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Even Ruud
Nordic Journal of Music Therapy, 15 (2), 2006
Resumo
Uma teoria da musicoterapia deveria partir da compreensão da natureza e papel da música. O papel da música na terapia
não difere necessariamente do papel da música na vida humana em geral. Todavia, os musicoterapeutas frequentemente
parecem querer profissionalizar seu campo de trabalho pela tradução de seu trabalho prático na linguagem da teoria,
talvez porque o papel da música na terapia nos pareça remoto dos usos diários da música. Esta breve apresentação tenta
resumir alguns problemas básicos que surgem quando se busca traduzir a prática da musicoterapia numa teoria coerente.
Tal projeto requer o esclarecimento de nossa relação com as teorias da filosofia da ciência para melhor entendimento de
conceitos básicos de nosso campo, tais como “doença”, “terapia” e “música”. Para definirmos esses conceitos, temos de
pensar o homem como um ser biológico, pessoal e social. O estudo conclui com alguns paradigmas que sugerem que o
papel da música na terapia, como na vida, é o de promover “iniciativa”, “expressão” e “clarificação”.
1.
Ao pensar sobre o campo da musicoterapia, não hesito em afirmar que tudo aquilo que vejo, leio e
ouço me causa confusão. Um crescente grupo de pessoas que trabalham em todas as áreas da vida
social com indivíduos portadores de vários tipos de dificuldades físicas, mentais e sociais utiliza a
música de várias maneiras diferentes como “ferramenta” para melhorar a qualidade de vida desses
indivíduos. A confusão causada por essa diversidade na prática de nossa profissão, confusão essa
que se reflete nas muitas maneiras de combinar sons derivadas de uma coletânea infinita de fontes
sonoras, somente se iguala à confusão provocada por qualquer tentativa de explicar o que acontece
nessas atividades. Muitas vezes, os musicoterapeutas tendem a rotular-se com construtos teóricos
advindos de campos afins como a medicina, psiquiatria, psicologia e educação especial. Além de
musicoterapeutas propriamente ditos, cruzamos com “musicoterapeutas behavioristas”,
“musicoterapeutas analíticos”, “musicoterapeutas criativos”, “musicoterapeutas gestálticos” ou
musicoterapeutas que dizem que trabalham de acordo com a “psicoterapia integrativa”, “imagens
guiadas”, “terapia reguladora”, “psicologia cognitiva”, “terapia familiar”, “videoterapia”, “terapia
expressiva” e “terapia do desenvolvimento”, entre outras coisas.
2.
Meus próprios esforços recentes enfocaram o exame mais aprofundado da linguagem utilizada pelos
musicoterapeutas para se apresentarem, porque a escolha de uma linguagem também implica a
escolha de determinados critérios para decidir quais são os “fatos” importantes num campo de
pesquisa ou para discriminar entre o que seria “verdadeiro” e “falso”. Ao avaliar os pressupostos
básicos que servem de alicerce a uma linguagem ou teoria, deparei-me com a necessidade de buscar
conhecimentos no campo da teoria da ciência.
Aos musicoterapeutas é útil lembrar a existência, no interior das três principais tradições na
teoria da ciência, a hermenêutica, a positivista e a marxista, de visões contrastantes quanto à
definição do saber científico importante, a como se deve decidir o que é o saber importante num
determinado campo e a como melhor explicar os principais problemas do nosso campo. Ao
trabalharmos numa dessas tradições, escolhemos aceitar um arcabouço ou referencial que até certo
ponto determina nossas conclusões ou limita os resultados obtidos em nosso trabalho prático.
3.
Dentro da teoria da musicoterapia parece haver três conceitos principais, cujas definições
determinam o referencial de nosso trabalho. Trata-se dos conceitos de “doença”, “música” e
“terapia”. A essência do argumento proposto aqui é que, antes de estabelecermos os princípios que
vão nortear o trabalho do musicoterapeuta, precisamos elaborar a determinação “ôntica” desses
conceitos. Ou seja, temos de tentar responder a perguntas como: “O que significa estar doente?” ou
“O que é doença?”, “O que é música”, “Em que condições podemos afirmar que algo pode ser
considerado terapia?” Essas são algumas das perguntas básicas a serem respondidas em nosso
campo.
