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UNIVERSIDADE LICUNGO

FACULDADE DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

LICENCIATURA EM AGROPROCESSAMENTO-LABORAL2⁰ ANO

IRANETE JACINTO VALTER


IDUETE ANTÓNIO
MARIO CHICO AMODA
MARQUISINHO JAIME
VALDIMIRO LOPES
ZACARIAS JOÃO ZACARIAS

A FEITIÇARIA

Quelimane
2023
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3. A FEITIÇARIA (OKWIRI)
Em sentido estrito, a feitiçaria pode definir-se como uma magia maléfica para
prejudicar os outros. Em sentido lato, os crimes são postos no âmbito da feitiçaria: homicídio,
furto, adultério, etc. Na vida quotidiana, os sofrimentos dos homens e das mulheres são
atribuídos aos feiticeiros que são considerados inimigos da vida e da prosperidade dos outros.
3.1. A FEITIÇARIA COMO MAGIA
Para lá das culturas, das raças ou das origens, um dos pontos comuns que aparece em
todos os seres humanos é o sentido do religioso e do mágico, que desde o "princípio"
configurou crenças e comportamentos. Poderíamos chegar até ao Paleolítico, cerca de 15 000
anos atrás, para descobrir que muitas das pinturas rupestres são mais do que expressões
artísticas. Certos objectos ou animais estão unidos a símbolos de transcendência que supera
sua própria natureza. Ainda que o religioso tenha experimentado uma mudança, o elemento
mágico é um facto inquestionável. O mundo da magia, como é lógico, está envolvido em
mistério e sincretismo que sustentam esta forma de crença.
Para falarmos da feitiçaria como magia, convém clarificar o conceito desta. De modo
simples, pode dizer-se que magia é todo o ritual motivado pelo desejo de obter um efeito
especial, num intento de manipular as forças preternaturais ou ocultas. Em determinadas
circunstâncias, realizando determinados gestos e palavras manipulam-se as forças ocultas da
natureza ou do cosmos que dão resultados desejáveis. Não é fácil falar da magia em
ambientes científicos, uma vez que não pode ser racionalizada.
Se as forças preternaturais podem ser manipuladas por quem possui suficiente
conhecimento e condições para o fazer, então, este pode fazê-lo em detrimento ou em
benefício das pessoas ou comunidades. Daí que se faça a distinção entre a magia negra e a
magia branca.
3.1.1. Magia negra
A magia negra é considerada maligna e destrutiva. Emprega-se para matar, criar ódio
originar situações emocionalmente desequilibradas, como a loucura. O feiticeiro é aquele que
não está contente por ver os outros felizes e, através duma concorrência desleal, um ciúme
homicida, mentira e manipulação de todo o tipo, procura destruir a energia vital dos outros. É
neste sentido que se ouvirá frequentemente dizer na Africa subsahariana «este homem ou esta
mulher comeu o meu filho ou a minha filha...».
Os especialistas em magia negra podem dividir-se em feiticeiros noturnos e feiticeiros
diurnos.
a) Feiticeiros nocturnos
Estes são essencialmente de sexo feminino. Designam-se "da noite", não porque
exerçam somente nesse período, mas pelo facto da magia ser secreta e sinistra. Acredita-se
que esses poderes se transmitem de mãe para filha.
Essas pessoas são odiadas pelo povo; contudo, são respeitadas por medo de suas
actuações. Dramatiza-se, muitas vezes, a vida, tecendo lendas terrificantes que as associam
com animais como macacos, serpentes, hienas, morcegos, mochos ou corujas, considerando-
os seus "familiares". Acredita-se, ainda, que elas têm o poder de transformar qualquer pessoa
nesses animais.
b) Feiticeiros diurnos
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Estão associados aos danos cometidos na própria família ou a pessoas específicas,


