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A CONSTRUÇÃO DA FORTALEZA COMO IMAGEM DO PODER REAL:

FORTALEZA DE MAZAGÃO (MARROCOS); FORTE DA GRAÇA


(PORTUGAL); FORTE PRÍNCIPE DA BEIRA (BRASIL)
Valla, Margarida
ARTIS- Instituto de História de Arte – FLUL, margarida.valla@gmail.com

RESUMO
A forma perfeita, o quadrado esteve na base das fortalezas de Mazagão, do Forte da Graça e do Forte Príncipe da
Beira e a sua edificação constituíram obras monumentais pela exigência do cumprimento do projecto, que
representavam e afirmavam o poder real. A fortaleza de Mazagão foi reformulada em 1541, e o desafio era construir
num período curto, com dificuldades de manutenção de um estaleiro, com materiais e trabalhadores transpostos de
directamente de Portugal, com sucessivas incursões inimigas. O Forte da Graça e o Forte de Príncipe da Beira
simbolizam a erudição que a engenharia militar alcançou no séc. XVIII, a sua edificação também exigiu um grande
investimento, assim como a organização da obra. O Forte da Graça teve início em 1763, e o desafio foi a construção
no topo da colina que não permitia a extensão da sua forma, por isso foi necessário escavar e inserir todas as
unidades funcionais nas muralhas e em espaços subterrâneos, e levou trinta anos a ser executada com envolvência da
população, que era obrigada a trabalhar na obra. O Forte Príncipe da Beira, edificado a partir de 1775, para marcar a
delimitação da fronteira interior do Brasil, o seu processo de construção é expresso através de cartas dirigidas ao rei
D. José, que são explicitas sobre os problemas e a dificuldade de erguer essa obra monumental num território
desconhecido com acesso por via fluvial, e cumprir os desenhos de Domingos Sambocetti. A valorização do
património também deve ser entendida como um percurso de construção que envolve vários intervenientes, e neste
caso como um investimento político para reforçar a imagem do poder central. Como Ruskin afirmava, a edificação
da obra envolve todos, e por isso é um património de toda a comunidade.

Palavras-Chaves: Keywords fortaleza; edificação; património

ABSTRACT
The square was the perfect shape for the fortresses of Mazagan, as for the Fort Graça and Fort Príncipe da Beira, and
their constructions were monumental works by the requirement of the project, representing and claimed the real
power. The fortress Mazagan was reformulated in 1541, and the challenge was to build in a short period, with the
difficulties of materials and workers transportation to directly from Portugal, with successive enemy incursions. The
Fort Graça and Fort Príncipe da Beira symbolize military engineering scholarship achieved in the 20th century. The
building process, also required a large investment, as well as the organization of the work. The Fort Graça had begin
in 1763, and the challenge was to build on top of the hill that did not allow the extension of its shape, so it was
necessary to dig and insert all the functional units on the ramparts and underground spaces, and took 30 years to
execute. The Fort Príncipe da Beira, built from 1775 to mark the border interior of Brazil, its building process is
expressed through letters addressed to King José I, which are explicit about the problems and the difficulty of
raising this monumental work in unfamiliar territory with access by waterway, and fulfill the design of Domingos
Sambocetti. The valuation of heritage must also be understood as a construction involving multiple actors, and in
this case as a political investment to reinforce the image of the central Government. As Ruskin claimed, the building
up of the work involves everyone, and so it is a heritage of the whole community.

Keywords: fortress; construction; heritage

1. INTRODUÇÃO: A FORTIFICAÇÃO E O PODER REAL

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A necessidade de ocupar e de defender os territórios fora da Europa, através da construção de fortalezas e
núcleos fortificados, levou ao desenvolvimento da engenharia militar em Portugal desde a época dos
Descobrimentos. Os novos sistemas de fortificação com baluartes angulosos e o conceito urbano
relacionado com traçados reticulados foram aplicados a partir do reinado de D. João III, na primeira
metade do século XVI, como é o exemplo da edificação de Mazagão no Norte de África.
A evolução da artilharia, que teve início no séc. XV, é expressa no “Tratado de Arquitectura Civil e
Militar” de 1495 por Francesco di Giorgio Martini, apresentando desenhos da denominada arquitectura
militar de transição. A partir do século XVI a fortificação estava intimamente ligada à concepção da
cidade, desenvolvida pelos teóricos italianos, que implicava um novo sistema defensivo que iria substituir
as muralhas medievais com torreões, por fortificações baseadas em figuras poligonais e com baluartes. A
introdução do baluarte revolucionou a arquitectura militar, este elemento com uma forma angulosa veio
imprimir uma nova configuração à cintura muralhada, e impor a regularidade que é entendida como ideal
para o sistema de defesa e para o traçado urbano. Esta racionalidade é expressa no Tratado de
Arquitectura de Pietro Cataneo de 1554, cuja “cidade ideal” insere-se numa cintura fortificada composta
por um polígono regular com sete baluartes, cuja malha urbana também se baseia numa quadrícula, com
uma praça principal central onde se localizam os principais edifícios. A construção de cidadelas, como a
cidadela de Anvers, construída em 1567, foi uma das obras mais conhecidas pela sua forma pentagonal
regular do seu perímetro fortificado, e uma referência importante como modelo de fortaleza no
desenvolvimento da ciência da fortificação.
Mas como resultado da investigação na física e na matemática aplicadas à balística, a tratadística sobre
Fortificação Moderna foi desenvolvida no séc. XVII, e vai ter uma aplicação directa e imediata na
reestruturação das cidades, numa Europa em guerra, e também noutros continentes, face à disputa da
conquista de território e de controle comercial nessas regiões, que se vai desenvolver ainda no séc. XVIII.
Neste século, inerente ao Iluminismo, é cada vez mais exigido a racionalidade na concepção dos
projectos, expressa na política de demarcação da fronteira interior do Brasil aplicada pelo Marquês de
Pombal, na segunda metade do séc. XVIII, que se vai reger pela implantação de núcleos urbanos com
traçados planeados segundo uma quadrícula, e também na construção de Fortalezas junto aos rios que
marcavam os limites do território brasileiro como a grande fortaleza de S. José de Macapá na foz do rio
Amazonas e o monumental forte Príncipe da Beira ambos de forma quadrangular perfeita. Também para
reforçar a defesa da fronteira portuguesa, é edificado nesse período o Forte da Graça junto à cidade de
Elvas no Alentejo, como uma obra monumental pela escala e pelo desafio à Natureza.
A expressão de soberania portuguesa nos territórios além-mar e em Portugal, vai ser retratada pela
edificação de fortificações em diferentes períodos e com objectivos políticos específicos e localizações
diferenciadas. A edificação da Praça Militar de Mazagão, teve como objectivo um porto estratégico na
Rota marítima para o Oriente, assim como o Forte Príncipe da Beira constituiu um lugar de alojamento de
uma guarnição na defesa da linha de fronteira com a actual Bolívia. O Forte da Graça foi edificado para
reforçar a defesa da cidade de Elvas, cidade fronteiriça com o território espanhol, depois da Guerra da
Sucessão de Espanha. A grandiosidade destas edificações e o sítio de implantação vão implicar um
processo construtivo complexo, que para além da sua funcionalidade defensiva, se identificam desta
forma como Monumentos representando a imagem do Poder Real.

