Eliot e
Moisés e Rodrigo Naves. ( Kaváfis, cujas obras se comprazem em evocar a magnificência
de épocas pretéritas para mais bem sublinhar a vulgaridade dos

(1) Apud Philippe Jaccottet, Rilke, Paris, Seuil, 1970. p. 5-


(2)) Apud Otto Friedrich Bollnow, Rilke, poeta dei hontbre. trad. espanhola
Uempane, Madri. Taurus, 1963. pp. 198-9.

10 11

i
tempos modernos. Seria, pois, grave erro de perspectiva fazer deixou de pagar tributo ao seu Zeitgçist. Se bem a obra de Rilke
da anuência aos aspectos mais ruidosos e superficiais Bãsõcie- não possa a rigor ser enquadrada em nenhuma escola ou corrente
dade industrial a pedra de toque da modernidade literária de literária específica, é possível nela detectar, pela ordem, traços
Rilke. Situada em nível bem mais profundo, ela tem antes a ver neo-românticos, simbolistas, impressionistas e expressionistas.
com um sentimento do total desamparo do homem no mundo Um exame sumário da sua história de vida para ali situar-lhe, em
e do fundamental absurdo da vida que ele exprimiu sob a diacronia, os livros mais importantes, permitirá destacar melhor a
forma de figurações artísticas, ulteriormente desdobradas em presença de traços que tais.
sistema conceptual pela chamada filosofia da existência. O
luminar dessa filosofia, Martin Heidegger, declarou que, pêlo"
menos no seu caso, ela não era senão"o desenvolvimento 2
lógico do que Rilke exprimira de forma poética^ Se~se tiver em
conta que o pensamento existencialista se desenvolveu à som- René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke nasceu a 4 de
bra das duas grandes guerras mundiais, refletindo “a angústia dezembro de 1875, em Praga, capital da Boêmia, que, sob a
do mundo de então’’,5 é fácil entender por que, ainda que dinastia dos Habsburgo, fazia então parte do Império Austro-
avesso à sociedade de massa do século xx^ Rilke foi um poeta Húngaro. Esse imponente enfileiramento de prenomes? faz pen-
altamente representativo desse século. Ele lhe inovou a’ poesia sar numa ascendência nobre em que os pais de Rilke, e ele
não só no plano dos conteúdos como dos próprios meios de próprio, sempre acreditaram. Julgavam-se descendentes de fidal­
expressão, primeiro com a visualidade dos poemas-coisas cóli- gos da Caríntia cuja história remontava ao século xni; na verda­
gidos nas duas séries dos Novos poemas (1907-8), depois com de, vinham era de uma família da classe média rural.6 Por moti­
as elipses audaciosas da Gédankenlyrik, lírica cfo pensamento vos de saúde, o pai do poeta, Joseph Rilke, tivera de truncar a
de que os Sonetos a Orfeu e as Elegias de Duíno são a suprema carreira militar e contentar-se com um modesto emprego de
realização. funcionário de estrada de ferro. Daí que, ao casar-se com ele,
Mas esses livros-marco da modernidade, que Harry Levin Sophie (ou Phia, como era tratada na intimidade) Entz se sentis­
põe, na “safra milagrosa" de 1922, ao lado do Ulisses de Joyce e de se socialmente diminuída, ela que sempre nutriu ambições mun­
A terra devastada de Eliot,4 não surgiram de um fiat lux. Repre­ danas. Os biógrafos do poeta costumam descrevê-la como uma
sentam a culminação do percurso criador de um solitário que, mulher artisticamente bem-dotada mas emocionalmente instável
obstinadamente voltado para dentro de si mesmo, nem por isso e de uma religiosidade hipócrita. O casal tivera antes uma meni­
na que morrera bebê; quando nasceu o filho, Phia insistiu em
dar-lhe o mesmo nome da primogênita, René, e em tratá-lo
(3) Frase aplicada à obra de Heidegger por Enildo Stein (in Martin Heidegger, como menina. As relações do poeta com a mãe sempre foram
Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril, 1979. p. 3). George Steiner, difíceis, uma contraditória mistura de afinidade e de repulsão
em As idéias de Heidegger (trad. A. Cabral, Sào Paulo, Cultrix, 1982, pp. 123-4), que ele descreveu nas suas cartas a Lou Andreas-Salomé7 e, de
sublinha a atualidade do "diagnóstico de Heidegger da alienação individual na
sociedade moderna e da angústia que é o sintoma e o corretivo dessa 'queda' e
desumanizaçào" e mostra-lhe a importância na criação de "um clima comparti­ (5) Ver "Rainer Maria Rilke”, in Selbstzengnissen und Bllddoktunenten
lhado de angústia e utopia” a que se filia inclusive o néomancimo de Marcuse, dargestellt von Hans Egon Holthnsen, Hamburgo. Rowohli, 1958, p. 7
Lukács e da Escola de Frankfurt. A poesia existencial de Rilke antecipou e inau- (6) Cf. Adrien Robinet de Ciery, Rainer Maria Rilke; sa uie, son oeuure,
gurou esse clima intelectual, quando mais não fosse pelo influxo que exerceu pensée, Paris, plf, 1958. p. 5.
sobre o pensamento de Heidegger. (7) Ver particularmente a de 15 de abril de 1904 em Rainer Maria Rilke/Lou
(4) Apud Malcolm Bradbury e James McFarlane, Modernismo, guia geral Andreas-Salomé Brieftcechsel, ed. Emst Pfeiffer, 2a. ed.. Frankfurt, Insei, 1979.
1890-1930, trad. D. Botunann, Sào Paulo, Companhia das Letras, 1989- pp. 145-6.

12 13
forma ainda mais impressionante, num poema de 1915 (aos sar um certo professor Andreas, orien-
mento, ela preferiu desposs
quarenta anos de idade portanto), “Ai de mim, que minha mãe talista da universidade deí Gôttingen, numa espécie de união
me desarvora”, incluído no presente volume. aberta, já que! continuou a viver tào livre e independente como
Ainda que nas Cartas a um poeta, tanto quanto nos Cader- quando solteiiira. Mais do que a amante, Lou foi a amiga e
nos de Malte Lautids Brígge e ao longo de toda a sua poesia, confidente em quem Rilke, ao longo da vida, encontrou sempre
1 Rflke exaltasse a infância, “essa preciosa, essa magnífica rique- o apoio e a compreensão de que amiúde careceu.12 A ligação
■ za> esse tesouro de recordações",8 a dêlê nàõ parece ter sido entre os dois, que durou cerca de três anos, representou para ele
] particularmente feliz. Ás desavenças entre seus pais, culminadas um rito de passagem entre a adolescência e a virilidade, passa­
na separação do casal quando ele mal contava nove anos, devem gem confirmada por uma mudança de nome. No mesmo ano
ter tido influxo negativo sobre a sua sensibilidade de menino de 1897 em que conheceu Lou, o poeta passou a assinar-se
tímido, sonhador e ensimesmado. Pior ainda foi o tempo cque Rainer Maria Rilke, conforme fez constar nas capas de Coroa
passou, dos onze aos dezesseis anos, em academias militaiires: de sonho (1897) e Para festejar-me (1899), duas coletâneas de
numa carta escrita muitos anos depois a um dos seus professo­ poemas que, juntamente com uma primeira versão dos contos
res de então, Rilke lhe confessa que delas saiu como um “ser de Histórias do bom Deus (1900), integram ainda o que se po­
exaurido, maltratado no corpo e no espírito”.9 deria chamar a sua obra imatura.
Até 1896, quando ingressou na universidade de Munique, Por influência da sua nova amiga e orientadora, Rilke
Rilke fez estudos preparatórios em Linz e Praga. Foi um período abandonou em 1898 os estudos regulares para viajar à Itália e
feliz, no qual teve os primeiros amores e publicou os primeiros conhecer-lhe de perto os tesouros de arte; isso lhe valeu mais
livros, Vida e canções (1894) e Oferenda aos lares (1895). Neles já do que as preleções universitárias a que vinha assistindo. Um
revelava uma inata facilidade de expressão e uma sutil musicali­ ano depois acompanhou Lou numa viagem à Rússia, cujo idiq-
dade aprendida em Heine. Todavia, o neo-romantismo algo cedi­ ma ela dominava e de cuja filosofia, literatura e arte era admi-
ço desses tentames juvenis estava ainda longe de dar a sua verda­ radora. A viagem serviu para acentuar afinidades eslavas que
deira medida de poeta: era o Rilke antes de Rilke de que fala ó poeta já trazia consigo de sua cidade natal, Praga, umbral
Angelloz.10 Stefan George, o grande simbolista alemão, censurou- de passagem entre o mundo ocidental e o mundo eslavo. Na
lhe essas publicações prematuras, que ele mesmo não tardaria a Rússia, visitou Tolstoi, de quem era leitor fiel, e impressionou-se
renegar. até o fundo da alma com a vastidão das estepes, a ingênua e
Em vez de continuar os estudos de direito iniciados em intensa fé dos mujiques, a beleza dos mosteiros e ícones da
Praga, Rilke preferiu cursar história da arte em Munique, onde Igreja Ortodoxa. Tudo isso serviu para confirmar-lhe a inata
teve um encontro decisivo para o seu futuro de homem e de religiosidade, que no entanto nada tinha de ortodoxa. Era e sem­
poeta. Ali conheceu Lou Andreas-Salomé, mulher extremamente pre foi uma busca agônica do divino — no sentido dado por
culta, sensível e de forte personalidade, por quem Nietzsche,
que a considerava “a mais inteligente das mulheres",11 baldada- (12) Num diário de fim de vida, dizia ela em abril de 1934, dirigindo-se a
mente se apaixonara. Em vez de aceitar-lhe o pedido de casa- Rilke, mono oito anos antes: "Se fui tua mulher durante anos foi porque foste
para mim a primeira realidade em que o corpo e o homem eram
indiscemíveis, fato incontestável da própria vida. Eu te poderia dizer, palavra
(8) Citado pela tradução de F. de Castro, Cartas a um poeta, Lisboa, por palavra, o que me disseste ao confessar teu amor: ‘Só tu és real'. Foi assim
Portugália, s. d. que nos tomamos marido e mulher antes mesmo de nos tomarmos amigos, e
>ud Jaccottet, op. cit., p. 20.
(9) Apu_ essa amizade não foi fruto de uma escolha, mas de núpcias clandestinas". Ver
■-F. Angelloz, Rilke, trad. A. Terzaj
(10) J.-F :aga. Buenos Aires, Sur, 1955. p. 47. Lou Andreas-Salomé, Camets intimes des demíères années, trad. J. Le Rider, ed.
-pud A. R. de Clery, op. cit., p. 2<
(11) ApUC E. Pfeiffer, Paris, Hachette, 1983-

14 15
Unamuno à palavra agonia'5 e que Rilke aprendera a admirar coisas, em vez da sua transcendência delas; sob a forma de suces­
em Dostoievski — mais do que passiva e tranqüilizadora ade­ sivas perguntas que equivalem a outras tantas respostas, isso está
são aos dogmas de uma religião estabelecida, qualquer que ela dito em “Se bem, como de uma prisão odiada e sofrida", poema
fosse. de “O livro da peregrinação” onde Ele aparece a viver a vida das
No ano seguinte, ainda em companhia de Lou, com quem coisas, dos ventos, dos ramos, das flores, dos bichos do chão e
então aprendia russo, tomou a visitar o país que considerava a das aves do céu.
sua verdadeira pátria espiritual. Dessas duas marcantes joma- Em “O livro da pobreza e da morte”, que fecha O livro de
das eslavas nasceria a primeira grande obra de Rilke, O livro de horas, o nome de Deus praticamente desaparece para dar pre­
boras, de cujas três partes a inicial, “Õ livro da vida monástica", cedência ao real com que se confunde. Bem representativo
foi escrita no mesmo ano de sua primeira viagem à Rússia, a nesse sentido é o poema em torno da “pálida florada" dos
que se seguiu em 1901 “O livro da peregrinação” e em 1903 “O indigentes enfermos que rondam os hospitais à espera de se­
livro da pobreza e da morte”; todavia, foi só em 1905, quando rem internados para ali morrer “a pequena morte” anônima.
o poeta já residia em Paris, que as três partes foram publicadas Pequena porque não é a culminação de uma vida, e sim sua
conjuntamente. Em O livro de horas, em vez de continuar a final degradação. Inspirado pelo choque que lhe causou o espe­
falar neo-romanticamente dos seus sentimentos, ele faz ouvir um táculo da miséria urbana de Paris, a noção da pequena morte ou
novo tom de voz, “mais objetivo, mais sincero, menos pessoal e morte anônima irá suscitar por sua vez a noção contrária de morte
em certo sentido menos íntimo’'.'4 pessoal, aquela que cada um traz dentro de si como frutcTêm
É já o tom de voz de um simbolista cujo convicto esteticismo lenta maturação. É esse tipo de morte — de que teve o primei­
assumisse inflexões religiosas. Daí os versos de “O livro da vida ro vislumbre nas obras de Jens Peter Jacobsen, romancista di­
monástica" serem apresentados como meditações de um monge- namarquês que muito o influenciou — a que ele pede para si e
artista que pinta ícones. O Deus a quem ele endereça as suas para todos os homens: “Dá, Senhor, a cada um a sua própria
preces não é o Deus delimitado pelos dogmas, mas uma infinita morte,/ a que nasce da vida mesma que vivemos".
Obscuridade que tudo contém dentro de si, ou uma “grande
nave” que os homens se empenham em construir e de que sequer
entrevêem os “contornos futuros”. São pouco ortodoxas estas 3
duas noções — a da futuridade de Deus, não mais portanto o
Verbo anterior ao mundo, e a da sua criação pelos homens (so­ Dificilmente seria de esperar que a fase idílica do relaciona­
bretudo pelos poetas, que para Rilke eram a forma mais alta de mento de duas personalidades tão intensas quanto Lou Andreas-
humanidade),15 em vez de ser o Criador deles. Não menos ortodo­ Salomé e Rainer Maria Rilke fosse durar muito. Ele ressentia a
xa, porque panteísta, é a terceira noção da imanência de Deus nas superioridade intelectual da amante e chegou a escrever no seu
Diário florentino-, “Faz já tempo que meus combates se conver­
13) "Agonia
(13) [...) quer dizer luta. Agoniza o que vive lutando, lutando contra teram em tuas vitórias e é por isso que às vezes me sinto tão
orla vida. E contra a morte. (...) Fé que não duvida, é fé morta. (...) Dubitare pequeno diante de ti".16 Para que se completasse o rito de passa­
contém a mesma raiz, a do numeral duo, dois, de duellum, luta. A dúvida, mas gem de que ela fora celebrante era preciso, pois, que Rilke cui­
a pascaliana, a dúvida agônica ou polêmica." Miguel de Unamuno, La agonia dasse de procurar sozinho seus ulteriores caminhos no mundo
de! cristianismo, Santiago, Cultura, 1937, pp. 13 e 17.
(14) C. M. Bowra, La berencia dei siml
simbolismo, trad. P. Canto, Buenos Aires,
1951. p. 78. da mulher e a criação a do artista, o homem <que não seja artista deve ter uma
(15) A propósito cita Angelloz (op. cit., p. 56) um trecho do Diárioflorentino religião (...) A religião é a arte dos que nadai criam".
de Rilke onde ocorrem estas frases reveladoras: "Se a maternidade é a religião (16) Apud J.-F. Angelloz, op. cit., p. 58.

16 17
dos homens. Em 1900, ele se afasta de Lou para, atendendo ao Numa carta a Paula Modersohn-Becker (ela já estava então casa­
convjte do pintor Heinrich Vogeler, que conhecera em Florença, da com o pintor Otto Modersohn), Rilke explica a sua idiossin-
ir visitá-lo em Worpswede. Nessa aldeia do norte da Alemanha, crásica concepção de amor e casamento: "eis o que considero o
entre Bremen e Hamburgo, estabelecera-se uma colônia de pin­ mais alto objetivo da união entre duas pessoas: que cada uma
tores e escultores ligados ao Jugendstil ou Estilo-juventude, a delas resguarde a solidão da outra. [...] é tarefa do amor e da
versão alemã do art nouveau. Ao voltar-se para a natureza, os amizade prover constantemente as oportunidades para isso”.1B
pintores do Jugendstil não buscavam fixar-lhe impressionistica- Com o fito de resguardar a sua própria solidão, que julgava
mente as vibrações luminosas das cores mas sim captar-lhe os indispensável ao trabalho de criação poética, e a pretexto de eco­
ritmos vitais através da estilização, em formas claramente cir­ nomia, ele decide ir viver como solteiro em Paris, onde chega em
cunscritas, dos objetos naturais, estilização que os levaria amiú- 1902. Outra razão que lá o levava era conhecer as obras de Rodin,
de ao arabesco ornamental. Para Rilke, tão interessado nas artes z por quem tinha admiração quase idolátrica e sobre quem preten­
plásticas, foi decisivo esse contacto com elas no seu processo dia escrever uma monografia. Como Clara Westhoff havia sido
I artesanal de criação, pois que até então só as conhecera sob a aluna de Rodin, isso facilitou a aproximação. O escultor recebeu
forma dos produtos acabados do museu, do templo e da praça benevolentemente o poeta, a ponto de o convidar para ser seu
pública. Ele escrevería inclusive um livro sobre o trabalho dos secretário particular. Rilke desempenhou escrupulosamente essa
artistas de Worpswede e, segundo Victor Hell, épossível rastre- função até o momento em que o excesso de trabalho começou a .
ar, na sua poesia, traços do Jugendstil: assim cómo os pintores obstar-lhe a dedicação à sua própria obra. Á iniciativa do rompi­
desse estilo “corriam o risco de comprazer-se na ornamentação”, mento coube ao empregador, que tratou seu ex-secretário com
também ele, Rilke, se deixou às vezes “seduzir pelo seu poder uma rudeza que a admiração deste por seu gênio soube no entan­
sobre as palavras, recorrendo a imagens peregrinas ou a torneios to desculpar-lhe. A monografia sobre Rodin saiu publicada em
preciosos”17 de linguagem. De tais imagens e torneios não estão 1903 e logo na página de abertura Rilke inscreve a sua famosa
I I isentas sequer certas passagens das Elegias duinenses e dos So­ definição da glória como “a soma de todos os mal-entendidos que
netos a Orfeu. se formam ao redor de um novo nome’’.19
Em Worpswede Rilke manteve relações de amizade íntima Embora sejam muito diversos entre si os materiais com que
com duas jovens artistas, a pintora Paula Becker e a escultora escultor e poeta trabalham, a arte de Rodin exerceu uma in­
Clara Westhoff. Aliás, os biógrafos do poeta são unânimes em fluência de ordem artesanal e estrutural sobre a arte de Rilke,
acentuar-lhe, como traço marcante, o pendor para as amiza­ influência que seria logo depois aprofundada pela da pintura
des femininas, que preferia às masculinas. Embora igualmente de Cézanne. Numa carta a Lou Andreas-Salomé contava-lhe
atraído pelas duas moças, ele acabou se decidindo por Clara Rilke: “Tive a certeza de que devia seguir Rodin, mas na orga­
Westhoff, a quem desposou em 1901- O casal se fixou em nização interna do processo artístico”.20 Dele aprendeu o poeta
Westerwede, numa casinha alugada, onde pelo Natal lhes nasceu a lição da visualidade (“aprendo a ver”, diz Malte Laurids Brigge21
uma filha, Ruth. Todavia, quando o pai de Rilke avisou o filho pouco depois de sua chegada a Paris), a lição do trabalho (na
de que iria suspender a mesada que lhe mandava regularmente,
este se viu sem mais recursos para sustentar a sua pequena (18) Apud Amold Bauer, Rainer Maria Rilke, trad. U. Lamm, Nova York,
família. De resto, para quem decidira dedicar-se integralmente à Frederick Ungar, 1972, p. 34.
(19) Ver Rainer Maria Rilke, Augusto Rodin, trad. R. Ledesma, Buenos Aires,
poesia, encargos dessa natureza só podiam ser um estorvo.
Ateneo, 1943, p. 31.
(20) Ver Briefivechsel, cit. na nota 7, p. 13-
(17) Victor Hell, Rainer Maria Rilke, existence humaine et poésie orphique, (21) Os cadernos de Malte Laurids Briggé, trad. P. Quintela, 3* ed-, Porto, O
Paris, Plon, 1965, p. 58. Oiro do Dia, 1983, p. 30.

18 19
carta recém-citada, Rilke transcreve o lema rodiniano do ilfaut ticismo de quem escolhera “afeiçoar a .sua yida_a uma obra de
travailler toujours) e sobretudo a liçào da forma: p contorno arte’’.25 Daí exemplificarem à maravilha aquilo que Malte Laurids
nítido e preciso dos Novos poemas lembrará mais a concretude Brigge considerava como versos dignos do nome: os que re­
da_ escultura e da pintura que a vaguidade da música, a qual sultam não de “sentimentos_(esses têm-se cedo bastante)”
prepondera ainda em O livro das imagens (1902). Com a sutile- x mas de “experiências".2'1 Nesse sentido, os Novos poemas ês-
za de suas sonoridades e sugestões, pelo menos dois dos poe- tâo eqüidistantes do transbordamento sentimental dos român­
mas desse livro (no qual Arnold Bauer vê com razão "muito ticos e da empobrecedora impassibilidade dos parnasianos.
impressionismo’’)22 são considerados dos mais belos jamais es- : São o registro das impressões produzidas põr um “estado dê',
critos em alemão: “Noite de lua" e “Outono". Por sua vez, "Hora pura receptividade, condição verdadeiramente estética”25 ao 1
grave” correu mundo como lapidar expressão daquilo que um espetáculo das coisas, impressões que se tornaram parte doÚ
poeta brasileiro chamaria de “sentimento do mundo" — a .per­ próprio contemplador e que lhe enriqueceram o ser. Mas estaM
cepção de que ninguém é uma ilha e de que a dor, o riso e a palavra impressões nãp deve levar à idéia de. que os Novos
mortetêm sua razão de ser como vínculos da unio mystica do poemas sejam obras ilustrativas do chamado impressionismo
I um com o outro e de ambos com todos. literário. Se Josse mister algum rótulo, conviría antes chamar-
Mas antes dos Novos poemas, Rilke deu à estampa a mais lhes expressionistas, já que há no caso, como observa Victor
popular das suas obras, um breve poema em prosa no qual Hell, “uma íntima fusão do mundo sensível com o mundo /'
narrava a morte em combate contra os turcos, após a primeira interior do artista cujo ritmo comum nos é revelado pelo
noite de amor, de um jovem e suposto antepassado seu do Kunstding (objeto de arte)”.26 O poeta não apenas vê as coisas
século xvii. A canção de amor e morte do porta-estandarte Cris­ mas assume a própria interioridade delas. Mais tarde, Rilke irá
tóvão Rilke (1906) versa embrionariamente dois paradigmas de desenvolver o conceito de Weltinnenraum ou espaço interior
plenitude humana mais tarde desenvolvidos nas Elegias do mundo, lugar de encontro da interioridade do homem com
duinenses e nos Sonetos a Orfeu. Um é o do herói que realiza o a interioridade das coisas; é graças a esse encontro que o
seu ser no enfrentamento do perigo e da morte como imperati­ homem, melhor dizendo, o poeta, pode assumir a tarefa de
vos do seu destino; o outro, o dos que, escolhidos pelo mesmo dizer as coisas, as quais, destituídas de voz própria, pedem
destino para morrer jovens, perecem no auge da sua vitalidade, para ser ditas por ele.
x com o que vida e morte se confundem exemplarmente num
continuum onde entre aquém e além não vige a separação de­ (23) Amold Bauer, op. cit., p. 38.
preciativa instituída pelo ultratumularismo cristão. Mas estas im­ (24) Op. e ed. cit.. p. 41.
plicações metafísicas não ressaltam ainda na Canção de amor e (25) C. M. Bowra, op. cit., p. 81.
morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke, cuja aura romântica (26) Victor Hell. op. cit., p. 116. Diametralmente oposta é a posição de Walter
Falk que em Inipresionismo y expresionismo (trad. M. B. Heimerle, Madri,
seria antes a responsável pelo seu extraordinário sucesso de Guadarrama, 1963) propõe a imagem do ator para caracterizar a essência do
público: em 1919 já tinham sido vendidos 180 mil exemplares, e homem impressionista". O ator, ao assumir o "sublime" do texto poético, trans­
reedições e traduções para numerosos idiomas seguiram-se forma-se a si mesmo e ao mundo cotidiano a que pertence, em "algo superior e
ininterruptamente. inefável, converte-se na porta do mysterium'. Esse seria o caso de Rilke, para
Falk um tipico representante do homem impressionista. Em contraposição,
A primeira série dos Novos poemas foi publicada em 1907
Kafka o seria do homem expressionista, cuja imagem é o animal, que aparece
e_a segunda no ano seguinte. Ding-Gedichte, poemas-coisas <1 " ” ‘ do Câren.e * Steríade e
ou poemas visuais, são eles a mais refinada floração do este- "abandonado ao domínio de um obscuro poder", o animal não tem capacidade de
realizar o ato de transformação do ator. Ver em especial o capítulo "Caracteres
(22) Op. cit., p. 42. esenciales dei impresionismo y dél expresionismo" no livro de Falk.

