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Ardoino&Berger - Avaliacao Como Interpretacao
Ardoino&Berger - Avaliacao Como Interpretacao
Avaliar como controlar correspondem a atitudes naturais e espontâneas. Assim, por exemplo, a
criança que aprecia o gosto amargo ou doce de um alimento, avalia de facto. Mais ainda, não podemos
sobreviver sem exercer em permanência formas de controlo (verificar se fechamos o gás ou uma porta...). O
que especifica a avaliação, é a noção de valor, não no sentido económico, mas filosófico do termo. Uma vez
definidas estas premissas semânticas, pode‐se distinguir a avaliação estimativa da avaliação apreciativa. A
primeira orienta‐se sobretudo para o quantitativo (como o joalheiro que estima o valor de uma jóia), a
quantificação servindo, então, de referência. A segunda privilegia o pólo qualitativo.
Quando deixamos o campo das atitudes naturais para penetrar no dos corpus metodológicos,
como operar uma distinção sistemática entre os processos de avaliação e os procedimentos de controlo?
Primeiro elemento de referência, as variáveis espaço/tempo. O controlo, centrado no espaço de que
necessita como base de medida, situa‐se fora do tempo, mesmo e sobretudo quando ele o “factoraliza 2 ”,
enquanto que a avaliação, porque é processo, é indissociável de um “vivido” histórico e temporal. Este
“tempo”, de que aqui se fala, não pode ser confundido com os dados da cronologia ou da cronometria que
re‐homogeneizam o tempo “quadriculando‐o” 3 , repartindo‐o igualmente em unidades comparáveis porque
1 Contra-rol, no sentido de lista. Refere-se, creio eu, ao registo com papel químico... (N.T.)
2“factoralise”no original (N.T.).
3 en le “quadrillant”, no original. Poderia ter sido traduzido por “traçando-o a régua e
esquadro (N.T.).
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supostas como iguais. É a “duração”. Esta última é justamente dramática, ligada à acção trágica, finalizada
pela morte e o envelhecimento, constituída de identidade e de alteração, heterogénea muito mais do que
homogénea, feita tanto de rupturas quanto de continuidade e permitindo, apenas a maturação. Desde que
um dos três tempos (“momentos” lógicos ou gramaticais) do tempo é “reiificado” (centração excessiva
sobre o passado, o “aqui e o agora” ou o futuro) há degradação da temporalidade. (J. Gabel).
A “representação” que fazemos dos fenómenos não é jamais a mesma. Qualquer processo de
avaliação mergulha na espessura e na opacidade dos inconscientes, da argúcia da própria duplicidade dos
diferentes interesses em presença. O universo da avaliação, o do implicado e do sentido, tem pouco a ver
com o do controlo, mundo do rigor e do explicado, muito mais ainda do que do explicitado e do elucidado.
E é precisamente para fugir à questão do sentido que a sociedade tecnocrática actual se “encripta” em
perspectivas de controlo.
A distinção controlo/avaliação não recobre apenas uma separação entre práticas diferentes. Ela
delimita, de facto, dois universos diferentes mas completamente necessários. Hoje em dia tornou‐se quase
banal operar múltiplas distinções entre práticas muito diversificadas, baptizadas erradamente como
“avaliação”. O espesso dicionário de avaliação e de investigação sobre educação de G. de Landsheere é um
modelo do género. Assinala (poderíamos dizer recupera4 todas as práticas possíveis, e classifica‐as em
função da sua especificidade e do seu grau de cientificidade, de rigor ou mesmo de pureza.
A abordagem sistémica retém igualmente a distinção entre controlo e avaliação, mas analisando o
controlo contínuo como um aspecto da avaliação formativa e reguladora, o controlo dos resultados no final
de um percurso de formação entrando na categoria de avaliação sumativa. Todas estas tentativas de
tipologia da avaliação prolongam, de facto a confusão permanente que se estabelece entre controlo e
avaliação. Só podemos sair daqui sob condição de compreender e de admitir que estes dois conceitos
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reenviam a dois universos e a duas epistemologias, e que não saberíamos fazer a economia nem de uma
nem da outra.