2. MAZAGÃO: A CIDADE-FORTALEZA
A cidade de Mazagão, hoje denominada El Jadida, é aquela que representa o idealismo da intervenção dos
portugueses no Norte de África. Após a descoberta da rota marítima para a Índia, e com a constante
ameaça dos poderes locais no Norte de África, de que resultou a queda de Santa Cruz do Cabo Guer, e o
abandono de Safim e Azamor, em 1541, procurou-se reforçar alguns lugares estratégicos e outros que
servissem de escala para as caravelas portuguesas como foi o caso de Mazagão.
A política portuguesa nos Descobrimentos começaria por criar feitorias comerciais e defender alguns
pontos na costa do Norte de África para garantir as rotas comerciais. A frota de barcos (naus e caravelas)
constituía uma espécie de fortalezas flutuantes, albergando um exército que podia defender e atacar as
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cidades portuárias. Em paralelo, a necessidade de reestruturar as muralhas existentes nas cidades
conquistadas, obrigou a que os Mestre-de-Obras se especializassem na arquitectura militar que foi um
marco representativo da presença portuguesa. Desde a conquista de Ceuta em 1415 à derrota da Batalha
de 1578 de Alcácer-Quibir, as primeiras fortificações ainda configuravam como muralhas medievais, mas
rapidamente representaram o período de transição da arquitectura militar moderna com baluartes
redondos à imagem das fortificações italianas, e passando numa última fase ao baluarte anguloso,
aplicado na reestruturação das muralhas de Ceuta e na construção da”cidade ideal” de Mazagão, o
símbolo dos ideais renascentistas onde a harmonia politica relacionava-se com o traçado racional e a
forma poligonal onde se inseria.
Em todo o processo de edificação desta cidade estiveram envolvidos os principais arquitectos portugueses
abrangendo a sua obra dois reinados. Os irmãos Diogo e Francisco de Arruda projectaram a primeira
construção em 1514, um pequeno forte quadrangular com quatro torrões circulares segundo o modelo
manuelino aplicado noutros territórios Além-Mar, que reflectia uma arquitectura militar de transição e
representava a racionalidade na forma e na construção como imagem da política de expansão portuguesa.
Essa fortaleza tinha como objectivo controlar o domínio de Marraquexe, já afirmada com as cidades de
Safim e Azamor. Uma das cartas dirigidas ao Rei D. Manuel I por Diogo de Arruda em 1514, revela as
dificuldades da obra e a necessidade de trazer homens e materiais de Portugal:
Convem que mande a cal que seja posta em mazagão no fim de Maio[..] mande também
logo a madeira, que nos leve, pedreiros e servidores, e que neste tempo nos levem muito
tijolo, [..] e também estarem no mar enquanto a obra não for em altura que se possa
defender, para que estejam bem armados. (Viterbo, 1988, pp.48-49).
Estas cartas dirigidas ao Rei são expressão do controle régio do percurso das obras e da nomeação dos
principais responsáveis pelos projectos. De facto, em 1541, é enviado o arquitecto João de Castilho para
conduzir as obras em Mazagão com seu ajudante João Ribeiro, depois de uma visita de Miguel Arruda e
Benedetto de Ravena, arquitecto italiano, com o objectivo de projectar uma cidade fortificada. A sua
forma poligonal quadrangular era definida por uma muralha com quatro grandes baluartes que
enquadrava a primitiva fortaleza no seu interior, e avançava para o mar. Como o fosso da primeira
fortaleza que levou quatro anos a ser construído, foi edificada a grande cava com água que acompanhava
o circuito das muralhas, obra condicionada pelas marés, e que teve necessidade no início do séc. XVII
proceder-se ao seu desentulho. Esta edificação apresentou enormes dificuldades pela geologia do sítio,
por um lado tirava partido da sua localização junto ao mar, que permitia controlar a recolha de barcos
segundo um sistema de diques, mas também era um elemento de defesa associado à Estrada Coberta que
rematava o fosso na sua face exterior: “fica a fortaleza toda rodeada de agua, d’onde podem andar
embarcações com Artilharia; que não é pequeno favor para uma fortaleza, a qual está fundada em pedra
viva, e a cava picada e talhada na mesma pedra” (Mendonça, 1890, p. 32) (fig. 01).