Doença. Ter a concepção errada do significado da palavra “doença” não leva somente ao
diagnóstico errado. Definir “doença” quer dizer definir “doença” num determinado contexto social
e numa determinada situação histórica, em vez de ficar restrito aos aspectos orgânicos ou pessoais
de “estar doente”.
No campo da teoria da ciência da medicina hoje, verificamos que não há consenso sobre
alguns paradigmas básicos. Das três tradições na teoria da ciência mencionadas anteriormente
podem ser derivadas pelo menos três conceitos diferentes de “doença”.
Música. As possibilidades de trabalhar terapeuticamente através da música também
fundamenta-se em nossa compreensão da questão do que é música. De acordo com diferentes
tradições na teoria da ciência, essa questão recebe tratamentos diferentes no campo da
musicoterapia. Como questão “ôntica”, por exemplo, é omitida pela tradição positivista. Ao definir
a música segundo outras tradições, o musicoterapeuta muitas vezes opta por frisar teorias da estética
da música que parecem adequar-se ao seu próprio trabalho. Ao lidar com a vida emocional dos
indivíduos, os musicoterapeutas tendem a realçar os aspectos “emocionais” da música. O que quero
enfatizar aqui é que uma teoria de musicoterapia deveria incluir tanto os aspectos sintáticos da
música quantos os semânticos quando se trata de explicar seu papel na terapia.
Terapia. Ao desmascararmos a malha de “terapias” diferentes, acabamos adotando
determinados conceitos ou paradigmas que direcionam o modo específico de compreensão dentro
de determinada tradição. Na tradição behaviorista, tais paradigmas podem ser exemplificados na
visão da música como “recompensa”. Na musicoterapia criativa, por outro lado, frisa-se o conceito
da música como “comunicação”. Considera-se que a terapia gera resultados na medida em que esse
uso “recompensador” ou contingente da música, ou o uso comunicativo da música, leve a certas
melhorias na qualidade de vida da pessoa tratada. A próxima seção frisa que qualquer afirmação
daquilo que a musicoterapia oferece em matéria de valor terapêutico não deveria referir-se apenas a
um dos três conceitos básicos. Ao contrário, o importante é testar tais afirmações para verificar sua
congruência ou conexão com nossa concepção total de “doença-música-terapia”.
4.
Chegar a uma definição “boa” de “música”, “terapia” ou “doença” não garante necessariamente
uma teoria válida da musicoterapia. Muitas vezes encontramos musicoterapeutas que colocam
grande ênfase em sua definição e compreensão da música mas não têm um conceito adequado da
terapia. Por outro lado, há uma quantidade crescente de teorias em nosso campo hoje que se
fundamentam em teorias estabelecidas de terapia mas omitem qualquer discussão da natureza
específica e do papel da música.
A questão levantada aqui é se é possível desenvolver uma compreensão abrangente de nosso
campo sem que nossa compreensão do complexo “música-terapia-doença” faça parte de um todo
coerente. Não basta definir o papel da música na terapia apenas através de uma definição da música.
Não é possível “provar” os resultados terapêuticos apenas a partir de determinada compreensão da
música.
O que podemos afirmar é que, tendo a música determinadas qualidades, isso cria certas
possibilidades que podem ser utilizadas no contexto da terapia.
Em outras palavras, uma definição ôntica de “música”, “terapia” ou “doença” não dá uma
resposta final aos problemas básicos de nosso campo. O que temos de fazer é estabelecer um
sistema, uma cadeia de condições que precisam ser atingidas para que se possa afirmar que a
música oferece determinadas possibilidades de trabalho terapêutico. Cada elo da cadeia tem de ser
definido de acordo com sua natureza e com o uso de critérios derivados de determinada filosofia da
ciência.