Podemos reter três consequências desta distinção epistemológica entre controlo e avaliação.
Primeiramente, o controlo, enquanto verificação, inscreve‐se numa epistemologia positivista e repousa na
hipótese, ou antes, no ideal da inter‐permutabilidade perfeita dos controladores. O julgamento,
eventualmente diferente, de dois controladores é forçosamente imputável a uma imperfeição ou a uma
insuficiência dos mecanismos de controlo. Um “verdadeiro” controlo não pode senão chegar exactamente
ao mesmo resultado, face às mesmas situações. Dois controladores de metro ou de caminhos de ferro
devem reagir exactamente da mesma maneira face a um bilhete falso. No limite, aquela homogeneidade
total dos controladores poderia levar à generalização do auto‐controlado tornando‐se no seu próprio
controlador. Não é por acaso que se multiplicam as máquinas de venda de bilhetes, os relógios de ponto ou
os sistemas de auto‐controlo das peças das fábricas. O controlo desaparece, assim, como acto exterior
específico para se integrar totalmente no processo de produção de si‐mesmo. Pelo contrário, a avaliação
não pode, em caso algum, fazer a economia da avaliação. Porque ela é portadora de sentido, só pode ser o
(f)acto de um sujeito, de um indivíduo, não podendo ser substituído sem modificar a avaliação. Podemos
confrontar, construir, trocar a validade do sentido dado a qualquer coisa, mas ela não pode em caso algum
tornar‐se universal.
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total entre o objecto controlado e o registo que serve de modelo. Inversamente, o projecto de avaliação é
um processo infinito e consequentemente sempre parcial, pois que o sentido é incessantemente posto em
causa pela evolução de cada situação. Nunca se acaba de avaliar. Desde logo a mesma conduta e a mesma
aprendizagem não possuem o mesmo sentido, se decorrem no instante «t» ou «t+5» (para retomar aqui
uma imagem do tempo espacializada e mecânica), acresce ainda que o mesmo objecto não tem o mesmo
sentido seguindo a rede de significação através da qual procuramos abordá‐lo, quer se trate do de um
sujeito, de um grupo, de uma instituição ou de um sistema social.
5 A segunda parte da palavra, “géne” pode, aliás, ser compreendida no seu sentido
biológico, gerando este último o semelhante e o idêntico.
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Neste nosso mundo tecnocrático, é um acto político fundamental desenvolver formas de
pensamento que dêem realmente lugar à paradoxologia, e onde o princípio do terceiro incluído substitua o
do terceiro excluído, ainda hoje dominante. Apesar de todo o interesse das análises sistémicas e/ou a moda
das regulações, é sempre preciso reter no espírito que estas últimas não são senão variantes da regra. Aliás,
Marcuse demonstrou brilhantemente, desvelando este paradoxo, que no universo americano, a própria
liberdade pode tornar‐se um princípio de submissão.
Dar um verdadeiro estatuto ao conflito e ao heterogéneo leva a pôr em causa um bom número de
noções e nomeadamente a do efeito dito perverso. Foi deste modo que Boudon definiu as consequências
não esperadas de um dispositivo baptizando‐as de “efeitos perversos”. Mas então, porque apodar o
inesperado de perverso? Como não se trata de uma apreciação laudatória, parece que o que negamos ao
usar esta expressão, é a inteligência não esperada do outro, a emergência do imprevisto, as contra‐
estratégias, o não respeito pelos acontecimentos e comportamentos esperados e programados. O que se
apresenta então à nossa atenção recalcitrante, é o outro como parceiro de uma situação, com as suas
astúcias, as suas estratégias e a sua inteligência.