originados pelo ódio, invejas ou ciúmes. Os actos malévolos desencadeiam-se em situações
familiares ou de grupo em que emerge a competição e o desacordo pelas diferenças de
riqueza ou de posição social, pelo ciúme entre as mulheres de polígamos, pelas disputas entre
colegas de trabalho, pela inveja de estudantes que se destacam dos outros.
A finalidade destes feiticeiros é fazer irromper uma doenca irreversível que leve à
morte. Os métodos que empregam são secretos. Fazem com que a vítima ingira veneno sem
que o saiba. Por isso, é difícil acusá-las de tais acções. Acredita-se que basta que aponte com
o dedo, a longa distância, à pessoa a quem se quer causar o mal ou que obtenha qualquer
coisa pertencente à vítima - cabelos, peça de roupa ou um pouco de terra pisada por seus pés -
ou que a vítima calque o veneno previamente colocado num local inevitável (na porta da
casa, no quintal na estrada ou num cruzamento), para surtir os efeitos maléficos desejados.
3.1.2. Magia branca
A magia branca seria o reverso da magia negra. Os especialistas desta arte usam-na
para exorcizar as forças destruidoras. Portanto, é empregue com fins positivos, benéficos, tais
como: produtividade, protecção, sucesso nos empreendimentos, cura de enfermidades, etc. Os
especialistas na cura dos doentes empregam, também, este tipo de magia.
A magia branca pode ser sistematizada em três aspectos:
1. Magia como arte oracular: este papel é desempenhado pelo adivinho;
2. Magia como medicina: o mago apresenta-se como médico sob duas formas:
herbanário ou nevrópata (possesso);
3. Magia como religião: o mago é sacerdote, oferece sacrifício para apaziguar a ira
divina (Deus ou divindades menores, os espíritos dos antepassados), intervém para
manipular as forças ocultas para fazer chover.
Nesta acepção, os magos exercem um serviço para a sociedade. A sua ciência é
considerada humanitária, por isso, os seus serviços são pagos. Nesta categoria destacam-se os
herbanário, adivinhos e os mestres das chuvas.
Os herbanários são especializados no uso de medicinas essencialmente produzidas com
plantas de propriedades curativas. Acredita-se que têm relação com os antepassados que são
seus guias e inspiradores.
3.2. A FEITIÇARIA NO POVO CHUABO
O chuabo acredita que a feitiçaria tem como fonte a vontade, o desejo de fazer mal, a
inveja, o ódio e vingança. Pode admitir-se que o desejo de fazer mal a outrem é uma
perturbação neuropsicológica. O chuabo afirma que «okwiri oli ninga miala», isto é, a
feitiçaria é como a loucura, faz-se por prazer, ou é instintiva, quem a possui tem uma
apetência para o mal. Os sentimentos malévolos desencadeiam-se quando a pessoa acha que é
descurada ou estão a ser postergados os seus direitos afectivos, de herança ou qualquer outro
benefício. Uma vez que possui forças malignas, o feiticeiro é capaz de retirar a saúde a
alguém e substitul-la pela doença ou pelas forças de morte. Por isso, são temidos,
abominados e perseguidos até à morte. São imputados de serem responsáveis pelos
infortúnios, doenças e morte de pessoas e animais, insucessos em vários aspectos da vida: na
vida pessoal, familiar, social, económica, etc.
3.2.1. Três categorias de feitiçaria
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1) Okwiri osunzihiwa (feitiçaria aprendida). Como o curandeiro, o feiticeiro aprende a