Se definirmos a música como uma forma específica de comunicação com sons como
motivo, essa atividade comunicativa pode obter valor terapêutico se for compatível com
determinadas necessidades de desenvolvimento da pessoa em questão. Se essas necessidades
puderem ser atendidas através dessa atividade musical específica, então pode-se definir a atividade
como terapia apenas no sentido de que diminui a dificuldade ou deficiência da pessoa segundo
nossa visão geral da “doença” em questão nessa sociedade em particular.
A introdução do contexto social ou histórico da terapia deveria obrigar o musicoterapeuta a
desenvolver uma prática ligada à realidade social e econômica em que trabalha. Se não, grande
parte daquilo que se considera terapia, vista a partir de uma perspectiva interna a nosso campo,
estará meramente apoiando a situação atual do cliente vista a partir de uma perspectiva social mais
ampla.
5.
Grande parte do debate que ocorre atualmente em nosso campo resulta do uso de linguagens
diferentes pelos terapeutas ao discutirem problemas diferentes. Não faz sentido perguntar se
determinada abordagem analítica é uma teoria geral válida para a musicoterapia, se essa teoria
também tenta compreender os procedimentos da fonoaudiologia para trata crianças autistas. Da
mesma forma, erra o musicoterapeuta behaviorista que tome os conceitos da ciência positivista
como um ideal para a ciência da musicoterapia, sobretudo quando tal teoria da ciência ajuda tão
pouco a compreender a natureza da música.
Consequentemente, os musicoterapeutas não deveriam alegar a universalidade de suas
abordagens e explicações, mas sim tentar especificar as condições em que esta ou aquela
abordagem é ou não é útil. Por outro lado, se quisermos tentar construir uma teoria abrangente da
musicoterapia, nossos conceitos básicos poderão acabar sendo tão genéricos que explicam tudo, o
que equivale a nada. Se a musicoterapia incluir os procedimentos e exercícios utilizados para tratar
crianças com deficiências físicas, além dos procedimentos de construção de respostas novas a
problemas existenciais, então certamente ficaremos presos a esse problema de sermos genéricos
demais.
6.
Para entendermos a natureza da música, deveríamos levar em consideração tanto seus aspectos
sintáticos quanto os semânticos. Não se pode compreender a semântica, ou o “conteúdo”, da música
sem levar em consideração as necessidades biológicas e pessoais do indivíduo, além de como
questões sociais ou históricas podem fazer parte da expressão musical. Tal modelo nos permite
usufruir os benefícios de uma ampla gama de teorias da estética da música, desde a teoria da
expectativa de L. B. Meyer (estrutural) até a teoria de ciclos “sênticos”1 de Clynes (semântica e
biológica), a posição analítica de Klausmeier, a abordagem fenomenológica de Zuckerkandl e as
teorias recentes baseadas na semiótica musical.
Por exemplo, é importante explicar como as respostas são obtidas na situação clínica de
improviso. Isso pode ser feito com referência à maneira pela qual as expectativas que surgem a
partir das complexidades estruturais da música dão lugar às respostas da criança ou enfatizando-se o
conteúdo “emocional” de música e como isso fornece o impulso de agir.
Para compreendermos a natureza da “doença”, temos de levar em consideração a situação histórica
e social do indivíduo. Uma pessoa rotulada de “doente” em nossa sociedade poderia muito bem ser
considerada “normal” em outro contexto social. A doença deveria ser vista como um estado em que
as possibilidades de ação do indivíduo estão limitadas devido a contradições entre as situações
biológica, pessoal e social da pessoa. Todo tratamento deveria ser visto como parte de uma
totalidade, evitando-se dessa maneira o discurso técnico tão predominante em nossa sociedade,
onde a terapia é vista como a eliminação de sintomas de bases orgânicas ou pessoais.
8.
A terapia é vista aqui como um processo que dá à pessoa novas possibilidades de ação – e também
como um processo de transformação das condições sociais que criam, apoiam e mantêm a
“doença”.