20 21
Talvez se possa entender melhor tal ponto vendo como o qualquer forma de permanência. Esta idéia-chave da antropo­
ilustram alguns dos Novos poemas trazidos em tradução para logia existencial de Rilke será por ele desenvolvida mais tarde,
este volume. Em “A pantera” — peça cTaprès nature que é especialmente na Oitava Elegia e na peça n:13 dos Sonetos a
uma das melhores realizações de Rilke e que ele escreveu Orfeu.
seguindo o conselho de Rodin de ir ao Jardim Zoológico para Mas do seu expressionismo fala ainda mais eloqüentemente
aprender a ver —, o animal enjaulado não é descrito de fora, “Morgue”, que lembra a objetividade necroterial de Gottfried
mas de dentro, na sua própria essência, a bem dizer. Atente-se Benn, o mais representativo dos poetas expressionistas de lín­
outrossim, em “Fonte romana”, para a alusão às ondulações gua alemã. “Morgue" se insere na linhagem de “La charogne”.
concêntricas que a| queda da água da bacia superior provoca Este poema de Baudeíaire impressionou Rilke profundamente,
na água em repouso da bacia inferior, a qual se abre “sem levando-o à percepção de que a artê~só podia ser verdadeira e 1
nada de nostálgica círculo após círculo". Victor Hell assim universal na medida em que aceitasse a totalidade da vidã?-/ \
lê a alusão: inclusive seus aspectos mais repulsivos e terríveis. Pelo poder
As ondas se propagam silenciosamente, com graça e ligeireza, de impacto, “La charogne” como que resumia o choque
porque nada as detém nem elas sào prisioneiras da nostalgia. O revelador do seu encontro corrífParis, a grande metrópole mo-
homem deve separar-se do seu meio, romper as forças que tendem derna que o fascinara e assustara, a um só tempo, com os
a encerrá-lo, vencer uma forma de amor que lhe aliena a liberdade. espetáculos de miséria e doença encontrados a cada passo,
Esse é o sentido que Rilke dá à parábola do Filho Pródigo nos num contraste brutal com a frivolidade e o luxo mundanos que
Cadernos de Malte Lauríds Brigge. Nossas próprias experiências eram a marca de fábrica da Cidade-Luz. Tais impressões estão
nos ensinam que a vida não é mais do que uma sequência de registradas em cartas à sua esposa, a Lou Andreas-Salomé e a
separações; que deveriamos viver segundo a imagem dessas ondas outros correspondentes. Aliás, Rilke foi um epistológrafo com­
sucessivas.2’ pulsivo: calcula-se tenha deixado cerca de 1Õ mil cartas, que
Uma leitura desse tipo, poder-se-ia objetar, atribui ao texto são um fundamental subsídio para o melhor conhecimento de
significações arbitrárias que não estão nele, mas são projeções suas idéias e de sua vida.
da interioridade do leitor ou exegeta. Tal objeção esquece que, As contraditórias impressões de Paris o estimularam, po-
no expressionismo, a interioridade do próprio artista ostensi­ rém, a escrever seu mais importante texto em prosa, Os cader­
vamente transborda — e o verbo é mais do que apropriado nos de Malte Lauríds Brigge (1910). O protagonista desse estra­
quando se está falando de fontes — na exterioridade da repre­ nho romance — cuja composição em mosaico mistura à
sentação, a ponto de conduzir à deformação expressiva das for­ outridade do ficcional lembranças de infância, vivências pes­
mas naturais. No caso de um expressionista tão “sutil”27a quanto soais e considerações teóricas do próprio romancista — é um
Rilke, isso aflora muito discretamente no adjunto “sem nada de jovem e empobrecido fidalgo dinamarquês que vem viver êm
nostálgica” que marca, dentro do texto, o transbordamento da Paris a experiência da descoberta de si e dq sentido da vida e
interioridade. Por isentas de nostalgia, ou seja, de apego ao y da morte. Na figura de Malte Laurids Brigge, fundida no molde
que fica para trás, as ondulações progressivas da fonte podem dos protagonistas de Jens Peter Jacobsen, Rilke pôs muito de
ser pertinentemente lidas como símbolo daquela serena aceita­ sL~Êmbora não se possa considerá-lo um seu alter ego em
ção do cqntinüãdõ^despedir-se que éHmpostõ ao homem por sentido estrito, pela pena de Malte veiculou ele convicções e
sua própria condição de ser transitório, proibido de aspirar a perplexidades acerca de Deus, o amor, a morte, a arte; alguns
dos seus mais arraigados terrores e angústias; e muitas das suas
(27) Victor Hell, op. cit., p. 119. impressões visuais de Paris, cidade a que sempre permanecerá
(27a) Id., ibidem. sentimentalmente ligado.

22 23
4 suicídio porque vem interromper a maturação do fruto da morte
pessoal. Verbera igualmente os poetas que ‘‘usam a linguagem
Havia em Rilke uma espécie de compulsão de ambulatória das queixas [...1 em vez de austeramente fazerem-se em pala­
que nào o deixava esquentar lugar, fera como se estivesse sem­ vras" para com isso, a exemplo dos canteiros das antigas câtê-
pre à procura do sítio mais favorável aos surtos de inspiração tf drais que assumiam a “serenidade da pedra”, alcançar a salva­
dos quais, mau grado o credo de trabalho sistemático aprendi­ ção. O verso famoso com que termina o réquiem por Kalckreuth
do de Rodin, dependia na sua criação poética. Mesmo durante — “Quem fala em vitórias? Suportar é tudo" — preconiza a
o período parisiense, passou J>oa parte dele viajando. Isso gra­ serena aceitação do destino, o mesmo destino que dá a cada um
ças ao apoio financeiro de mecenas da aristocracia que, atraí­ sua morte pessoal.
dos pelo seu gênio poético, sua personalidade carismática, sua Em 1912, de volta de uma viagem pelo norte da África, onde
aura de mestre espiritual e seu prestígio literário, formavam-lhe se impressionou particularmente com as antiguidades arqueoló­
um círculo à volta. Círculo que jamais o impediu de cultivar a gicas do Egito e o seu culto dos mortos, Rilke passou alguns
^solidão^.de que tanto precisava e que defendia ferozmente con­ meses em Duíno, propriedade da princesa Thurn und Taxis?”
tra as intrusões mundanas, Entre os mecenas de Rilke estava o •* Duíno era um castelo medieval no alto de uma península sobre
barão Von Heydt, que lhe deu, a ele e à esposa, assistência finan­ o Adriático, que foi destruído por obuses durante a Primeira
ceira em Paris. Grande Guerra. Ali viveu Rilke um momento epifânico. Certa
De 1902, ano que marca o início da fase dos Novos poemas manhã de janeiro de 1912, durante seu passeio matinal, julgou
e de Os cadernos de Malte Laurids Brigge, a 1912, ano em que ouvir no rugir do vento uma voz que lhe bradava interrogativa-
principia a escrever as Elegias duinenses, o poeta viajou muito. mente: “Quem, se eu gritasse, me escutaria entre as hierarquias
Em companhia de Clara, passou uma temporada na Itália, onde, dos anjos?”. Tomou nota por escrito dessas palavras e de al­
impressionado por um bronze grego visto em Nápoles, escreveu guns versos que em seguida lhe ocorreram: de noite, estava
“Orfeu. Eurídice. Hermes”, peça dos Novos poemas que é o em­ pronta a Primeira Elegia duinense; dias mais tarde, a Segunda.
brião do futuro ciclo de Sonetos a Orfeu. A convite de Ellen Key, A Sexta foi escrita em fins do mesmo ano em Toledo, cidade
autora de um livro sobre ele, fez logo depois uma série de con- mística e barroca pela qual se sentiU de pronto fascinado, e a
ferências na Suécia; aproveitou a viagem de volta para conhecer Terceira em Paris (1913). Embora Rilke já tivesse uma visão pré­
a Copenhague de Jens Peter Jacobsen, cuja obra admirava a via do plano de conjunto das Elegias duinenses, custou-lhe mui­
ponto de aprender dinamarquês para poder traduzi-la; dessa to rematá-lo. Além das elegias supracitadas, só conseguiu escre­
mesma língua verteu também Kierkegaard, que o influenciou, ver mais uma, a Quarta, em 1915. As demais permaneciam em
acentuando certos pendores existencialistas do seu pensamento estado de fragmentos ou esboços; ele cogitou inclusive de publi­
poético. Fez outrossim várias visitas a Capri e turnês de confe­ cá-las assim, do que foi dissuadido pela princesa Thum und
rências pela Alemanha e Áustria. No mesmo ano de 1909 em Taxis.
que publicou o Réquiem, conheceu a princesa Marie von Thum De 1908 até o fim da vida, Rilke pôde contar com o apoio e o
und Taxis, a qual iria ser uma de suas mais íntimas e solícitas estímulo de seus editores alemães, Anton e Katharina Kippenberg.
patrocinadoras; a ela dedicaria as Elegias duinenses. Esta chegou a escrever um livro em que registra lembranças do seu
O Réquiem se compõe de dois poemas, o primeiro inspira­ convívio com o poeta. No primeiro capítulo desse livro, há um bom
do pela morte repentina de sua amiga Paula Modersohn-Becker, retrato falado dele:
e o outro pelo suicídio de um conhecido seu, o jovem poeta
Kalckreuth. Com glorificar a morte em ambos os poemas como Rilke nào era alto, tinha membros delicados, uma cabeça estreita e
culminação, e não negação, da vida, Rilke verbera no segundo o alta. Sua cabeleira, de um castanho escuro, alongava-se ondulosa.

24 25
Seus olhos [...] grandes, de um azul-claro como às vezes os olhos das por longo tempo o atormentara e completar as suas Elegias
crianças, pareciam ser o véu que serve para proteger o que se quer duinenses. Um frenesi de inspiração possibilitou-lhe não só
manter em segredo. De sua barba chinesa, a enquadrar-lhe loura e terminá-las em poucos dias como escrever os dois ciclos dos
rala a boca, tem-se falado com graça. O nariz era extremamente Sonetos a Orfeu. Serviu-lhe de incentivo, nessa época, o exem-
espiritual e via-se que suas narinas eram tào sensíveis como as de '/ pio de Paul Valéry, poeta de sua admiração que inclusive o
um legítimo cào de caça.2” visitou em Muzot. Valéry passara cerca de vinte anos sem escre­
As relações dos Kippenberg com o poeta foram menos de ver poesia e, quando voltou a escrevê-la, realizou a parte mais
editores que de amigos; deles recebia regularmente adianta­ importante de sua obra.
mentos de direitos autorais, amiúde bem acima do que lhe era
devido.
Durante os anos de nomadismo pela Europa e o norte da 5
África, duas mulheres passaram pela sua vida de celibatário
I amigo da solidão que, casado ainda com Clara, só de raro em No caso das Elegias duinenses e dos Sonetos a Orfeu, é lícito
raro a via e à filha Ruth. Uma dessas mulheres, Marthe, era uma ' falar de poesia metafísica, mas não no sentido restritivo com que
jovem prostituta que encontrara faminta nas ruas de Paris e a o epíteto foi usado pelos primeiros críticos de Donne, ou seja,
quem amparou e educou. A outra uma pianista austríaca, Magda, como sinônimo de obscuro, conceituoso, rebuscado. Ainda que
chamada por ele Benvenuta nas cartas que com ela trocou. A rela­ certos torneios dessas duas obras capitais de Rilke possam ser
ção do poeta carecido de uma afeição compreensiva com a pia­ assim eventualmente qualificados, o caráter metafísico delas de­
nista interessada antes no sucesso mundano (mas a quem cabe corre antes do modo por que ali se articulam pensamento e x
pelo menos o mérito de tê-lo iniciado na música moderna) ter­ sensação. Modo que T. S. Eliot caracterizou bem quando, a
minou em ressentimentos de parte a parte. propósito de Chapman, falou de “uma apreensão direta e sensí­
Os anos de guerra, passados na Alemanha e na Áustria, vel do pensamento, ou. recriação, do pensamento, em sensação”,
foram anos difíceis para Rilke. A onda de barbárie e destruição e quando contrapôs Donne a Tennyson e Browning. Estes dois
que se abateu sobre a Europa inteira, num dramático desmenti­ últimos, embora fossem poetas e pensassem, “não sentiam seu
do dos seus foros de civilização, amargurou-o profundamente. pensamento com a imediatez do perfume de uma rosa”, ao
Convocado para o serviço militar, passou algumas semanas em passo que para aquele um pensamento “era uma experiência,
barracas de campanha. Por questões de saúde, foi depois trans­ modificava-lhe a sensibilidade”.29
ferido para o serviço burocrático. Após o Armistício, fixou-se Algo parecido se poderia dizer do autor das Elegias
na Suíça alemã. Lá fez uma série de leituras públicas de seus duinenses e dos Sonetos a Orfeu. Se naquelas e nestes, à seme-
versos que alcançaram grande êxito. Lá teve também um caso lhança do que acontece na linguagem conceptual dos filósofos,
amoroso com a pintora Baladine Klossowska (Merline). Ela o as palavras abstratas preponderam sobre as concretas e adqui­
ajudaria a instalar-se em Muzot, uma velha torre castelã situada rem amiúde significado diverso do que lhes dá o uso comum, xj
no cantão de língua francesa que lhe fora generosamente posta nem por isso há menos poesia. Só que esta se move o tempo
à disposição por outro mecenas, Werner Reinhardt. todo no âmbito da imanência: a Gedankenlyrik de Rilke não se
Em Muzot, no começo de fevereiro de 1922, pôde Rilke ocupa nunca de idéias filosóficas anteriores e externas à y
finalmente superar um sentimento de impotência criadora que mentação poética. Como diz Bollnow, nela “pensar e poetizar

(28) Katharina Kippenberg, Rainer Maria Rilke: un témoignage, trad. B. (29) T. S. Eliot, “The metaphysical poets", Selected essays, Londres, Faber and
Briod, Paris, Plon, 1944, pp. 7-8. Faber, 1949, pp. 286-7.

26 27
não estão ainda cindidos como possibilidades distintas, [...] a poe­ o tempo '<-> aabsoluto”;33 para Bollnow, seres hipotéticos que; servem
sia como tal é também uma fomia do pensamento".30 Rilke não foi “para dest
-vstacar com maior clareza a maneira de ser do hor imem”;34
buscar os conteúdos metafísicos de seus versos a nenhuma dou­ e para o próprio Rilke, na carta que escreveu ao tradutor fpolo-
trina filosófica, mas extraiu-os de sua própria experiência de mun­ nês das suas Elegias, criaturas em o» que “a transformaçâc io do
do, donde aplicar-se no caso o conceito eliotiano do pensamento nprida”, donde serem terrí-
visível em invisível [...] aparece já cumpr
ligado à imediatez sensível da experiência. Assinala Norbert veis “para nós, suspensos ainda no visíve zel”.35 Falk precisa melhor
Fuerst, nas Elegias, uma tensão “entre os conceitos universais que esta última conceituaçào quando distingue re, na hierarquia exis-
constituem os seus temas e as situações altamente pessoais em tencial rilkiana, o modo de ser-intensivo <do anjo do modo de
que se corporificam", e é por via dessa tensão que a técnica ser-íntimo dos animais e do modo de ser-consciente do ho­
poética de Rilke mostra "uma particular proficiência em concreti­ mem.36 Compreender-se-âo melhor tais distinções no próprio
zar o abstrato”.31 Restaria ainda sublinhar que a lírica de pensa­ contexto das Elegias.
mento rilkiana é antropocêntrica: está voltada por inteiro para a Conquanto estas não formem um sistema cuja estrutura sim-
condição humana, ao entendimento de cuja essência e de cujo bólico-conceitual se fosse progressivamente desenvolvendo de
lugar no Todo se aplica. Daí não estranhar as afinidades da espe­ uma para a outra, pode-se perceber que, a despeito de não
culação fenomenológico-existencial, enquanto filosofia do ser, haver um fio explícito de coerência a ligá-las argumentalmente
com essa precursora “poesia do ser”. entre si, cada uma delas privilegia, no nível temático, um deter- \
< Nas Elegias duinenses, como ocasionalmente o fizera antes minado grupo de idéias e/ou figurações-chave. O somatóridX
em “Orfeu. Eurídice. Hermes” e no Réquiem, Rilke troca o desses grupos, compõe a cosmovisão da poesia de Rilke. Aliás, ;
verso regular e rimado, que sempre privilegiara, pelo verso a Primeira Elegia pode ser vista como uma espécie de antecipa- i
livre. Um verso discursivo cujo ritmo nervoso, marcado pela ção desse somatório, já que enumera Leitmotive das subseqüen-
freqüência do enjambement, está a serviço não das certezas de tes: a terribilidade do Anjo; o desamparo existencial do homem;
uma doutrina fechada no seu círculo de silogismos mas dos a missão celebratória do poeta; as amantes abandonadas; os he­
anseios e angústias de uma sensibilidade aberta para o mistério róis; os mortos precoces; a continuidade entre a vida e a morte; o
da existência. Verso homorgânico de uma ampla visada que mito da origem da música (e da poesia).
pretende abarcar a totalidade do ser-no-mundo, do Terrível ao A Segunda Elegia contrasta a permanência e plenitude , do
Radioso. Curiosamente, estes dois extremos são ambos repre­ ser do anjo que, como o espelho, haure de volta a beleza que
sentados, na simbólica das Elegias, pela mesma figura do Anjo irradia, com o ser efêmero, e como tal volátil, do homem, mais
k acerca da qual tanta tinta hermenêutica tem corrido. volátil do que as coisas — árvores, casas — que permanecem
Não se trata, isto é certo, do anjo das Escrituras, o benigno depois dele. Às vezes, na intensidade do seu amplexo, os aman­
mensageiro do Senhor que apareceu a Tobias e a que se refere tes chegam a ter um vislumbre da pura duração ou permanência
a Segunda Elegia, tào-só para efeito de contraste, pois já disse­ angélica; todavia, perdem-no ao se comprazer no desfrute um
ra no seu verso de abertura: “Todo anjo é terrível”. Para Bowra,
■f do outro. À ilusão do comprazimento amoroso contrapõe Rilke o
os anjos de Rilke “exprimem o absoluto da inspiração poética”;32 lúcido comedimento e autodomínio das figuras esculpidas pelos
para Kassner, são os “filhos das núpcias do espaço absoluto com gregos. Estes, cônscios de sua finitude, chegaram a um equilíbrio

(30) O. F. Bollnow, op. cit., pp. 19-20. ;:t;t, op. cit., p. 156.
(33) Apud1 Philippe Jaccottet,
(31) Norben Fuerst, Phases ofRilke, Bloomington, Indiana up, 1958, pp. 152- (34) O. F. Bollnow,
1 op. c:it.. p. 157.
(35) Apud1 J.-F.
. Angelloz, op. cit., p. 238.
(32) C. M. Bowra, op. cit., p. 99. ír Falk, op. cit., p. 64.
(36) Walter

28 29

i f
apolíneo que falta ao homem moderno, presa do desat . jamparo. A Quinta Elegia versa o tema de um quadro de Picasso, Os I
Nas esteias áticas, o gesto afetivo era representado porr um leve saltimbancos, que causara funda impressão em Rilke. Esse qua- í
J. toque de mão no ombro, tão leve quanto o toque de ade leus. Pois, dro de 1905 assinala a passagem do pintor, do pessimismo da
ser transitório que é, o homem não pode ter apegos, seqi ]uer amo- sua fase azul, para a fase rosa, mais serena e autoconfiante. No
roso, mas deve estar sempre pronto para, sem nostalgia, desj spe- entanto, as acrobacias dos saltimbancos vão servir a Rilke para
dir-se a cada momento de algo ou de alguém. Esse tema do figurar, em clave de negação, a vacuidade da arte enquanto
v adeus existencial sera lapidarmente versado num dos Sonetos a simulação malabarística, mas grosseira, da vida. O por assim
Orfeu (n:13), conforme se verá mais adiante. dizer preciosismo de certas metáforas do poema como que lhe
O tema do amor é retomado na Terceira Elegia, mas agora reflete isomorficamente, no plano da dicção, o viés crítico do
de uma perspectiva sombria a que não parecem ser de todo seu tema. Metáforas como a do gasto tapete sobre que traba­
estranhas as noções psicanalíticas de libido e inconsciente, das lham os acrobatas, comparado a “um emplastro aplicado à terra"
quais Rilke tivera notícia através de Lou Andreas-Salomé, amiga machucada pelo “céu dos subúrbios"; ou a sensualidade do corpo
de Freud. Essa elegia ressalta, na paixão amorosa, o obscuro e da jovem acrobata comparada a “uma fruta de impassibilidade"
assustador estrato dos instintos a encadearem o homem à sua que, depois de pesada nas “balanças do equilíbrio” formadas
ancestralidade mais primitiva. Paradoxalmente, é a ternura amo­ pelos ombros do homem que a sustenta, é mercadejada em praça
rosa da amada que desencadeia nele o “fluxo das origens”, os pública. Mas a metáfora mais elaborada é a de o grupo >o de
impulsos animalescos incônscios que dele se assenhoreiam na saltimbancos formarem a figura da “grande inicial maiúsculaa do
excitação erótica. Tampouco a ternura protetora da mãe, cuja estar-aí”. Trata-se do D da palavra alemã Dasein, “existência”,
presença afasta os terrores noturnos do quarto do filho, conse­ decomponível em Da, “lá”, e Sein, “estar". Ao se fingirem, nas
gue evitar que o “caos a borbulhar" nas trevas do seu incons­ suas acrobacias, libertos do peso que junge os demais homens
ciente volte a assediá-lo assim que ele é vencido pelo sono. Os à terra, os saltimbancos simbolizam uma falsificação do destino
pólos da carnalidade e da idealidade, mediados pela figura da humano. Isso porque, dos entrelaçamentos de seus corpos e
mulher enquanto amada e mãe, são figurados na simbólica da dos seus sorrisos mecânicos, estão ausentes a dor, o amor e a
Terceira Elegia por oposições bem marcadas, como a selva dos morte reais. No entanto, a dor transluz nas duas lágrimas do
instintos ancestrais contraposta ao jardim da domesticidade jovem atleta, as quais lhe desmentem o sorriso estereotipado.
amorosa, ou como o Deus-Caudal, Senhor do Desejo, Netuno Pede o poeta ao anjo que preserve esse doloroso sorriso numa
do sangue contrastado com os “astros puros". Por sua vez, a uma com a inscrição “O sorriso salta”, à guisa de erva medici­
função aplacadora e protetora da mulher em relação ao ho­ nal para abrandar a dor humana. Tanto o jovem como a jovem
mem avulta e se reitera no imperativo “Guarda-o” do verso acrobata só poderão ser autênticos num lugar conhecido ape­
i I final. O imperativo é aliás a marca gramatical do pendor Z nas dos anjos onde, “rodeados da inumerável ..multidão dos
admonitório das Elegias, que não só alternam indagações e mortos silenciosos, realizarão as grandes figuras do amor hu­
afirmações acerca da condição do homem como lhe propõem mano e da alegria humana”.37 A esse lugar opusera Rilke pouco
normas de conduta, donde poder falar-se no caso de poesia antes o ateliê da chapeleira Madatne Lamort, Madame Morte,
doutrinai, tomado o adjetivo com o devido grão de sal. que, ã semelhança dos chapéus baratos que e> vende, propicia a
A Quarta é considerada, pela maioria dos seus comentadores, morte anônima dass grandes cidades pintada
pintí no começo dos
como a mais obscura e amarga das Elegias. Seu tema central é Cadernos de Malte Lauríds Brigge.
a falta de sentido ou absurdo da vida humana, decorrente de o
homem, cônscio de si e da sua mortalidade, ter se alheado da (37) J.-F. Angelloz nos comentários à sua tradução de Duíneser Elegieti/Die
unidade cósmica, à diferença dos animais. Sonette an Orpheus, Paris, Aubier, 1945, p. 123.