feitiçaria, passando por ritos complicados e macabros. Os feiticeiros, conforme as
informações que obtivemos, reúnem-se em confrarias secretas. Acontece que num casal um
dos cônjuges pode ser feiticeiro sem que o outro o saiba, mas eles conhecem-se uns aos
outros. O provérbio "os feiticeiros conhecem-se" ilustra a crença.
O feiticeiro é diferente do assassino - que usa arma branca ou de fogo - e daquele que
faz o mal usando drogas e venenos. A feitiçaria é a acção maléfica feita magicamente,
sobretudo de noite.
Os atxuabo afirmam convictos que o feiticeiro quando vai realizar os seus sortilégios na
casa de alguém não entra pela porta, mas pelo tecto. Uma vez dentro de casa, procura, em
primeiro lugar, destruir toda a força de protecção, isto é, urina por cima dos medicamentos e
amuletos que lá encontrar para que não produzam efeitos desejados ou fá-lo para sua própria
cura se nas investidas das noites anteriores foi atingido pela ação de alguma droga de
protecção. Em seguida, bate, senta-se por cima e faz outros males às suas vítimas. Estas só se
dão conta dos efeitos depois de despertarem.
Os efeitos maléficos da feitiçaria podem ser variados, tais como emagrecimento,
sofrimento por doenças complicadas, miséria, alcoolismo, falta de sorte ou fracasso nos
empreendimentos, loucura, morte, etc.
É crença comum que os feiticeiros comem magicamente carne humana. Trata-se de uma
prática de antropofagia feita sem que as pessoas se apercebam, por isso, acrescentamos o
advérbio "magicamente". O feiticeiro, normalmente, mata somente os seus familiares, mas,
quando não tem possibilidade de o fazer, às vezes, recorre aos seus confrades que lhe
emprestem um dos seus familiares.
A este empréstimo denomina-se mathule. Por não honrarem o compromisso de
devolução, por vezes, alguns emprestadores exigem ruidosamente a restituição.
Ouve-se comummente expressões de reivindicação como esta: «restitua o meu "rei" ou o meu
"rico**». Trata-se do morto de um status sócio-económico elevado, supostamente "comido"
num desses actos mágicos. A partir do conflito criado a aldeia passa a conhecê-los como
feiticeiros. Em situações incontornáveis, o devedor sente-se forçado a sacrificar o familiar de
predilecção ou quem o ampara para solver a dívida. Daí a lógica do provérbio "o feiticeiro
mata o seu filho único" (mukwiri onompá mwánae modhá). Não tendo nenhum familiar, o
feiticeiro pode seguir a lógica da "carne apanhada" (nama oddoddá). Esta realiza-se quando
ele assiste alguma contenda em que, irrefletidamente, as pessoas se ofendem e lançam
vitupérios, imprecações e até maldições de morte. O feiticeiro solitário aproveita-se desta
altercação - em que os espíritos estão machucados, fragilizados e ressentidos - para matar
sem deixar margem de suspeita porque sabe que o incriminado será o adversário da briga.
2) Okwiri oponyediwa ou ovaiwa (feitiçaria atribuída). É um poder que lhe é lançado ou
dado forçosamente por um feiticeiro. Não se trata de uma feitiçaria voluntária, por isso, esta
atribuição forçada faz sofrer. Neste caso, a feitiçaria não é um poder que exprima uma
riqueza, mas é vogo (desgraça), uma doença que faz emagrecer. Alguns curandeiros afirmam
que o "feitiço” tem a aparência de um bichinho, umas vezes semelhante a um sapo, outras
vezes a um morcego ou a um rato. Pode ser extraído (owangurhiwa) da pessoa e depois
aplica-se-lhe uma droga a base de elova (uma planta). Com este tratamento a pessoa deixa de
ser feiticeira e nunca mais fará parte da confraria. Afirma-se que em 1974 e 1975 aquando da
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entrada da independência de Moçambique, por causa da luta aguerrida contra a feitiçaria,


