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Referência: ​“The Right to a Competent Electorate”, The Philosophical Quarterly, Vol.

61 nº
245. Trad. Aluízo Couto.

Tese geral: A epistocracia moderada, embora injusta, é intrinsecamente ​menos injusta e


moralmente superior ao sufrágio universal irrestrito, devendo estar conformada em um
sistema eleitoral de elite​.

Argumento base​: O sufrágio universal irrestrito viola o direito das pessoas de não serem
sujeitas à decisões de pessoas incompetentes ou moralmente irrazoáveis.

O direito ao voto, argumenta Brennan, não exerce poder somente sobre o eleitor em si, mas a
todos os outros cidadãos da comunidade a qual ele pertence. Ainda que não tenhamos o
direito de conduzir ou impor regras à vida dos outros, no quadro de uma democracia de
“grandes proporções”, o direito ao voto representa, mesmo minimamente, uma submissão às
decisões de terceiros; o que, em último caso, leva ao questionamento do porquê alguém
exercer um 1/n de poder sobre nós.

Recorrendo à analogia do júri, a fim de justificar o sufrágio restrito, Brennan apresenta ​“o
princípio da competência​”. Considerando a forte influência do júri sobre a vida, a liberdade
e o destino do réu, o autor considera três tipos de júri hipotéticos: (I) o ​júri ignorante,​ que
embora desconheça os detalhes do caso acredita na culpa do réu; (II) o ​júri irracional que
acredita na culpa do réu não pelas evidências, mas por um pensamento mágico ou
conspiratório; (III) e o ​júri moralmente irrazoável,​ que julga o réu, por exemplo, pelo simples
fato de esse ser “muçulmano” e acreditarem que perverta a Palavra de Deus.

De acordo com Brennan, uma vez que o júri tem autoridade sobre o réu, uma decisão, tomada
por qualquer um desses três tipos hipotéticos, não tem legitimidade de acordo com o
“princípio da competência” que deve garantir o direito do réu a um júri qualificado,
implicando tanto na ​(A) vedação de participação de pessoas “dotadas de mau caráter
epistêmicos e moral” do júri, quanto na ​(B) suspensão de decisões em que se prova a
incompetência dos jurados em casos específicos. Desse modo, o princípio da competência
“exige que corpos deliberativos sejam moralmente razoáveis e que tomem decisões de um
modo moralmente razoável”, avaliando cada decisão independente do fato de que cada júri
possa ter tomado, de modo geral, em casos anteriores, decisões razoáveis.

O princípio da competência não desqualifica as decisões do júri com base


em seu conteúdo substantivo. Em vez disso, desqualifica pessoas da
composição do júri por causa de seu mau caráter moral e epistêmico, e
desqualifica decisões individuais de júris por causa do mau (ou nenhum)
raciocínio usado para chegar até elas (p.185)

A ideia de “razoabilidade moral” deriva de um concepção do liberalismo político (ou


liberalismo de “razão pública) em que se assume poder haver, através do uso público da
razão, discordâncias razoáveis entre indivíduos igualmente razoáveis sobre o que possa ser a
vida boa, a justiça ou a moralidade, independente de qual seja a perspectiva “correta”. Essa
razoabilidade, postulada pelo “princípio da competência”, deve garantir ainda, sob a
justificativa de ser injusto expor pessoas aos risco, uma método de decisão em que se possa
chegar a um resultado confiável.

Aplicando o ​princípio da competência​ ao governo.

Considerando o amplo escopo de aplicação do “princípio da competência”, Brennan o


estende ao sistemas de governos nas democracias. Levando em conta a prerrogativa de
decisão dos governantes que, por meio de políticas públicas, possuem poder de influência
sobre a vida de milhares de cidadãos, o autor destaca dois grandes aspectos fundamentais nas
decisões governamentais: ​(I) ​A imposição involuntária das decisões através do uso da
violência e ​(II)​ a importância das decisões de grande repercussão dos governantes.

Em consideração desses dois aspectos, de acordo com Brennan, “o cidadãos podem exigir,
como um direito, competência dos oficiais do governo e dos responsáveis por tomar
decisões”, como políticos, burocratas, ministros e policiais. Embora seja um direito quase
impossível de ser aplicado, ele não deve ser desconsiderado, uma vez que na prática, até certo
ponto, os governantes tentam conformar-se a ele para a eliminação de competências
grosseiras.