30 31
A Sexta Elegia está centrada na figura do herói. Contraria­ efêmero dos seres, só ele pode, pela nomeação, salvar as coisas '
mente ao acrobata que se dispersa em malabarismos, o herói se da transitoriedade. Como já se teve oportunidade de ver, através I
entrega por inteiro à causa que o empolga e que se confunde do Weltinnenraum, espaço interior compartilhado pelas coisas
com o seu próprio destino. com o homem e um dos conceitos-chave da antropologia poético- í
A Sétima Elegia é um canto de louvor à vida, a vida comum existencial de Rilke, é-nos dado dizer as coisas como elas "nunca '
de todos os homens. Na terra, não em nenhum céu ou além, é pensaram ser no íntimo". Cumpre ao poeta, através da louvaçào
que estão as possíveis respostas para as perplexidades humanas. ou celebração do terrestre, mostrar ao anjo “a coisa simples que J
Mas é bem de ver que o mundo só ganha permanência no afeiçoada de geração a geração/ vive como nossa, próxima da
espaço interior que compartilha com o homem. Aí, nesse plano mão e dentro do olhar". Ou seja, transfigurar a efemeridade do
,c invisível da imaginação, da memória e da arte, os criadores visível na permanência’ do invisível.
podem preservar a beleza e o fulgor da vida. Fuerst resumiu bem a jubilosa terrenalidade dessa elegia
Na Oitava Elegia Rilke contrasta o modo humano de ser do quando disse dela:
homem com o modo animal. Em nosso ser consciente, sujeito Após a melancólica Oitava, a Nona retoma o louvor-malgrado-
e objeto se separam um do outro, pelo que estamos sempre tudo. Principia com o eterno conflito de Rilke entre a sua vida e
“de frente” para o mundo e não mais dentro dele. A consciên­ a sua arte, e a solução evidentemente é a de que a vida quer ser
cia de sermos mortais é também consciência do tempo; ela faz vivida, todo o terrestre quer ser experimentado, uma vez que seja.
nossos olhos se voltarem para o futuro, horizonte da mortalida­ E aí o poeta raciocina exatamente como os espíritas, mas chegai a
de, não para a "bela imediatez” (Nietzsche) do presente. Já o uma conclusão oposta. Tudo quanto levamos para “den ander im
ser do animal é íntimo, como diz Falk, porque nele sujeito e Bezug", ou seja, a morte, o além, são condensações inexprimíveis:
objeto são uma só e mesma coisa. O animal não se distingue mera alma. Por isso o concreto só dispõe deste tempo terrestre, por •/
isso devemos devotar-nos a ele.18
do mundo em que está imerso; outrossim, por incônscio da
morte, pode viver a plenitude do presente, quee é a da etemi- Ao longo das Elegias duinenses, os contrários se alternam
dade. Essa totalidade intemporal recebe no idio ioleto rilkiano a não para se negarem, mas para se completarem — anjo e
denominação de o Aberto [das Offene}. Dela só temos vislum­ homem, dor e júbilo, lamentação e celebração, visível e invisível,
bre quando estamos próximos da morte, a qual anula a tem­ vida e morte, terrestre e metaterrestre. É à luz dessa completude
poralidade; vislumbram-na também fugazmente os amantes. Mas que se deve entender a Décima Elegia como a aparentemente
o animal ainda sente a melancolia do ventre materno; só criatu­ contraditória "afirmação jubilosa e vibrante da Dor" nela vista
ras miúdas como a mosca, que nasce de um ovo ao ar livre, por Dora Ferreira da Silva.19 A imaginação eminentemente esps
gozam a bem-aventurança de permanecer sempre “no seio que ciai de Rilke pinta ali o caminho que o morto percorre, desde
a conteve”, pois “o seio é tudo”. Não tem de despedir-se dele reino das Lamentações até o país da Dor original e a fonte da
ao nascer, como nós, que desde então vivemos “em despedida Alegria. Isso depois de ter deixado para trás a Cidade-Aflição,
_ . sempre”. alegoria da banalidade dos consolos oferecidos pelas igrejas e
Na Nona Elegia, o tema da exaltação do terrestre, versado na feiras onde os apetites humanos são comercializados.
Sétima, funde-se, dentro de uma nova perspectiva, com o tema da Estes sucintos comentários de noções-chave das Elegias
dolorosa consciência de temporalidade do ser humano, versado duinenses têm por único propósito oferecer ao leitor das aqui
na Oitava. Tal consciência suscita dois impulsos contraditórios:
fugir do Destino porque leva à morte, e ansiar por ele mais cedo (38) Norben Fuerst, op. cit., pp. 173-4.
ou mais tarde por sabê-lo inelutável. Embora o homem se reco­ (39) Nos comentários à sua tradução de Elegtas de Duíno, São Paulo, s. i. e.,
nheça, pela sua própria consciência da temporalidade, o mais 1956. p- 97.

11 32 33
r traduzidas alguns pontos de referência para uma primeira abor­
dagem. A vasta bibliografia a elas consagrada mostra-lhes não só
a fundamental importância no panorama da obra de Riike e da
própria poesia do século xx como também e sobretudo as difi­
culdades que, por extremamente densas e complexas, opõem
I

dos, complementares. Disso ninguém podería dar testemunho


mais cabal que a figura mítica de Orfeu a transitar anfibiamente da
vida para a morte e vice-versa.
Os Sonetos a Orfeu, conforme diz a sua dedicatória, foram
"escritos como um monumento funerário para Wera Ouckama
ao esforço interpretativo. Ainda que as exegeses críticas possam Knoop”. Amiga da filha de Riike, Wera era a adolescente cuja
ajudar-lhes o entendimento, este não prescinde de um longo e graça e talento para a dança muito o haviam impressionado. A
amoroso convívio com o texto delas. notícia da sua morte em 1922, recebida por ele quando acaba­
No caso de uma visão de mundo tão ;peculiar quanto a va de se instalar na tone de Muzot, foi o coup de foudre que
proposta pela poesia de Riike, a “suspensãoi da descrença” re- lhe abriu as comportas da inspiração. Entre 2 e 5 de fevereiro
comendada por Coleridge para a leitura de poesia em geral se desse ano, escreveu os 26 sonetos da primeira parte te, e entre 15
torna mais que nunca indispensável. Não se está querendo e 23, os 25 sonetos da segunda. Que a morte da baililarina tivesse
dizer com isso seja mister atribuir valor de verdade às suas trazido à imaginação do poeta a figura de Orfeu, o protopoeta,
protof
figurações poético-filosóficas, como aparentemente o faz Hans se deve não apenas à míticanítica ligação deste com o mundo
mundc dos
Egon Holthusen quando diz que “encaradas como uma doutri­ mortos, já anteriormente evocada em “Orfeu. Eurídice. Hermes”.
na filosófica, as ‘idéias’ de Riike são errôneas”. Possivelmente o Deve-se também, como lembra Butler,42 à influência de Valéry;
serão, lembra o mesmo Holthusen, se “abstraídas da concreta cuja obra Riike começara a ler em 1921. Em O cemitério mari­
vitalidade de sua linguagem metafórica”.40 Mas uma abstração nho, que ele iria traduzir em alemão, há uma bela passagem
que tal‘é um crime de lesa-poesia. Para apreciar a obra de acerca da metamorfose biológica, e nos Sonetos a Orfeu,
Riike, não é necessário perfilhar as amiúde abstrusas e extrava­ espiritualizada, a metamorfose é celebrada como suprema lei da
gantes noções metafísicas que subjazem a ela; basta aceitá-las vida, sendo o próprio Orfeu promovido à condição de deus das
como figurações poéticas cujo valor se mede não em termos de metamorfoses. Outrossim, em A alma e a dança, texto em prosa
aceno ou erro, mas de eficácia expressiva dentro do contexto a de Valéry também vertido para o alemão por Riike, aparece a
que pertencem e fora do qual pouco significam. definição socrática da dança como um ato puro de metamorfose.
Os onze sonetos trazidos em tradução para o presente y
volume, se não bastam para dar uma idéia do que seja o ciclo
6 no seu todo, servem ao menos para ilustrar alguns pontos-
chave da sua temática e da sua simbólica. No soneto i:l reapa­
Conquanto o mesmo “furacão espiritual”41 que inspirou a rece uma imagem frequente na poesia de Riike, a da árvore,
Riike as últimas Elegias duinenses lhe tivesse inspirado pouco que figura a existência pura, sempre a ultrapassar-se a si mes­
antes os Sonetos a Orfeu, estes, pelo sentimento de alegria e ma: “pura sobrelevaçào”; só que aqui transposta, pela magia do
serena aceitação da vida de que estão repassados, parecem canto, da efemeridade do real ou do visível para a permanência
posteriores a elas, voltadas ainda para a dor e o desamparo da da representação artística ou do invisível: “árvore mais alta nos
existência humana. Contudo, à semelhança das Elegias, os Sone­ ouvidos”; ademais, o canto de Orfeu, com calar o rugido das
tos também mostram a vida e a morte como mundos interliga- feras e instituir o silêncio da escuta, sacraliza a natureza e cria
“um templo na audição”. No soneto i:3 reaparece a mesma
(40) Hans Egon Holthusen. Ralner Maria Riike, tra<l. R. Chace) e N. concepção de poesia propugnada no Réquiem por Kalckreuth e
Wendkheim, Buenos Aires, Mandragora, 1960.
(41) E. M. Butler, Rainer Maria Riike, Cambridge w, 1941, p. 315. (42) E. M. Butler, op. cit., pp. 345-6.

34 35

í
r na Nona Elegia, isto é, celebração religiosa do existir, não mero
extravasamento de emoções: assim como o ser de Orfeu está
inteiro no seu canto, assim também o homem tem de cantar para
existir em plenitude: “sopro de nada”, a palavra do poeta é no
entanto a "morada do ser” entrevista por Heidegger na poesia de
Hõlderlin e do próprio Rilke.
1

distanciamentos que o viver necessariamente implica. Os dois


últimos versos do soneto fazem referência ao mito de Dafne,
transformada em loureiro para salvar-se da perseguição amoro­
sa de Febo. Em consonância com o evangelho metamórfico que
subjaz a todo o ciclo dos Sonetos, Rilke propõe uma nova leitura
do mito ao fazer Dafne, mudada em loureiro, desejar que o
Os velhos sarcófagos romanos, tema do soneto i:10, já . amante, a quem antes recusara, se transformasse em vento para .
haviam inspirado um dos Novos poemas-, usados como reser- poder acariciá-la.
vatórios de água ou viveiros de plantas e borboletas, são bocas A fonte tematizada em n:15, o mais celebre e o mais tradu­
que, fechadas muitos anos pela morte, voltaram a se abrir para zido dos Sonetos a Orfeu, é de igual modo o símbolo mais
a vida; com isso, diferentemente de nós, que nada sabemos da frequente na poesia de Rilke. Figura o puro transcender, o ritmo
morte, sabem dela tanto quanto da vida, a exemplo de Orfeu. de ascensão e declínio de toda vida, um subir e descer que, sem
Para o enigma da morte apontam de igual modo as interroga­ objetivo prático, personifica por isso mesmo a pletora vital.
ções que pontilham a dicção do soneto i:14: os frutos, a nós Contudo, ao fazer da bacia uma orelha à escuta do que lhe diz a
dados pela terra depois de adubada pelos mortos, são tributo água a jorrar da boca da fonte, o soneto enriquece de conotações
de escravos ou sobejo de senhores? órficas esse símbolo repetitivo. A circunstância de a água dos
Para um símbolo rilkiano iterativo volta-se o soneto ii:3: os aquedutos provir da região das tumbas confirma ser a terra, en­
espelhos são uma espécie de umbral órfico entre o visível e o quanto mundo infero dos mortos visitado por Orfeu, que, pelo
invisível, entre o espaço real da sala, com o seu lustre e seus dispositivo da fonte, fala consigo mesma num infindável monólogo.
quadros, e um espaço visionário que filtra as imagens destes Numa série de perguntas que são outras tantas afirmativas,

últimos para só reter a mais bela, como fez com a beleza de a elocução de n:18 interpela diretamente a bailarina inspiradora
Narciso. A aversão de Rilke pela moderna sociedade industrial do ciclo todo dos sonetos. Pela rapidez da sua dança, ela
I avulta no soneto n:ll, onde, à arrogante exatidão da máquina,
contrapõe ele a mão hesitante mas criativa do artesão, de que
corporifica a própria efemeridade das coisas. Todavia, no turbi­
lhão dos volteios finais, seu corpo desenha no ar como que a
o poeta, construtor da “divina casa” da palavra, é o mais alto imagem de uma árvore, símbolo de enraizamento e fixidez em
representante. O soneto n:13, um dos mais belos do ciclo, que se anula, paradoxalmente, a impermanência do movimen­
toma a versar o tema do adeus de que já falamos a propósito to que lhe deu origem. E a árvore simbólica floresce e frutifica,
de “Fonte romana”; a “pura relação” referida no segundo quar­ ultrapassando as estações do ano: é a vitória da arte sobre o.
teto é a lúcida aceitação da morte como a outra face da vida, tempo. A figura desenhada no espaço pelo turbilhão coreográ-
graças a que Orfeu pode vibrar mesmo no momento da sua fico lembra também a forma circular de um vaso ou jarro que,
própria aniquilação, quando, ao se apagar como número dife­ aos giros da roda do oleiro, vai-lhe surgindo entre as mãos. Na
h renciado, volta a integrar a indiferenciada soma da Natureza. sua viagem ao Egito, Rilke se encantara com o trabalho dos
A morte como metamorfose (“o começo é fim e o fim come- oleiros das margens do Nilo, expressamente mencionado na
ço”) e a transformação como lei da vida é o tema do soneto Nona Elegia. Mas ele elabora ainda mais a imagem.do vaso ao
n:12, aptamente figurado na imagem da chama que, ao devorar- comparar-lhe as listras ou desenhos com o traço escuro que os
se a si própria, vai assumindo tantas formas diversas. Como ela, o supercílios da bailarina riscam no ar durante seus rodopios.
homem deve, mais do que aceitar, querer a transformação e Na leitura que faz do soneto n:21, Angelloz identifica-lhe os
livrar-se da ilusão de que permanência seja segurança: a única jardins referidos na primeira estrofe com os jardins paradisíacos
segurança é a cônscia aceitação de todos os riscos, mudanças e dos contos árabes. Embora o poeta não os conheça, louva-os,

36 37
1

para mostrar que não lhe fazem falta: eles é que precisam da sua mente alívio io para os seus males. "O (inexistente) túmulo de crian-
voz para serem celebrados. E acrescenta que não sofre privações ça com bola la”, incluído no presente volume, faz parte da série em
quem, como o poeta, quer atingir o âmago da existência ou ser. questão.
Ele é, pois, o fio de seda que se imiscui na trama do tapete, a Tal como o motivo da fonte, a bola também aparece com
qual, por sua vez, se fonna de todas as vivências interiormente freqüência na poesia de Rilke. Mais que um jogo prosaico, a
armazenadas, inclusive as dolorosas. Estas também contribuem, à imagem da bola atirada ao ar e recolhida de volta se enriquece
sua maneira, para a glória da vida que tanto quanto a da morte ali de inusitadas conotações simbólicas: é o próprio impulso da
são os dois pólos entre os quais transitam, como o deus-poeta vida, o ato de dar e receber sempre nesta implícito. Na inter­
que lhes dá nome, os Sonetos a Orfeu. pretação que faz desse breve poema em que à criança morta é
dado levar consigo a bola com que brincara em vida, Bollnow
a vê como um símbolo da separação seguido de reunificação,
“como uma dádiva saturada de felicidade, como um sentir-se
integrado num todo superior onde nada se perde".44
O fato de as Elegias duinenses e os Sonetos a Orfeu serem Por sua vez a fonte, a cuja simbologia nos referimos mais
vistos, com fundadas razões, como ápice ou chave de abóbada atrás, reaparece em “Um signo no espaço...”, poema da mesma
da obra de Rilke tem levado boa parte dos seus estudiosos a fase tardia em que foi escrito “O (inexistente) túmulo de criança
negligenciar os poemas por ele escritos depois de 1922, na sua com bola”. Também aqui, na pomba recém-pousada na fonte e
fase dita “tardia”. Juntamente com outros mais antigos, não reco­ como tal signo de movimento em calma, atua a mesma força
lhidos nas coletâneas publicadas em vida dele, constam hoje no que traz a bola de volta ao lançador. Não a força da inércia, mas
íl volume de Poemas esparsos e póstumos dos anos 1906-1926. Só
de alguns anos a esta parte foi que os críticos começaram a
a Heimkraft (de Heinz, “casa, terra natal”, e Kraft, “força, ener­
gia"), palavra criada por Rilke para designar “um poder misterioso
atentar não apenas na alta qualidade dessa produção tardia [...] que tende a levar os seres e as coisas de volta a sua origem, o
como em certos matizes novos por ela trazidos à visão de regaço materno, a terra nutriz".45
mundo do poeta. É o que assinala Marc Petit: “o sentido, o ser Parte dos últimos poemas de Rilke foi escrita em francês.
das coisas deixa de ser inacessível ao homem. A linguagem Numa carta de resposta a um crítico que lhe estranhara tal
pode tomar-se transparente. [...] Para além da imagem, a ‘metáfora abandono da língua materna, ele o justifica como uma home­
abstrata’ abre um novo espaço de consciência, desaferrolhando o nagem ao cantào suíço de língua francesa que os inspirara e “à
espírito".43 França e à incomparável Paris, que representa todo um mundo
Os cinco anos que lhe foi concedido viver após a conclusão na minha evolução e nas minhas lembranças". É impressionante
das Elegias e dos Sonetos foram anos difíceis para Rilke. Apesar o domínio do francês de que o poeta dá provas nas breves,
de ainda ter podido fazer algumas viagens pela Suíça, passar diáfanas e luminosas peças líricas reunidas em Vergers [Vergéisl
uma temporada em Paris e alguns dias em Milão, sua saúde se e Quatrains ualasains [Quadras do Vaiais]: os paralelismos e
tomava a cada dia mais precária. Mais de uma vez teve de modulações sonoras tão sutilmente explorados são pane inex-
internar-se no sanatório de Val-Mont. Nem por isso deixou de tricável da própria semântica dos poemas.
escrever poesia. É dessa fase final a série de poemas sobre o Quatro meses após a publicação desses poemas franceses,
cemitério de Ragaz, estação balneária em que procurou baldada- Rilke feriu-se acidentalmente na mão com os espinhos de umas

(43) Marc Petit, “Au-delà de 1'image", in Magazine littéraire: RainerMaria (44) Victor Hell, op. cit., p. 166.
Rilke, Paris, mar. 1993, n» 308, pp. 50-1. (45) Apud Magazine littéraire, n° cit.

38 39
rosas que fora colher pessoalmente em seu jardim de Muzot para
oferecê-las a uma jovem admiradora egípcia que o vinha visitar. O
ferimento agravou a leucemia de que sofria havia tempos. Inter­
nado pela última vez no sanatório de Val-Mont, ali morreu a 30 de
novembro de 1926. Isso ao fim de uma dolorosa agonia que,
recusando sedativos, suportou com extraordinária fortaleza de
espírito. Foi sepultado, conforme queria, ao pé da igreja de DE O LIVRO DE HORAS
Rarogne, no Vaiais. Seu túmulo ostenta o epitáfio que ele próprio
escreveu para si e deixou consignado em testamento: “Rosa, ó
pura contradição...". Esse epitáfio figura em tradução na parte
final deste volume.

40
Ich lebe mein Leben in wachsenden Ringen, A minha vida eu a vivo em círculos crescentes
die sicb über die Dinge ziehn. sobre as coisas, alto no ar.
Ich werde den letzten vielleicbt nicht vollbringen, Não completarei o último, provavelmente,
aber versuchen will icb ihn. mesmo assim irei tentar.

Ich kreise um Gott, um den uralten Turm, Giro à volta de Deus, a torre das idades,
und ich kreise jahrtausendelang; e giro há milênios, tantos...
und ich weiss noch nicht: bin ich ein Falke, ein Sturm Não sei ainda o que sou: falcão, tempestade
oder ein grosser Gesang. ou um grande, um grande canto.

' i!

i .•

42
1

Du, Nachbar Gott, wenn icb dicb manchesmal Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
in langer Nacbt mit hartem Klopfen stõre, — batendo forte à tua porta na noite extensa,
so ists, weil icb dicb selten atmen bõre é porque te ouço respirar, da tua presença
und weiss: Du bist allein im Saal. sei: estás na sala, sozinho.
Und wenn du etwas brauchst, ist keiner da, Se de algo precisares, não há ninguém ali
um deinem Tasten einen Trank zu reicben: que possa te trazer um gole d’água sequer.
Icb horcbe immer. Gieb ein kleines Zeichen. Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
Icb bin ganz nah. Estou bem perto de ti.

Nur eine schmale Wand ist zwischen uns, Entre nós há apenas um muro, coisa pouca,
durch Zufall; denn es kônnte sein: por mero acaso aliás;
ein Rufen deines oder meines Munds — bem pode ser que um grito da tua ou minha boca —
und sie bricht ein e eis que se desfaz
ganz ohne Larm und Laut. sem só rumor ou ruído.

Xus deinen Bildem ist sie aufgebaut. Com imagens tuas o muro foi construído.

Und deine Bilder stehn vor dir wie Namen. Diante de ti mas imagens sãn romn nomes.
Und wenn einmal das Licht in mir entbrennt, E quando um dia dentro de mim esteja acesa
mit welcbem meine Tiefe dicb erkennt, a luz com que te conhece minha profundeza,
vergeudet sichs ais Glanz auf ibren Rahmen. será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.

Und meine Sinne, welche schnell erlahmen, E os meus sentidos, que: um torpor célere consome,
sind obne Heimat und von dir getrennt. estão sem pátria, exilados>s da tua grandeza.

44
Du Dunkelbeit, aus der ich stamme, Tu, Obscuridade de onde emana
ich Hebe dich mehr ais die Flamme, meu ser, amo-te mais do que à chama
welche die Welt begrenzt, que o mundo reduz
indem sie glãnzt ao círculo da sua luz:
für itgend einen Kreis, ali dentro, resplandece;
aus dem beraus kein Wesen von ihr weiss. fora dali, ser nenhum a reconhece.