Figura 01: Plan de la forteresse de la Place de Mazagan, Jean-Baptiste Claude Belicard, 1757
Fonte: BnF-SHM
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Perante a carga simbólica desta obra e a sua complexidade por ser construída sobre rocha, esta teria que ser
acompanhada no terreno por um arquitecto importante do reino como João Castilho, que teve um percurso
representativo como mestre de obras reais no Mosteiro de Belém em 1519, e estava a dirigir as obras do Convento
em Tomar em 1528. Para além acompanhar as obras de fortificação de Mazagão, a grande cisterna edificada no
interior da primeira fortaleza da sua autoria, representa a arquitectura renascentista portuguesa, uma obra-prima pelo
seu valor estético, e com uma função essencial à sobrevivência de uma praça militar, como aconteceu no cerco de
1562.
O desenho de baluartes de orelhão era a grande renovação estética, após cerca de vinte anos de ensaios que
corresponderam à denominada arquitectura de transição das formas medievais para as “modernas”. O
envolvimento de Francisco de Holanda, como consultor do rei, e que afirma que a “traça” de Mazagão é
da sua autoria, após a sua viagem a Itália, reproduz a importância do desenho no processo da sua
edificação: “Assi como se serviu de mim El Rei e o Infante na fortaleza de Mazagão que é feita por meu desenho e
modelo, sendo a primeira força bem fortalecida que fez em Africa, a qual desenhei vindo de Itália e de França”
(Holanda, 1985, p.32).
A discussão em torno da autoria de projecto reflecte a ideologia subjacente a esta obra que se baseava na
relação entre o espaço urbano dirigido a uma comunidade e a arquitectura militar que defendia e
assegurava essa vivência, constituindo uma urbe militar ideal com guarnição, conceito que se desenvolve
no século XVII. O arquitecto João Castilho nas cartas dirigidas ao rei D. João III, descreve a sua intenção
de seguir os apontamentos de Benedetto de Ravena, por saber que era imposição do Rei, justificando
algumas alterações pela dificuldade de construir os alicerces dos dois baluartes São Sebastião e São
Santiago e da calheta no terreno rochoso junto ao mar, configurando um polígono quadrangular irregular
(fig. 02).
Esta inovação do sistema defensivo também se pode observar na reformulação das muralhas de Ceuta em
1541, um dos poucos testemunhos ainda relevantes da presença portuguesa na cidade, projectada também
pelo arquitecto italiano Benedetto de Ravena, contratado pelo rei D. João III e por Miguel Arruda,
Mestre-de-Obras do Reino e de Além Mar, na sua visita ao Norte de África. A nova fortificação de Ceuta,
com a construção de baluartes angulosos e o fosso de “mar a mar, serviu de modelo para outros territórios
como a reformulação da fortaleza de Diu, na Índia, em 1546, dirigida por Francisco Pires com a abertura
dum grande fosso que separava a cidade da terra firme. Assim como a edificação de Mazagão serviu de
modelo à edificação das cidades de Damão e Baçaim no final do séc. XVI, onde a primitiva fortaleza era
inserida no novo núcleo delimitado por uma cintura de muralhas modernas.

Figura 02: Baluarte São Sebastião, Mazagão, 2017.


Fonte. Acervo de Autor
As cartas do arquitecto João de Castilho dirigidas ao Rei D. João III expressam o andamento da obra e as
dificuldades na construção, pelo terreno rochoso, pela necessidade de todos os materiais, homens e
animais, e até mantimentos para ambos, tinham que vir de Lisboa através das naus com incursões
constantes dos berberes que dominavam aquele território. Em Julho de 1642, João de Castilho envia ao
rei uma carta referindo a falta de condições de trabalho, considerando os trabalhadores como “mártires”
na edificação desta obra:
esta obra he muy grande e muy poderosa, por que crea V.A.que o baluarte que emtrar
no mar com a calheta, he mais obra que a metade do que V.A. cuidava que avia de
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fazer pela grande altura que leva de pedraria lavrada e pelos grandes custos dos
alicerces [..] para se fazer este alicerce traziamos mais de cem homens, [..] e a gente
que andava nesta praça crea V.A. que som martyres, (Viterbo, 1988, p. 196)
A estrutura urbana do recinto fortificado estabelecia-se em função de dois eixos ortogonais: a Rua da
Carreira e a rua Direita. A rua principal mais larga, a Rua da Carreira, ligaria a Porta do Mar à Porta de
Terra formulando uma praça junto a esta porta. Nesta praça situava-se a Casa do Governador, a Igreja
Matriz, e a Misericórdia com o Hospital que se adossaram aos muros da primitiva fortaleza, funcionando
como espaço civil e militar. Também foram edificados quartéis, armazéns e o celeiro junto às cortinas
exteriores da primitiva fortaleza, e num dos torreões funcionava uma prisão, outros serviam de paiol. Esta
transformação levou à inserção desse reduto no tecido urbano, não constituindo uma cidadela na
perspectiva de defender ou atacar a cidade. Esta era a singularidade desta cidade-fortificada que não tinha
o objectivo dos castelos de Azamor, Safim e Tanger construídos pelos portugueses para dominar a cidade
como política de domínio territorial.
O traçado de Mazagão também traduz uma racionalidade regulando-se pela forma quadrangular do
reduto, para além dos eixos principais, traduzia-se na sua maior dimensão em ruas paralelas e
perpendiculares às cortinas. O preenchimento dos quarteirões rectangulares por habitações testemunha a
permanência de uma comunidade, onde também se inseriram edifícios religiosos, igrejas e capelas. A
população da cidade é relatada em várias descrições, como podemos observar no relatório do Governador
das Armas D. Jorge de Mascarenhas, em 1615, que a cidade tinha cerca de 700 homens que perfaziam
uma guarnição, o que indica que a maior parte da população eram militares que também traziam seus
familiares, constituindo uma cidade militar como seria Palmanova edificada em 1593 na fronteira da
cidade-estado de Veneza. A necessidade constante da sua sobrevivência, e o aumento da sua população
obrigava ao cultivo na área em redor das suas muralhas, e muitas vezes os próprios militares eram
atacados e mortos nessas deslocações.
A cidade-fortaleza de Mazagão foi abandonada em 1769, na sequência de um cerco imposto pelo sultão
Sidi Mohammed ibn Abdallah, tendo a sua população sido deslocada, em Setembro desse ano, para
Belém e depois para a nova cidade denominada de Vila Nova de Mazagão na foz do Rio de Amazonas,
representando a política do Marquês de Pombal no século XVIII no Brasil. Da fortaleza à cidade
fortificada, as fortificações portuguesas no Magreb foram o ensaio da política portuguesa para as relações
e domínios de outros territórios em África, Índia e Brasil, constituindo esta obra uma imagem do esforço
para cumprir os desígnios régios.

