O Patrimonialismo Brasileiro: como Raymundo Faoro explicaria a crise
brasileira atual?
As denúncias e gravações recentes do grupo JBS, que deflagraram a crise
política atual do governo, demonstram a persistência do entrelaçamento de relações entre o setor público e o privado brasileiro. Esta mesma crise política do governo culminou, nesta sexta, na saída da economista Maria Silvia Bastos da presidência do BNDES. A saída da economista da presidência, cujo perfil de gestão técnica enfrentava resistências de alguns setores, reforça a tese da dificuldade de se promover no Brasil um sistema capitalista autônomo ao setor público. Sistema este estabelecido por regras impessoais de concorrência entre empresas e orientado para a eficiência de resultados e para o lucro de mercado, e não por vantagens ou privilégios conferidos a “campeões nacionais”, por intermédio de laços ou compromissos com determinados grupos políticos.
A dependência da economia ao estado e o intervencionismo estatal é a
marca característica das instituições brasileiras, herdado do seu passado colonial ibérico e português. Esta é a tese de um dos grandes clássicos do pensamento político brasileiro, a obra Os Donos do Poder, do historiador e jurista Raymundo Faoro. Em Os Donos do Poder, Faoro se baseia no conceito de patrimonialismo para identificar as raízes históricas do intervencionismo estatal brasileiro.
O sistema patrimonialista
Faoro, utilizando dos tipos ideais do pensamento de Max Weber, conceitua o
termo. O patrimonialismo é uma forma de organização social, distinta do feudalismo e capitalismo. Ela é marcada pela existência de um estado caracteristicamente marcado pela fusão entre as noções de soberania, pertencente à esfera pública, e patrimônio, pertencente à esfera privada. Nesse sentido, como resultado desta confusão entre a esfera pública e privada, o estado patrimonial tende a ver os bens econômicos de uma nação como uma extensão do patrimônio do estado, nele intervindo e controlando para seus propósitos. Para Faoro, as instituições políticas portuguesas são desde as suas origens marcadamente patrimonialistas, o que constituiria um obstáculo à ascensão de um setor privado e empreendedor autônomo, gerador de produção e riquezas.
Com isso, as instituições portuguesas apresentam um caráter peculiar, se
desenvolvendo historicamente de forma distinta daquelas observadas por outros países ocidentais. Para melhor compreender esta peculiaridade portuguesa, devemos remontar às suas origens na Idade Média. Durante os primórdios do período medieval em Portugal, inexistiu um feudalismo consolidado, caracterizado por uma aristocracia territorial emancipada economicamente e militarmente do poder central do rei. O Estado moderno e a figura do monarca absoluto e centralizador se faz presente desde a independência portuguesa, no século XII. O monarca exercia o papel de chefe militar na guerra expansionista de Reconquista contra os mouros. O rei tomaria para o seu patrimônio pessoal a maior parte das terras anexadas. Assim, as terras da Coroa (os reguengos), geradoras de fontes de recursos com arrendamentos, fortalecia o poder pessoal do rei, e enfraquecia o da classe aristocrática. Como consequência, o rei disporia de recursos para sujeitar e sufocar economicamente e politicamente a classe nobiliárquica.
Este desenvolvimento institucional se verificou de forma distinta em outros
países, como a Inglaterra. No caso inglês, a existência de um feudalismo consolidado, com forte descentralização do poder na nobreza local, levou ao surgimento de uma aristocracia territorial e militar fortalecida e capaz de fornecer contrapeso a uma autoridade real. Esta emancipação da classe aristocrática ao poder central da coroa levaria, na Inglaterra, à formação das instituições parlamentares, com garantias institucionais de liberdades econômicas, civis e políticas, inicialmente à aristocracia emancipada, e posteriormente estendida ao restante da população. E estas garantias institucionais levaria, nos séculos posteriores, à gradual evolução para instituições liberais e o capitalismo moderno.