Aber die Dunkelbeit hãlt alies an sich: Mas na Obscuridade tudo se contém:
Gestalten und Flammen, Tiere und mich, as formas e as chamas, os animais e eu também,
wie sie's errafft, nela que consorcia
Memschen und Máchte — existências e energias —

Und es kann sein: eine grosse Kraft Pode bem ser que uma força sombria
rührt sich in meiner Nachbarschaft. se mova em minhas cercanias.

Ich glaube an Nãchte. É às noites que minha alma se confia.

46 47
Werkleute sind wir: Knappen, Jünger, Meister, Obreiros somos — mestre, aprendizes, serventes —
und bauen dich, du hohes Mittelscbiff. e te construímos, ó grande nave altaneira.
Und manchmal kommt ein emster Hergereister, Às vezes chega a nós um peregrino silente;
geht wie ein Glanz durch unsre hundert Geister ei-lo que como um clarão cruza as nossas cem mentes
und zeigt uns zittemd einen neuen Griff. e trêmulo nos traz alguma nova maneira.

Wir steigeni in die wiegenden Gerüste, Galgamos andaimes que ao nosso passo estremecem;
in unsem Hànden >bàngt der Hammer schwer, maciços os martelos que nossas mãos sustêm;
bis eine Stunde uns die Stimen küsste, isso até aflorar-nos a fronte uma hora que se
die strablend und ais ob sie Alies wüsste irisa e fulge como se de tudo soubesse:
von dir kommt, wie der Wind vom Meer. como o vento vem do mar, é de ti que ela vem.

Dann ist ein Hallen von dem vielen Hãmmem Ouve-se então um malhar de martelos inúmeros
und durch die Berge geht es Stoss um Stoss. que, golpe após golpe, pelas montanhas se expande.
Erst wenn es dunkelt lassen wir dich los: Só te deixamos quando a noite cai e no escuro
Und deine kommenden Konturen dãmmem. podemos já ver-te os vagos contornos futuros.

Gott, du bist gross. Deus, como tu és grande.

48 49
Was wirst du tun, Gott, wenn ich sterbe? Deus, que será de ti quando eu morrer?
Ich bin dein Krug (wenn ich zerscherbe?) Eu sou teu cântaro (e se me romper?)
Ich bin dein Trank (wenn ich verderbe?) A tua água (e se me corromper?)
Bin dein Gewand und dein Gewerbe, Sou teu agasalho, sou teu afazer.
mit mir verlierst du deinen Sinn. Vai comigo o significado teu.

Nach mir hast du kein Haus, darin Não tens mais sem mim aquela casa, Deus,
dich Worte, nah und warm, begrüssen. que com quentes palavras te acolhia.
Es fãllt von deinen müden Füssen Perdem teus pés exaustos as macias
die Samtsandale, die ich bin. sandálias: também elas eram eu.

Dein grosser Mantel làsst dich los. De ti desprende-se o teu longo manto.
Dein Blick, den ich mit meiner Wange O teu olhar, que a minha face, quente
warm, wie mit einem Pfühl, empfange, coxim acolhe, virá entrementes,
wird kommen, wird mich suchen, lange — virá procurar-me longamente
und legt beim Sonnenuntergange e deitar-se depois, ao sol poente,
sich fremden Steinen in den Schooss. entre pedras estranhas, nalgum canto.

Was wirst du tun, Gott? Ich bin bange. Deus, que será de ti? Tenho medo, tanto...

50 51
Du bist der Erbe. Tu és o herdeiro.
Sôbne sind die Erben, Filhos são herdeiros,
denn Vãter sterben. os pais finam-se primeiro.
Sôbne stehn und blühn. Mas filhos ficam e florescem.
Du bist der Erbe: Tu és o herdeiro:

52 53
Und doch, obwohl ein jeder votn sich strebt Se bem, como de uma prisão odiada e sofrida,
wie aus dem Kerker, der ibn basst und bãlt, — cada um de nós forceje por escapar de dentro
es ist ein grosses Wunder in der Welt: de si próprio, existe no mundo um grande portento
ich füble: alies Leben wird gelebt. que sinto a cada passo: toda vida é vivida.

Wer lebt es denn? Sind das die Dinge, die Quem a vive então? As coisas que, no fim do dia,
wie eine ungespielte Melodie jamais executada melodia,
im Abend wie in einer Harfe stehn? permanecem como sons numa harpa armazenados?
Sind das die Winde, die von Wassem wehn, Vivem-na os ventos das águas desatados?
sind das die Zweige, die sich Zeicben geben, Ou os ramos, com os seus gestos descomp; cassados?
sind das die Blumen, die die Düfte weben, Ou as flores, com os seus aromas misturadclos?
sind das die langen alternden Alleen? Ou, das aléias, o longo leito sombreado?
Sind das die warmen Tiere, welche gehn, Ou os animais cálidos que andam sobre o chão?
sind das die Võgel, die sich fremd erheben? Ou, pelo céu afora, as aves de arribação?

Wer lebt es denn? Lebst du es, Gott, — das Leben? Quem a vive? És tu, Deus, que vives a vida entào?

54
Bei Tag bist du das Hôrensagen, Durante o dia és o rumor que aflora
das flüstemd um die Vielen Jliesst; da multidão a cochichar;
die Stille nach dem Stundenschlagen, o silêncio após o soar das horas
welche sich langsam wieder scbliesst. que volta lento a se fechar.

Jemehr der Tag mit immer schwãchem Quanto mais o dia abranda seus gestos
Gebãrden sicb nach Abend neigt, e para o crepúsculo pende,
jemehr bist du, mein Gott. Es steigt mais presente estás, meu Deus. Eis que ascende
dein Reich wie Raucb aus allen Dãchem. teu reino, fumaça, dos tetos.

56 57
Da leben Menschen, weisserblühte, blasse, Ali vivem homens,, pálida florada
und sterben staunend an der schweren Welt. que morre pasma do mundo e sua agrura;
Und keiner sieht die klaffende Grimasse, ninguém enxerga;a a careta indisfarçada
zu der das Ldcheln einer zarten Rasse que o sorriso de uma raça delicada
in namenlosen Nãchten sich entstellt. ao fim de noites sem nome desfigura.

Sie gehn umher, entwürdigt durch die Müh, Vão por aí degradados pela lida
sinnlosen Dingen ohne Mut zu dienen, de servir, apáticos, a desrazão;
und ihre Kleider werden welk an ihnen, as suas roupas estão sempre puídas
und ihre schonen Hãnde altem früh. 'e logo se enrugam suas belas mãos.

Die Menge drãngt und denkt nicht sie zu schonen, A multidão os empurra sem notar
obwohl sie etwas zõgemd sind und schwach, — seu andar incerto e seu ar de doentes —
nur scheue Hunde, welche nirgends wohnen, apenas cachorros tímidos, sem lar,
gehn ihnen leise eine Welle nach. os seguem por algum tempo mudamente.

Sie sind gegeben unter hundert Quãler, A mil atormentadores os atiram,


und, angeschrien von jeder Stunde Schlag, cada hora que bate é um brutal -chamado,
kreisen sie einsam um die Hospitãler em tomo dos hospitais ei-los que
< giram
und warten angstvoll auf den Einlasstag. à espera de internar-se, angust
stiados.

Dort ist der Tod. Nicht jener, dessen Grüsse Lá está a morte. Não a que, esplendor,
sie in der Kindheit wundersam gestreift, — os tocou na infância, quando os saudou, mas
der kleine Tod, wie man ihn dort begreift; a pequena morte (como a entendem lá)
ihr eigener hángt grün und ohne Süsse que ora dentro deles, verde, sem dulçor,
wie eine Frucht in ihnen, die nicht reift. é fruto que não amadurece mais.

58
O Herr, gieb jedem seinen eignen Tod. Dá a cada um a sua própria morte, Senhor.
Das Sterben, das aus jenem Leben geht, O morrer que lhe vem daquela vida onde teve
darin er Liebe hatte, Sinn und Not. seu sentido e onde conheceu amor e dor.

60 61
DE O LIVRO DAS IMAGENS
MONDNACHT NOITE DE LUA

(.Ztvei Gedichte zti Hans Thomas sechzigstem Geburtstagé) (De “Dois poemas para o sexagésimo aniversário de Hans Thomas")

Süddeutsche Nacht, ganz breit im reifen Monde, Noite do sul da Alemanha, aberta à lua cheia
und mild wie aller Mãrcben Wiederkebr. e doce como o regresso nos contos de fadas.
Vom Turme fallen viele Stunden schwer Do campanário as horas vão caindo, pesadas,
in ibre Tiefen nieder wie ins Meer, — até o seu fundo, como se caíssem ao mar —
und dann ein Rauschen und ein Ruf der Ronde, e o brado da ronda pelas ruas se alteia,
und eine Weile bleibt das Schweigen leer; depois, por algum tempo, silêncio tumular;
und eine Geige dann (Gott weiss woher) então um violino (sabe Deus em que lugar)
erwacht und sagt ganz langsam: desperta e diz muito devagar:
Eine Blonde... Uma sereia...

64 65
HERBSTTAG DIA DE OUTONO

Herr: es ist Zeit. Der Sommer war sehr gross. Senhor: é mais oque tempo. O verão foi muito intenso,
Leg deinen Schatten auf die Sonnenuhren, nbra sobre os relógios de sol
Lança a tua somt
und auf den Fluren lass die Winde los. e por sobre as pradarias desata os teus ventos.
Befiehl den letzten Früchten voll zu sein; Ordena às últimas frutas que fiquem maduras;
gieb ihnen nocb zwei südlichere Tage, dá-lhes ainda mais uns dois dias de calor,
drãnge sie zur Vollendung; hin und jage leva-as à completude e não deixes de pôr
die letzte Süsse in den schuweren Wein. no vinho pesado sua última doçura.

Werjetzt kein Haus hat, baut sich keines mehr. Quem não tem casa, nào a irá mais construir.
Wer jetzt allein ist, wird es lange bleiben, Quem está sozinho, vai ficá-lo ainda mais.
wird wacben, lesen, lange Briefe scbreiben Insone, há de ler, escrever canas torrenciais
und wird in den Alleen hin und her e correr as aléias num inquieto ir-e-vir
unrubig wandem, wenn die Blátter treiben. enquanto o vento carrega as folhas outonais.

66 67
ERNSTE STUNDE HORA GRAVE

Wer jetzt weint irgendwo in der Welt, Quem chora agora em algum lugar do mundo,
obne Grund weint in der Welt, sem razão chora no mundo,
weint über mich. chora por mim.

Werjetzt lacht irgendwo in der Nacht, Quem ri agora em algum lugar da noite,
obne Grund lacht in der Nacht, sem razão se ri na noite,
lacht mich aus. ri-se de mim.

Werjetzt geht irgendwo in der Welt, Quem anda agora em algum lugar do mundo,
obne Grund geht in der Welt, sem razão anda no mundo,
geht zu mir. vem para mim.

Werjetzt stirbt irgendwo in der Welt, Quem morre agora em algum lugar do mundo,
obne Grund stirbt in der Welt: sem razão morre no mundo,
siebt mich an. olha pra mim.

68
DOS NOVOS POEMAS
PIETÀ PIETÀ

So seh ich, Jesus, deine Füsse wieder, Vejo de novo os teus pés, Jesus, e lembro
die damals eines Jünglings Füsse waren, que eram pés, antigamente, de rapaz:
da ich sie bang entkleidete und wuscb; a medo os descubro e lavo-os com zelo;
wie standen sie verwirrt in meinen Haaren ficam enredados entre os meus cabelos
und wie ein weisses Wild im Domenbusch. como alva presa de caça entre sarçais.

So seb ich deine niegeliebten Glieder Vejo, pela primeira vez, os teus membros
zum erstenmal in dieser Liebesnacht. nunca amados, nesta noite de paixão,
Wir legten uns noch niezusammen nieder, artilhamos jamais o mesmo leito;
Não par
und nun wird nur bewundert und gewacht. agora éi só velar e admirar-se em vão.

Doch, siehe, deine Hãnde sind zerrissen —: Mas vê como as tuas mãos estão feridas —:
Geliebter, nicht von mir, von meinen Bissen. não por mim, Amado, por minhas mordidas.
Dein Herz stebt offen und man kann binein: Aberto, teu coração mostra o recesso:
das bãtte dürfen nur mein Eingang sein. nele somente eu devia ter ingresso.

Nun bist du müde, und dein müder Mund Estás cansado e, cansada, a tua boca
hat keine Lust zu meinem wehen Munde — não deseja a minha dolorosa boca —
O Jesus, Jesus, wann war unsre Stunde? Ó Jesus, Jesus, nossa hora quando foi?
Wie gehn wir beide wunderlich zugrund. Quão estranho perecermos ora os dois.

72 73
rr 1
DER TOD DES DICHTERS A MORTE DO POETA

Er lag. Sein aufgestelltes Antlitz war Ali jazia. Sobre o travesseiro erguido
bleich und verweigemd in den steilen Kissen, era de rejeição seu pálido semblante,
seitdem die Welt und dieses von-ihr-Wissen, desde que o mundo, e o que dele conhecera antes
von seinen Sinnen abgerissen, de arrancado dos seus sentidos,
zurückjlel an das teilnahmslose Jahr. retomou ao ano desinteressante.

Die, so ihn leben sahen, wussten nicht, Os que o viam viver nem devem ter suposto
wie sehr er Eines war mit aliem diesen; o quanto ele era um só com tudo isto, com estes
denn Dieses: diese Tiefen, diese Wiesen prados, estas baixadas, estas águas: destes
und diese Wasser waren sein Gesicht. era feito, eles eram o seu próprio rosto.

O sein Gesicht war diese ganze Weite, Oh o seu rosto tinha toda esta largurira
die jetzt noch zu ihm will und um ihn wirbt; que ainda o quer, que ainda o andai a procurar,
und seine Maske, die nun bang verstirbt, e sua máscara de morte, ansiosa, alvar,
ist zart und ojfen wie die Innenseite também é tenra e aberta como a camadura
von einer Frucbt, die an der Luft verdirbt. de uma fruta qualquer que apodrecesse ao ar.

74
jr-r: '

L ANGE DU MÉR1DIEN CANGE DU MÉRIDIEN


Chartres Chartres

Im Sturm, der um die starke Katbedrale Na ventania que ataca a catedral


wie ein Vemeiner stürzt der denkt und denkt, como um negador que pensa, impenitente,
füblt man sich zãrtlicher mit einem Male de súbito nos atrai mais temamente
von deinem Làcheln zu dir hingelenkt: a ti o sorriso que do pedestal

lãchelnder Engel, fühlende Figur, nos dás, risonho anjo, sensível figura,
mit einem Mund, gemacht aus bundert Munden: de boca feita de cem bocas: pois não
gewahrst du gar nicht, wie dir unsre Stunden reparas em como nossas horas vào-se
abgleiten von der vollen Sonnenubr, por esse quadrante solar que seguras

auf der des Tages ganze Zahl zugleich, e que as horas todas do dia ostenta,
gleicb wirklich, steht in tiefem Gleichgewichte, por igual reais, em equilíbrio fundo,
ais wáren alie Stunden reif und reich. como se fossem maduras, opulentas?’

Was weisst du, Steinemer, von unserm Sein? Que sabes, tu de pedra, do nosso ser?
und hãltst du mit noch seligerm Gesichte E teu quadrante, com rosto mais jucundo
vielleicht die Tafel in die Nacbt hinein? talvez, não passas toda a noite a suster?
l

77
!
i

MORGUE MORGUE

Da liegen sie bereit, ais ob es gãlte, Ali jazem em ordem como se


nachtrãglich eine Handlung zu erfinden, à espera de algum ato tardio
die mil einander und mit dieser Kãlte que os pudesse ligar entre si e
sie zu versôbnen weiss und zu uerbinden; reconciliá-los com aquele frio;

denn das ist alies noch wie ohne Schluss. tudo está por eenquanto inacabado.
Wasfür ein Name hãtte in den Taschen :ro dos bolsos, um cartão
Por que, dentre
sich finden sollen? An dem Überdruss com o nome de d cada? O ar de enfado
um ihren Mund hat man herumgewaschen: nas suas bocas, foi esforço vào

er ging nicht ab; er wurde nur g*


ganz rein. tentar lavá-lo: só ficou patente.
Die Bàrte stehen, noch ein wenig
lig hãrter, Mais áspera, a barba ainda nos rostos:
doch ordentlicber im Geschmack der
< Wárter, o zelador da morgue tem seus gostos;

nur um die Gaffenden nicht anzuwidem. nem os de boca aberta lhe dão náuseas.
Die Augen haben hinter ihren Lidem Com olhos revirados sob as pálpebras,
sich umgewandt und schauen jetzt hinein. os mortos vêem-se agora interiormente.

79
78
I

DER PANTHER A PANTERA


Im Jardin des Plantes, Paris No Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergebn der Stãbe Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
so müd geworden, dass er nichts mehr hãlt. está fatigado, já nada retém.
Ihm ist, ais ob es tausend Stãbe gãbe É como se existisse uma infinidade
und binter tausend Stãben keine Welt. de grades e mundo nenhum mais além.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte, O seu passo elástico e macio, dentro
der sich im allerkleinsten Kreise dreht, do círculo menor, a cada volta urde
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte, como que uma dança de força: no centro
in der betãubt ein grosser Wille steht. delas, uma vontade maior se aturde.

Nur manchmal schiebt der Vorbang der Pupille Certas vezes, a cortina das pupilas
sich lautlos auf—. Dann geht ein Bild hinein, ergue-se em silêncio. — Uma imagem então
geht durch der Glieder angespannte Stille — penetra, a calma dos membros tensos trilha —
und hõrt im Herzen auf zu sein. e se apaga quando chega ao coração.

80 81
rn DAS EINHORN O UNICÓRNIO

Der Heilige hob das Haupt, und das Gebet O santo alçou sua cabeça e a oração
fiel wie ein Helm zurück von seinem Haupte: tombou-lhe para trás, qual elmo soerguido;
denn lautlos nahte sich das niegeglaubte, então o alvíssimo animal sempre descrido
das weisse Tier, das wie eine geraubte dele acercou-se sem o mínimo ruído —
hülfiose Hindin mit den Augen fieht. cerva indefesa, os olhos a implorar perdão.

Der Beine elfenbeinemes Gestell Em marcha harmoniosa, os cascos de marfim


bewegte sich in leichten Gleichgewicbten, iam-se adiantando; um reflexo fulgurava
ein weisser Glanz glitt selig durch das Fell, ditoso no pelame e se detinha enfim
und auf der Tierstim, auf der stillen, lichten, na fronte quieta, límpida onde, como esguia
stand, wie ein Turm im Mond, das Hom so hell, torre sob o luar, o chifre de tão alva
und jeder Schritt geschah, es aufzuricbten. matéria cada passo dado soerguia.

Das Maul mit seinem rosagrauen Flaum Entre a penugem róseo-parda do focinho
war leicht gerqffl, so dass ein wenig Weiss tão de leve franzido, avultava um traço
(weisser ais alies) von den Zàbnen glànzte; de branco absoluto: os dentes a brilhar;
die Nüstem nahmen auf und lecbzten leis. as narinas para o alto arfavam um pouquinho.
Docb seine Blicke, die kein Ding begrenzte, Coisa alguma porém lhe restringia o olhar:
warfen sich Bilder in den Raum ao atirar imagens para o espaço,
und schlossen einen blauen Sagenkreis. um ciclo azul de lendas vinha ele encerrar.

82 83
ll
r

RÕMISCHE SARKOPHAGE SARCÓFAGO ROMANO


l |

Was aber bindert uns zu glauben, dass Mas o que é que nos impede de supor
(so wie wir hingestellt sind und verteilt) (conforme põem e dispõem de nós mesmos)
nicbt eine kleine Zeit nur Drang und Hass que por não pouco tempo ficam o rancor,
und dies Verwirrende in uns verweilt, os desconcertos e a aflição do que vivemos,

wie einst in dem verzierten Sarkophag tal como outrora no sarcófago adornado,
bei Ringen, Gõtterbildem, Glãsem, Bàndem, em meio a vidros, fitas, anéis ou imagens
in langsam sich verzehrenden Gewãndem sagradas, no lento arruinar-se das roupagens,
ein langsam Aufgelõstes lag — jazia um corpo lentamente derrocado

bis es die unbekannten Munde scbluckten, e findo nas ignotas bocas que o comeram,
die niemals reden. (Wo besteht und denkt bocas quee nunca dizem nada. (Onde é que há
ein Him, um ibrer einst sich zu bedienen?) >ro que pense e que fale por elas?)
um cérebr<

Então por velhos aquedutos acorreram


1! !■: Da wurde von den alten Aquãdukten
ewiges Wasser in sie eingelenkt —: as sempiternas águas puras até lá —:
das spiegelt jetzt und gebt und glãnzt in ihnen. ei-las a fluir, a luzir lá dentro, ei-las.

84 85
DER DICHTER O POETA

Du entfemst dich von mir, du Stunde. -a longe de mim, hora.


Vai-te para
Wunden schlàgt mir dein Flügelschlag. O bater deie tuas asas me excrucia.
Allein: was soll ich mit meinem Munde? Mas de minha boca, que fazer agora?
mit meiner Nacht? mit meinem Tag? e da minha noite? e do meu dia?

Ich babe keine Geliebte, kein Haus, Eu nào tenho amada nem abrigo,
keine Stelle auf der ich lebe. sequer um lugar para viver eu tenho.
Alie Dinge, an die ich mich gebe, Todas as coisas em que me empenho
werden reich und geben mich aus. tomam-se opulentas e acabam comigo.

86
X
I 1
RÕMISCHE FONTÀNE FONTE ROMANA
Borgbese Borghese

Zwei Becken, eins das andre übersteigend Duas bacias, uma sob outra e excedendo-a
aus einem alten runden Marmorrand, por uma antiga borda circular de mármore;
und aus dem oberen Wasser leis sich neigend da superior, voz em surdina, água vertendo-se
zum Wasser, welcbes unten wartend stand, na água expectante da inferior, a qual, escancara,

dem leise redenden entgegenscbweigend só lhe responde à fala baixa emudecendo


und beimlicb, gleichsam in der boblen Hand, e, como num côncavo de mão, a ábside
ihm Himmel hinter Grün und Dunkel zeigend do céu além do verde-escuro oferecendo-lhe
wie einen unbekannten Gegenstand; como um objeto ignoto; sem nada de nostálgica

sich selber ruhig in der scbõnen Schale orópria, círculo após círculo,
abrindo-se ela prt
verbreitend ohne Heimweh, Kreis aus Kreis, às vezes, sonhadoramente,
na bela taça, e. às
nur mancbmal trãumerisch und tropfenweis fluindo gota a gota por musgos pendentes

sich niederlassend an den Moosbehãngen até, um pouco abaixo, o espelho derradeiro


zum letzten Spiegel, der sein Becken leis que faz sorrir sua bacia docemente
von unten lücheln macht mit Übergángen. com o jogo de mil reflexos passageiros.

88 89
í í
SPANISCHE TÁNZERIN BAILARINA ESPANHOLA

Wie in der Hand ein Scbwefelzündbolz, weiss, Como um palito de fósforo na mão, alvar
eh es zur Flamme kommt, nacb allen Seiten antes de, aceso, estender suas línguas ardentes
zuckende Zungen streckt —: beginnt im Kreis para todos os lados — a dança circular
naber Beschauer hastig, bell und heiss de junto do espectador começa a alargar
ihr runder Tanz sich zuckend auszubreiten. seus círculos, clara, célere e cálida sempre.

Und plõtzlich ist er Flatnme, ganz und gar. E eis que de súbito se faz chama a dança inteira.