Aplicando o princípio da competência ao eleitorado

Dado que nas democracias os detentores último do poder são os eleitores, cabem eles a
decisão de escolha dos governantes que se valerão do poder coercitivo do estado para coagir
os cidadãos. Consequentemente, portanto, se eleitores escolherem mal, as consequências
podem ser as piores. Ainda que não haja relação necessária entre bom voto e boas políticas,
ou, ao contrário, mau voto e má políticas, a baixa qualidade epistêmica e moral do eleitorado
tende a estimular piores políticas por parte dos governos, e, também, a qualidade dos
candidatos - reduzindo os resultados antes mesmo das eleições. Desse modo, Brennan segue
sua argumentação aplicando o princípio da competência ao eleitorado. São três eleitorados
hipotéticos que assumem em algum momento terem decidido as eleições: (I) o ​eleitorado
ignorante​, que escolhe “aleatoriamente” um candidato, desconhecendo as questões do
cenário político; (II) o ​eleitorado irracional​, que embora esteja atento às questões do cenário
político, não decide com base nas evidências, mas por pensamentos mágicos; e (III) o
eleitorado moralmente irrrazoável​, que, por exemplo, em razão do seu racismo, escolhe um
candidato branco.

Considerando que a maioria possa não representar toda a sociedade, Brennan afirma ser
injusto a imposição de um governo incompetente sobre pessoas inocentes, como crianças,
estrangeiros, ou mesmo uma minoria bem informada. Uma vez que esses são ​obrigados a
obedecer a decisão do eleitorado, “​o eleitorado tem a obrigação de não expor os governados
a riscos indevidos”​ , devendo seguir, por sua vez, uma tomada de decisão individual de modo
“competente e razoável” por pessoas “competentes e razoáveis”.

Simulando uma objeção ao seu próprio argumento, Brennan passa considerar uma posição
que assume haver uma diferença entre ​(a) o eleitorado coletivo e ​(b) a decisão particular de
cada indivíduo. Ela recobraria, por sua vez, que o princípio da competência valesse somente
para o eleitorado enquanto coletivo, assumindo que, embora esse possa ser composto por
indivíduos incompetentes, através do “milagre da agregação” tende a excelentes escolhas. O
eleitorado como um todo teria poder, ao passo que eleitores individuais não.

Essa objeção leva o autor a chamar atenção para a diferença entre ​importância da
consequência para o ​poder político: ​primeiro, porque embora o voto individual não possa
decidir uma eleição, ele possui um status que o autoriza a tomar decisões políticas
fundamentais; e segundo, que num universo de 12 jurados, mesmo havendo uma maioria de 7
jurados razoáveis em contraste com outros 5 incompetentes, isso enfraqueceria a autoridade
de qualquer decisão. Desse modo, segundo Brennan, o argumento de que o voto individual
não possui consequências, assimila a violação do princípio da competência, “oferecendo aos
eleitores um convite à irresponsabilidade”. Em vista disso, o princípio da competência deve
barrar justamente os eleitores incompetentes.

Objeções ao sufrágio restrito

Assumindo que o princípio da competência não é único princípio para julgar a alocação de
poder político, mesmo sendo necessário, Brennan procura objetar, hipoteticamente, sua
defesa ao sufrágio restrito, sob a consideração do ponto de vista de um outro princípio de
justiça. Para tanto, Brennan toma a objeção feita por David Estlund em “​Democratic
Authority​”. Sua intenção é saber se há uma terceira alternativa defensável de alocação de
poder; e não havendo, qual o melhor modelo entre o sistema de voto restrito ou universal. A
intenção última é argumentar que embora o sufrágio restrito seja injusto, ele é ​menos injusto
do que o sufrágio universal.

Embora Estlund e Brennan concordem com premissas básicas, como a de que as democracias
podem tomar decisões melhores ou piores e a existência de eleitores mais competentes que
outros, as conclusões não são as mesmas. Outro ponto em comum entre eles é o modo com
que avaliam a fragilidade com a qual os defensores da democracia creditam o método
procedimentalista, se valendo da noção de justiça. Comentando a posição de Estlund,
Brennan acrescenta:

“Ele argumenta que tomar decisões a partir do lançamento de uma moeda ou


pela loteria é, em princípio, tão justo quanto tomar decisões por meio de
uma democracia com sufrágio universal. Eu acrescentaria que, na prática, o
lançamento de moedas é certamente mais justo do que a democracia com
sufrágio universal, uma vez que é menos sujeita ao rentismo, à manipulação,
à corrupção e à demagogia do que os procedimentos democráticos de
votação.” (194)

Contudo, o projeto de ambos são distintos. Enquanto Estlund quer explicar “como a
democracia sob as condições certas poderia ser plenamente justa”, em condições ideais;
Brennan assume pretensões de uma teoria não-ideal, apontando para o modelo preferível
entre dois sistemas políticos viáveis mas imperfeitos.

