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Nossa imaginação consciente

A partir de profundas analogias fornecidas pelo pensamento


Ou pela consciência, para não serem subjugadas,
A cada forma, rocha, fruta e flor natural,
Mesmo as pedras soltas que cobrem a estrada,
Ele deu-me uma vida moral; ele as viu sentir,
Ou ligou-as a algum sentimento. Em todas as formas
Ele encontrou uma alma secreta e misteriosa,
Uma fragrância e um espírito de estranho significado,
Apesar de pobre em aparência externa, ele era muito rico;
Tinha um mundo em torno dele – que era seu,
Ele o fez – pois vivia apenas nele,
E ao Deus que olhava dentro de sua mente.
William Wordsworth, O mascate

Em um laboratório da Universidade Duke, um macaco do gênero Macaca


está sentado em frente a uma tela de vídeo manipulando uma garra mecânica
que captura formas na tela de um jogo de computador. Recompensado com
porções reais de comida para cada “captura” bem-sucedida, o macaco torna-
se um jogador bastante bom nesse jogo. Fios eletrônicos foram implantados
na área frontoparietal de seu cérebro. Quando ele mentalmente começa a
dirigir seus olhos e braços para realizar o movimento desejado, a ativação
eletroquímica dos neurônios cerebrais relevantes envia um sinal ao compu-
tador, que leva a uma captura bem-sucedida na tela. No início, o macaco, não
sabendo de seu sistema de sinais cirurgicamente implantado, faz os movimen-
tos de manipulação da alavanca do teclado em frente a ele. Depois de certo
tempo, enquanto continua tendo sucesso, ele pára de fazer isso e deixa cair
seu braço – apenas sua mente parece estar fazendo o trabalho para ele. Pes-
quisas desse tipo têm como objetivo auxiliar seres humanos com várias doen-
ças cerebrais ou lesões espinhais a manter ou controlar ações efetivas, mesmo
22 Dorothy G. Singer e Jerome L. Singer

quando paralisados ou sofrendo


sofrendo dodo tremor
tremor espasmódico
espasmódico característi-co
característico de
uma condição como Parkinson ou outra doença doença cerebelar
cerebelar (Blakeslee 2003a,b;
Carmena et al., 2003).
Apesar de o ato de aproveitar
aproveitar a energia
energia mental de nossos
nossos pensamentos para
jogar videogames
videogames serser ainda
ainda uma fantasia, os experimentos reais com macacos
indicam o significado
significado de nossos
nossos pensamentos
pensamentos íntimos e da consciência
consciência contínua.
Talvez nossas imagens fugidias particulares, nossos planos para futuros compro-
missos, até mesmo nossas esperanças de longo prazo são construções de fortes
hábitos que podem resultar
resultar em ações
ações rápidas
rápidas em
em determinadas
determinadas circunstâncias. A
consciência humana não é um fenômeno meramente superficial, mas uma capa-
consciência
cidade crítica que desenvolvemos pela evolução para importantes fins adaptati-
vos. Estamos propondo que nosso fluxo humano de consciência emerge gradual-
mente na infância a partir das brincadeiras de crianças até os jogos lúdicos*.
Certamente, os pioneiros da psicologia como ciência, como Wilhelm Wundt, na
Alemanha, e William James, nos Estados Unidos, colocaram a consciência no
centro desse campo. Mas descobrir métodos científicos para chegar na privacida-
de de nossos pensamentos, como nossa citação poética de Wordsworth sugere,
bloqueou a pesquisa durante muitos anos. Apenas na última metade de século,
mais ou menos, os cientistas comportamentais conseguiram ir além das anedo-
tas clínicas ricas do tratamento psicanalítico para métodos mais rigorosos de
captura e de avaliação das funções da consciência.

ESTUDANDO A CONSCIÊNCIA

Suponha que você seja solicitado a realizar uma tarefa simples como usar
fones de ouvido e ouvir alguns tons ou “bipes” chegando a cerca de um por
segundo e então relatar pressionando um botão sempre que ouvir um bipe
que seja mais alto, mais elevado ou menos do que aquele que veio exatamente
antes. Teríamos que pagá-lo para manter a exatidão, especialmente se soli-
citarmos que você realizasse essa tarefa em uma cabine à prova de luz e de
som durante uma hora. É natural que sua mente vagueie, então você tem que
tentar com muita vontade para se concentrar naqueles bipes. Você será
reembolsado a cada vez que empurrar o botão quando o tom for diferente
daquele que veio antes. Mas mesmo se estiver mantendo um nível de 90% de
exatidão, depois de mais de uma hora achamos, em tais experimentos, que
seus pensamentos vagueiam consideravelmente para memórias, monólogos

* N. de R.T. Este trecho da obra permite uma clareza quanto à diferenciação conceitual
existente entre brincadeiras e jogos lúdicos, decorrentes das diferentes possibilidades de
tradução do termo play.
Imaginação e jogos na era eletrônica 23