Mit einem Blick entzündet sie ihr Haar Com o olhar, a bailarina inflama a cabeleira
und dreht auf einmal mit gewagter Kunst e, com arte ousada, de um só golpe distende o
! ihr ganzes Kíeid in diese Feuersbrunst,
aus welcher sich, wie Schlangen die erschrecken,
seu vestido todo num rodopiar de incêndio
do qual, serpentes, em desnudez e susto vão
die nackten Arme wach und klappemd strecken. surgir os braços despertos, num bater de mãos.

Und dann: ais würde ihr das Feuer knapp, Depois, como se fosse pouco, ela junta o fogo
nimmt sie es ganz zusamm und wirft es ab e o atira para longe, num gesto de arrogo,
sebr herrisch, mit bochmütiger Gebárde repentino, imperioso, e contempla, enlevada,
und schaut: da liegt es rasend auf der Erde ele estorcer-se no chão, sempre, sem perder nada
undflammt noch immer und ergiebt sich nicht da sua fúria, numa recusa de apagar-se.

Doch siegbaft, sicher und mit einem süssen Triunfante e segura, com um sorriso amável,
grüssenden lácheln hebt sie ihr Gesicht ela saúda então, ergue o rosto e sem disfarce
und stampft es aus mit kleinen festen Füssen. o esmaga com seus dois pezinhos implacáveis.

90 91

I
T

ORPHEUS. EURYDIKE. HERMES ORFEU. EURÍDICE. HERMES

Das war der Seelen wunderlicbes Bergwerk. Era a mina singular das almas.
Wie stille Silbererze gingen sie Veios de prata silenciosos,
ais Adem durch sein Dunkel. Zwiscben Wurzeln | eles seguiam por sua escuridão. Entre as raízes,
entsprang das Blut, das fortgeht zu den Menschen, surdia o sangue, que remontava até os homens,
und schwer wie Porphyr sab es aus im Dunkel. e pesada como pórfiro parecia a escuridão.
Sonst war nichts Rotes. Nada mais vermelho.

Felsen waren da Havia ali penhascos,


und wesenlose Wâlder. Brücken über Leeres florestas irreais. Pontes sobre vazios
und jener grosse graue blinde Teich, e o grande charco cego baço
[• der über seinem femen Grunde bing
wie Regenhimmel über einer Landschaft.
que lhe pendia ao fundo, na distância,
como céu de chuva acima de uma paisagem.
Und zwiscben Wiesen, sanft und voller Langmut, Entre prados suaves, cheios de paciência,
erscbien des einen Weges blasser Streifen, surgia, pálida risca, uma vereda,
wie eine lange Bleicbe hingelegt. esticada como um longo coradouro.

Und dieses einen Weges kamen sie. É por essa vereda que eles vinham.

Voran der schlanke Mann im blauen Mantel, À testa, o homem esguio de manto azul
der stumm und ungeduldig vorsich aussah. que olhava diante de si, impaciente e mudo.
Ohne zu kauen frass sein Scbritt den Weg Seu passo devorava o caminho em grandes mordidas
in grossen Bissen; seine Hdnde bingen sem o mastigar; as mãos pendiam-lhe,
schwer und verschlossen aus dem Fali der Falten graves e cerradas, das pregas do manto:
und wussten nicht mehr von der leichten Leier, não sabiam mais da leve lira
die in die Linke eingewachsen war a que os dedos da esquerda se aferravam
wie Rosenranken in den Ast des Ôlbaums. qual gavinhas de rosa silvestre ao galho da oliveira.
Und seine Sinne waren wie entzweit; E os sentidos dele como que se desavinham:
indes der Blick ihm wie ein Hund vorauslief, enquanto o olhar corria à frente feito cão,
umkehrte, kam und immer wieder weit e voltava e ia de novo, cada vez mais longe,
und wartend an der nãcbsten Wendung stand, — e ficava esperando na curva seguinte do caminho —
blieb sein Gehõr wie ein Geruch zurück. seu ouvido permanecia atrás como um aroma.
Manchmal erscbien es ihm ais reichte es Muitas vezes lhe parecia que chegava
bis an das Gehen jener beiden andem, até o passo
] daqueles outros dois,
die folgen sollten diesen ganzen Aufstieg. que o> deviam seguir em toda a ascensão.

92 93
Dann wieder wars nur seines Steigens Nachklang Depois era apenas o eco de sua própria subida
und seines Mantels Wind was hinter ihm war. e o tatalar do manto às suas costas.
Er aber sagte sich, sie kãmen doch; Dizia consigo, eles me estão seguindo;
sagte es laut und bôrte sich verhallen. dizia-o em voz alta e ouvia apagar-se o que dissera.
Sie kãmen doch, nur wárens zwei Os dois vinham atrás, porém com uma
die furchtbar leise gingen. Dürfte er lentidão assustadora. Ah, se ele pudesse
sich einmal wenden (wãre das Zurückschaun voltar-se uma só vez (não fosse olhar às costas
nicht die Zersetzung dieses ganzen Werkes, a ruína de toda aquela empresa
das erst vollbracbt wird), müsste er sie sehen, que ora completava-se), e olharia
die beiden Leisen, die ihm schweigend nachgehn: os dois que o seguiam em silêncio:

O deus das idas e das mensagens longínquas,


i Den Gott des Ganges und der weiten Botschaft,
die Reisehaube über hellen Augen,
den schlanken Stab hertragend vor dem Leibe
com o pétaso sobre os olhos claros,
o delgado caduceu diante do corpo,
und flügelschlagend an den Fussgelenken; asas a palpitar nos tornozelos,
und seiner linken Hand gegeben: sie. a mão esquerda dada a: ela.

Die So-geliebt, dass aus einer Leier A Tào-Amada, que de uma lira veio
mehr Klage kam ais je aus Klagefrauen; mais lamento do que as carpideiras;
dass eine Welt aus Klage ward, in der que um mundo surgiu do lamento
alies noch einmal da war: Wald und Tal onde havia de tudo novamente: bosque
und Weg und Ortschafi, Feld und Fluss und Tier; e vale, vereda e povoado, e campo e rio e fera;
und dass um diese Klage-Welt, ganz so e em tomo desse mundo-lamento, como da outra
wie um die andre Erde, eine Sonne terra, um Sol girava
und ein gestimter stiller Himmel ging, e um estrelado céu silente,
ein Klage-Himmel mit entstellten Stemen —: um céu-lamento com astros deformados —
Diese So-geliebt. Ela, a Tão-Amada.

Sie aber ging an jenes Gottes Hand, Mas incerta, suave e sem impaciência,
den Schritt beschrãnkt von langen Leicbenbãndem, ela seguia pela mào do deus,
i unsicher, sanft und obne Ungeduld. o passo tolhido pelas longas fitas mortuárias.
Sie war in sich, wie Eine hoher Hoffnung, Estava em si, de altas esperanças,
lí und dachte nicht des Mannes, der voranging, e não pensava no homem que lhe ia à frente
nem pensava no caminho que subia para a vida.
und nicht des Weges, der ins Leben aufstieg.
Sie war in sich. Und ihr Gestorbensein Estava em si. E ser-morta
erfüllte sie wie Fülle. a colmava de plenitude.
Wie eine Frucht von Süssigkeit und Dunkel, Qual fruto cheio de dulçor e treva,
so war sie voll von ihrem grossen Tode, sentia-se repleta da sua grande morte,
der also neu war, dass sie nichts begriff. que lhe era nova e que não compreendia.

94 95
Sie war in einem neuen Màdchentum Ela entrara numa outra, uma intangível
und unberührbar; ihr Geschlecht war zu ara
donzelice; seu sexo se fechai
wie eine junge Blume gegen Abend, como uma flor recente ao fim da tarde
und ihre Hãnde waren der Vermãhlung e suas mãos se haviam desabituado tanto
so sehr entwôhnt, dass selbst des leichten Gottes do enlace que até mesmo o toque
unendlich leise, leitende Berührung infinitamente suave do leve deus a conduzi-la
sie krãnkte wie zu sehr Vertraulichkeit. lhe doía como excessiva intimidade.

Sie war schon nicht tnehr diese blonde Frau, Ela não era mais aquela mulher loura
die in des Dichters Liedem manchmal anklang, que os cantos do poeta invocaram tantas vezes,
nicht mehr des breiten Bettes Duft und Eiland não mais o aroma e a ilha do espaçoso leito,
und jenes Mannes Eigentum nicht mehr. nem propriedade mais daquele homem.

Sie war schon aufgelõst wie langes Haar Já estava solta como longa cabeleira
und hingegeben wie gefallner Regen e outorgada como chuva sobrevinda
und ausgeteilt wie hundertfacher Vorrat. e repartida como cêntupla ração.

Sie war schon Wurzel. Ela era já raiz.

Und ais plôtzlich jãh E quando, de repente,


der Gott sie anhielt und mit Schmerz im Ausruf o deus a fez parar e com amargura na voz
die Worte sprach: Er hat sich umgewendet —, disse as palavras: Ele se voltou —,
begriff sie nichts und sagte leise: Wer? ela não compreendeu e perguntou-lhe, baixo: quem?

Fem aber, dunkel vor dem klaren Ausgang, Mas ao longe, recortado contra a luz da saída,
stand irgend jemand, dessen Angesicht via-se o vulto obscuro de alguém cujas feições
nicht zu erkennen war. Er stand und sah, não se podia distinguir. Estava de pé e dali contemplava,
wie auf dem Streifen eines Wiesenpfades como sobre a risca de uma vereda campestre,
mit trauervollem Blick der Gott der Botschaft o deus das mensagens voltar-se em silêncio
sich schweigend wandte, der Gestalt zu folgen, e com olhar pesaroso acompanhar a figura
die schon zurückging dieses selben Weges, que, incerta, suave e sem impaciência,
den Scbritt beschrãnkt von langen Leichenbandem, ia já refazendo o caminho anterior,
unsicher, sanft und ohne Ungeduld. o passo tolhido pelas longas fitas mortuárias.

96 97
DE RÉQUIEM

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1
FÜR WOLF GRAF VON KMCKREVTH RÉQUIEM PARA WOLF, CONDE VON KALCKREUTH
Geschiieben am 4. und 5. November 1908 in Paris escrito em 4 e 5 de novembro de 1908 em Paris

Sah icb dich wirklich nie? Mir ist das Herz Cheguei jamais a ver-te realmente? O coração me pesa
so schwer von dir wie von zu schwerem Anfang, de ti como de um árduo início
den man hinausschiebt. Dass icb dich begãnne que se protelasse. Pudesse eu começar
zu sagen, Toter du bist; du geme, a dizer-te, morto que estás, tu voluntária
du leidenschaftlich Toter. War das so e apaixonadamente morto. Foi-te
erleichtemd wie du meintest, oder war o alívio tão grande quanto o que pensisavas ou
das Nichtmehrleben docb noch weit vom Totsein? o nâo-mais-viver se afastava muito do> ser-morto?
Du wãhntest, besser zu besitzen dort, Melhor achavas possuir lá onde
wo keiner Wert legt auf Besitz. Dir schien, nenhum valor é dado à posse. Parecia-te
dort drüben wàrst du innen in der Landscbaft, que ali estarias no interior da paisagem,
die wie ein Bild bier immer vor dir zuging, a qual aqui se fechava, pintura, sempre à tua frente;
und kamst von innen her in die Geliebte que adentrarias ali a amada
und gingest hin durch alies, stark und schwingend. e que, vibrante e forte, atravessarias tudo.
O dass du nun die Tãuschung nicht zu lang Oh que essa ilusão não prolongue em demasia
J
nachtrügest deinem knabenbaften Irrtum. teu rancor contra o engano pueril.
Dass du, gelõst in einer Stromung Wehmut Que, dissolvido numa corrente de melancolia
und hingerissen, balb nur bei Bewusstsein, e arrebatado, em semiconsciência apenas,
in der Bewegung um die femen Steme pelo giro à volta das estrelas longínquas,
die Freude fãndest, die du von bierfort tenhas encontrado a alegria que daqui transferiste
verlegt bast in das Totsein deiner Tràume. para acolá, o ser-morto dos teus sonhos.
Wie nahe warst du, Lieber, bier an ihr. Quão perto, meu caro, te achavas dela aqui.
Wie war sie bier zubaus, die, die du meintest,' Como estava aqui em casa aquela que entendias
die emste Freude deiner strengen Sebnsucht. ser a grave alegria do teu austero anelo.
Wenn du, enttãuscht von Glücklicbsein und Unglück, Quando, desapontado com o ser feliz e infeliz,
dich in dich wühltest und mit einer Einsicht cavavas dentro de ti mesmo e trabalhosamente
mühsam heraufkamst, unter dem Gewicht emergias sob o peso de um saber
beinah zerbrechend deines dunkeln Fundes: obscuro, achado que quase te esmagava:
da trugst du sie, sie, die du nicht erkannt hast, trazias então contigo aquela que não reconheceste,
die Freude trugst du, deines kleinen Heilands a alegria, carga do teu pequeno salvador,
Last trugst du durch dein Blut und holtest über. tu a trazias através do teu sangue até o outro lado.
Was hast du nicht gewartet, dass die Schtvere Porém não es esperaste o peso
ganz unertrãglicb wird: da schlãgt sie um tomar-se intolerá\ivel: aí ele tombava,
und ist so schwer, weil sie so echt ist. Siehst du, tão pesado porque tão autêntico. Vês,
dies war vielleicht dein nãchster Augenblick; >e o teu próximo momento;
esse talvez fosse

100 101


er rückte sich vielleicht vor deiner Tür talvez ajeitasse em frente à tua porta
den Kranz im Haar zurecht, da du sie zuwarfst. a grinalda nos cabelos quando lha bateste.
O dieser Schlag, wie geht er durch das Weltall, Oh essa batida, como ela ressoa no universo
wenn irgendwo vom harten scharfen Zugwind quando, em algum lugar, áspero e cortante, o vento
der Ungeduld ein Offenes ins Schloss fãllt. da impaciência fecha algum aberto.
Wer kann beschwòren, dass nicbt in der Erde Quem pode jurar que na terra uma fenda
ein Sprung sich hinzieht durch gesunde Samen; não corra então ao longo de sementes sadias;
wer hat e/forscht, ob in gezàhmten Tieren quem averiguou se nos bichos domésticos
nicht eine Lust zu tôten geilig aufzuckt, não reponta uma volúpia de matar
wenn dieser Ruck ein Blitzlicht in ihr Him ivirft. quando um abalo que tal lhes relampeja pelo cérebro?
Wer kennt den Einfluss, der von unserm Handeln Quem conhece o influxo que das nossas transações
hinüberspringt in eine nahe Spitze, pula até uma ponta perto,
und wer begleitet ihn, wo alies leitet? e quem o segue ali onde tudo guia?
Dass du zerstõrt hast. Dass man dies von dir Que tivesses destruído. Que de ti se houvesse
wird sagen müssen bis in alie Zeiten. de dizer isso até o fim dos tempos.
Und wenn ein Held bevorsteht, der den Sinn, E se surgir um herói que arranqut ae como máscara
den wirfür das Gesicht der Dinge nehmen, o que tomavamos pelo sentido da las coisas
wie eine Maske abreisst und uns rasend e irado nos desvele rostos
Gesichter aufdeckt, deren Augen lãngst cujos olhos de há muito nos espiam
uns lautlos durch verstellte Lôcher anschaun: em silêncio, por buracos disfarçados:
dies ist Gesicbt und wird sich nicht verwandeln: essa é a face, e não se transmutará,
dass du zerstõrt hast. Blòcke lagen da, que destruíste. Blocos ali jaziam
und in der Luft um sie war schon der Rhythmus e no ar em derredor havia já o ritmo
von einem Bauwerk, kaum mehr zu verhalten; de uma construção que quase não se pode mais deter;
du gingst herum und sahst nicht ihre Ordnung, passaste por ela e não lhe viste ordem,
einer verdeckte dir den andem; jeder um te ocultava o outro; cada bloco
schien dir zu wurzeln, wenn du im Vorbeigehn te parecia enraizado quando, de passagem,
an ihm versuchtest, ohne rechtes Zutraun, tentavas sem verdadeira confiança
dass du ihn hübest. Und du hobst sie alie erguê-lo. E em desespero
in der Verzweiflung, aber nur, um sie tu os ergueste todos, mas apenas
zurückzuschleudem in den klaffen Steinbruch, para lançá-los de volta à pedreira hiante
in den sie, ausgedehnt von deinem Herzen, onde — teu coração os aumentara —
nicht mehr hineingehn. Hãtte eine Frau não mais cabiam. Tivesse uma mulher
die leichte Hand gelegt auf dieses Zomes pousado, leve, a mão sobre o ainda tenro
noch zarten Anfang; würe einer, der início dessa cólera; tivesse alguém
beschãftigt war, im Innersten beschàftigt, que no mais íntimo de si se preocupasse
dir still begegnet, da du stumm hinausgingst, ido calmamente ao teu encontro quando, mudo,
die Tat zu tun —; ja hãtte nur dein Weg te aprestavas para o ato —; sim, tivesse teu caminho
vorbeigeführt an einer wachen Werkstatt, apenas ladeado uma oficina desperta
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wo Mãnner hãmmem, wo der Tag sicb schlicht onde homens martelavam ainda e onde, sir™iingelo,
verwirklicht; wãr in deinem vollen Blick o dia se cumpria; tivesse havido em teu &» u repleto
olhar
nur so viel Raum gewesen, dass das Abbild espaço suficiente para entrar a imagem
von einem Kàfer, der sich müht, hineinging, de um besouro que forceja,
du háttestjáh bei einem hellen Einsehn então terias, num vislumbre luminoso, lido
die Schrift gelesen, deren Zeichen du prontamente aquela escrita cujos signos
seit deiner Kindheit langsam in dich eingrubst, desde a infância em ti gravaste aos poucos,
von Zeit zu Zeit versuchend, ob ein Satz de quando em quando buscando ver se alguma frase
dabei sich bilde: ach, er schien dir sinnlos. se formava, mas ai! te parecia sem sentido.
Ich weiss; ich weiss: du lagst davor und griffst Eu sei; eu sei que tu te debruçavas e corrias
die Rillen ab, wie man auf einem Grabstein a mão pelos sulcos, como numa lápide se apalpa
die Inschrift abfühlt. Was dir irgend licht a inscrição. O que te parecesse
zu brennen schien, das hieltest du ais Leuchte queimar num clarão, erguias como um candeeiro
vor diese Zeile; doch die Flamme losch para iluminar tais linhas, mas a chama se apagava
eh du begriffst, vielleicht von deinem Atem, antes que compreendesses; era talvez teu respirar,
vielleicht vom Zittem deiner Hand; vielleicht talvez tua mão que tremia; talvez até por si
aucb ganz von selbst, wie Flammen manchmal ausgehn. mesma, como as chamas muitas vezes se extinguem.
Du lasesfs nie. Wir aber wagen nicht, Tu não pudeste ler. Mas não nos atrevemos
zu lesen durch den Schmerz und aus der Feme. a ler de longe, em meio à amargura.

Nur den Gedichten sehn wir zu, die noch Só vemos os poemas-, trazem ainda as palavras
über die Neigung deines Füblens abwãrts que escolheste no pendor
die Worte tragen, die du wáhltest. Nein, do teu sentir. Não, não escolheste todas. Amiúde
nicht alie wáhltest du; oft ward ein Anfang um começo se te apresentava como um todo e o repetias
dir auferlegt ais Ganzes, den du nachsprachst qual se fosse missão. E eis que te parecia triste.
wie einen Auftrag. Und er schien dir traurig. Ai, se jamais a tivesses escutado de ti mesmo.
Ach háttest du ihn nie von dir gehôrt. Teu anjo ressoa ainda e dá outro realce
Dein Engel lautet jetzt noch und betont às mesmas palavras, e eu rompo em júbilo
denselben Wortlaut anders, und mir bricht pela sua maneira de dizê-las,
derJubel aus bei seiner Art zu sagen, júbilo [por ti: pois era teu, isso:
der Jubel über dich: denn dies war dein: o amor>r de cada se desprender de ti,
Dass jedes Liebe wieder von dir abfiel, e teres reconhecido na renúncia
dass du im Sehendwerden den Verzicht o. prêmio do ver e na morte teu avanço.
erkannt hast und im Tode deinen Fortschritt. Isso era teu, artista; essas três
Dieses war dein, du, Künstler; diese drei fôrmas abertas. Vê, aí está a efusão
offenen Formen. Sieh, hier ist der Ausguss da primeira: espaço para o teu sentir; e da
der ersten: Raum um dein Gefühl; und da segunda eu extraio para ti o mirar
aus Jener zweiten schlag ich dir das Anschaun que nada cobiça, o mirar do grande artista;
das nichts begehrt, des grossen Künstlers Anschaun;

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und in der dritten, die du selbst zu früh e na terceira, que tu mesmo rompeste
zerbrochen hast, da kaum der eiste Schuss demasiado cedo, mal o primeiro verter '■

bebender Speise aus des Herzens Weissglut da trêmula massa do incandescer do coração
hineinfuhr —, war ein Tod von guter Arbeit nela entrou — havia uma morte moldada a fundo
vertieft gebildet, jener eigne Tod, por bom trabalho, a morte própria
der uns so nôtig bat, weil wir ihn leben, que tanto de nós "s precisa, pois somos nós <que a vivemos,
und dem wir nitgends nãher sind ais hier. e dela em parte alguma
algt estamos mais pertcto do que aqui.
Dies alies war dein Gut und deine Freundscbaft; Isso tudo eram bens jvits teus e amizade tua;
du hast es oft geabnt; dann aber hat tanta vez o pres jssentiste; todavia,
das Hohle jener Formen dich geschreckt, como o oco dac aquelas fôrmas te assustasse,
du griffst hinein und scbópftest Leere und meteste a mão dentro,
< tiraste o vazio e
beklagtest dicb. — O alter Finch der Dichter, te queixaste. — Oh velha maldição dos poetas
die sich beklagen, wo sie sagen sollten, que se lamentam quando deviam só dizer;
die immer urteiln über ihr Gefühl que julgam sempre seu próprio sentir
statt es zu bilden; die nocb immer meinen, em vez de moldá-lo; que2 estão sempre: atentos
was traurig ist in ihnen oder froh, ao que em si tragam de ttristeza ou de alegria,
;
das wüssten sie und dürftens im Gedicht isso eles sabem e podem em jpoemas
bedauem oder rühmen. Wie die Kranken lamentar-se e gabar-se. À semt telhança dos enfermos,
gebraucben sie die Sprache voller Wehleid, usam a linguagem das queixas
um zu beschreiben, wo es ihnen webtut, para descrever onde lhes dói,
statt hart sich in die Worte zu verwandeln, em vez de austeramente fazerem-se em palavras
wie sich der Steinmetz einer Katbedrale assim como o canteiro de uma catedral
verbissen umsetzt in des Steines Gleichmut. obstinadamente se converte na equanimidade da pedra.
Dies war die Rettung. Háttest du nur ein Mal Isso era a salvação. Se tivesses uma única vez
gesehn, wie Schicksal in die Verse eingeht visto como o destino entra nos versos
und nicht zurückkommt, wie es drinnen Bild wírd para não mais sair, como dentro faz-se imagem
und nichts ais Bild, nicht anders ais ein Abnherr, e nada mais que imagem, tal como um avoengo
der dir im Rahmen, wenn du mancbmal aufsiehst, que da moldura, quando por vezes levantas o olhar,

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zu gleichen scbeint und wieder nicht zu gleichen — se parece ora contigo e ora não —:
du háttest ausgeharrt. tu terias persistido.