muitos feiticeiros desfizeram-se dos seus encantamentos e dependuraram-nos nos salgueiros e
cajueiros. Nesse período, em Macuse e noutros lugares, muitas destas árvores teriam morrido.
O motivo da epidemia foi vulgarmente atribuído à força mortal da feitiçaria relegada e
disseminada.
3) Okwiri obaliwana (feitiçaria congénita). Há os que nascem com poderes extraordinários.
Tais poderes não podem ser descartados, são considerados naturais. Estes poderes são
indeterminados: O chuabo afirma serem nifumó, uma riqueza, algo bom. É obvio que,
quando são bem orientados, se tornam bênção para o seu povo. Os que empregam essas
forças para acções positivas são denominadas de nganga, mulaula, nyamusoro, etc. Porém,
quando tais poderes estiverem sob alçada de personalidades desequilibradas, tornam-se
maldição, uma desgraça fatídica. Pois servirão apenas para praticar o mal. A este mal
chamam-no de feitiçaria. Notamos que o termo "feitiçaria" é empregue, no sentido restrito,
para designar acções malévolas.
Muláula ou Nyamussoro é o que tem poderes de desarmar os poderes maléficos, de
caçar os feiticeiros. Este não é propriamente feiticeiro, porque o feiticeiro, como vimos, tem
uma conotação negativa, é aquele que possui o poder ou conhece a arte de manipular os
poderes para fazer o mal, enquanto aquele combate-os e tem poderes recebidos dos espíritos
dos antepassados para proteger a comunidade.
O feiticeiro não tem poder de curar, mas pode, por um lado, apropriar-se do sumbe,
algo pertencente a outro, para anular magicamente o poderes maléficos desencadeados na
pessoa atingida ou doente. A esta acção designa-se de owawa.
Por outro lado, o próprio feiticeiro - sob pressão de um curandeiro forte (mulaula) e da
família do doente - pode fazer com que o poder maléfico já não actue na pessoa atingida, de
modo a poder melhorar.
3.2.2. A feitiçaria no mundo moderno
A feitiçaria, que se considera um fenómeno quase desaparecido ou reduzido a
pequenos núcleos em alguns países africanos, é em Moçambique uma realidade que aparece
tanto nas zonas urbanas como rurais. Curiosamente, constata-se que o conceito de feitiçaria
não mudou, mas surgem outras manifestações no processo da "modernização" tais como:
acidente de automóvel, fracasso escolar, falta de sorte no emprego, doença incurável
(especialmente o SIDA), morte pelos raios ou descargas eléctricas, etc.
Os meios de comunicação têm feito cobertura de situações relacionadas com estes
fenómenos. São exemplos a morte ou linchamento de feiticeiras em Inhassunge, em Madal,
em Maquival, em Ionge, em Marrongane, na Maganja da Costa, etc., os casos dos Mulaula ou
Kumbaisa (grandes adivinhos e exorcistas) recebiam credenciais dos tribunais ou guias de
marcha com a permissão para descobrir os feiticeiros em Quelimane. Em pleno século XXI é
inquestionável a crença na magia e na feitiçaria. Em alguns mercados rurais, incluindo da
grande cidade de Maputo, é possível encontrar postos ou tendas especializadas na venda de
todo tipo de produtos ou objectos que podem ser usados com fins mágicos.
O leque de produtos oferecidos é amplo: telas, raízes, bebidas, peles ou parte de certos
animais, pastilhas, unguentos, ossos, crusta de mariscos, dados, plumas, etc.
A feitiçaria foi e é abominada. Como dissemos, na história dos atuabo, sobretudo nas
zonas rurais, sempre houve "caça aos feiticeiros". Quando os denunciam, depois de alguma
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desgraça, são imolados. Normalmente as vítimas das acusações e do extermínio são as


mulheres, sobretudo as velhinhas. Mas, uma questão se coloca: porque é que depois do
feiticeiro morto, continuam a acontecer desgraças na família? Os atxuabo acreditam que o
feiticeiro não está só. Por isso, antes de morrer adestra alguém de sua predilecção e confere-
lhe os seus poderes.
O novo feiticeiro, para se vingar da morte do mestre vai dizimando um por um. Se ele
for jovem, os seus sofilégios terão maior força destrutiva, por causa da sua exuberância
juvenil. Acredita-se que o feitiço desencadeado por um jovem tem mais pujança que o de um
ancião.

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