interiores ou especulações sobre eventos que são um tanto remotos de seu


atual trabalho de sinalizar diferenças nos bipes. Às vezes, nós o interrompe-
mos a cada 15 segundos durante a hora e pedimos que mova uma tecla para
nos dizer se teve algum pensamento intrusivo não-relacionado à tarefa ou o
que chamamos de TUITs1 (Antrobus, 1999; J.L. Singer, 1999).
Experimentos laboratoriais como esses foram estendidos a outros mais
“naturais” como aqueles previstos por Eric Klinger, Mihaly Csikszentmihalyi e
Russell Hurlburt, no qual as pessoas carregam pagers de mensagens e são
interrompidas randomicamente durante o dia. Elas precisam relatar em for-
mulários o que estiveram fazendo, pensando ou sentindo. Encontramos am-
plas evidências de que faz parte do ser humano experimentar uma boa quan-
tidade de mudanças de pensamento e de imaginação consciente, à medida
que realiza suas tarefas diárias (Antrobus, 1999; Csikszentmihalyi, 1990;
Hurlburt, 1990, 1993; Klinger, 1999; Pope, 1978; J.L. Singer, 1995). Amostras
dos pensamentos de adolescentes ou de adultos “comuns” obtidas nos tipos de
pesquisa que acabamos de descrever podem não ter a riqueza de vocabulário
ou as alusões poéticas e literárias de um personagem com fluxo de consciência
em um romance de James Joyce ou Saul Bellow. Mesmo assim, elas são fre-
qüentemente mais complexas, variadas e potencialmente criativas do que se
esperaria de uma conversa comum com um indivíduo.
Quando a Psicologia surgiu como disciplina científica no último trimestre do
século XIX, a consciência humana era um tópico central de estudo, como eviden-
ciado pela colocação dos capítulos sobre a “mente” e do “fluxo de pensamento” no
início do grande livro-texto de 1890 escrito por William James, Principles of
psychology (1890/1950). Devido às dificuldades em desenvolver métodos cien-
tificamente confiáveis para estudar a consciência, muitos psicólogos mudaram
seu enfoque para o behaviorismo e para o estudo da aprendizagem em animais
pequenos, iniciando em 1910. Deixou-se para grandes escritores de ficção como
Virginia Woolf, James Joyce e, mais tarde no século XX, William Faulkner, Thomas
Wolfe e Saul Bellow, a exploração na prosa literária vívida e criativa os trabalhos
de nosso fluxo humano de consciência. Após um intervalo de 50 anos entre 1910
e 1960, os psicólogos e os filósofos da ciência expandiram sua teoria e seus mé-
todos e começaram a explorar o processamento, a cognição das informações hu-
manas e sua relação com a emoção e, assim, inevitavelmente, o campo retornou a
estudos mais sérios sobre nosso pensamento consciente e contínuo (Ciba Founda-
tion, 1993; J.L. Singer, 1995).
Vamos considerar alguns exemplos da maneira como o fluxo de pensa-
mento consciente corre em linhas sinuosas entre as grandes quantidades de
objetos percebidos imediatamente e a tendência central de suscitar lembran-

1 TUITs: task-unrelated intrusive thoughts = pensamentos intrusivos não relacionados à


tarefa.
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ças e fantasias de nossa memória de longo prazo. No romance de Virginia


Woolf, Mrs. Dalloway, referenciado em nosso Prólogo, encontramos a jovem
matrona Clarissa caminhando pelas ruas de Londres, comprando flores,
reagindo ao tempo, olhando o meio-fio quando atravessa uma rua, notando o
esplendor da arquitetura de Westminster – todos atos de resposta consciente
direta a seu ambiente físico. Após conversar com uma amiga que encontra na
rua, ela então entrega-se a memórias de eventos de 20 anos antes. Ela relem-
bra conversas com uma amiga distante que iria visitar em breve e, no final, ela
muda para reflexões inseguras sobre quão energética e viva ela se sentia ante-
riormente em sua vida (Humphrey, 1954, p.51-52).
Talvez os exemplos mais extensos e hábeis de um escritor capturando o
fluxo de nossa consciência encontram-se em Ulisses, de James Joyce, ampla-
mente votado na virada do milênio como o romance mais importante e in-
fluente do século XX. Começa com Stephen, jovem professor e futuro artista,
olhando fixamente para o oceano da janela de seu minúsculo apartamento jun-
to ao mar e notando pela primeira vez o estrondo das ondas. Logo, seus pen-
samentos mudam para memórias cada vez mais profundas da morte recente de
sua mãe, relembrando como, sendo um católico não-praticante, ele resistiu a
orar por ela. Surgem nele emoções de culpa e ele lembra-se de um sonho no
qual ela apareceu para ele fora de sua sepultura, como se intimando-o a voltar
para a religião ou para o modo de ser da família. Em sua mente, ele parece
gritar sua determinação de ser uma pessoa e um artista independente: “Não,
mãe. Deixe-me ser e deixe-me viver” (Joyce, 1934, p.11).
O longo romance de Joyce termina dando a “última palavra” a uma
mulher, Molly Bloom, enquanto ela está deitada na cama com seu marido,
Leopold, tentando voltar a dormir após ele a ter acordado ao retornar de uma
farra tarde da noite com Stephen. Seu fluxo de consciência é representado por
uma única frase de 45 páginas que mostra com uma incrível vivacidade e de
uma forma quase poética como nosso pensamento desvia-se entre processar
visões e sons externos em memórias estendidas e especulações. Algumas das
associações de Molly são de eventos dramáticos daquele mesmo dia e outros de
anos passados, culminando, quando ela adormece, em uma memória amorosa
do início de seu relacionamento com Leopold, o Ulisses desse romance: “como
ele me beijou embaixo da parede mourisca (...) e seu coração estava como que
enlouquecendo e, sim, eu disse sim, eu aceito. Sim” (Joyce, 1934, p.768).
Uma análise lúcida dessa vasta mistura de monólogo e imagens foi feita
por Humphrey (1954). Ele mostra como o primeiro pensamento de Molly
reage a uma sugestão externa, o relógio. Ela então desvia sua atenção para
pensamentos um tanto impessoais sobre os padrões de sono de outras pes-
soas. Ela nota seu papel de parede, lembra-se de um apartamento anterior e,
depois, ela diminui a luz, passa gradualmente de imaginar cenas futuras para
memórias mais estendidas de seu namoro.
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Um exemplo final é retirado de uma fita de um de nossos estudos de


pesquisa no qual adultos comuns conversaram alto por longos períodos de
tempo, mas usando fones de ouvido, de modo que (assim como com seus
pensamentos) eles não conseguiam realmente ouvir o que diziam. Um parti-
cipante, um rapaz de New Haven, disse no início de um longo período de
conversa contínua:

Ok então estou olhando para aquele pedaço de madeira lá embaixo naquele


canto. Estou pensando que isso é um fluxo de consciência realmente muito in-
teressante. Estou olhando para meu casaco agora. Comprei-o de hmm Ha-
dassah. E há essa grande senhora judia lá que era, ãh, oh, estou pensando numa
gravata que eu tinha. Oh, agora estou pensando em uma gravata do meu avô.
Estou pensando no dia em que meu avô morreu. Eu estava no início da escola de
nível médio e [nome] entrou no escritório. Eu estava no escritório e estava cho-
rando e eu não me importei realmente se ele, se ele se importava que eu estava
chorando hmm. Eu saí. Lembro de caminhar até o campo de futebol. Era uma
estrada longa, meio curva e lembro-me de ver através de lágrimas eles jogando
futebol. (Pope, 1978, p.288)

Utilizamos um pouco de espaço para exemplificar o fluxo de consciência


como uma característica central da consciência humana porque acreditamos,
seguindo William James, que essa é uma característica fundamental da psico-
logia humana. Como sugeriremos no próximo capítulo, pode até ser uma con-
tinuação internalizada da brincadeira de faz-de-conta acompanhada de ver-
balizações “em voz alta” de crianças em idade pré-escolar. Antes de conti-
nuarmos para uma discussão sobre a imaginação das crianças e sobre como
experiências ambientais específicas, desde a narração de histórias, a leitura e
as interações em brincadeiras dos pais ou de outros adultos cuidadores, in-
fluenciam o pensamento das crianças, queremos chamar atenção para a es-
trutura e as características adaptativas da consciência adulta.

O QUE QUEREMOS DIZER COM CONSCIÊNCIA?

A consciência humana, em sua forma mais simples, é simplesmente a


consciência de nosso ambiente e a capacidade de usar nossas percepções para
tentar pilotar nosso aparelho motor em uma dada situação física. Um golpe na
mandíbula pode, em um segundo, reduzir um lutador premiado previamente
alerta e engajado a um homem sonolento cambaleante, que acorda momentos
depois sem lembrar-se do período anterior, levando-o a perder a luta e talvez,
o campeonato. Dormir à noite ou sestear de dia envolve sujeições voluntárias
da consciência, apesar de, como Hamlet sugere, “Quem sabe que sonhos vi-
rão?” Sabemos, através de pesquisa do laboratório do sono da última metade
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dos anos de 1900, que alguma forma de pensamento realmente parece ocor-
rer durante qualquer período prolongado de sono, apesar de geralmente não
ser lembrado, exceto após a assim chamada Etapa 1-EEG, fase do movimento
rápido dos olhos (REM) do ciclo do sono. Tal atividade mental no sono pode
até ser uma continuação, de forma modificada, do fluxo de pensamento du-
rante a consciência acordada primeiramente descrita por William James, ex-
ceto que, com informação externa limitada, a consciência do sonho reflete
primariamente as informações aparentemente randômicas de nossa atividade
de memória de longo prazo (Antrobus, 1993, 1999; Epstein, 1999).
Um segundo significado de consciência, que é talvez particular dos seres
humanos, envolve a atribuição de significado à experiência. Fazemos isso
associando novas cenas ou eventos a imagens previamente relacionadas. Para
as crianças, uma vez que aprendem a falar, também podem dar rótulos verbais
ou até mesmo formar categorias conceituais para experiências, modelando-as
nos esquemas e scripts que permitem uma recuperação eficiente de memórias
(Johnson e Multhaup, 1992; J.L.Singer e Salovey, 1991). Essa manifestação
de consciência é o que é melhor mostrado nos gêneros literários de grandes
escritores como Joyce, Woolf, Faulkner, Bellow, Proust e em algumas das his-
tórias e romances de Thomas Mann. Como nossos exemplos de Ulisses suge-
rem, essa forma de pensamento consciente pode envolver um tipo de comen-
tário mental quase objetivo sobre eventos, visões ou sons externos ou sobre o
material que estamos lendo ou assistindo na televisão. Porém, ele pode fun-
dir-se com recordações profundamente pessoais, reflexões sobre nossas cul-
pas ou sucessos e insucessos passados, assim como sobre nossas aspirações e
determinações.
Essas interações mentais mais pessoais podem levar a uma terceira forma
de consciência, o uso auto-orientado ou dirigido de nosso fluxo de pensa-
mento. O controle ativo do pensamento contínuo foi descrito pelo modelo
cognitivo de Isaac Lewin (1985-1986), o qual aponta como podemos tanto
direcionar ativamente nossos pensamentos como responder a eles passiva-
mente como um “observador”. Talvez o protótipo de toda essa insegurança na
afirmação de uma criança de 4 anos, “Vamos fingir que esse é um navio má-
gico com o qual podemos navegar!”. Quando adultos, podemos decidir, às
vezes brincando, de seguir um fluxo de associações, seja para escapar do tédio
de um longo atraso no aeroporto, de uma palestra ou de uma reunião de
negócios. Também podemos aprender a usar essas seqüências imaginadas
guiadas com a finalidade de um planejamento estendido, uma repetição men-
tal de entrevistas, discursos de vendas, invenções e trabalho artístico, ou ain-
da para auto-exames quase terapêuticos. Uma boa quantidade da psicoterapia
moderna e da modificação do comportamento realmente envolvem treinar
um paciente a fazer uso efetivo de imagens e de seqüências narrativas auto-
guiadas (J.L. Singer e Pope, 1978).
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O QUE É IMAGINAÇÃO PARA NÓS?