Ao considerar a epistocracia, Estlund observa três princípios que a baseiam: (I) o da verdade,
assumindo haver ao menos uma verdade correta para questões políticas; (II) do
conhecimento, compreendendo que alguns cidadãos conhecem mais dessas verdades que
outros ; ​(III) e o da autoridade, quando alguns cidadãos por possuírem maior conhecimento
“justifica-se conceder a estes autoridade política sobre aqueles com menor conhecimento”.
De acordo ainda com Estlund, deveríamos aceitar os dois primeiros, rejeitado o princípio da
autoridade pelo fato desse cometer “​a falácia do expert​”, ao considerar a expertise como
razão suficiente para que algumas pessoas detenham poder político sobre os outros.

Feitas essas observações, Brennan salienta que o argumento que procura desenvolver a favor
da epistocracia não se assenta no princípio da autoridade, mas da anti-autoridade​, que
consiste “quando alguns cidadãos são moralmente irrazoáveis, ignorantes ou incompetentes
sobre política justifica-se não conceder a eles poder político sobre os outros”. Diferentemente
do princípio da autoridade, o princípio da anti-autoridade pretende especificar
desqualificações, sendo o princípio da competência uma versão do princípio da
anti-autoridade.

Por outro lado, embora concordem também que algumas decisões são melhor tomadas por
experts, Estlund acredita que isso desloca o problema para o modo com que se justifica
publicamente em quais experts confiar sobre quais questões. Não acreditando que isso seja
possível, Estlund pensa que o sufrágio restrito viola o que ele chama de ​exigência de
aceitabilidade qualificada que estabelece que “qualquer base para a distribuição de poder
político tem de ser aceitável para todos os pontos de vista qualificados”. A partir disso,
perguntando como um sistema de elite pode violar a exigência da aceitabilidade qualificada,
Brennan propõe:

“suponha que as instituições das democracias modernas sejam mais ou


menos as mesmas, com a diferença de que o sufrágio é agora restrito. Um
modo pelo qual poderíamos fazer isso é a imposição de um exame de
qualificação eleitoral, semelhante ao exame de direção, mas cuja função
fosse testar em nível geral o básico das ciências sociais relevantes e um
conhecimento cidadãos severamente incompetentes. Isso seria feito
barrando os cidadãos severamente ignorantes ou mal informados sobre a
eleição, ou aqueles que não possuíssem expertise em ciências sociais para
avaliar as políticas propostas por um candidato.” (p.197)

Estlund rejeita esse tipo de exame, argumentando que não é possível esperar que todas as
pessoas razoáveis estejam de acordo sobre um mesmo ponto, não havendo portanto
facilmente um “critério identificável” para um exame, uma vez considerado todos os pontos
de vista qualificados. Nesse sentido, considerando que o sufrágio restrito dividiria as pessoas
entre aptos e não aptos, “sobre uma base que nem todas as pessoas razoáveis poderiam
concordar”, Estlund conclui que o princípio da competência é uma base injusta para a
atribuição de poder político. Isso ocorre por diferentes razões, como nos casos em que o
eleitorado restrito pertença desproporcionalmente a uma porção populacional que, mesmo
tendo condições de participar do exame, apresenta “características epistemicamente danosas”,
possuindo certos vieses latentes e desconhecidos. Esse argumento, chamado de “objeção
demográfica”:

“não afirma que um eleitorado restrito faria de fato escolhas piores do que
um eleitorado irrestrito. Pelo contrário, ele provavelmente faria escolhas
melhores. Mas Estlund argumenta que uma pessoa razoável poderia temer
que o eleitorado restrito fizesse escolhas piores sistematicamente.” (p.200)

Em vista disso, Brennan volta a dizer que sua pretensão não é assumir a epistocracia como
sendo perfeitamente justa, mas que o sufrágio universalmente é “moralmente pior que um
certo tipo de sufrágio restrito”. Supondo que tanto ele esteja certo sobre ​o princípio da
competência e Estlund também correto a respeito da ​exigência de aceitabilidade qualificada,​
conclui:

(a) a democracia (na prática) é injusta porque viola o ​princípio da competência


(b) um sistema eleitoral de elite, no qual o direito ao voto é restrito àqueles que possam
demonstrar competência, seria (na prática) injusto porque violaria a exigência de
aceitabilidade qualificada.