Para definirmos como a música pode obter valor terapêutico em geral, escolhemos três
conceitos como paradigmas para a musicoterapia: isto é, o papel da musicoterapia é o de promover
iniciativa, expressão e clarificação.
Um ou vários desses conceitos podem estar operando na maioria das situações vividas em
nome da musicoterapia. Por exemplo, quando a música é ministrada como recompensa, o objetivo é
provocar uma resposta ou direcionar o comportamento. Nesse sentido, podemos falar de uma nova
iniciativa da pessoa. O mesmo pode ser dito do improviso clínico, onde as respostas musicais
podem ser vistas como a realização de iniciativas de vários tipos através da música. Além disso, é
de se pensar que o indivíduo também se expressa através do improviso clínico.
Teorias diferentes dentro da psicologia são construídas para explicar por que a “iniciativa” é
importante – por exemplo, a teoria de Piaget, que frisa a importância da atuação da criança sobre o
ambiente que a circunda ou a teoria de condicionamento operante de Skinner.
A escolha do termo “iniciativa” aqui visa também enfatizar a importância de a pessoa ter a
experiência de si mesma como agente e sujeito e não como objeto de tratamento.
Embora não deva haver contestação do “fato” de que a música “expressa” algo, ou oferece
possibilidades de auto-expressão, pode-se perguntar quais as condições em que atos expressivos
podem obter valor terapêutico. Tais condições são investigadas pela teoria analítica ou
fenomenológica. Alega-se que quando eu me exprimo através da música, tenho a oportunidade de
reformular respostas anteriores a situações de vida. Assim, nossa expressão torna-se uma incidência
objetiva do mundo exterior, a qual podemos contemplar e sobre a qual podemos refletir. Assim,
podemos aprender a estrutura por trás nossa própria escolha de expressão e obter um novo
entendimento de nossos próprios mecanismos de projeção.
Com relação às técnicas receptivas, através da identificação com a expressão musical a
pessoa pode aprender sobre sua própria dinâmica emocional ou cognitiva ou ampliar o modo pelo
qual se relaciona com o mundo.
Após um ato expressivo ou a decodificação de mensagens estéticas, um processo de
clarificação agrega novos entendimentos da dinâmica intrapessoal ou interpessoal. Clarificar, no
sentido de “tornar-se consciente” de algo, significa que a pessoa obtém a compreensão verbal ou
consciente das razões pelas quais reagiu dessa maneira específica através da música. No sentido
mais amplo, significa obter uma visão mais clara das dinâmicas pessoal e social que limitam nossas
possibilidades de ação.
9.
Como conclusão, podemos dizer que a música pode servir de terapia na medida em que for capaz de
promover iniciativa, expressão e clarificação num indivíduo. Iniciativa, expressão e clarificação
podem ser consideradas processos terapêuticos desde que tais processos levem a ações novas. Essas
ações podem ser caracterizadas como fatores de promoção da “saúde” na medida em que diminuam
as contradições na vida biológica, pessoal e social da pessoa.
10.
Para encerrar, quero acrescentar algumas observações sobre a relação entre a musicoterapia e as
funções da música na sociedade ou na vida humana. Note que o oposto de iniciativa, expressão e
clarificação pode ser passividade, apatia e mistificação. É fato notório que certos tipos de música,
ou mais especificamente um certo uso de certos tipos de música, levam a passividade, apatia e
mistificação. Os musicoterapeutas, para trabalhar de modo profilático, deveriam combater as atuais
tendências históricas que ameaçam a qualidade de vida, incentivando o uso da música para ativar e
gerar a expressão individual ou nos dar consciência de nossas necessidades biológicas e pessoais,
além do estado social das coisas. Ou engajar-se na atividade crítica contra o abuso generalizado da
música.
Even Ruud é professor do Instituto de Música e Teatro na Universidade de Oslo e da Academia Norueguesa de Música.