A imaginação é uma forma de pensamento humano caracterizada pela


habilidade de o indivíduo reproduzir imagens ou conceitos originalmente
derivados dos sentidos básicos, mas agora refletidos em nossa consciência
como memórias, fantasias ou planos futuros. Essas imagens derivadas dos
sentidos, “fotografias do olho da mente”, conversas mentais ou cheiros lem-
brados ou antecipados, toques, gostos ou movimentos podem mudar de forma
e serem recombinados para formar novas imagens ou possíveis diálogos fu-
turos. Esses pensamentos podem variar de ruminações pesarosas (“Se eu pelo
menos tivesse dito ou feito aquilo de outra maneira”), a repetições ou plane-
jamento prático de interações sociais, à produção de obras de arte criativas,
literatura ou ciência (J.L. Singer, 1999).
O processo imaginativo é mais amplo do que simplesmente imaginar um
estímulo concreto. A imaginação pode envolver seqüências verbais elaboradas
conduzidas de forma privada na consciência, ou pode tomar formas semelhantes
a histórias, como uma reminiscência ou uma seqüência futura de eventos dese-
jados. Para indivíduos em certos campos vocacionais, acadêmicos, científicos ou
artísticos, a imaginação pode envolver atividade elaborada em potencial. Um
mecânico de automóveis pode revisar mentalmente o arranjo de estruturas físicas
que têm defeitos, consultar o manual de reparos ou certas palavras-chave desse,
imaginar mentalmente os tipos de ferramentas necessárias e tomar consciência
de certas medidas de segurança que envolvem seu treinamento. Ele então pode
realmente começar uma série de movimentos baseado no que imaginou. Mozart
descreveu como seqüências inteiras de música apareciam no “ouvido de sua
mente” e então eram traduzidas mentalmente em seqüências de barras e notas
musicais. Ele freqüentemente escrevia páginas de notações musicais que pode-
riam então ser impressas com relativamente poucas correções ou mudanças e
distribuídas aos músicos para o espetáculo.
Algumas características do pensamento imaginativo que também devem
ser definidas são a fantasia, o devaneio e o sonhar à noite ou a atividade
mental no sono. Muito do pensamento imaginativo tem a forma de devaneios,
que geralmente envolve mudanças de atenção de uma tarefa imediata ou
problema mental concreto para imagens aparentemente não-relacionadas a
tarefas ou para seqüências de pensamentos (J.L. Singer, 1966, 1978). Tais
devaneios podem variar de memórias a eventos desejados no futuro, a refor-
mulações de histórias divertidas de preocupações atuais ou a desejos de longa
data. Os devaneios também podem representar experiências mentais envol-
vendo culpa, vergonha ou outras respostas emocionais desagradáveis aos
outros. Também podem refletir cenários mentais de medo ou ansiedade, mais
ou menos realistas, desde a previsão de um desastre natural até uma invasão
do espaço exterior por alienígenas hostis. Apesar de a imaginação poder ser
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utilizada diretamente no modo de resolução de problemas, como quando um


escritor prevê várias cenas de um romance ou o roteiro de um filme, os deva-
neios são mais freqüentemente uma característica do fluxo de consciência que
ocorre naturalmente. Sua função adaptativa ou sua utilidade prática pode ser
mais difícil de discernir. Podem parecer fugazes, até mesmo triviais, ou podem
surgir como reações a emoções atuais. Sonhos noturnos, de cuja imagem nos
tornamos conscientes logo após acordar, podem ser contínuos com devaneios,
exceto que eles ocorrem quando nossa principal tarefa é “ficar acordado” e
quando reduzimos drasticamente o processamento de estímulos externos ao
fechar os olhos, reduzindo a luz e enrolando-se em uma cama para limitar o
movimento (Antrobus, 1993, 1999)
As fantasias podem ser desejosas ou agradáveis em seu conteúdo e tom,
mas também podem envolver cenários assustadores, hostis ou dependentes.
Uma fantasia de descobrir que você é parente de um bilionário desaparecido
pode ser positiva e desejosa. As pessoas também relatam experiências de in-
vasões espaciais, visitas noturnas de vampiros ou narrativas nas quais encontram
professores da infância que os humilharam e dos quais querem agora se vingar
de forma terrível. O termo “fantasia” também é usado pela psicologia quando
surge através dos testes psicológicos, geralmente métodos projetivos, como o
Teste de Percepção Temática (TAT – Thematic Apperception Test). Nele, são mos-
tradas aos participantes figuras ambíguas, e pede-se que inventem histórias so-
bre tais figuras. Os pesquisadores da personalidade acreditam que as histórias
contadas refletem fantasias básicas recorrentes sobre necessidades essenciais.
Quando tais histórias de um determinado respondente são acumuladas em uma
série de figuras, pode-se usar esses pontos sobre fantasia para representar a
hierarquia das necessidades de um indivíduo, como desejo de poder, conquistas
ou intimidade. Pesquisas extensivas demonstraram que tais fantasias solicitadas,
acumuladas e produzidas para as figuras do tipo TAT ou para materiais ambíguos
relacionados como borrões também podem prever o comportamento manifesto
específico, assim como refletir uma imaginação vívida ou rica, geralmente com
potencial criativo (McAdams, 1990; J.L. Singer e Brown, 1977).