O facto de empregar, em vez de “efeitos não previstos”, a expressão “efeitos perversos”, revela
toda uma visão política (e direitista) do mundo, à qual se deu a etiqueta de cientificidade. Esta derrapagem
das palavras ilustra muito bem o desarrazoado e a incompreensão dos tecnocratas que nos governam face
a uma realidade que, felizmente, eles não conseguem dominar totalmente, mau‐grado os seus fantasmas
de todos‐poderosos. Deste modo, eles não podem senão desenvencilhar‐se taxando os outros de
perversidade desde que estes não se submetam às previsões. O tecnocrata que apenas se contenta em ser
inteligente, e em trabalhar para seres mediocremente racionais, dá a si mesmo um alibi indiscutível: a
patologia não provém do seu domínio.
Na verdade, as operações de controlo não podem nunca integrar, de facto, o inesperado, porque
elas implicam um raciocínio e práticas baseadas na homogeneidade. Qualquer operação de controlo supõe
transformar os factos numa realidade homogénea em relação a um referente. Assim, o controlo da
inteligência, o trabalho de imaginação ou o absurdo‐sensato do sonho passam pela sua transformação em
performances analisáveis e portanto comparáveis a uma lista‐tipo. Mantemo‐nos, então, sempre no
universo do previsível, e do contínuo. A avaliação, inversamente, confronta as ordens e os níveis de
sentidos deferentes. Tomemos um exemplo elementar: que significa o facto de um indivíduo seguir a regra
quando realiza uma operação matemática? Em relação à operatividade matemática, o sentido da sua acção
é evidente, mas em relação ao desenvolvimento da sua autonomia qual é esse sentido?
Não há, forçosamente, antinomia entre estas duas questões, mas deslocando a interrogação,
mudámos a ordem. E, justamente, o que baptizámos de efeito perverso ou não esperado corresponde à
irrupção de uma outra dimensão, simultaneamente a da ordem do outro e a de uma outra ordem. Assim,
por exemplo, um dos “efeitos perversos” da escolarização é o de acentuar o medo e a culpabilização face
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ao insucesso.
A questão não é tanto a de saber se este efeito era ou não previsível, e deve ou não ser chamado
de perverso, mas apercebermo‐nos que esta constatação significa uma deslocação de ordem. Passámos do
universo das questões sociais e económicas colectivas (desenvolvimento de recursos humanos, do potencial
produtivo do trabalho humano, etc.) para entrar na ordem do indivíduo e dos benefícios que ele pode ou
não retirar, num dado momento, de um percurso de formação. Poderíamos, igualmente, colocar a questão
da validade relativa dos diplomas quando eles se tornam pletóricos. Então mudamos, de novo, de ordem, já
que desta vez nos encontramos na lógica das relações entre a formação, a qualificação e o mercado de
trabalho. A avaliação consiste justamente em confrontar todas estas ordens diferentes, fundamentalmente
heterogéneas. Para tomarmos um exemplo interessando à mecânica celeste, é saltar de um planeta para
outro, dispondo cada um da sua própria trajectória, em relação ao mesmo centro solar.
Esta epistemologia da avaliação tem consequências, não só teóricas mas também práticas. O
controlo implica a construção de um conjunto de procedimentos e de técnicas indefinidamente repetíveis,
homogéneos e independentes dos actores encarregados de os accionar. Pelo contrário, a avaliação que tem
por objecto construir referentes e releva portanto de um trabalho de implicação, precisa que o avaliador
elucide a sua própria posição institucional e o seu lugar em função dos interesses e das apostas em
presença.
A avaliação representa um trabalho de imaginação, senão mesmo do imaginário, já que é preciso
inventar e construir referentes que não são dados à priori. A avaliação constrói “indicadores”, não de
medida de uma qualquer prática, mas como tantos outros signos e traços de que o objecto e os sujeitos de
avaliação são atravessados por uma ordem imprevista. Assim, por exemplo, o controlo da eficácia de uma
acção de trabalho social pode basear‐se na comparação entre os objectivos e os resultados. Pelo contrário,
a sua avaliação implica considerar os acontecimentos de uma outra ordem, como por exemplo, um
desinteresse ou a visita repetitiva de um cliente a um gabinete de ajuda social.