3. FORTE DA GRAÇA: TRAÇA E EDIFICAÇÃO


Em Portugal, a intervenção dos engenheiros-militares na aplicação dos novos sistemas de Fortificação
Moderna acentua-se no período após a Restauração (1640), de forma a restabelecer a soberania
portuguesa após o domínio de Castela desde 1580. A necessidade de defender o território nacional, levou
a um grande investimento no Alentejo, principalmente em Elvas como cidade fronteiriça. O objectivo
seria travar o exército inimigo num local de fácil penetração, e em confronto com a cidade de Badajoz,
funcionando como Praça-Forte no seu amplo papel de alojamento de uma forte guarnição. Nos primeiros
tempos era sede do Governador de Armas do Alentejo, transferindo-se esta para Estremoz em 1663,
quando as obras de grande envergadura começaram nesta vila.
O forte de Santa Luzia foi a primeira obra a ser edificada pelo perigo do inimigo tomar a colina que
ficava a um “tiro de mosquete” da cidade. Pretendia-se edificar um forte real, após algumas discussões
foi projectado, em 1644 pelo padre jesuíta holandês Cosmander, contratado para desenhar a nova cintura
de fortificação de Elvas. Este forte baseava-se numa forma quadrada com centro e cinquenta metros de
lado, o forte distava do recinto principal quatrocentos metros, e era ligado a ele por um caminho coberto
com parapeito e banqueta. Era composto de quatro baluartes com dois revelins, onde se implantou no seu
centro um reduto com a casa do Governador, prisão, capela, e uma cisterna. As casernas e outros
armazéns distribuíram-se ao longo das cortinas, nos terraplenos. O forte de Santa Luzia se fosse tomado
não serviria para atacar a cidade, este seria destruído pelos canhões instalados nos baluartes vizinhos. A

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sua forma perfeita, a sua eficácia defensiva e a sua inserção no território conferem-lhe uma nobreza
estética, considerada por todos como uma grande obra de arquitectura militar.

A nova cintura abaluartada de Elvas com baluartes com flancos perpendiculares à cortina denota a
influência da Escola Holandesa, projectada por Cosmander, em 1644, que teria sido enviado para a cidade
com cem pedreiros. A nova linha de muralhas desenhada s segue a cintura medieval reformulando-a e
alargando a área urbana na sua parte oriental onde se implantaram os primeiros edifícios militares. O
número de portas foi drasticamente reduzido, de onze para três, como era norma militar. Esta Praça-Forte
não permitia uma penetração mais avançada das tropas inimigas e por isso, estaria mais apetrechada não
só de munições e armas, como a sua linha de fortificações alcançaram uma forma perfeita, não na
regularidade do seu perímetro de muralhas mas na construção da sua esplanada, fosso, estrada coberta e
no investimento das obras exteriores da segunda cintura, como revelins, meias luas, conservas, cavaleiros
e a obra coroa projectada pelo engenheiro Nicolau de Langres composta por um baluarte e dois meios
baluartes como era norma, reforçava a defesa naquele ponto mais altaneiro. Um processo contínuo de
reforço da defesa, que teve início com a edificação do Forte de Santa Luzia constituído a sua terceira
cintura, mais tarde completada pelo Forte da Graça.
A periferia militar marcava uma presença muito forte na cidade, pela quantidade de edifícios militares,
pela sua tipologia específica e pelo número de militares que compunham a guarnição, uma máquina de
guerra que dominava a actividade urbana que subsistia. Esta distribuição dos edifícios militares,
preferencialmente junto à Estrada de Armas, correspondia ao funcionamento ideal de uma Praça-Forte,
assim como as várias tipologias e funções que as construções apresentavam, correspondiam à diversidade
dos equipamentos que o poder militar europeu exigia na Idade Moderna, e que vai ser reflexo na
elaboração do Forte da Graça que tinha sobreviver como fortaleza independente da cidade mas fazia parte
da sua defesa. O alcance das armas que no séc. XVIII atingia 800 metros permitiu que a distância entre
Elvas e o Forte da Graça fosse defendida, que correspondia à área da esplanada da cidade. A realização
desta fortaleza, reforçou o papel de Elvas como a Praça-Chave do Reino de Portugal (fig. 03).

Figura 03: Planta da Praça de Elvas com seus Fortes Adjacentes, Francisco D´Alincourt,1802
Fonte:PT-GEAEM/DIE
O forte de Stºa Luzia inicia-se em 1644 e termina 1648, assim como a cintura de fortificação de Elvas
inicia-se na mesma data e teve a duração de cerca de vinte anos. O Forte da Graça, construído para
reforço da terceira cintura da fortificação de Elvas, foi erigido em 1763, no sítio da ermida de Nossa Srª
da Graça, onde os espanhóis tinham construído um reduto provisório no cerco das Linha de Elvas 1658-
59, que durou cerca de 4 meses, após a Batalha que envolveu dois grandes exércitos e muitos nobres
portugueses. Para além deste cerco, posteriormente houve tentativas de ataque à cidade, nomeadamente
em 1706, pelas tropas francesas e espanholas, o Marquês de Bay intentou bombardear a cidade sem êxito,
o que novamente se repetiu em 1711, cercando-a com um exército de 2000 homens de infantaria, 3000
artilheiros, e 8000 cavalos. Após as Guerras da Sucessão de Espanha (1756-63) e o Tratado com a França
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e Espanha acordado em 1763, o Conde de Shaumburg-Lippe, nomeado Comandante-Chefe do Exército
Português em 1762 e tendo estudado arte militar na Prússia, incentivou o Marquês de Pombal a edificar
uma fortaleza no Monte da Nossa Srª da Graça. Este forte foi desenhado pelo Conde de Lippe, e a sua
obra acompanhada no terreno pelo engenheiro francês militar Étienne, e um ano depois delegada a outro
francês, Guilherme Luís de Valléré, introduzindo alterações ao projecto inicial, construção que terminou
em 1792 (fig. 04).