Escolhendo a menor injustiça

Assim, considerando que tanto a democracia quanto a epistocracia estejam na prática sujeitas
à objeções, independente do modo que tenham sido concebidas idealmente, e tivéssemos que
escolher entre um ou outro, estando vedada uma terceira alternativa, Brennan faz crer que o
tipo de epistocracia que defende tem duas vantagens:

(1) A epistocracia viola a ​exigência de aceitabilidade qualificada,​ ao passo que a


democracia viola o ​princípio da competência;​ no entanto, o modo como a
democracia viola o princípio da competência é intrinsecamente pior do que o
modo como a epistocracia viola a exigência de aceitabilidade qualificada;

(2) Mantendo-se iguais todas as outras instituições, o sufrágio restrito irá produzir
políticas melhores, mais justas e mais capazes de atingir a prosperidade e
vários objetivos humanitários.

Argumentando em favor do primeiro ponto, Brennan declara novamente que a violação do


princípio da competência expõe a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos ao risco.
Supondo que nenhum sistema de exame satisfaça a exigência da aceitabilidade qualificada,
podendo haver sempre uma objeção qualificada ao modo que o sistema de exame separa
pessoas competentes das incompetentes, o quão ruim possa ser a injustiça cometida pelo
exame depende do quão bom é o exame e a evidência fornecida em favor dele para o fato de
poder rastrear diferenças reais entre competência e incompetência.

Segundo Brenann, a maioria dos democratas já excluem alguns cidadãos por sustentarem que
são incompetentes para votar, sendo o critério pelo qual isso é feito não justificável perante
todos pontos de vistas qualificados. Um exemplo são as crianças. As leis de idade não
conseguem satisfazer a exigência da aceitabilidade qualificada “pelas mesmas razões que os
exames de competência não a satisfazem”: em alguns países a idade para votar é dezesseis; os
outros são dezoito, podendo sempre haver boas razões para se aceitar crianças prodígios
quanto para suspeitar de vieses latentes e desconhecidos de alguém maior de 18 anos. Nessa
medida, sendo as leis de idade injustas, um sistema bem administrado de exames de
competência seria aproximadamente tão injusto quanto ela. A contrario do que sugere
Estlund, de que algumas pessoas possam estar formal e permanentemente sob o poder de
outras com a restrição do voto, Brennan acredita que “um bom sistema de exame não negaria
permanentemente a posse de poder a ninguém” - com raras exceções de pessoas com
problemas mentais severos.

As consequências dos sufrágios universal e restrito.

Tanto o ​princípio da competência quanto a ​exigência da aceitabilidade qualificada “parecem


ser (algo como), condições necessárias para a alocação de poder político”. Mas, questiona
Brennan, qual regime tende na prática a produzir políticas melhores?

Embora o sistema eleitoral de elite pretenda eliminar eleitores de baixa qualidade em vista de
melhores decisões, essa consequência não é sempre direta. Os exames, no mundo real, são
inspecionados por pessoas reais, estando sujeitos à captura institucional e à má direção que
pode produzir resultados piores mesmos que o sufrágio universal - que por sua vez possui,
segundo estudos, patologias que induzem eleitores e decisões políticas ao equívoco, como
apontam Bryan Caplan e Scott Althus, citados por Brennan.
Diante da ideia de supressão da falta de conhecimento dos cidadãos nas democracias, o que
exigiria em muitos casos o abandono da divisão do trabalho na sociedade, o argumento em
favor do sufrágio restrito, dependente em parte de uma questão empírica não desenvolvida
por Brennan, está nas razões para esperar dele progressos mais positivos que os produzidos
pelo sufrágio universal, ainda que não tenhamos certeza de como funcionará o sistema de
exame de competência ou qualquer outra tentativa de barrar incompetentes e irrazoaveis. Para
tanto, Brennan sugere que o sistema de exames de competência sejam inicialmente testados
em escalas pequenas; e uma vez bem-sucedido, estendidos. Por fim, o autor lembra que há
poucos séculos tinha-se o mesmo desconhecimento quanto à democracia, com diferentes
argumentos contrários e a favor. E nessa ocasião, mesmo o conservadorismo de Edmund
Burke, preocupado com a ruptura de uma só vez dos fundamentos da sociedade, admitiria a
experimentação em escala modesta, sendo, por sua vez, “favorável à ideia de experimentar
em uma escala modesta, progredindo em caso de sucesso a escalas maiores”.

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