A IMAGINAÇÃO COMO UMA CARACTERÍSTICA


DO PENSAMENTO NORMAL

Uma divisão dos processos de pensamento normais em duas linhas fun-


cionais separadas pode ser traçada até a distinção, feita pelo neurologista
britânico Hughlings Jackson (1932), na metade do século XIX, entre pensa-
mento “proposital” (abstrato ou lógico) e “referencial” (concreto ou derivado
de sensações), com o primeiro mais vulnerável a lesão cerebral grave, estados
tóxicos ou grande fadiga. Sigmund Freud (1911/1948) estendeu essa visão
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para o pensamento de “processo primário” e de “processo secundário”. O


primeiro envolve imagens e fantasias refletindo a pressão de pulsões incons-
cientes eróticas ou agressivas, sem qualquer repressão social, enquanto o úl-
timo processo reflete mais consciência, com esforços auto-repressivos ma-
duros e defensivos ou compensatórios. Uma teoria mais recente e um grupo
de pesquisadores sugere que a ênfase de Freud tanto na imaturidade como na
relação com as pulsões desse processo primário reflete uma visão muito limi-
tada. Em vez disso, um número cada vez maior de investigadores em psico-
logia estão propondo que o pensamento humano evoluiu ao longo de duas
linhas semi-autônomas, ambas adaptando-se a circunstâncias especiais da
condição humana (Frank, 2003; J.L. Singer e Bonanno, 1990). Alguns exem-
plos de tal teoria, de acordo com o modo como produzem-se na imaginação
estão resumidos brevemente nas páginas a seguir.
Jerome Bruner (1986) propôs que o pensamento humano pode ser or-
denado em duas dimensões, a “paradigmática”, envolvendo processos lógi-
cos, e a “narrativa”, construindo realidades possíveis, semelhantes a histó-
rias. O modo lógico, seqüencial e paradigmático geralmente é formulado em
termos verbais em nossos próprios pensamentos, assim como em nossa co-
municação com os outros. Em sua forma mais avançada, ele em geral, é
expresso matematicamente. Esse modo procura a verdade e é, como o são
todas as hipóteses científicas, no final, refutável quando em contradição
com novos dados.
Por outro lado, o modo narrativo, apesar de ser seqüencial apenas quan-
do é comunicado aos outros em uma série de declarações, pode ser pensado
primeiramente em eclosões de imagens pessoais, geralmente visuais e audi-
tivas, mas, às vezes, até mesmo olfativas, gustativas, táteis ou cinestésicas. É
expresso como uma história e também pode emergir como o que os psicólogos
cognitivistas chamam de memórias “episódicas” ou “de eventos”, ou como
fantasias e devaneios. Conforme Bruner propôs , o objetivo da narrativa não é
a verdade, mas a verossimilhança ou “semelhança com a vida”. Podemos iden-
tificar lacunas na lógica de uma seqüência de história, mas essas mesmas
características (como em muito da poesia e em alguns romances, como os de
Kafka) são destinadas a comunicar as irracionalidades cômicas, divertidas e
até sinistras da condição humana.
Esses dois modos de transformar a experiência em pensamento, formulando
proposições sobre eventos em hierarquias lógicas e organizando nossos milhares
de experiências em histórias críveis ou “aceitáveis”, devem ser dominados por
crianças em desenvolvimento. Conforme Bruner escreveu, “tratados narrativos
com as vicissitudes da intenção humana” (1986, p.16). O pensamento narrativo
reflete um esforço dos seres humanos de darem uma significado mais profundo e
um sentido do inefável às alterações e mudanças de nossos encontros na vida.
Podemos propor que as várias religiões humanas refletem esforços de formar
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narrativas que façam sentido dos mistérios e das aparentes contradições de nos-
sas experiências. Seja oferecendo explicações miraculosas e transcendentes da
vida refletidas nas intrigas de deuses pagãos ou na onisciência de Deus no mo-
noteísmo judaico-cristão-islâmico, as religiões envolvem histórias elaboradas
que, em contraposição a proposições paradigmáticas, não podem ser expressas na
pura abstração ou testadas e falsificadas.
Até mesmo o humanismo secular e o pensamento científico parecem re-
querer algum conhecimento semelhante a uma história. Considere a impor-
tância dos relatos dos ensinamentos de Sócrates e de seus julgamentos na
evolução da filosofia ocidental. Para Bruner, o modo narrativo também envol-
ve uma orientação subjetiva, a formulação através de imagens e diálogos
relembrados de possíveis histórias pessoais de vidas de futuros potenciais
mais ou menos realistas. A faceta imaginativa da experiência humana reflete
amplamente o processo narrativo de Bruner. Para a produção de um produto
criativo – uma história ficcional, um roteiro de filme, uma teoria científica ou
um estudo de pesquisa acadêmico – tanto o processo paradigmático como o
narrativo teriam de ser operativos (Bruner, 1986).
Uma formulação mais recente, apoiada por uma série crescente de pes-
quisas empíricas, é a teoria do seu cognitivo-experiencial (CEST- Cognitive-
Experiential Self-Theory), proposta por Seymour Epstein. Ela incorpora dois
modos pelos quais as pessoas adaptam-se a seus ambientes físicos e sociais,
um sistema racional e um experiencial (Epstein, 1999). Uma extensão maior
do enfoque de Epstein em comparação ao de Bruner é sua ligação com o
sistema experiencial da emoção humana. O sistema racional é caracterizado
por cautela e um esforço maior; funciona pela abstração, pelo pensamento
verbal, pela linguagem e pode até ser um desenvolvimento evolucionário mais
recente. Contudo, como sugere o trabalho de Epstein, a emoção associada ao
modo experiencial pode ter funções adaptativas humanas importantes que
suplementem nossos processos ordenados e lógicos.
O sistema experiencial envolve o acúmulo de experiências concretas (me-
mórias episódicas) em generalizações experimentais, com nuanças emocionais
semelhantes às de histórias ou modelos de nossa situação de vida ou do mundo.
Com freqüência ocorre rápida e suavemente, aparentemente sem esforço. Os
eventos de maneiral geral são representados por imagens, mas também podem
ser expressos em metáforas, protótipos ou estereótipos e em histórias. Epstein
também aponta que as formas mais maduras do modo experiencial (uma reflexão
presumivelmente da imaginação) funcionem juntamente com o sistema racional,
tornando-se a base da sabedoria intuitiva e da criatividade.
Ambos os sistemas podem funcionar juntos para produzir um comporta-
mento significativo. Também podem suscitar grandes emoções. Considere a
excitação que pode ser produzida por nossa habilidade de formular eventos
naturais em um sistema matemático conciso. Isso é relatado pelo antigo cien-
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tista grego Arquimedes ao observar o deslocamento da água, à medida que ele