Figura 04: Configurações das fortificações do Forte de N. Srª da Graça, a.d., Elvas.
Fonte: DSE
A área reduzida no topo da colina a 386m de altitude, que apresentava uma inclinação acentuada, tornou-
se um desafio à concepção do projecto representando a erudição que a engenharia militar tinha atingido
nesse século. A volumetria na Fortificação Moderna toma aqui um relevo particular, porque as muralhas,
cortinas e baluartes, assim como fossos e obras exteriores eram construídas em terra compactada, que era
necessário calcular desde o início da obra. Estabelecia-se uma relação intrínseca entre os vários
elementos, e a movimentação de terras era de facto o aspecto mais árduo da construção no terreno e o
mais dispendioso, e neste caso, o desafio era enquadrar o projecto numa colina, cuja a adaptação ao sítio
era o método de aplicação da teoria na Época Moderna que defendia formas poligonais perfeitas. A
esplanada é o exemplo dessa conjugação com a topografia, formatada com a grande inclinação do
terreno, mas moldada com arestas acentuadas para dificultar ainda mais o acesso.
A composição deste forte é expressa através de três corpos, que vai albergar uma guarnição com um
número elevado de militares: corpo principal de forma quadrado perfeito com 145m de lado, rodeado de
uma grande fosso de 10m de largura ladeado com um caminho coberto, revelins em todas as cortinas, e o
terrapleno do recinto principal tem 12m de largura; a grande obra exterior, o hornaveque com revelim
(fig. 09); o reduto central também de forma quadrada com 40m de lado, era a construção militar mais
monumental, à imagem do forte de Stª Luzia, continha a casa do Governador no seu piso superior, uma
cisterna subterrânea, armazéns para munições e víveres e a igreja à prova de bomba, onde a capela-mor
ocupava o centro geométrico, circundada por uma galeria onde estavam situadas canhoeiras para defender
as quatro portas da igreja que tinham acesso ao primeiro fosso. As galerias subterrâneas, as casamatas
situadas nos flancos dos baluartes, e outras na contra-escarpa do fosso dificultavam e reforçavam a sua
defesa, assim como um percurso subterrâneo para acesso a uma fonte. No seu interior, possuía
alojamentos e armazéns inseridos nas cortinas, assim como outros espaços para paióis e armarias
localizavam-se nos subterrâneos, mas nos baluartes situavam-se as casas para os oficiais que dominavam
o fosso interior. A Porta do Dragão, é referenciada pela sua estética apresentando robustez e dignidade
anunciando o edifício central (fig. 05).

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Figura 05: Porta do Dragão, Forte da Graça, Elvas, 2016.
Fonte: Acervo do Autor
A sua racionalidade geométrica reflecte o Iluminismo, mas os percursos complexos, a centralidade dos
espaços e os elementos decorativos da porta principal apresentava uma arquitectura barroca, como se
tratasse de um palácio para a corte militar no seu local de eleição, no centro e no topo da colina, era a
expressão do exército que ganhava cada vez mais uma imagem de poder. O Forte da Graça como obra
monumental, contrapunha-se à outra grande obra quinhentista como foi o Aqueduto das Amoreiras, de
autoria de Francisco de Arruda, e que atesta a valorização do investimento público nas infra-estruturas da
cidade. Esta edificação decorreu durante o séc. XVI, à custa de um imposto sobre a população, e com a
sua mão-de-obra, e pela sua monumentalidade e espelho dessa comunidade, o Governador das Armas não
cumpriu as ordens régias da sua demolição considerado um obstáculo ao tiro da artilharia, quando da
concepção da nova fortificação. A preservação desse património obrigou à construção de uma grande
cisterna em Elvas projectada em 1648, e prevaleceu desta forma, a manutenção de um património útil e
uma referência importante para a população, o aqueduto era o ex-libris de Elvas.
A edificação do Forte da Graça realizou-se por um período cerca de trinta anos, obrigando à participação
da população na sua edificação. Em Setembro de 1763, trabalhavam nas obras de construção do Forte da
Graça,” seis mil homens e quatro mil bestas e só para acarretar água empregavam-se mil e quinhentas
bestas” (Morgado, 1993, p.32). Os lavradores foram obrigados a fornecer as carretas para o transporte de
materiais como a pedra e madeira, e os filhos de lavradores eram obrigados a alistar-se como militares. A
construção de minas, em 1764, também provocou feridos, assim como era referido, pelo médico do
hospital militar em 1770, que os enfermos aumentavam, para além dos militares, também tinha que
assistir aos operários das obras. Também outros homens, essencialmente reclusos de outras cidades em
Portugal, foram obrigados a trabalharem nesta obra, mas o maior problema era o abandono da agricultura
na região, que deixou de ter mão-de-obra. Uma aldeia foi criada, denominada Aldeia do Vedor, edificada
pelos próprios trabalhadores para evitar a deslocação diária à cidade de Elvas, nome associado ao Vedor
de Artilharia, Manuel Rodrigues de Ataíde, que era o proprietário dessa quinta. A Aldeia do Vedor, ainda
hoje persiste como testemunho da interacção da população com o Forte da Graça, localizada no
assentamento do Monte da Graça. Ainda no séc. XVIII, outros quartéis na cidade de Elvas foram
projectados pelo engenheiro Valleré, o que pressupunha a permanência de um grande exército na cidade e
nos seus fortes adjacentes.
Esta Fortaleza ficou activa até 1834, e após as guerras civis serviu de prisão política alojando um maior
número de população, tendo albergado cerca de 6 000 militares como guarnição, e mais tarde volta a ser
prisão política no regime da ditadura que terminou em 1975. Só ficou devoluto em 1989, sendo hoje um
património muito visitado pela sua erudição e sua funcionalidade em vários períodos da sua história, mas
sobretudo é também interligado à população de Elvas pelo seu contributo na edificação desta obra
monumental.