Doch dies ist kleinlich, Mas é mesquinho, isso


zu denken, was nicht war. Aucb ist ein Schein de pensar no que não foi. Há também uma aparência
von Vorwutf im Vergleich, der dich nicbt trifft. de censura na comparação que não te atinge.
Das, was geschieht, hat einen solchen Vorsprung O que acontece tem tamanho avanço
vor unserm Meinen, dass wirs niemals einholn sobre a nossa opinião que não o alcançamos nunca
und nie erfahren, wie es wirklich aussah. nem descobrimos como era realmente.
Sei nicht beschãmt, wenn dich die Toten streifen, Não te envergonhes quando os mortos te roçarem,
die andem Toten, welche bis ans Ende os outros mortos, os que agüentaram

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aushielten. (Was will Ende sagen?) Tausche até o fim. (O que quer dizer fim?) Troca
den Blick mit ihnen, ruhig, wie es Brauch ist, o olhar com eles, tranqüilo, como de uso,
undfürchte nicht, dass unser Trauem dich e não temas que o nosso luto te
seltsam beládt, so dass du ihnen auffállst. sobrecarregue, a ponto de lhes dares na vista.
Die grossen Worte aus den Zeiten, da As grandes palavras de outrora, quando
Geschehn noch sichtbar war, sind nicht für uns. acontecer não era ainda visível, não são para nós.
Wer spricht von Siegen? Überstehn ist alies. Quem fala de vitórias? Suportar é tudo.

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DAS ELEGIAS DUINENSES

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DIE ZWEITE ELEGIE SEGUNDA ELEGIA

Jeder Engel ist schrecklicb. Und dennoch, weh mir, Todo Anjo é terrível. E no entanto, ai de mim,
ansing icb eucb, fast tõdlicbe Vogei der Seele, eu vos invoco, pássaros quase mortais da alma,
wissend um eucb. Wohin sind die Tage Tobiae, por saber quem sois. Onde estão os tempos de Tobias
da der Strablendsten einer stand an der einfachen Haustür, quando um dos mais radiantes de vós se postava à porta
zur Reise ein wenig verkleidet und scbon nicht mehr (simples da casa
[furchtbar; meio disfarçado para a viagem e já não mais temível
(Jüngling dem Jüngling, wie er neugierig hinaussab). (um jovem para o jovem que com curiosidade o olhava lá fora).
Trate der Erzengeljetzt, der gefàhrliche, hinter den Stemen Tivesse então o Arcanjo, perigo de trás das estrelas,
eines Schrittes nur nieder und herwãrts: hochauf- dado um só passo cá para baixo; o bater tão forte
scblagend erschlüg uns das eigene Herz. Wer seid ihr? de nosso próprio coração nos abatería. Vós quem sois?

Frühe Geglückte, ihr Verwôhnten der Schõpfung, Consecuções primeiras, vós os amimados da criação,
Hõbenzüge, morgenrõtliche Grate linhas de picos, cristas rubras ao amanhecer

I, aller Erschaffung, — Pollen der blübenden Gottheit, de todo o criado — pólen da divindade em flor,
Gelenke des Lichtes, Gànge, Treppen, Throne, articulações de luz, passagens, escadas, tronos,
Rãume aus Wesen, Schilde aus Wonne, Tumulte espaços de essência, escudos de deleites, tumultuar
stürmisch entzückten Gefühls und plõtzlich, einzeln, do tempestuoso enlevo do sentir, e de inopino, solitários,
Spiegel: die die entstromte eigene Sctionheit espelhos que a mesma beleza que irradiam
wiederschôpfen zurück in das eigene Antlitz. haurem de volta no próprio semblante.

Denn wir, wo wirfühlen, verflüchtigen; ach wir Pois que no sentir nos volatilizamos; ai de nós
atmen uns aus und dabin, von Holzglut zu Holzglut que nos exalamos até a exaustão; e de arder em arder
geben wir schwãcbem Geruch. Da sagt uns wohl einer: desprendemos aroma cada vez mais fraco. Bem podería
Jd, du gehst mir ins Blut, dieses Zimmer, der Frühling [alguém dizer:
füllt sich mit dir... Was hilfts, er kann uns nicht halten, Sim, entras no meu sangue, este aposento, a primavera
wir schwinden in ihm und um ihn. Und jene, die schõn sind, enchem-se de ti... Mas de que adianta se não nos retém,
o wer hãlt sie zurück? Unaufhõrlich steht Anschein se ali sumimos e à sua volta. E aqueles que são belos,
auf in ihrem Gesichi und geht fort. Wie Tau von den quem os reteria? Ininterruptamente a aparência
[Frühgras surge-lhes na face e vai-se. Como o orvalho da erva matinal,
hebt sich das Unsre von uns, wie die Hitze von einem o que é nosso se desprende de nós, feito o calor de um prato
heissen Gericht. O Ldcheln, wohin? O Aufschaun: de comida quente. Oh sorriso, para onde? Oh olhar erguido:
neue, warme, entgehende Welle des Herzens cálida onda nova e efêmera do coração —;
weh mir: wir sinds doch. Scbmeckt denn der Weltraum, ai de mim: somos isso, pois. O espaço sideral
in den wir uns lõsen, nacb uns? Fangen die Engel em que nos dissolvemos, guarda o nosso gosto? Recolhem os Anjos

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wirklich nur Ibriges auf, ihnen Entstrõmtes, na verdade apenas o que deles dimanou,
oder ist mancbmal, ivie aus Versehen, ein wenig ou às vezes, como que fpor descuido, um pouco
unseres Wesens dabei? Sind wir in ihre da nossa essência junto?? Estamos acaso misturados de leve
Züge soviel nur gemiscbt wie das Vage in die Gesichter às suas feições como o vago
\ nos rostos
scbwangerer Frauen? Sie merken es nicht in dem Wirbel das mulheres prenhes? ElEles nâo o notam no turbilhonar
ihrer Rückkehr zu sich. (Wie sollten sie's merken.) do regresso a si próprios. (Como iriam notar?)

Liebende kõnnten, verstünden sie's, in der Nacbtlufi Os amantes poderíam, se compreendessem isso, dizer coisas
wunderlich reden. Denn es scheint, dass uns alies (estranhas
verheimlicht. Siehe, die Betume sind,- die Hãuser, no ar noturno. Pois parece que tudo
die wir bewohnen, bestebn noch. Wir nur nos oculta. Vê, as árvores são; as casas
ziehen aliem vorbei wie ein luftiger Austausch. que habitamos permanecem ainda. Somente nós
Und alies ist einig, uns zu verschweigen, balb ais passamos por tudo como aérea permuta.
Scbande vielleicbt und balb ais unsàgliche Hoffnung. E tudo se concerta para nos calar, em parte
por vergonha, talvez, em parte por indizível esperança.
Liebende, euch, ihr in einander Genügten,
frag ich nach uns. Ihr greifl euch. Habt ihr Beweise? Amantes, que vos bastais um ao outro,
Seht, mir geschiebts, dass meine Hãnde einander eu vos pergunto por nós. Vós vos tocais. Tendes provas?
inne iverden oder dass mein gebraucbtes Vede, acontece-me que minhas mãos se entendem
Gesicht in ihnen sich schont. Das giebt mir ein wenig entre si, ou qu<te meu rosto gasto
Empfindung. Doch wer wagte darum schon zu sein? nelas se cuida,. Isso me dá certa
Ihr aber, die ihr im Entzücken des anderen sensação de mim. Mas quem ppor isso apenas ousaria ser?
I zunehmt, bis er euch überwãltigt
anfleht: nicht mehr —die ihr unter den Hãnden
Vós porém que no enlevo um
avultais, até um, subjugado,
n do outro

euch reichlicher werdet wie Traubenjahre; implorar: chega —; que sob vossas mãos
die ihr mancbmal uergeht, nur weil der andre vos fazeis tão copiosos como os anos de uvas;
ganz überhand nimmt: euch frag ich nach uns. Ich weiss, que por vezes definhais só porque o outro
1 ihr berührt euch so selig, weil die Liebkosung verhãlt,
weil die Stelle nicht schwindet, die ihr, Zãrtliche,
preponderou demasiado: eu vos pergunto por nós. Sei
que vos tocais tão ditosamente porque a carícia retém,
zudeckt; weil ihr darunter das reine porque não some o lugar que vossa meiguice
Dauem verspürt. So versprecht ihr euch Ewigkeit fast cobre; porque percebeis sob ele
von der Umarmung. Und doch, wenn ihr der ersten a pura duração. Quase que vos prometeis a eternidade
Blicke Schrecken besteht und die Sehnsucht am Fenster, no amplexo. E contudo, quando venceis o primeiro
und den ersten gemeinsamen Gang, ein Mal durch den olhar de susto e a nostalgia à janela

Liebende, seid ihrs dann noch? Wenn ihr einer dem andem
[Garten: e o primeiro passeio juntos, uma vez, pelo jardim:
Amantes, ainda o soiS Quando vos levais um ao outro
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euch an den Mund hebt und ansetzt —: Getrànk an Getrãnk:
o wie entgeht dann der Trinkende seltsam der Handlung.
à boca —: bebida contra bebida: oh que estranhamente
escapa então quem bebe ao próprio ato.
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Erstaunte euch nicht auf attischen Stelen die Vorsicht
menschlicher Geste? war nicht Liebe und Abschied
Não vos surpreende, nas esteias áticas, a prudência
do gesto humano? não pousavam amor e adeus
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so leicht auf die Schultem gelegt, ais war es aus anderm de leve sobre os ombros, como se fossem feitos
Stoffe gemacht ais bei uns? Gedenkt euch der Hãnde, de estofo diverso do nosso? Lembrai das mãos,
wie sie drucklos beruhen, obwohl in den Torsen die Krafí como tocam sem peso, embora nos torsos a força permaneça.
! [steht. Senhores de si, sabiam então: até aqui somos,
Diese Beherrschten wussten damit: so iveit sind wirs, isto é nosso, tocar-nos assim-, mais fortemente
dieses ist unser, uns so zu berühren; stárker nos impelem os deuses. Mas é coisa de deuses.
stemmen die Gôtter uns an. Doch dies ist Sache der Gõtter.
Sè encontrássemos nós também uma pura, contida,
Fãnden auch wir ein reines, verhaltenes, schmales estreita parcela de humano, uma faixa de terra frutífera,
Menschliches, einen unseren Streifen Fruchtlands nossa, entre caudal e rocha. Pois, como eles,
zwischen Strom und Gestein. Denn das eigene Herz übersteigt nosso próprio coração nos ultrapassa sempre. E não mais
[uns o podemos seguir em imagens que o acalmem ou
noch immer wie jene. Und wir kônnen ibm nicht mehr em corpos divinos nos quais, excedendo-se, ele se modera.
nachschaun in Bilder, die es besãnftigen,t, nocb in
t I gõttliche Kõrper, in denen es grõsser sicb> mãssigt.
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DIE DRHTE ELEGÍE TERCEIRA ELEGIA

Eines ist, die Geliebte zu singen. Ein anderes, webe, Uma coisa é celebrar a Amada. Outra, ai de nós,
jenen verborgenen schuldigen Fluss-Gott des Bluts. celebrar esse culposo e oculto Deus-Caudal do sangue.
Den sie von weitem erkennt, ihren Jilngling, ivas iveiss er Aquele que ela de longe reconhece, seu jovem amado, que
selbst von dem Herren der Lust, der aus dem Einsamen oft, [sabe
ehe das Mádchen noch linderte, oft auch ais wãre sie nicht, ele do Senhor do Desejo, o qual da solidão amiúde,
ach, von welchem Unkenntlichen triefend, das Gotthaupt antes que a Amada o aplacasse, ou então como se ela não
aufhob, aufrufend die Nacbt zu unendlichem Aufruhr. [existisse,
O des Blutes Neptun, o sein furchtbarer Dreizack. erguia gotejante, ah de que ignotas regiões,
O der dunkele Wind seiner Brust aus gewundener Muschel. sua cabeça de deus, conclamando a noite ao infinito tumulto?
Horch, wie die Nacht sich muldet und hõhlt. Ihr Steme, Oh o Netuno do sangue, oh o seu assustador tridente.
stammt nicht von euch des Liebenden Lust zu dem Antlitz Oh o sopro sombrio de seu peito, espiralada concha.
seiner Geliebten? Hat er die innige Einsicht Ouve como a noite se encurva e se faz cava. Vós, estrelas,
in ihr reines Gesicht nicht aus dem reinen Gestim? não é de vós que vem a ânsia do amante
de ver o rosto da amada? A íntima visão
do seu puro semblante, não a tomou ele das puras
[constelações?

Não foste tu, nem a mãe dele, ai,


quem lhe distendeu as sobrancelhas num tal arco de espera.
Du nicht hast ihm, wehe, nicht seine Mutter Por ti não foi, jovem sensível, por ti não foi
hat ihm die Bogen der Braun so zur Erwartung gespannt. que os lábios deles se encurvaram numa expressãoíssão fecunda.
Nicht an dir, ihn fühlendes Mádchen, an dir nicht Achas de fato que ele se abalasse à tua chegada
bog seine Lippe sich zum fruchtbarem Ausdruck. tão ligeira, tu que andas como o vento da manhã?
Meinst du wirklich, ihn hàtte dein leichter Auftritt Tu lhe sobressaltaste mesmo o coração, mas medos mais
also erschüttert, du, die wandelt wie Frühwind? [antigos
Zwar du erschrakst ihm das Herz; doch altere Schrecken precipitaram-se dentro dele à comoção do choque.
stürzten in ihn bei dem berübrenden Anstoss. Chama-o... não o arrancarás por inteiro da sombria
Ruf ihn... du rufst ihn nicht ganz aus dunkelem Umgang. [convivência.
Freilich, er will, er entspringt; erleicbtert gewõhnt er Ele certamente quer, e evade-se-, aliviado, habitua-se
sich in dein heimliches Herz und nimmt und beginntsich. ao teu coração recôndito, assenhoreia dele e se inicia.
Aber begann er sich je? Será que se iniciou jamais?
ii Mutter, du machtest ihn klein, du warsts, die ihn anfing;
dir war er neu, du beugtest über die neuen
Mãe, tu o fizeste, pequeno, foste quem lhe deu começo;
ele te era novo, baixaste até a altura dos seus olhos
Augen die freundliche Welt und wehrtest der fremden. recentes o mundo amigo e afastaste o que era estranho.

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Wo, ach, hin sind die Jabre, da du ihm einfach Onde andam os anos, ai, em que com tua só
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mit der scblanken Gestalt wallendes Cbaos uertratst? figura esbelta o defendias do caos a ondular?
Vieles verbargst du ihm so; das nãchtlich-verdãchtige Zimmer Muito lhe escondeste assim; tomaste inofensiva ■

macbtest du harmlos, aus deinem Herzen voll Zufhicht a noite suspeita do seu quarto; teu coração aconchegante
mischtest du menscblichern Raum seinem Nacht-Raum binzu. mesclou um espaço mais humano ao espaço da sua noite.
Nicbt in die Finstemis, nein, in dein nãheres Dasein Não, não nas trevas e sim, mais próxima, em tua presença
hast du das Nacbtlicbt gestellt, und es schien wie aus foi que puseste a lâmpada da noite, a luz acesa da amizade.
[Freundscbaft. Nenhum estalo que a rir não lhe explicasses
Nirgends ein Knistem, das du nicbt lãcbelnd erklàrtest, como se há muito soubesses quando o assoalho ia estalar...
so ais wüsstest du langst, wann sich die Diele benimmt... E ele ouvia e se acalmava. Tanto podia
Und er horchte und linderte sich. So vieles vermochte o teu meigo pôr-se de pé; para atrás do armário ia-se,
zãrtlich dein Aufstebn; hinter den Schrank trat alto em seu manto, o destino dele e nas pregas da cortina
boch im Mantel ein Schicksal, und in die Falten des Vorhangs se aninhava, facilmente mutável, seu futuro inquieto.
passte, die leicht sich verschob, seine unruhige Zukunft.
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E ele próprio ali jacente aliviado, dissolvendo,
Und er selbst, wie er lag, der Erleichterte, unter sob as pálpebras sonolentas, tua doce e leve conformação

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schláfemden Lidem deiner leicbten Gestaltung no sabor do sono a sobrevir —:
Süsse lõsend in den gekosteten Vorschlaf—: parecia abrigado... Mas dentro. quem obstava,
schien ein Gehüteter... Xèerinnen: wer wehrte, quem continha dentro dele o afluxo das origens?
hinderte innen in ihm die Fluten der Herkunft? Ah não havia precaução alguma nele que dormia;
Ach, da war keine Vorsicht im Schlafenden; schlafend, dormia mas sonhando, mas em febre: e como se entregava.
aber tràumend, aber in Fiebern: wie er sich ein-liess. Como, novo e temeroso, se enredava
Er, der Neue, Scheuende, wie er verstrickt war, nas gavinhas do acontecer interior que se enlaçavam
mit des innem Gescbebns weiterschlagenden Ranken em padrões de sufocante crescimento, em animalescas
schon zu Mustem verschlungen, zu wütgendem Wachstum, formas a perseguir-se. Como se abandonava a isso tudo. —
[zu tierhaft [Amava.
jagenden Formen. Wie er sich hingab —. Liebte. Amava seus recessos, seu matagal interior,
■ Liebte sein Inneres, seines Inneren Wildnis, a selva dentro de si por sobre cujos desmoronamentos
diesen Urwald in ihm, auf dessen stummem Gestürztsein [mudos
lichtgrün sein Herz stand. Liebte. Verliess es, ging die seu verde-claro coração se erguia. Amava. Deixou-a;
eigenen Wurzeln hinaus in gewaltigen Ursprung, seguiu suas próprias raízes até a poderosa origem
wo seine kleine Geburt schon überlebt war. Liebend onde seu pequeno nascimento já estava findo. Amando,
stieg er hinab in das altere Blut, in die Schluchten, desceu ao sangue mais antigo, aos desfiladeiros
wo das Furchtbare lag, noch satt von den Vátem. Und jedes onde o assustador jazia, ainda farto dos avoengos. Cada
Schreckliche kannte ihn, blinzelte, war wie verstãndigt. temor o conhecia, piscava-lhe como que em anuência.
Ja, das Entsetzliche làchelte... Selten Sim, o terrível sorria... Raras vezes
hast du so zãrtlich gelãchelt, Mutter. Wie sollte sorriste com tanta meiguice, mãe. Como
er es nicbt lieben, da es ihm làchelte. Vor dir não amá-lo se ele lhe sorria. Antes de ti

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ele o amou, pois o trazias já,
hat ers geliebt, denn, da du ihn trugst schon,
estava dissolvido n’água, que torna leve o germe.
war es im Wasser gelóst, das den Keimenden leicht macht.
Vê, nós nào amamos como as flores, por
Siehe, wir lieben nicht, wie die Blumen, aus einem
uma só estação; quando amamos, sobe-nos
einzigen Jahr; uns steigt, wo wir lieben,
pelos braços seiva imemorial. Oh donzela,
unvordenklicher Saft in die Arme. O Mãdcben,
é isto: amamos em nós não um ser futuro,
dies: dass wir liebten in uns, nicht Eines, ein Künftiges,
(ges,
[sondem mas a fermentação inúmera; não uma criança isolada
mas antepassados que como escombros de montanhas
das zahllos Brauende; nicht ein einzelnes Kind,
jazem no fundo de nós; mas o seco leito fluvial
sondem die Vãter, die wie Trummer Gebirgs
das mães de outrora —; mas a inteira
uns im Grunde beruhn; sondem das trockene Flussbett
silente paisagem sob o nublado
einstiger Mütter —; sondem die ganze
ou límpido Destino —: isso, donzela, te antecipa.
lautlose Landscbafi unter dem wolkigen oder
reinen Verhãngnis —: dies kam dir, Mãdchen, zuvor.
E tu mesma, o que sabes? — tu que fizeste remontar
no teu amante os tempos remotos. Que sentimentos
Und du selber, was weisst du —, du locktest
irromperam nos seres idos? Que
Vorzeit empor in dem Liebenden. Welche Gefühle
mulheres de lá te odiaram? Que homens sombrios
wühlten herauf aus entwandelten Wesen. Welche agitaste nas veias do rapaz? Crianças mortas
Frauen hassten dich da. Wasfür finstere Mãnner te buscavam... Mansa, mansamente, cumpre
regtest du auf im Geãder des Jünglings? Tote diante dele uma de tuas caras tarefas diárias. — Leva-o
Kinder wollten zu dir... O leise, leise,
para junto do jardim, dá-lhe a supremacia
tu ein liebes vor ihm, ein verlàssliches Tagwerk, — führ ihn
das noites...
nah an den Garten heran, gieb ihm der Nãchte Guarda-b...
Übergewicht
Verhalt ihn.

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DIE FÜNFTE ELEGIE QUINTA ELEGIA


Frau Hertha Koenig zugeeignet Dedicada à sra. Hertha Koenig

Wer aber sind sie, sag mir, die Fahrenden, diese ein tvenig Mas quem são eles, diz-me, estes errantes, algo
Flücbtigem noch ais wir selbst, die dringend von früh an mais fugazes que nós, estes a quem desde cedo
wringt ein wem, wem zu Liebe uma vontade nunca satisfeita torce com premência:
niemals zufriedener Wille? Sondem es wringt sie, para quem, por amor de querril Ela os torce todavia
biegt sie, schlingt sie und scbwingt sie, e os curva, ata e faz balançar,
wirft sie und fangt sie zurück; wie aus geõlter, ela os atira e apanha de volta; como que de um ar
glatterer Luft kommen sie nieder untado, mais liso, eles caem
auf dem verzehrten, von ihrem ewigen no ralo tapete desgastado pelos seus
Aufsprung dünneren Teppicb, diesem uerlorenen sempitemos pulos, esse tapete
Teppicb im Weltall. perdido no universo.
Aufgelegt wie ein Pflaster, ais hãtte der Vorstadt- Feito um emplastro aplicado à terra, como
se o céu dos subúrbios a tivesse machucado.

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Himmel der Erde dort webe getan.
Und kaum dort, E tão logo ali,
aufrecbt, da und gezeigt: des Dastebns ei-los erectos a manifestar: a grande inicial maiúscula

grosser Anfangsbucbstab..., schon aucb, die starksten do estar-aí... e já de novo faz rolar
Mânner, rollt sie wieder, zum Scherz, der immer os homens mais fortes, em brincadeira; a garra
kommende Griff wie August der Starke bei Tisch que sempre volta, como Augusto o Forte a rodar na mesa
einen zinnenen Teller. um prato de estanho.

Ach und um diese Ah, e à volta desse


Mitte, die Rose des Zuschauns: centro, a rosa do mirar:
blübt und entblãttert. Um diesen floresce e se desfolha. À volta desse
Stampfer, den Stempel, den von dem eignen pilão, o pistilo, tocado por seu próprio
blübenden Staub getroffnen, zur Scheinfrucht pólen florescente, torna a frutificar
wieder der Unlust befrucbteten, ibrer no ilusório fruto do desagrado,
niemals bewussten, — glanzend mit dünnster de que nunca teve consciência — desagrado
Oberfláche leicht scheinlãcbelnden Unlust. que parece sorrir de leve na superfície tênue e luzente.

Da: der welke, faltige Stemmer, Lá o murcho, enrugado tronco da estirpe,


der alie, der nur noch trommelt, o velho que agora só percute um tambor,
eingegangen in seiner gewaltigen Haut, ais bãtte sie früber encolhido dentro de sua pele excessiva, como se ela antes
zwei Mãnner enthalten, und einer contivesse dois homens, um dos quais
lâge nun schon auf dem Kirchhof und er überiebte den andem, jazesse agora no cemitério, e o outro lhe sobrevivesse

124 125
n
taub und manchmal ein wenig surdo e às vezes um tanto confuso
wirr, in der verwittveten Haut. na pele viúva.