abaixava seu corpo na banheira, começou mentalmente a reproduzir esses
comportamentos em um modo experiencial ou imaginativo. Ele então come-
çou a ver uma maneira de descrever esse evento na banheira como uma pro-
posição científica geral. Finalmente, na emoção de sua descoberta de uma
fórmula matemática envolvendo o deslocamento, ele correu nu pelas ruas da
antiga Siracusa gritando “Eureka!” (“Eu descobri!”).
Apesar de muitas das características de um produto criativo completo
emergirem de imagens, fantasiosas ou realistas, ou de pensamento concentrado
na linguagem, o que também pode ser fantasioso ou realista, o produto (qual-
quer coisa, desde uma boa idéia de negócios a uma obra científica ou literária)
requer uma orientação ativa e controlada (Lewin, 1985-1986). Pode-se fazer
uma distinção entre processos imaginários, que podem envolver experiências
concretas e derivadas dos sentidos e experiências imitando os sentidos (uma
figura, um efeito sonoro, um gosto, um toque, um cheiro, um movimento simu-
lados mentalmente) e processos verbais, que envolvem especificamente pro-
cessos lexicais ou seqüências de palavras em um esboço de forma gramatical. As
características mais flutuantes e livres do fluxo contínuo de consciência podem
servir como fontes de conteúdo para produtos criativos, mas os passos finais
podem exigir um esforço deliberado e uma integração consciente.
Um dos critérios para um uso efetivo da consciência e de nosso repertório
verbal ou imaginário é a habilidade de convocar tais experiências de forma
volitiva e dirigi-las conforme nossos objetivos, seja para mero auto-entrete-
nimento, seja para fins poéticos, científicos ou da prática diária. Devemos
adicionar, é claro, que produtos criativos geralmente surgem em um domínio
em que um indivíduo já desenvolveu habilidades especializadas por meio de
prática extensiva. Pesquisas sobre criatividade demonstraram que, enquanto
a maioria dos produtos criativos são gerados por especialistas treinados em
uma área, o processo de criatividade – o potencial para inovação imaginati-
va – pode estar presente em muitos indivíduos cuja habilidade pode ser tan-
gencial a determinado domínio (Sternberg et al., 2004).
A imaginação pode ser vista como uma característica fundamental da
cognição humana e do processamento de informações. Esse processamento de
informações humanas conscientes necessariamente envolve representações do
estímulo ou de eventos ambientais. Uma vez que essas representações sejam
codificadas para armazenamento, podem não apenas ser recuperadas por esfor-
ços deliberados na memória, mas podem ocorrer periodicamente, aparente-
mente de forma espontânea como devaneios, fantasias ou como sonhos no-
turnos, quando a estimulação externa é reduzida. Conforme William James
(1892/1958, p.91) colocou, há muito tempo, em seu Talks to teachers, nosso
fluxo de pensamento e repetição mental de eventos passados, mesmo de futuras
possibilidades, serve a uma importante função adaptativa humana:
32 Dorothy G. Singer e Jerome L. Singer

O “segredo de uma boa memória” é (...) o segredo de formar diversas e múltiplas


associações (...) De dois homens com as mesmas experiências exteriores, aquele
que pensa mais sobre suas experiências e as tece em (...) relação umas com as
outras será este que terá a melhor memória.