4. FORTE PRINCIPE DA BEIRA: A UTOPIA NA DELIMITAÇÃO DA FRONTEIRA

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No reinado de D. José I foi implementada uma política de afirmação territorial, após os Tratados que
definiam a linha demarcatória da fronteira terrestre no Brasil. Os limites dessa fronteira estabelecidos pelo
Tratado de Madrid de 1750, foram posteriormente redefinidos no Tratado de El Pardo de 1761, e
finalmente a sua definição foi acordada com o tratado de St. Ildefonso em 1777. A necessidade do
reconhecimento desse território foi efectuado através do levantamento cartográfico iniciado por
expedições, e também pela fundação de núcleos urbanos, “no total de 118 (vilas) foram criadas no século
XVIII [..], sob o reinado de D. José I, quando 57 povoações viram-se elevadas à categoria de vilas”
(Azevedo, 1956, p.35).
Para além da disputa na bacia do Rio Prata, com o estabelecimento da cidade de Colónia do Santíssimo
Sacramento em 1680, a situação limítrofe entre o Paraguai e o Brasil arrastou-se nesse período de
conflitos, e foi por este motivo que se decidiu levantar o forte de Nossa Senhora dos Prazeres de Iguatemi
em 1767, junto ao rio do mesmo nome, para marcar a presença portuguesa, uma espécie de bastião
naquele território banhado por vários rios e o primeiro estabelecimento militar naquela região. Esta
fortaleza defendia a capitania de Mato Grosso e de Goiás fundadas em 1748, e inúmeros fortes foram
depois edificados no interior, como o Forte de Coimbra no Rio Paraguai, e o Forte Príncipe da Beira no
rio Guaporé iniciados em 1775. A fundação da capital de Mato Grosso, em 1752, denominada Vila Nova
de Santíssima Trindade, também na margem do rio Guaporé, revela a importância da relação com o rio
como elemento definidor da fronteira, onde a capital marcava a sua presença através das instituições
militares e dum traçado racional com a marcação de duas praças.
Um importante papel teve o engenheiro militar Domingos Sambucetti que projectou desde o Forte de
Coimbra e o Forte Príncipe da Beira em 1775, ao projecto para a Vila Nova de Mazagão em 1769, já
referida, na margem do rio Mutucuá, localizada no território da foz do rio Amazonas., Nesta região da
Amazónia, houve um investimento importante com Francisco Xavier Mendonça Furtado, governador do
Estado do Grão Pará e Maranhão, como foi também a fundação da vila de São José de Macapá em 1751,
junto da qual se ergueu o forte de N.Srª dos Prazeres, inicialmente de faxina, e posteriormente edificado
em pedra e cal no período entre 1764-1782, de autoria do engenheiro militar António Galuzzi. Este forte
apresenta uma forma quadrada perfeita de grandes dimensões, com instalações militares no seu interior, e
particularmente, como Mazagão, no Norte de África, tira partido da sua localização sobre o mar, e neste
caso, a construção do fosso inundado pelas águas do rio, torna-o inexpugnável para garantir o domínio da
foz do rio Amazonas.
A construção da Forte Príncipe da Beira foi iniciada em 1775, por ordem de D. Luís de Albuquerque
Mello Pereira e Cáceres, nomeado Governador do Mato Grosso em 1771. A sua localização na margem
direita do rio Guaporé iria substituir o forte da N.Srª da Conceição, mais tarde denominado Forte de
Bragança, que foi edificado em 1765, a dois quilómetros de distância, e teria sido destruído por enchentes
do rio em 1771. Pretendia-se erguer uma verdadeira fortaleza que dignificasse e marcasse os limites do
território brasileiro, em paralelo com a fundação da Vila Bela da Santíssima Trindade, localizada mais a
sul na margem do rio Guaporé. A escolha do sítio ideal de implantação levou a várias discussões, porque
se pretendia erguer uma fortaleza segundo os ideais de Fortificação Moderna, e a escolha preterida seria
um local plano. Esta edificação apresentava uma forma poligonal regular, e representava uma cidade
militar ideal, albergava uma guarnição permanente, marcava a fronteira no território interior do Brasil, e
simbolizava o poder central através da uma obra monumental, construída com pedras talhadas e
transportadas através do percurso fluvial desde a foz do Amazonas até a este local interior (fig. 06).

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Figura 06: Plano que se deve executar se na ereção do novo Real Forte que há denominar se sendo servido S. M. do
Príncipe da Beira, a.d, 1775
Fonte: AHU-DGLAB
Esta grande fortaleza apresenta a forma de um quadrado perfeito, como o Forte da Graça, e a Fortaleza de
S. José de Macapá, possuindo um perímetro de 970m, com muralhas de 10m de altura, e quatro baluartes,
sendo cada um armado com catorze canhoneiras, e quatro revelins para defesa das cortinas, à imagem do
Forte da Graça. A monumental porta dava acesso ao terreno envolvente através de uma ponte levadiça e o
fosso com cerca de 30m de largura, que ainda estava ser edificado em 1789, assim como o terrapleno da
estrada coberta com parapeito (fig. 07). A implantação dos vários edifícios, que perfaziam o equipamento
necessário à sobrevivência duma Fortaleza ou Praça Militar, eram paralelos e perpendiculares às cortinas,
configurando ruas que desembocavam na praça central, a Praça de Armas. No seu interior, existiam
alojamentos, destinados ao governador e à guarnição, uma capela, armazéns, paiol, duas prisões, assim
como uma cisterna, e um acesso subterrâneo ao exterior como ultimo recurso para abandonar a praça.