Aber der junge, der Mann, ais wãr er der Sobn eines Nackens Mas o jovem, o homem, era como se fosse filho de um
und einer Nonne: prall und strammig erfüllt [cachaço
mit Muskeln und Einfalt. e de uma freira: teso, robusto, cheio
de simplicidade e músculos.
Oh ihr,
die ein Leid, das noch klein war, Oh vós
einst ais Spielzeug bekam, in einer seiner que uma dor, pequena ainda,
langen Genesungen.... outrora acolheu como brinquedo numa das suas
longas convalescenças...
Du, der mit dem Aufschlag,
wie nur Früchte ihn kennen, unreif, Tu, que numa queda
tàglich hundertmal abfallt vom Baum der gemeinsam como a que só as frutas conhecem, cem vezes ao dia
erbauten Bewégung (der, rascher ais Wasser, in tvenig tombas ainda verde da árvore do movimento
Minuten Lenz, Sommer und Herbst hat) — erigida em conjunto (e que, mais veloz que água, em
abfallt und anprallt ans Grab: poucos minutos conhece primavera, estio e outono) —
manchmal, in halber Pause, will dir ein liebes te desprendes e te chocas contra o túmulo:
Antlitz entstehn hinüber zu deiner selten às vezes, numa semipausa, quer formar-se em ti
zãrtlichen Mutter; doch an deinen Kõrper verliert sich, um semblante amoroso e voltar-se para a rara
der esflàchig verbraucht, das schüchtem meiguice de tua mãe; perde-se todavia no teu corpo,
kaurn versuchte Gesicht... Und wieder cuja superfície o consome, esse rosto
klatscht der Mann in die Hand zu dem Ansprung, und eh dir timidamente esboçado... E de novo
jemals ein Schmerz deutlicher wird in der Nabe des immer o homem bate as mãos, chamando ao salto, mas já antes
trabenden Herzens, komrnt das Brennen der Fusssohln que5 chegue a precisar-se uma dor nas cercanias
ihm, seinem Ursprung, zuuor mit ein paar dir do teu sempre saltitante coração, o ardume na planta dos pés
rasch in die Augen gejagten leiblichen Trãnen. lhe antecede a origem, e algumas
Und dennoch, blindlings, lágrimas corporais afloram em teus olhos.
das Lãcheln..... No entanto, às cegas, eis
ij Í o sorriso...
Engel! o nimms, pflücks, das kleinblütige Heilkraut.
Schaff eine Vase, uerwahrs! Stells unter jene, uns noch nicbt Anjo! pega, colhe a erva medicinal de flores miúdas.
offenen Freuden; in lieblicher Ume Arranja-lhe um vaso, guarda-a! Pòe-na entre aquelas alegrias
rühms mit blumiger schwungiger Aufschrift: que não nos são ainda franqueadas; enaltece-a,
“Subrisio Saltat". em graciosa uma, com uma inscrição florida, cheia de brio:
Du dann, Liebliche, "Subrisio Saltat”.
Tu, adorável, em seguida!

126 127


du, von den reizendsten Freuden tu por sobre quem as mais sedutoras alegrias
stumm Übersprungne. Vielleicht sind saltaram mudamente. Talvez as tuas franjas
deine Fransen glücklicb für dich —, sejam ditosas por ti —
oder über den jungen talvez sobre teus jovens
prallen Briisten die grüne metalIene Seide seios túmidos a seda verde-metálica
fühlt sich unendlich verwõhnt und entbehrt nichts. se sinta infinitamente mimada, de mais nada carente.

Du, Tu, fruta de feira


immetfart anders auf alie des Gleichgewichts schwankende sempre diversamente pousada em todas as oscilantes
Waagen balanças do equilíbrio,
hingelegte Marktfrucbt des Gleicbmuts, fruta de indiferença publicamente
ôffentlich unter den Schultem. oferecida entre os ombros.

Wo, o wo ist der Ort — ich trag ihn im Herzen —, Onde, oh onde fica o lugar — levo-o no coração —
wo sie nocb lange nicht konnten, nocb von einander onde eles estavam ainda longe de poder, onde ainda caíam
abfieln, wie sich bespringende, nicbt recht uns de sobre os outros, feito animais
paarige Tiere; ■— mal acasalados; —
wo die Gewicbte nocb schwer sind; onde os pesos ainda oprimem;
wo nocb von ihren vergeblich onde sobre as varas
. wirbelnden Stãben die Teller em rodopio vão
torkeln..:.. os pratos cambaleiam...

i4' Und plõtzlich in diesem mühsamen Nirgends, plõtzlich


die unsãgliche Stelle, wo sich das reine Zuwenig
E de repente, nessa dificultosa Parte-Alguma, de repente
eis o inefável lugar em que o puro Muito-Pouco

!r unbegreiflich verwandelt—, umspringt


in jenes leere Zuviel.
Wo die vielstellige Rechnung
incompreensivelmente se transforma —, muda-se num átimo
em vácua Demasia.
Onde a operação de tantas casas decimais
zablenlos aufgeht resolve-se sem números.
I• li Plâtze, o Platz in Paris, unendlicher Scbauplatz, Praças, oh praça de Paris, intérmino teatro
wo die Modistin, Madame Lamort, onde a modista Madame Lamort
die ruhlosen Wege der Erde, endlose Bãnder, entrelaça e enovela os irrequietos caminhos do mundo,
schlingt und windet und neue aus ihnen fitas infindáveis, e lhes inventa novos
Schleifen erfindet, Rüschen, Blumen, Kokarden, künstliche laços, folhos, flores, emblemas, frutas artificiais — tudo
[Frücbte—, alie em falsas cores —, para os módicos
unwahr gefãrbt, — für die billigen chapéus de inverno do destino.
Winterbüte des Schicksals.

128 129
Engelh Es wãre ein Platz, den wir nicht wissen, und dorten, Anjo! havería uma praça que não conhecemos onde,
auf unsãglichem Teppich, zeigten die Liebenden, die's hier sobre inefável tapete, os amantes
bis zum Kõnnen nie bríngen, ibre kübnen que aqui não chegam nunca
hohen Figuren des Herzschwungs, a realizá-las, mostrariam suas altas, audazes figurações
ihre Türme aus Lust, ibre do ímpeto do coração, suas torres de prazer e suas escadas,
lüngst, wo Boden nie toar, nur an einander eles há tanto onde nunca houve chão, apoiados tão-só,
lehnenden Leitern, bebend, — und kõnntens, trêmulos, um no outro — alio poderíam,
vor den Zuschauem rings, unzàbligen lautlosen Toten: diante dos espectadores à volta, incontáveis mortos sem voz:
Wíirfen die dann ihre letzlen, imrner ersparten, Será que estes então atirariam suas derradeiras, sempre
immer verborgenen, die wir nicht kennen, ewig poupadas, sempre ocultas moedas da felicidade,
gültigen Münzen des Glücks vor das endlich eternamente válidas e <que não conhecemos, ao par
wahrbaft lãchelnde Paar auf gestilltem a sorrir de verdade enf ifim sobre o tapete
Teppich? apaziguado?

5i
i

130 131
1

DIE ACHTE ELEGÍE OITAVA ELEGIA


Rudolf Kassner zugeeignet Dedicada a Rudolf Kassner

Mit allen Augen sieht die Kreatur Com todos os olhos a criatura
das Offene. Nur unsre Augen sind vê o Aberto. Só os nossos olhos,
wie umgekehrt und ganz um sie gestellt como que invertidos, são armadilhas postas
ais Fallen, rings um ihren freien Ausgang. à volta de sua livre saída.
Was draussen ist, wir wissens aus des Tiers O que há fora, nós o sabemos apenas
Antlitz allein; denn schon das frühe Kind pelo semblante do animal; desde pequenina,
tvenden wir um und zwingens, dass es rückwãrts obrigamos a criança a voltar-se e ver, atrás,
Gestaltung sebe, nicbt das Offne, das só o Aparente, não o Aberto, que
im Tiergesicht so tief ist. Frei von Tod. na cara do animal é tão profundo. Isento de morte.
Ihn sehen wir allein; das freie Tier Não vemos senão esta, o livre animal
hat seinen Untergang stets binter sich tem seu ocaso sempre atrás de si
und vor sich Gott, und wenn es geht, so gehts e à frente Deus; quando avança,
in Ewigkeit, so wie die Brunnen geben. avança, Eternidade adentro, como as fontes que correm.

í Wir baben nie, nicbt einen einzigen Tag,


den reinen Raum vor uns, in den die Blumen
unendlich aufgehn. Immer ist es Welt
und niemals Nirgends ohne Nicbt: das Reine,
Unüberwachte, das man atmet und
Nós nunca temos, um só dia sequer,
o puro espaço à nossa frente no qual as flores
se abrem infinitamente. Há sempre mundo
e jamais Lugar-Algum sem não: o Puro,
o não-vigiado, que os homens respirassem e conhecessem
unendlich weiss und nicbt begebrt. Ais Kind infinitamente, sem o cobiçar. Criança,

1
verliert sich eins im Stilln and dies und wird um se perde no silêncio e é
gerüttelt. Oder jener stirbt und ists. abalado. Outro morre e ei-lo que é.
Denn nah am Tod sieht man den Tod nicht mehr Pois, perto da morte, não se vê mais a morte
und starrt hinaus, vielleicht mit grossem Tierblick. e olha-se para fora, com talvez a larga mirada do animal.
Liebende, wàre nicht der andre, der Os amantes, não fosse pelo outro
die Sieht verstellt, sind nab daran und staunen... que a vista lhes encobre, estão perto disso e espantam-se...
Wie aus Versehn ist ihnen ailfgetan ■ Como por engano, abriu-se para eles
binter dem andem... Aber über ihn atrás do outro... Mas ninguém
Hl kommt keinerfort, und wieder wird ihm Welt.
Der Schõpfung immer zugewendet, sehn
passa adiante deste, e eis para eles de novo o mundo.
Voltados sempre para a criação, vemos
wir nur auf ihr die Spiegelung des Frein, nela tão-somente o reflexo do Livre
von uns verdunkelt. Oder dass ein Tier, por nós mesmos ofuscado. A menos que o mudo olhar
ein stummes, aufschaut, ruhig durch uns durch. de um animal nos trespasse de todo, quietamente.

I, f\_ 132 133

1
Dieses heisst Schicksal: gegenüber sein Eis o que se chama Destino: estar de frente,
und nichts ais das und immer gegenüber. nada mais que isso, estar sempre de frente.

Wãre Bewusstheit unsrer Art in dem Houvesse uma consciência semelhante à nossa
sicheren Tier, das uns entgegenzieht no animal seguro de si, que vem até nós
in anderer Richtung —, riss es uns herum noutra direção — e ele nos levaria
mit seinem Wandel. Doch sein Sein ist ibm consigo em sua marcha. Todavia, o seu ser lhe é
unendlicb, ungefasst und ohne Blick infinito, incontido, sem qualquer repa
>aro
auf seinen Zustand, rein, so wie sein Ausblick. ao seu estado, puro, como seu olharr à frente.
Und wo wir Zukunft sehn, dort siebt es Alies E onde vemos futuro, ele vê o Todo
und sich in Aliem und gebeilt für immer. e a si próprio no Todo, para sempre a salvo.

Und doch ist in dem wachsam warmen Tier Entretanto, no cáiido animal alerta,
Gewicht und Sorge einer grossen Scbwermut. há o peso e aflição de uma grande melancolia.
Denn ibm auch baftet immer an, was uns Pois a ele também se apega aquilo
oft überwaltigt, — die Erinnerung, que nos subjuga amiúde — a lembrança,
ais sei scbon einmal das, wonacb man drangt, como se outrora, mais fiéis, tivéssemos estado mais perto
nãher gewesen, treuer und sein Anscbluss daquilo para que se é impelido, numa comunhão
unendlicb zàrtlich. Hier ist alies Abstand, infinitamente suave. É afastamento aqui
und dort wars Atem. Nacb der ersten Heimat tudo que lá era alento. Após a pátria primeira,
ist ibm die zweite zwitterig und windig. é-lhe a segunda híbrida e varrida de ventos.
O Seligkeit der kleinen Kreatur, Oh a bem-aventurança da miúda criatura
4 die immer bleibt im Scboosse, der sie austrug; que permanece sempre no seio que a conteve até nascer;
oh a felicidade da mosca que ainda saltita por dentro

i
o Glück der Mücke, die noch innen hüpft,
selbst wenn sie Hochzeit hat: denn Schooss ist Alies. até mesmo quando em núpcias: pois o seio é tudo.
Und sieh die halbe Sicherbeit des Vogeis, E vê a semi-segurança do pássaro
der beinah beides weiss aus einem Ursprung, que, por sua origem, quase conhece uma e outra coisa,
ais wãr er eine Seele der Etrusker, como se fosse a alma de um etrusco,
aus einem Toten, den ein Raum empfing, saída de um morto que o espaço acolheu,
doch mit der ruhenden Figur ais Deckel. embora com a figura jacente como tampa.
Und wie bestürzt ist eins, das fliegen muss E quão atônito não fica o que, vindo de um seio,
und stammt aus einem Schooss. Wie vor sich selbst tem de voar. Como, temeroso
erschreckt, durchzuckts die Luft, wie wenn ein Sprung de si mesmo, sulca o ar, qual
durch eine Tasse geht. So reisst die Spur rachadura ao longo de uma xícara. Assim fende o vôo
der Fledermaus durchs Porzellan des Abends. do morcego a porcelana do fim de tarde.

Und wir: Zuschauer, immer, überall, E nós: espectadores sempre, em toda parte,
dem allen zugewandt und nie hinaus! voltados para tudo, nunca para fora!

134 135

I
i
Uns überfüUts. Wir ordnens. Es zerfãllt. Isso nos satura. Nós lhe pomos ordem. Despedaça-se.
Wir ordnens wieder und zerfallen selbst. Tornamos a pôr ordem e eis que nos despedaçamos.

Wer hat uns also umgedreht, dass wir, Quem nos fez virar de tal maneira que,
was wir auch tun, in jener Haltung sind façamos o que for, imitamos a postura
von einem, welcher fortgeht? Wie er auf de quem se vai? Como aquele que do alto
dem letzten Hügel, der ihm ganz sein Tal do derradeiro monte, a desdobrar-lhe uma outra vez ainda
noch einmal zeigt, sich wendet, anhãlt, weilt seu vale todo, volta-se, detém-se e se demora —
so leben wir und nehmen immer Abschied. assim vivemos nós em despedida sempre. ■

!
L
p Ç-

136 137

/I
n
DIE NEUNTE ELEGIE NONA ELEGIA

Warum, wenn es angebt, also ,die Frist des Daseins Se é factível cumprir o tempo de existência
hjnzubringen, ais Lorbeer, ein wenig dunkler ais alies como loureiro, de verde um pouco mais escuro
dndere Gríin, mit kleinen Wellen an jedem que os outros verdes, e com folhas levemente onduladas
Blattrand (wie eines Windes Lãcbeln) —■ warum dann nas bordas (como um sorriso da brisa) —: por que então
Menscblicbes müssen — und, Scbicksal uermeidend, ter de ser homem — que se esquiva do destino
sich sebnen nacb Scbicksal?... e anseia por ele?...

Oh, nicht, weil Glück ist, Oh! não> porque a felicidade exista, este
dieser uoreilige Vorteil eines nahen Verlusts. precipitado ganho sobre per
:rda iminente. Nem porque se queira
Nicht aus Neugier, oder zur Übung des Herzens, satisfazer uma curiosidadei •ou exercitar o coração,
das aucb im Lorbeer wãre que estaria igualmente no loureiro...

Aber weil Hiersein viel ist, und weil uns scheinbar Mas sim porque e estar-aqui significa muito; porque todas
■ £
alies das Hiesige braucbt, dieses Schwindende, das estas coisas efêrr
•meras, que estranhamente nos concernem,

ç
seltsam uns angebt. Uns, die Schwindendsten. Ein Mal (necessitam
i jedes, nur ein Mal. Ein Mal und nichtmebr. Und wir aucb
ein Mal. Nie wieder. Aber dieses
de nós, ao que parece. De nós, os mais efêmeros. Uma só vez,
cada uma delas, uma só vez. Uma vez só e nunca mais. E nós
ein Mal gewesen zu sein, wenn aucb nur ein Mal: também, uma só vez. Outra, jamais. Mas ter sido isso
irdisch gewesen zu sein, scbeint nicht widerrufbar. uma vez, uma só vez que seja:
ter sido terrestre não parece revogável.
Und so drãngen wir uns und wollen es leisten,
wollens enthalten in unsem einfachen Hànden, E assim nos empurramos e queremos realizar
im überfüllteren Blick und im sprachlosen Herzen. o terrestre, contê-lo em nossas mãos singelas,
Wollen es werden. — Wem es geben? Am liebsten o olhar repleto e mudo o coração.
alies behalten für immer... Ach, in den andem Bezug, Queremos nele nos transfigurar. — Para ofertá-lo a quem?
webe, was nimmt man binüber? Nicht das Anschaun, Melhor seria guardar tudo, para sempre. Ai, para o outro reino,
[das hier que é que se leva? Não a arte de ver
langsam erlemte, und kein hier Ereignetes. Keins. aqui aprendida devagar, nem nada aqui acontecido. Nada.
Also die Schmerzen. Also vor aliem das Scbwersein, Não se levam as amarguras. Muito menos os momentos árduos
also der Hebe lange Eifabrung, — also ou a longa experiência do amor — nada, pois,
lauter Unsãgliches. Aber spãter, do que seja indizível. E mais tarde, entre as estrelas,
unter den Stemen, was solls: die sind besser unsãglich. para que levá-lo, se elas são ainda mais indizíveis?
Bringt doch der Wanderer aucb uom Hange des Bergrands Da beira da montanha, tampouco o caminheiro traz

138 139

/I
nicht eine Hand voll Erde ins Tal, die Allen unsãgliche, um punhado de terra indizível até o vale; traz, isto sim,
[sondem uma pura palavra conquistada, a genciana
ein erworbenes Wort, reines, den gelben und blaun amarela e azul. Talvez estejamos aqui para dizer: casa,
Enzian. Sind wir vielleicht hier, um zu sagen: Haus, ponte, fonte, porta, cântaro, janela, árvore de fruta —
Brücke, Brunnen, Tor, Krug, Obstbaum, Fenster, — quando muito: coluna, torre... mas para dizer, entende,
bôcbstens: Sãule, Turm... aber zu sagen, verstebs, oh dizer o que as próprias coisas nunca
oh zu sagen so, wie selber die Dinge niemals pensaram ser no íntimo. Pois não é recôndita
innig meinten zu sein. Ist nicht die heimliche List astúcia desta terra calada incitar os amantes
dieser verscbwiegenen Erde, wenn sie die Liebenden dràngt, a sentirem como as coisas se encantam umas às outras?
dass sicb in ihrem Gefühl jedes und jedes entzückt? Umbral: que importa, para dois
Schwelle: was ists für zwei amantes, desgastarem eles também um pouco o mesmo
Liebende, dass sie die eigne ãltere Schtvelle der Tür velho umbral de porta, como tantos antes
ein tcenig uerbrauchen, auch sie, nach den vielen vorher ou tantos depois deles... de leve.
und vor den Künftigen..., leicht.
Aqui é o tempo do dizivel, é aqui a sua pátria.
Hier ist des Sâglichen Zeit, hier seine Heimat. Fala, pois, e proclama. Mais que nunca,
Sprich und bekenn. Mehr ais je ora perecem as coisas vivíveis, porque
fallen die Dinge dahin, die erlebbaren, denn, aquilo que as desloca e substitui é um fazer sem alma.
was sie verdrãngend ersetzt, ist ein Tun ohne Bild. Um fazer sob crostas que por si mesmas vão romper-se
Tun unter Krusten, die willig zerspringen, sobald assim que a ação reponte de lá dentro e se imponha outro
innen das Handeln entwãchst und sicb anders begrenzt. [limite.
Zwischen den Hàmmem besteht Entre os martelos persiste
unser Herz, wie die Zunge nosso coração, assim como a língua,
zwischen den Zàhnen, die doch, entre os dentes, continua a louvar,
dennoch, die preisende bleibt. malgrado tudo.

Üi Preise dem Engel die Welt, nicht die unsãgliche, ihm


kannst du nicht grosstun mit herrlich Erfühltem; im Weltall,
wo erfühlenderfühlt, bist du ein Neuling. Drum zeig
Louva o mundo para o anjo, não o indizível; com ele
não te podes gabar do esplendor do teu sentir; és apenas
um noviço no universo que ele sente com maior sensibilidade.

n'- ihm das Einfache, das, von Geschlecht zu Geschlechtem

ais ein Unsriges lebt, neben der Hand und im Blick.


[gestaltet,
Mostra-lhe pois a coisa simples que, afeiçoada geração após
geração, vive como se fosse nossa, ao alcance da mão, dentro
[do olhar.
Sag ihm die Dinge. Er wird staunender stehn; wie du standest Diz-lhe as coisas. Ele ficará tão pasmo como tu ficaste
bei dem Seiler in Rom, oder beim Tõpfer am NU. com o cordoeiro de Roma e o oleiro do Nilo.
Zeig ihm, wie glücklich ein Ding sein kann, wie schuld-los Mostra-lhe quão ditosa, quão sem culpa e nossa uma coisa
[und unser, [pode ser;
wie selbst das klagende Leid rein zur Gestalt sich entschliesst, como até a mágoa lastimosa se resolve numa forma pura
dient ais ein Ding, oder stirbt in ein Ding —, und jenseits e serve como coisa e morre numa coisa — e se evade feliz
selig der Geige entgeht. — Und diese, von Hingang do violino para o além. E tais coisas, que vivem

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I
lebenden Dinge verstehn, dass du sie rühmst; vergânglich, do perecer, compreendem que as celebres; efêmeras,
traun sie ein Rettendes uns, den Vergãnglichsten, zu. crêem que nós, os mais efêmeros, podemos salvar.
Wollen, wir sollen sie ganz im unsichtbam Herzen Querem que em nosso invisível coração as transformemos —
[verwandeln oh infinitamente — em nós. No que possamos ser ao fim e ao
in — o unendlich — in uns! Wer wiram Ende auch seien. [cabo.

Erde, ist es nicht dies, ivas du willst: unsichtbar Não é isso que desejas, Terra: invisivelmente
in uns erstebn?— Ist es dein Traum nicbt, renascer em nós? — Não é o teu sonho
einmal unsichtbar zu sein?— Erde! unsichtbar! ser invisível algum dia? Invisível, Terra!
Was, wenn Verwandlung nicht, ist dein drãngender Auftrag? Se não for metamorfose, qual tua missão inexorável?
Erde, du Hebe, ich will. Oh glaub, es bedürfte Terra, amada, oh eu quero. Não é mais preciso, crê,
nicht deiner Frühlinge mehr, mich dir zu gewinnen einer, que as tuas primaveras me conquistem —, uma,
ach, ein einziger ist schon dem Blute zu viel. ah, uma só já é demasiada para o sangue.
Namenlos bin ich zu dir entschlossen, von weit her. Desde longe, obscuro, eu me entreguei a ti.
Immer warst du im Recht, und dein heiliger Einfall Estiveste sempre certa e tua sacra inspiração
ist der vertrauliche Tod. é a familiaridade da morte.

Siehe, ich lebe. Woraus? Weder Kindbeit nocb Zukunft Vê, eu vivo. De quê? Nem a infância nem o futuro minguam...

1
werden weniger..... Überzàhliges Dasein Inúmera, a existência
entspringt mir im Herzen. transborda-me do coração.

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H
nr

DOS SONETOS A ORFEU

ii
I

s
1:1 1:1

Da stieg ein Baum. O reine Übersteigung! Uma árvore lá. Oh pura sobrelevação!
O Orpheus singt! O hoher Baum im Ohr! Orfeu canta. Oh árvore mais alta nos ouvidos!
Und alies scbwieg. Doch selbst in der Verschweigung E tudo se aquietou. Mas na própria quietaçào
ging neuer Anfang, Wink und Wandlung vor. novo início, signo e mudança estavam contidos.