O aparecimento de tal material sobre a memória de longo prazo na


consciência focal, freqüentemente em formas combinatórias quase randômi-
cas, fornece o conteúdo que enriquece ou elabora o pensamento contínuo
e, sob as condições apropriadas, é uma fonte de produtos criativos ou, às
vezes, simplesmente para auto-entretenimento. Sob condições normais,
uma pessoa comum pode ignorar a maioria desses aparentes pensamen-
tos randômicos como irrelevantes para alguma tarefa atualmente aceita.
Os participantes dos experimentos que descrevemos no início deste capítulo
e que relataram muitos pensamentos intrusivos não relacionados à tare-
fa (TUITs) muito provavelmente não teriam se lembrado da maioria deles
após passarem uma hora processando sinais auditivos. Sabemos, a par-
tir de estudos de laboratório sobre o sono, que as pessoas relatam vários
sonhos se acordadas periodicamente durante a noite, mas, sob circunstân-
cias normais, a maioria de nós lembra apenas do último sonho, lembra-se,
pela manhã.
Os indivíduos que se definiram como batalhadores pela criatividade
em algum domínio particular podem aprender a ser especialmente sensí-veis
a esses pensamentos intrusivos fugidios. Eles então procuram, de forma mais
deliberada, formar produtos criativos. Relatórios autobiográficos ou entre-
vistas diretas realizadas com escritores, inventores e cientistas eminentes
demonstram que suas primeiras experiências com a brincadeira na infância
ou em seus usos adultos para o pensamento divertido baseado em imagens
ou narrativo são características importantes de seu processo criativo (Root-
Bernstein e Root-Bernstein, 1999; D.G. Singer e Singer, 1990).
Nikola Tesla, inventor dos motores e geradores de corrente alternada,
escreveu, “Quando tenho uma idéia, eu começo imediatamente a construí-la
em minha imaginação. Eu mudo a construção, faço melhorias e opero o es-
quema dentro de minha mente” (citado em Root-Bernstein e Root Bernstein,
1999, p.51). Beethoven relatou, “Eu carrego meus pensamentos comigo por
um longo tempo, freqüentemente por muito tempo, antes de anotá-los (...) Eu
mudo muitas coisas, descarto outras e tento novamente (...) Eu ouço e vejo a
imagem em minha frente de cada ângulo (...) e apenas o trabalho de anotá-la
permanece”. Como os Root-Bernsteins (1999, p.58) comentam, a capacidade
de Beethoven de fazer uso e de reformular suas imagens mentais pode ajudar-
nos a compreender como alguém que havia ficado surdo pôde ainda escrever
tal música tão grandiosa.
Imaginação e jogos na era eletrônica 33

O PAPEL ADAPTATIVO DA CONSCIÊNCIA E DA IMAGINAÇÃO

Nossos breves exemplos da representação e da repetição de material


imaginado indica o valor da consciência contínua não apenas para melhorar a
memória comum, como sugerido por William James, mas também para gerar
pensamento criativo nas artes e nas ciências. Não deveríamos concentrar
muita atenção, porém, nas grandes conquistas criativas de um Tesla ou de um
Beethoven. Em vez disso, reconhecemos que a maioria dos seres humanos
pode usar os mesmos processos em repetição consciente, diversão, e o que
Freud (1911/1962) chamou de “ação experimental” para lidar de forma nova
com as centenas de dilemas da vida diária (Runco, 1994, 2004). Apesar de
frases como “ficar no lugar comum” ou “pensar fora do lugar comum” terem
se tornado clichês modernos, estamos propondo que nossa consciência hu-
mana é um tipo de presente miraculoso pelo qual podemos, de pequenas for-
mas, engajar-nos em pensamento divergente e efetivo para a resolução de
problemas e ação adaptativa. Relatos curiosos sobre animais mostram algu-
mas soluções comuns para seus dilemas diários: alguns chimpanzés empilha-
ram caixas para alcançar uma fruta desejada, e um esquilo raro aprendeu a
pendurar-se de cabeça para baixo para evitar tropeçar na barra de fecha-
mento de um alimentador de pássaros. Contudo, temos poucas evidências de
um pensamento consciente dos animais ou de sua habilidade genuína para
reflexão (Harris, 2000). Qual é a consciência mental daquele macaco do gêne-
ro Macaca quando ele pára de usar a alavanca robótica e ainda produz “boas
capturas” na tela do computador apenas por meio de seus pensamentos?
Então, o que estamos propondo é que, apesar de nosso fluxo de pen-
samento ser uma conseqüência inerente da maneira que a memória humana
opera, um passo maior adiante para os seres humanos envolve o potencial
para dirigir nossos pensamentos seja na direção narrativa (cognitiva-expe-
riencial) ou na forma paradigmática centralizada e mais rigorosa. Indivíduos
criativos na ciência, na arte ou nos negócios ou em outros empreendimentos
práticos aprendem como alterar entre as facetas do pensamento de imagens e
de contação de histórias e o modo lógico-seqüencial rigoroso mais abstrato.
Estudos sobre o processo criativo mostraram que podemos identificar o
que o psicólogo Robert Sternberg chama de os passos legislativo, executivo e
judicial da produção de uma obra de arte ou de uma nova teoria. (Sternberg,
1999) Iniciamos permitindo um fluxo livre de idéias e imagens – pequenas
histórias, por assim dizer, que refletem as muitas “propostas” de um grupo
legislativo. Muitas dessas propostas são novas e refletem o que os pesquisa-
dores em criatividade chamam de pensamento divergente. Porém, tal novidade
não é suficiente para gerar um produto efetivo. O indivíduo precisa adquirir e
aplicar habilidade técnica dentro de um domínio, seja ele o conhecimento
musical formal de um Beethoven, seja o domínio de engenharia de um Tesla.
34 Dorothy G. Singer e Jerome L. Singer