Faoro ainda ressalta que, em contraponto ao desenvolvimento das
instituições inglesas rumo ao estado racional, impessoal e liberal, em Portugal, tal desenvolvimento jamais existiu. Nos séculos seguintes, dos séculos XV e XVI, o estado português, fortalecido militarmente e financeiramente, se tornaria empresário e o principal executor de projetos comerciais e marítimos. Este coordenaria, via monopólios, concessões, privilégios e regulamentações, as atividades privadas para fins de obtenção de lucros extraordinários com a empresa marítima e colonizadora das Índias e da América. O estado patrimonialista, fomentador do capitalismo politicamente orientado, transpassaria o período marítimo e continuaria nos séculos posteriores, se descolando da figura pessoal do monarca, para congelar-se em um quadro administrativo burocrático, separado do restante da sociedade, que a comandaria de cima para baixo.
O estamento burocrático
Este quadro administrativo, centro de comando político e econômico, é
denominado por Faoro de estamento burocrático. Para Faoro, mais do que uma classe, o estamento burocrático paira acima dos demais grupos sociais, absorvendo-os segundo os seus interesses. Com isso, ela não necessariamente assume uma forma rigidamente repressiva, mas plasticamente moldadora da sociedade.
Como exemplo desta absorção plástica, nunca existiu precisamente uma
"consciência de classe" na burguesia comercial e na aristocracia portuguesa. Como exemplo, a glória social buscada por um burguês não estava fundada na sua realização enquanto membro de classe, através do empreendedorismo, mas na sua acomodação ao estamento. Isso se reflete seja na busca de privilégios e cargos, seja na valorização da educação bacharelista, com os filhos educados para ocupar funções públicas, com desprezo ao trabalho manual. Isto constitui um obstáculo ao legítimo capitalismo orientado para o mercado e racionalmente pelo lucro. Patrimonialismo e colonização
A colonização do Brasil foi marcada pelo comando e direção do estamento
burocrático, segundo Faoro. A subordinação e centralização do poder estatal se fez presente nos governos-gerais. Além disso, a concessão de terras, por intermédio da Lei de Sesmarias, se encontrava condicionada pela permissão da Coroa, estando a propriedade privada, desde o começo, fortemente condicionada aos interesses régios. O estado se estabeleceu antes de se formar a sociedade. O povoamento era condicionado, regulado e ordenado por cartas e permissões fornecidas pelo poder central. Até mesmo o processo de desbravamento do interior, pelos bandeirantes paulistas, não se deu de maneira espontânea. Durante o período das bandeiras, no século XVII, a Coroa se aliou aos proprietários de terra paulistas, concedendo-os honrarias e nomeações em milícias locais como prêmios pela descoberta de ouro e novas terras, a fim de incorporá-los à estrutura militar e burocrática.
Faoro ainda ressalta que a vinda de D.João ao Brasil, em 1808, reforçaria
ainda mais a estrutura burocrática e estatal vigente. Sobre essa estrutura se assentaria o Estado Imperial, centralizado. O Estado imperial brasileiro no século XIX, muito ao contrário do que se diz, muito se distanciava do modelo liberal. O capital financeiro e comercial se encontrava entrelaçado em uma rede de interesses politicamente ligados com a União. A concessão de créditos, investimentos, subsídios a investimentos passava inteiramente por autorizações estatais.
A proclamação da República em 1889 e a República Velha caracterizou um
breve retrocesso ao estado patrimonialista, com a ascensão da descentralização federativa e maior liberdade econômica, com a ascensão de uma classe empreendedora em São Paulo. A Revolução de 30, por outro lado, foi o seu retorno definitivo, na qual nos encontramos até os dias atuais.
O que
Os últimos 14 anos do PT no poder assistiram ao ápice do estado
patrimonialista e do agigantamento do poder do estamento burocrático no Brasil. A rede de concessões, subsídios estatais, desonerações, fomentada por políticas keynesianas intervencionistas, foi levada até à exaustão, culminando no colapso econômico atual. Com um desemprego atingindo a marca histórica de 14%, é urgente uma reforma no estado brasileiro, de modo a domesticar e controlar a sua natureza expansiva e patrimonialista.