Tiere aus Stille drangen aus dem klaren Deixavam, dentro da clara mata desatada,
gelôsten Wald uon Lager und Genist; os bichos do silêncio seu ninho e seu covil;
und da ergab sich, dass sie nicht aus List não era porém nem por temor nem por ardil
und nicht aus Angst in sich so leise tvaren, que se mantinham assim: estavam na calada,

sondem aus Hõren. Brüllen, Schrei, Gerôhr à escuta. Apequenavam-se, no coração


scbien klein in ihren Herzen. Und wo eben deles, gritos, rugidos, crueza. E lá onde antes
kaum eine Hütte war, dies zu empfangen, mal uma choça existia para lhes dar pouso,'

ein Unterscblupf aus dunkelstem Verlangen esconderijo do desejo mais tenebroso,


■ mit einem Zugang, dessen Pfosten beben, — com uma soleira de pilares vacilantes —,
da sçhufst du ihnen Tempel im Gehõr. lá criaste para eles um templo na audição.

•i
ç
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1:3 1:3

Ein Gott vermags. Wie aber, sag1 mir, soll Um deus o pode. Mas, diz-me, poderia um
ein Mann ihm folgen durch die.schmale Leier? homem acompanhá-lo na lira acanhada?
Sein Sinn ist Zwiespalt. An der Kreuzung zweier Sua mente é discórdia e nas encruzilhadas
Herzwege steht kein Tempel für Apoll. do coração Apoio não tem templo algum.

Gesang, wie du ihn lehrst, ist nicht Begehr, O canto, como o ensinas, não é o querer
nicht Werbung um ein endlich noch Erreicbtes; nem busca do que quer que seja de atingível.
Gesang ist Dasein. Für den Gott ein Leichtes. Cantar é existir. Para o deus, tão factível.
Wann aber sind wir? Und wann wendet er Mas nós, quando é que somos? Quando ao nosso ser

an unser Sein die Erde und die Steme? dará ele de volta a terra e as estrelas?
Dies ists nicht, Jüngling, dass du liebst, wenn auch Não é o que amas, jovem, mesmo que forçasse
die Stimme dann den Mund dir aufstõsst, — leme a voz em tua boca. Aprende a esquecê-las,

vergessen, dass du aufsangst. Das verrinnt. tais canções. Elas passam, frutos do momento.
In Wahrheit singen, ist ein andrer Haucb. O cantar em verdade de outro sopro faz-se.
Ein Hauch um nichts. Ein Wehn itn Gott. Ein Wind. Um sopro de nada. Um alento em Deus. Um vento.

í
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1:10 1:10

Euch, die ihr nie mein Gefübl uerliesst, Eu vos saúdo, sarcófagos :antigos
grüss icb, antikische Sarkopbage, que risonha a água dos dia
ias romanos
die das frõbliche Wasser romischer Tage percorre como cantiga de ciganos:
ais ein wandelndes Lied durchjliesst. meu coraçào vos guardou sempre consigo.

Oder jene so offenen, tvie das Aug Ou os abertos como olhos de pastor
eines frohen envacbenden Hirten, que alegre despertasse à luz da alvorada —
— innen voll Stille und Bienensaug — cheios de silêncio e lâmios —, do interior
denen entzückte Falter entschwirrten; deles borboletas vào-se em revoada.

alie, die man dem Zweifel entreisst, Vós a quem a dúvida nào mortifica,
grüss icb, die wiedergeqffneten Munde, saúdo-vos, bocas outra vez abertas,
die scbon wussten, was scbweigen heisst. que já sabeis o que calar significa.
■Í!
Wissen wirs, Freunde, wissen wirs nicbt? Não o sabemos, amigos, nós também?
Beides bildet die zõgemde Stunde Ambos afeiçoa a hora tào incerta
in dem menschlicben Angesicht. que sobre o rosto dos homens se detém.

150 151
1:14 1:14

Wirgeben um mit Blume, Weinblatt, Frucht. Ligamo-nos à flor, ao pâmpano e à fruta.


Sie sprechen nicht die Sprache nur des Jahres. Nào falam só a fala das quatro estações.
Aus Dunkel steigt ein buntes Offenbares Do escuro surdem vividas irisaçòes,
und hat vielleicbt den Glanz der Eifersucht onde o brilho da inveja talvez repercuta

der Toten an sicb, die die Erde stãrken. dos mortos que! refazem a força da terra.
Was wissen wir von ihrem Teil an dem? Que sabemos df le sua pane em cada messe?
Es ist seit lange ihre Art, den Lehm Há muito, livre, o cerne deles trans
isparece
mit ihrem freien Marke zu durchmdrken. no próprio barro que os despojos Ilhes encerra.

Nun fragt sicb nur: tun sie es gem?... Fazem-no de bom grado? é o que nos perguntamos.
Dràngtt diese Frucht, ein Werk von schweren Sklaven, Esses frutos intensos, trabalho de escravos,
: uns empor, zu ibren Herm?
geballtzu repontam porventura para nós, seus amos?

Sind sie die Herm, die bei den Wurzeln scblafen, Ou serão eles os amos, que dormem ignavos
und gõnnen uns aus ibren Überflüssen sob as raízes e nos dão, do seu sobejo,
dies Zwischending aus stummer Kraft und Küssen? esse dom entre a muda força bruta e o beijo?

í *

152 153
11:3 H:3

Spiegel: noch nie hat man wissend beschríeben, Quem soube, espelhos, descrever jamais
was ibr in euerem Wesen seid. por dentro o vosso ser obscuro?
Ihr, wie mit lauter Lõcbem von Sieben De interstícios do tempo> não passais,
erfüllten Zwischenrãume der Zeit. vós crivos repletos de fur
iros.

Ihr, noch des leeren Saales Verschwender—, Vós, que esbanjais a sala esvaziada —
wenn es dãmmert, wie Wãlder weit... vastos bosques, ao fim da tarde...
Und der Lüster geht wie ein Sechzehn-Ender O lustre cruza, cervo de galhada,
durch eure Unbetretbarkeit. vossa inacessibilidade.

Manchmal seid ihr voll Malerei. De pinturas às vezes estais cheios.


Einige scheinen in euch gegangen Umas parecem ter-vos penetrado —
andere schicktet ihr scheu vorbei. já outras afastastes com receio.

Aber die Schõnste wird bleiben —, bis Mas a mais bela fica, até que o liso
drüben in ihre enthaltenen Wangen
eindrang der klare gelõste Narziss.
de suas faces entre, do outro lado,
a liberta clareza de Narciso. I

154 155
11:10 11:10

Alies Erworbne bedroht die Maschine, solange A máquina é ameaça a todo o conseguido
sie sicb erdreistet, im Geist, statt im Gehorchen, zu sein. quando ousa estar no espírito e não na obediência.
Dass nicht der herrlichen Hand schôneres Zôgem mehr Para que não brilhe, esplêndida e hesitante, a mão,
Iprange, talha a rija pedra para o edifício atrevido.
zu dem entschlossenem Bau schneidet sie steifer den Stein.
Nem uma vez lhe escapamos, pois nunca se atrasa.
Nirgends bleibt sie zurück, dass wir ihr ein Mal entrõnnen Luzente de óleo, na muda fábrica está bem.
und sie in stiller Fabrik ôlend sicb selber gebôrt. E resoluta, ela ordena, ela cria, ela arrasa.
Sie ist das Leben, — sie meint es am besten zu kônnen, É a vida — que julga entender como ninguém.
die mit dem gleichen Entschluss ordnet und scbafft und
[zerstõrt. Mas a existência ainda nos fascina, tantos
são os lugares onde nasce. Um jogo de puras
Aber noch ist uns das Dasein verzaubert; an bundert forças que se toca de joelhos, com espanto.
Stellen ist es noch Ursprung. Ein Spielen von reinen
Krãften, die keiner berübrt, der nicht kniet und bewundert. Palavras roçs
;am ainda o inefável, asas...
E, de pedra, palpitante, a semf
sempre nova música i
Worte gehen noch zart am Unsaglichen aus... ergue no espaço inapto a suaa divina casa.
Und die Musik, immer neu, aus den bebendsten Steinen,

ç
baut im unbrauchbaren Raum ihr uergõttlichtes Haus.

156 157
11:12 11:12

Wolle die Wandlung. O ( sei für die Flamme begeistert, Oh quer■er a transformação! Deixa que te arrebate a chama:
drin sich ein Ding dirr entzieht, das mit Venvandlungen nela alg<
Igo te escapa em que a metamorfose se gloria;
[prunkt; o espírito criador, que
< domina o terrestre, ama
jener entwerfende Geist, welcher das Irdische meistert, bem mais, no impt julso da figura, o centro que rodopia.
liebt in dem Scbwung der Figur níchts wie den wendenden
[Punkt. O que se tranca em fixidezé ele próprio a rijeza;

Was sich ins Bleiben verschliesst, schon ists das Erstarrte;


wãhnt es sich sicher im Scbutz des unscheinbaren Grau's?
acaso pensa estar mais seguro no pardo singelo?
Espera: o mais duro anuncia desde longe a dureza.
Ai —: que já baixa o ausente martelo!
I
Warte, ein Hartestes wamt aus der Ferne das Harte.
Wehe —: abwesender Hammer bolt aus! Quem se verte como fonte, conhece-o o conhecimento,
que o segue, fascinado, pela serena criação,
Wer sich ais Quelle ergiesst, den erkennt die Erkennung; na qual o começo é fim e o fim começo, amiúde.
und sie führt ihn entzückt durch das beiter Gescbaffne,
das mit Anfang qft scbliesst und mit Ende beginnt. O espaço feliz é filho ou neto do distanciamento,
que eles franqueiam, pasmos. E Dafne, após a mutação,
Jeder glückliche Raum ist Kind oder Enkel von Trennung, quer, loureiro, que em vento te mudes.
den sie staunend durchgehn. Und die verwanàelte Daphne
urill, seit sie lorbeem füblt, dass du dich wandelst in Wind.

158 159
11:13 11:13

Sei aliem Abschied voran, ais wâre er hinter Deixa todo adeus paraa trás, como se avançado
dir, wie der Winter, der eben gebt. estivesses, inverno já nc
to fim. Há contudo
Denn unter Wintem ist einer so endlos Winter, um inverno quase eterno que teu hibernado
dass, überwintemd, dein Herz überhaupt ilberstebt. coração, sobrepujando-o, sobrevive a tudo.
í'
Sei immer tot in Eurydike singender steige, Sê morto sempre em Eurídice — alça-te, mais hinos
preisender steige zurück in den reinen Bezug. e mais louvores cantando, à pura relação.
Hier, unter Scbwindenden, sei, im Reicbe der Neige, Aqui, entre os efêmeros, no reino do declínio,
sei ein klingendes Glas, das sicb im Klang schon zerschlug. sê um cristal vibrante que se rompe à vibração.

Sei — und wisse zugleich des Nicbt-Seins Bedingung, Sê — mas da condição do não-ser bem a par,
den unendlichen Grund deiner innigen Schwingung, dessa base infinda do teu íntimo vibrar,
dass du sie võllig vollziebst dieses einzige Mal. para nessa única vez por inteiro cumpri-la.

Zu dem gebrauchten sowobl, wie zum dumpfen und stummen Às reservas em uso, bem como às inaudíveis
Vorrat der vollen Natur, den unságlichen Summen, da Natureza plena, a tais somas indizíveis
zàhle dicb jubelnd binzu und uemicbte die Zahl. soma-te com júbilo e ao número aniquila.

160 161
■11:15 11:15

O Brunnen-Mund, du gebender, du Mund, Boca de fonte, ó boca previdente,


der unerscbõpflich Eines, Reines, spricht, — que infatigável diz o Um, o Puro —
du, vor des Wassers fliessendem Gesicbt, defronte do semblante de água murmuro,
marmome Maske. Und im Hintergrund tu, máscara de mármore. E a nascente

der Aquàdukte Herkunft. Weitber an dos aquedutos lá ao longe, nas


Gràbem vorbei, vom Hang des Apennins encostas apeninas, junto às tumbas,
tragen sie dir dein Sagen zu, das dann de onde eles trazem-te o dizer que das
am schwarzen Altem deines Kinns tuas vetustas fauces negras tomba

vorüberfãllt in das Gefãss davor. na bacia: uma orelha adormecida,


Dies ist das schlafend bingelegte Obr, uma orelha de mármore, guarida
das Marmorohr, in das du immer sprichst. em que vertes o intérmino dizer.

Ein Obr der Erde. Nur mit sicb allein Uma orelha da terra que só fala
redet sie also. Scbiebt ein Krug sicb ein, consigo. Se uma bilha se intercala,
so scheint es ihr, dass du sie unterbrichst. parece-lhe que a vens interromper.

162 163
11:18 11:18

Tãnzerin: o du Verlegung Bailarina: ó tu transposição


alies Vergehens in Gang: wie brachtest du ’$ dar. do curso do efêmero: quão bem o ofertavas.
Und der Wirbel am Schluss, dieser Baum aus Bewegung, E essa árvore de movimento, turbilhão,
nahm er nicht ganz in Besitz das erschwungene Jahr? não vencia o ano enfim e não o conquistava?

Blühte nicht, dass ihn dein Schwingen von vorhin Nào floria, para que teu ímpeto anterior
[umschwàrme, lhe envolvesse, enxame, o cimo de silêncio? Ali,
plõtzlich sein Wipfel von Stille? Und über ihr, sobre ela, nâo era sol, nào era estio, o ardor
war sie nicht Sonne, war sie nicht Sommer, die Wãrme, que lhe chegava, inúmero, de ti?
diese unzáhlige Wãrme aus dir?
Mas tua árvore de êxtase deu a sua messe:
Aber er trug auch, er trug, dein Baum der Ekstase. não é fruto calmo o vaso que já maturou
Sind sie nicht seine ruhigen Früchte: der Krug, e o jarro de listra que mais amadurece?
reifend gestreift, und die gereiftere Vase?
E retratos: nâo têm o desenho fugidio
Und in den Bildem.- ist nicht die Zeichnung geblieben, que o traço escuro dos teus supercílios riscou
die deiner Braue dunkler Zug nas paredes do próprio rodopio?
rasch an die Wandung der eigenen Wendung geschrieben?

164 165
11:21 11:21

Singe die Gãrten, mein Herz, die du nicht kennst; wie in Glas Canta, meu coração, jardins que ignoras; como se nas
eingegossene Gãrten, klar, unerreichbar. entranhas de um cristal, claros, inalcançáveis.
Wasser und Rosen von Ispahan oder Scbiras, Águas e rosas de Ispaà ou de Xiraz,
singe sie selig, preise sie, keinem vergleicbbar. canta e louva, feliz, a nada comparáveis.

Zeige, mein Herz, dass du sie niemals entbehrst. Mostra, meu coração, que não te fazem falta.
Dass sie dicb meinen, ibre reifenden Feigen. Que é para ti que os figos lá amadurecem.
Dass du mit ihren, zwischen den blühenden Zweigen Que, por entre os galhos em flor, te reconhecem,
wie zum Gesicht gesteigerten Lüften verkehrst. rostos familiares, suas brisas altas.

Meide den Irrtum, dass es Entbehrungen gebe Evita o erro de existirem privações
für den geschehnen Entscblüss, diesen: zu sein! para a decisão já tomada, esta: a de ser!
Seidener Faden, kamst du hinein ins Gewebe. Fio de seda, ali dentro da trama te pões.

Welchem der Bilder du auch im Innem geeint bist Do desenho, seja qual for, és parte agora
(sei es selbst ein Moment aus dem Leben der Pein), (mesmo que um só instante na dor de viver):
fühl, dass der ganze, der rühtnliche Teppicb gemeint ist. o que importa, sente, é o tapete inteiro em sua glória.

166 167
DOS POEMAS ESPARSOS
E PÓSTUMOS
0906-1926)

I
Ach wehe, meine Mutter reisst mich ein. Ai de mim, que minha màe me desarvora.
Da hab ich Stein auf Stein zu mir gelegt, Eu me cercara de pedra sobre pedra e ali me erguia
und stand scbon wie ein kleines Haus, um das sich gross feito uma casinha a cuja volta, esplêndido, se movimenta o
[der Tag bewegt, [dia,
sogar allein. só por ora.
Nun kommt die Mutter, kommt und reisst mich ein. Mas vem a màe, vem e a mim me desarvora.

Sie reisst mich ein, indem sie kommt und schaut. Ela me desarvora assim que chega e olha sem
Sie sieht es nicht, dass einer baut. ver o que fora construído por alguém.
Sie geht mir mitten durch die Wand von Stein. Através das pedras do muro alcança-me agora.
Ach wehe, meine Mutter reisst mich ein. Ai de mim, que minha màe me desarvora.

Die Võgelfliegen leichter um mich her. Em tomo de mim voam os pássaros ligeiros.
Die fremden Hunde wissen: das ist der. Isso é ele — sabem-no até os cães forasteiros.
Nur einzig meine Mutter kennt es nicht, Só a minha màe é que nào põe sentido
mein langsam mehr gewordenes Gesicht. no meu rosto a tanto custo definido.

Von ihr zu mir war nie ein warmer Wind. Dela a mim, jamais um sopro de vento mais quente.
Sie lebt nicht dorten, wo die Lüfie sind.
Sie liegt in einem hoben Herz-Verschlag
und Christus kommt und wãscht sie jeden Tag.
Ela nào vive lá onde os ventos sopram mas
num alto e pio tabique ei-la que jaz:
ali Cristo a vem limpar diariamente.
Ç
170 171
Rose, oh reiner Widerspruch, Lust, Rosa, ó pura contradição, prazer
Niemandes Schlaf zu sein unter soviel de ser o sono de ninguém sob tantas
Lidem. pálpebras.

ç
172 173
BAUDELAIRE BAUDELAIRE
Para Anita Forrer/ em 14 de abril de 1921
Fur Anita Forrer/ zum 14. April 1921

Somente o poeta juntou as ruínas


Der Dichter einzig hat die Welt geeinigt,
de um mundo desfeito e de novo o fez uno.
die weit in jedem auseinanderfállt.
Deu fé da beleza nova, peregrina,
Das Schõne hat er unerbõrt bescheinigt, — i---------
- embora n própria má
doch da er selbst noch feiert, was ihn peinigt, e, celebrando a | sina,
línas:
purificou, infinitas, as rui
hat er unendlicb den Ruin gereinigt:
assim o aniquilador tomou-se mundo.
und auch noch das Vemichtende wird Welt.

ç
175
174

Ã
Auch dieses ein Zeichen im Raum: dies Landen der Taube, Um signo no espaço, também isto: a pomba que pousa
die sicb aus Jlacherem Flug, im Wasserstaube e que até o rebordo circular da fonte ousa,
an die gerundete Randung des Brunnens hebt. numa poalha de gotas, um vôo mais rasante.
Wie sie ankommt dem endlos gebenden Wasser entgegen, Como chega à água que perene se dispensa
ihre ruhige Herkunfl hinzuzulegen para depor sua calma proveniência
zu dem Übergehen das bebt. no transbordo tremulante.
Feblt euch ein Fest: Feiert ihr Landen, begeht Falta-vos uma festa: festejai-lhe o pouso,
den unscheinbaren Aufschwung verschwiegener Schwere, celebrai o discreto alar do peso oculto
der im reinen Aufrubn sicb eingesteht. que se confirma, puro, no repouso.

ç
176 177
59 59

Tous mes adieux sont faits. Tant de départs Meus adeuses, dei-os todos. Mil partida:
artidas
m'ont lentement formé dês mon enfance. me formaram desde a infância, devagar.
Mais je reviens encor, je recommence,
ce franc retour libere mon regard.
X
Mas volto outra vez e recomeço a lida:
a volta franca liberta meu olhar.
Ce qui me reste, c’est de le remplir, O que me resta é cuidar de o expandir,
et ma joie toujours impénitente e minha alegria sempre contumaz:
d’avoir airné des choses ressemblantes
à ces absences qui nousfont agir.
a de ter amado coisas quase iguais
a essas ausências que fazem agir.
I
(Vergers) (De Vergers)

Ç
178 179
16 16

Quel calme noctume, quel calme Que calma penetra em nós, que calma
nous pénètre du ciei. quando o céu anoitece.
On dirait qu ’il refait dans la palme Como se o desenho essencial na palma
de vos mains le dessin essentiel. de vossas mãos se refizesse.

La petite Cascade chante A pequena cascata canta entrementes


pour cacher sa nympbe émue... para esconder a ninfa comovida...
On sent la présence absente Sente-se a presença ausente
que 1’espace a bue. pelo espaço sorvida.

180 181
31 31

Cbemins qui ne tnènent nulle part Caminhos que vão a parte nenhuma
entre deux prés, entre dois prados,
que l'on dirait avec art dir-se-ia de seu fim com suma
de leur but détoumés, arte desviados.

chemins qui souvent n ’ont Caminhos que não são


devant eux rien d’autre en face frequentemente mais que um lapso
que le pur espace entre o puro espaço
et la saison. e a estação.
(.“Petite cascade", Les quatrains valaisans) (De “A pequena cascata”, Quadras do Vaiais)

____ Ç SBDI FFLCH / USP____________ \


SEÇÃO DE: LETRAS TOMBO; 223692
AQUISIÇÃO: DOAÇÃO / FAPESP
PROC.00/01133-4 / N.F.N» 197189/EDUSP
DATA: 17/07/02 PREÇO: RS 24,50

182 183
I
a uma enxurrada de poemas
pseudofilosóficos.
Talvez por isso ele tenha, em
seguida, conhecido entre nós uma
espécie de ostracismo — se
comparado ao fervor quase religioso
que despertava nos anos 40 e 50.
Já era, pois, mais que tempo de reler
Rilke com outros olhos. Com os olhos
de um de nossos melhores poetas,

que, embora tenha começado a
produzir exatamente naquelas
décadas, confessa não ter sido
atraído, à época, por seu canto de
sereia. Mas que, mais tarde, aprendeu
a amá-lo e a admirá-lo sem os
equívocos do parti pris. E que ora o
restitui em português em nova
!• EDIÇÃO [1993] 3 reimpressões roupagem, que, ao contrário do que
costuma acontecer com o autor dos
ESTA OBRA EO1 COMPOSTA PELA CRAPHBOX EM CARAMOND L1CHT Sonetos a Orjêu, busca reproduzir os
E IMPRESSA PELA GEOGRÁFICA EM OEF-SET SOBRE PAPEL ALTA ALVURA aspectos formais do original. Vale a
DA COMPANHIA SUZANO PARA A EDITORA SCHWARCE EM MAIO DE 2001
pena revisitar Rilke guiados pelas
mãos de José Paulo Paes.

Joao MouraJr.
[■Mil1
i" I

Rainer Maria Rilke é comumente considerado o,maior


i
poeta de língua alemã desde Goethe. Sua influência sobre a
poesia moderna foi e continua sendo enorme O grande poe­
ta t- tradutor José Paulo Paes o revisita agora nesta antotógia
bilíngiie, que abarca suas obras mais importantes,'desde 0/z-;, jill;|('1 1
vro das horas aos poemas que escreveu em francês nb.final da., ■'' :; ; I b
vida, passando pela lírica descritiva dos Novospoemas e pela' lí- | ,
r ica filosófica das Elejas duinenses c dos Sonetos a Orfeu. Se o au-"
ge de sua repercussão no Brasil se deu nas décadas de 40 e 50,
esta tradução, que busca reproduzir os aspectos formais do ori- . .
ginal, constitui uma excelente apresentação de um dos gigan
tes da poesia do século às novas gerações.

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