Habilidades executivas devem ser postas em ação para integrar pensamentos


divergentes nas relevantes formas artísticas, científicas ou comerciais. Mas,
como estudos sobre trabalho criativo atestam, um passo adiante envolve o
que Sternberg rotulou de característica judicial, autocrítica e avaliação da
qualidade do trabalho.
Um cientista como Einstein baseou-se fortemente em suas imagens e fanta-
sias para sugerir idéias (legislativo), em suas habilidades matemáticas para for-
mulá-las de forma abstrata (executivo) e em suas habilidades judiciais para pro-
por maneiras pelas quais suas idéias podem ser testadas ou devem enfrentar crí-
ticas teóricas e empíricas. Em 1907, Einstein tentou imaginar um homem caindo
a uma taxa de velocidade variada através do espaço. Que impacto esta taxa va-
riável de velocidade teria nos conceitos de Newton sobre a gravidade? Sua análise
matemática, que baseava-se na geometria não-euclidiana, levou-o a acreditar que
a própria luz pode ser curva ou que o espaço se curvaria. As imagens podem ser
vistas como a característica fluida e especulativa da criatividade, a matemática
como a executiva ou contribuição para a ação, mas Einstein, ainda como físico,
queria uma verificação experimental de seu trabalho conceitual. Ele descobriu
dois métodos para fazer isso. Um envolvia usar dados estabelecidos sobre dis-
crepância na maneira pela qual o planeta Mercúrio orbitava ao redor do sol. O
outro exigia medições por astrônomos de um eclipse total do sol. Essa previsão da
extensão em que a gravidade do sol começaria a curvar a luz estelar era tão exa-
ta e até então tão inesperada que o trabalho de Einstein foi rotulado pelos astrô-
nomos como “um dos mais significativos (...) pronunciamentos do pensamento
humano” (Panek, 2004, p.100, 101).
Apesar de reconhecermos as tremendas conquistas da imaginação hu-
mana e do pensamento consciente, nossa preocupação aqui é primeiramen-
te com o potencial diário. O que estamos sugerindo é que temos um ótimo
recurso para a vida adaptativa, para o auto-esclarecimento, às vezes como
escape, às vezes para vantagem prática se podemos prestar atenção a nossos
próprios processos de pensamento e até aprender diretamente com eles. A
consciência e o controle do pensamento podem, em certo grau, ser genetica-
mente determinados, do modo como são as formas de inteligência, apesar
de até agora não termos nenhuma pesquisa sobre o assunto. Porém, real-
mente sabemos que existem diferenças interessantes em como os indivíduos
usam esses processos.
Uma pesquisa extensiva sobre a personalidade delineia cinco dimensões
principais, uma das quais chamada Abertura à experiência é o interesse
em exploração cuidadosa e enriquecimento cultural (Costa e McCrae, 1995;
McCrae, 1993-1994). Nossa própria pesquisa sobre devaneios e processos
imaginários demonstrou que indivíduos que mostram um uso construtivo e
positivo de sua imaginação são também aqueles que marcam mais pontos nas
medições de abertura em questionários (Zhiyan e Singer, 1996). Sugerimos
Imaginação e jogos na era eletrônica 35

anteriormente que talvez nossas capacidades de imaginação adulta e nossa


habilida-de em controlá-las podem ter sua origem primordial na brincadeira de
faz-de-conta das crianças. Há indicações que crianças que se envolvem em
brincadeiras simuladas bem cedo também têm probabilidade de ser mais amá-
veis, persistentes e conscienciosas. Nossa própria pesquisa demonstrou que as
crianças que brincam mais em jogos lúdicos são também mais cooperativas com
os professores e mostram mais iniciativa ou liderança. Essa constelação das
primeiras correlações da brincadeira imaginativa parece estar intimamente
relacionada a traços específicos que, em pesquisas recentes, demonstraram
persistir mais de 20 anos, da infância até a maturidade. Esse agrupamento de
traços também prevê maior emotividade positiva, menor agressividade ou alie-
nação, mais autocontrole e mais evitação de danos (Shiner et al., 2003). O
enfoque em nosso próximo capítulo será o que guia algumas crianças mais cedo
ou mais efetivamente a aprender a brincar de fingir ou de faz-de-conta. Como
veremos, a exploração e a manipulação diretas do ambiente físico e social da
criança, juntamente com informações na forma de explicações e contação de
histórias por adultos cuidadores, são pontos iniciais críticos. Após examinar o
início e as manifestações do que Piaget chamou de brincadeira simbólica, con-
frontamos as novas formas de experiência na infância, aquelas apresentadas
através da mídia eletrônica da televisão, dos videogames ou da Internet (D.G.
Singer e J.L. Singer, 2001). Quantas exposições modificam os processos de
pensamento imaginativo, narrativo e paradigmático das crianças e sua habili-
dade de controlar e de aplicar o fluxo de consciência?
A posição que teremos neste volume é de que a autonomia humana fun-
damental começa com aparentes pequenos passos na infância. A criança de 2
anos que balança a cabeça para dizer “não” a uma colherada de comida de
criança oferecida pode parecer problemática para sua mãe, mas esse balançar
da cabeça é um sinal significativo de independência precoce e talvez até mes-
mo do início da autodefinição. Brincadeiras simuladas, que se desenvolvem
logo após, podem ter implicações semelhantes profundas na asserção da auto-
nomia do indivíduo e no início da autoconsciência e do controle de seus
pensamentos. Como a brincadeira simulada começa e qual sua função na vida
cognitiva e emocional da criança?

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