Eles testemunham que qualquer coisa aconteceu que não releva de previsões iniciais, como
fenómenos de fixação, de resistência, de pedido, etc.. A instrumentação (utensilagem) do processo de
avaliação constitui‐se, pois em torno deste duplo trabalho de imaginação que representam a construção de
referentes e a produção ou anotação de indicadores.
Ainda que possamos compreender o controlo como uma gigantesca manifestação do «imaginário
científico», os processos de controlo não têm nada a fazer nem do imaginário nem do inconsciente. Pelo
contrário, a avaliação, pela própria definição, multi‐referencial, é inevitavelmente levada a ter em
consideração a dimensão do inconsciente. Que concluir, então, a propósito da formação dos avaliadores?
A dos controladores não põe grande problema. Trata‐se de assegurar a aprendizagem o mais
rigorosa e performante possível de um certo número de dispositivos e de procedimentos. A formação do
avaliador supõe, por seu turno, desenvolver capacidades de análise multi‐referencial das situações. Mesmo
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se há indivíduos melhor armados do que outros para ajudar uma equipa a avaliar e se alguns efectuam este
trabalho como verdadeiros “homens da arte”, a avaliação não pode, em caso algum, tornar‐se uma
profissão banalizada. O rótulo “avaliador” é um non‐sens. A profissionalização que tende a desenvolver‐se
hoje representa um profundo erro, antinómico mesmo com o próprio princípio da avaliação. Não são as
qualidades do avaliador que estão aqui em causa, mas propriamente a sua função. Qualquer avaliação,
enquanto processo, deve ser partilhada e apropriada por um grupo ou um colectivo. Ela coloca, pois,
inevitavelmente a questão da sua divulgação: a quem e para que é que ela serve? Quem beneficia dela?
Já no que respeita ao controlo tudo está claro. Encontramos de um lado o centro, o cume da
hierarquia, do outro a periferia, a base, os controlados. Pelo contrário, a avaliação não se situa nunca lá
onde lhe destinamos a morada, mas nas margens do dispositivo, nos vazios, no não‐dito do discurso. Que
pensar, então, dos rituais formalizados de um grande número de formadores? Esta famosa “última sessão”,
espectáculo dos finais de estágio (portanto de reinado)! Como o demonstrou René Lourau a propósito da
análise institucional, frequentemente, é nas acções minoritárias e marginais que se acomodam os
elementos mais ricos para uma avaliação, aqueles que justamente outros recusam porque perversos. Além
do mais é necessário saber lê‐los (cf. igualmente as reflexões de S. Moscovici sobre as minorias activas). Isto
não significa que os profissionais não tenham nada a ver com a avaliação, mas que não existe avaliador
profissional, no sentido em que o verdadeiro avaliador é aquele que decide pela sua própria acção. O aluno
que abandona a escola no final de um processo de auto‐avaliação, com o aquele que toma uma decisão em
função de juízos que lhe foram apresentados por outros.
Assim, apenas pode haver uma profissionalização de actores sociais que tenham por ofício
provocar o regresso do sentido, suscitar dispositivos de reflexão (no sentido etimológico do termo) e de
crítica (no sentido da pesquisa de valor). Isto não implica forçosamente a presença de um avaliador
“patenteado” mas também não o exclui. Os processos de auto‐avaliação podem centrar‐se sobre o
inesperado como espelho revelador de um certo número de práticas. O avaliador não é mais, então, essa
personagem exterior que elaboraria uma síntese de elementos de reflexão e de juízos diferentes, porque
não existe um ponto de vista de todos os pontos de vista. Ele existe para ajudar a mudar de referente
[référant], para ajudar a construir um outro universo de sentido. Ele existe, sobretudo, para procurar passar
despercebido, em proveito dos dispositivos accionados e dos processos assim gerados, no seio dos
conjuntos humanos abrangidos.