Figura 07: Desenho da Porta do Forte Príncipe da Beira, a.d., n.d


Fonte: Casa da Ínsua, Penalva do Castelo
Os projectos eram discutidos entre os engenheiros militares e o poder central, assim como todo o processo
de construção era acompanhado pelas instâncias governamentais. A política de Luís de Albuquerque
levou mais longe o conceito de fronteira, querendo estabelecer uma dinâmica naquela região, retratada na
edificação desta fortaleza. A falta de recursos, a aproximação do inimigo, bem como todas as dificuldades
foram registadas por D. Luís de Albuquerque, que inaugurou o forte em 1783, quando afirmou:

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A soberania e o respeito de Portugal impõem que neste lugar se erga um forte, e isso é
obra a serviço dos homens de El-Rei, nosso senhor e, como tal, por mais duro, por mais
difícil e por mais trabalho que isso dê [..] é serviço de Portugal. E tem que se cumprir.
(Nunes, Adonias, 1985, p. 5)
Algumas pedras usadas na construção, foram trazidas de Belém, por via fluvial através dos rios
Amazonas, Madeira e Guaporé, percorriam mais de mil quilómetros para chegarem ao local, mas também
existia uma pedreira na região, como refere Sambucetti num relatório em 1775. Posteriormente, passaram
a vir de Albuquerque ou de Corumbá em Mato Grosso, através do Rio Paraguai e depois eram
transportadas por terra. A dificuldade de transportar a cal, já teria sido um dos problemas na edificação do
forte de n. Srª da Conceição, tendo-se optado nesse caso, utilizar o barro existente na região, afirmando.
“sendo as paredes, fabricadas com elle, tão fortes, e seguras como as de pedra e Cal, fica remediada esta
difficuldade” (Faria, 1996, p.58). Mas para o novo Forte, optou-se pela construção de pedra e cal, e este
material também provinha de Belém através do rio Madeira, por isso era necessário construir barcos e
contratar pessoal para esse transporte constante que levaria meses para atingir o destino, ultrapassando os
saltos e cachoeiras que fazem parte desse percurso retratado por Alexandre Rodrigues Ferreira na sua
obra A Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1792).
No início das obras, técnicos e trabalhadores viriam de Belém do Pará e depois do Rio de Janeiro, porque,
por um lado, era necessária mão-de-obra especializada, mas por outro, também havia a necessidade de
operários para carregarem os materiais e outros ofícios, como cultivar cereais. Entre esses trabalhadores
muitos deles eram escravos, vindo de Minas Gerais, e outros eram indígenas que habitavam essa região.
Esta população formou um povoamento, como no Forte da Graça, um arraial ou aldeia com cerca de um
milhar de habitantes, que retrata a dimensão da obra. A descrição do Capitão Engenheiro José Pinheiro
Lacerda, que foi director desta obra, refere a quantidade de operários e as obras que têm que ser
realizadas, como o revestimento interior das cortinas e completamento do fosso, e os equipamentos como
o paiol e as duas prisões subterrâneas: “tudo disposto e ordenado a concluir se em quatorze Mezes, com
369 Obreiros” (Adónias, 1981, p. 92).

Figura 08: Forte Príncipe da Beira, 2019


Fonte: www.gmaps.brasil.com
A envolvência e o sacrifício de todos na edificação desta obra é o seu Património, mesmo o próprio autor
do projecto, o engenheiro militar Domingos Sambocetti, falecia de malária em 1780, não podendo
acompanhar o seu término, sendo substituído pelo engenheiro e oficial Ricardo Serra. Os arraiais ou
quilombos, que foram criados no território envolvente, representam, através de gerações, as comunidades
que estiveram envolvidas na edificação deste monumento. Os militares foram também a população que
manteve esta fortaleza, preservando este bastião numa região com pouca acessibilidade, numa perspectiva
de militância continuada desde a sua primeira pedra de fundação (fig. 08).
Este forte foi desactivado em 1889, que levou a um estado de degradação, que só foi reactivado com a
redescoberta do Marechal Cândido Rondon em 1919, que permitiu através de iniciativas que o exército
retomasse a seu papel de defesa da fronteira a partir 1930, até aos nossos dias. Em 1950, esta fortaleza foi
classificada pelo Instituto Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), valorizando um

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património que retrata a história do Brasil, nas regiões da Amazónia e Mato Grosso. As suas ruínas,
representam o esforço da sua edificação e da sua manutenção persistindo durante séculos, e a simbologia
do significado de fronteira. Para Jonh Ruskin, a verdadeira glória de um edifício era a sua antiguidade, e
na perspectiva de intervenção do Restauro, defendia que não se devia tocar nos edifícios antigos, mas
deixá-los viver. Este pensamento também se pode reportar às ruínas, que devem ser conservadas e
valorizadas como testemunho duma vivência, mas não com elementos novos que destroem a sua
genuidade. Neste contexto é importante realçar a imagem de ruínas, retratadas, no séc. XVIII, por
Piranesi nas suas gravuras de Roma Antiga, que alertaram para um património que era esquecido.

5. O PROCESSO CONSTRUTIVO COMO VALOR PATRIMONIAL


O mito da “cidade ideal”, nascida no pensamento humanístico da primeira Renascença, criou a cidade
militar, como uma Fortaleza ou seja a Praça-Forte. A dualidade entre a Fortaleza e a cidade militar onde
coexiste uma população civil e militar, exprime-se na concepção do primeiro ensaio em Mazagão, e a
complexidade tecnológica da arquitectura militar, que constituí o perímetro fortificado, é representado nas
monumentais fortalezas da Graça e Príncipe da Beira, que têm que funcionar como estruturas urbanas
dada a dimensão da guarnição, ou seja, do número de efectivos militares para funcionarem como
elementos autónomos.
Estas três edificações, de forma quadrada, apresentam grandes áreas de implantação, incluindo a área do
fosso e das obras exteriores, onde a ocupação do espaço central apresenta situações diferenciadas. Em
Mazagão, que abrangeu dois períodos de construção, esse espaço é ocupado pelo reduto primitivo e a
praça de armas situa-se junto à Porta da vila, como espaço militar e civil. No Forte da Graça, a praça
central é ocupada por um reduto que correspondeu a uma alteração do projecto inicial, que concentra
vários equipamentos, como a cisterna, a Igreja e Casa do Governador, enquanto no Forte Príncipe da
Beira, esse espaço é assumido como a Praça de Armas para reunião do exército, rodeada por todos todas
as edificações que correspondem aos equipamentos militares duma Fortaleza.
A Cidade-Fortaleza de Mazagão baseada num polígono irregular quadrangular com duas portas, com
cortinas com cerca de 300m de comprimento e quebradas para o interior, numa perspectiva de melhor
defesa, e junto à Porta do Mar apresenta uma reentrância para funcionar como porto de abrigo. Os seus
quatro baluartes angulosos de orelhão, são também irregulares pela sua adaptação à geologia do solo e são
reforçados por cavaleiros. O fosso com cerca de 30m de largura, contem diques para controlo da água de
mar e servir também de porto de abrigo, e a contra-escarpa do fosso transforma-se num revelim para
defesa da Porta da Terra. O reduto central primitivo é o espaço em torno do qual todos equipamentos
militares estão associados em confronto com a estrutura urbana traçada racionalmente que preenche o
espaço interior do recinto fortificado.
O projecto do Forte da Graça apresenta um forma quadrangular de 145m de lado, com quatro baluartes
onde se implantaram um conjunto de pequenos quartéis na plataforma das canhoeiras, e uma única porta.
As suas obras exteriores são compostas por quatro revelins situados no terrapleno da estrada coberta, que
ladeia um fosso de 30m de largura, e por um hornaveque de grande dimensão com revelim, enquadrado
na configuração geométrica do forte. O seu reduto central de 40m de lado contem algumas instalações
militares, como a casa do governador, e todos os outros equipamentos estão inseridos nas cortinas e
baluartes, representativos do alojamento de uma forte guarnição permanente.
O Forte Príncipe da Beira também apresenta a forma de um quadrado perfeito e uma única porta, como o
Forte da Graça, com 119m de lado, com quatro baluartes e quatro revelins para defesa das cortinas,
colocados no terrapleno do caminho coberto, com um fosso com pouca profundidade que atinge os 30m
de largura, semelhante a todos os outros já referidos. Todos os equipamentos militares são implantados no
recinto interior da fortaleza, dispostos racionalmente como um acampamento militar romano. As guaritas
são os elementos referenciais dos baluartes na paisagem militar, também aplicados nos vértices dos
baluartes do Forte da Graça que implicaram alguma discussão sobre a sua funcionalidade.

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Desta forma a construção dessas tipologias exigem um planeamento, e o desenho aparece como
instrumento essencial de concepção de uma ideia que transmite a erudição que a Fortificação Moderna vai
alcançar, não só no traçado do sistema defensivo, como nos equipamentos militares que reflecte a
evolução da formação do exército. O processo de construção também obriga a uma complexa
estruturação, dada a sua monumentalidade, como a escolha do sítio no caso de Mazagão, como um porto
de recolha de barcos, e num terreno com incursões sucessivas do inimigo, exigindo a deslocação de gente
e materiais de Portugal. Assim como no Forte da Graça, a implantação numa colina obrigou a uma obra
morosa e com o projecto especifico, que criou infra-estruturas subterrâneas que justificou um estaleiro de
grande dimensão como um efectivo de trabalhadores, obrigando a população de Elvas a trabalhar
arduamente nessa obra. Com a mesma perspectiva de edificar uma obra monumental num local isolado, o
Forte Príncipe da Beira, também implicou a deslocação de trabalhadores e de materiais, cujo acesso seria
sempre através de percursos fluviais.
A relevância do valor patrimonial de um monumento era defendida na obra de John Ruskin As Sete
Lâmpadas da Arquitectura de 1849, que abordava uma nova perspectiva oitocentista sobre princípios
arquitectónicos, e como pintor e crítico de arte elevava a função da arquitectura como a força do espírito,
sobretudo a arquitectura religiosa. Mas como intelectual que se contrapôs à industrialização e ao papel da
máquina, valorizou o trabalho manual e as condições dos trabalhadores, e o seu conceito de beleza
implicava essa leitura sobre o objecto arquitectónico. Como ele afirmava, a nobreza de uma coisa mede-
se pela proporção da vida que ela nos enche, e nesse princípio refere que a arquitectura só tem nobreza
quando transmite sensações, que são reflexo da relação entre o intervalo entre ideia/concepção e a sua
execução. O seu valor patrimonial é resultado dessa relação, e a execução é o que define a interacção do
Homem com a Natureza, como exemplo da edificação das Catedrais, ou mesmo pequenas igrejas que
representavam um esforço duma comunidade que esteve envolvida na sua construção durante várias
décadas ou séculos.
A edificação destas obras grandiosas que caracterizam-se, não só pela sua dimensão, mas pelo seu valor
de concepção estético e funcional representado pelos engenheiros militares ou arquitectos designados
pelo poder real pela sua competência. O processo complexo de execução interligado a estas grandes
edificações consagra-os como Monumentos, que abrangeu não só um grande investimento na
coordenação da sua edificação, como envolveram uma população durante décadas, que justifica o
reconhecimento duma obra monumental nessa perspectiva, em que todos se empenharam e foram
intervenientes.
No caso de Mazagão a nova cintura de muralhas foi realizada num período muito curto de dois anos em
circunstâncias específicas, ou num período mais extenso, cerca de trinta anos, no caso do Forte da Graça,
e no Forte Príncipe da Beira a obra durou oito anos, obrigando a uma coordenação de estaleiro da obra,
embora coordenada pelo poder central, teve que ultrapassar obstáculos, como dar condições aos operários
que trabalhavam na obra. Estas edificações são hoje classificadas como Monumentos, Mazagão e o Forte
da Graça reconhecidos pela Unesco como Património Mundial em 2004, e 2012 respectivamente, assim
como Forte Príncipe da Beira, classificado pelo IFHAN em 1950, agora enquadrado num processo de
candidatura a Património Mundial, são o espelho desse esforço comunitário como obras de grande
envergadura. Todas estas edificações representam a política portuguesa durante três séculos: Mazagão, o
último reduto do Norte de África, simboliza a rota comercial iniciada com a época dos Descobrimentos; o
Forte da Graça reafirma a linha de fronteira portuguesa e o seu estatuto de Nação; o Forte Príncipe da
Beira simboliza o reconhecimento internacional dos limites do território brasileiro.

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