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37 C.F.R. §201.14 2018
Capítulo IV

O conceito e o procedimento
da epifania

4.1 NA CRITICA BRASILEIRA A RESPEITO DE


CLARICE LISPECTOR

Em beneficio da clareza, devemos repetir agora,


a respeito da epifania, alguns pareceres criticos gerais ja indica-
dos no capitulo I.
Um dos primeiros criticos a aproximar e a dis-
tanciar Clarice Lispector de Joyce é Alvaro Lins, num artigo de
feverciro de 1944:
«Apesar da epigrafe' de Joyce que chi titulo ao
seu livro, é de Virginia Woolf que mais se aproxima a Sra. Cla-
risse (sic) Lispector, o que talvez se possa assim explicar: o deno-
minador comum da técnica de Joyce quando aproveitado pelo
temperamento femininos.' Ao definir o que chama de romance
lirico ou romance do realismo magico, Alvaro Lins, embora jamais
use o termo epifania, descreve processos que, genericamente, a
ela se podem reduzir. Um dos aspectos por ele abordado é a
apresentaçâo da realidade corn tim carater de sonho.
Reconhecendo a criaçâo desse estranho mundo fic-
clonai, Alvaro Lins, porém, termina por assinalar nele, deficiéncias,

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como se a escritora apelasse para os recursos da poesia ao lhe
faltarem os da estrutura romanesca. Näo diz, contudo, que re-
cursos sejam esses. Näo chega, assim, o critico brasileiro a per-
ceber corno riqueza urna possivel harmonizaçäo, mesmo disso-
nante, entre processos realistas e simbolistas; como o faz um
Harry Levin, por exemplo, referindo-se à obra de Joyce:
«De forma mais espetacular que nenhum de seus
conte.mporaneos, Joyce atinge os extremos da riqueza lirica e da
realidade, nâo tanto para conseguir urna fusao perfeita denses
dois elementos, quanto para contrasta-los de modo violento».'
>Mo sem motivo, ao definir a posiçäo do poeta,
Joyce aponta-o como «um mediador entre o mundo da realidade
e o mundo dos sonhos».
Ao destacar o capitulo «O banho» como o momen-
to culminante de Perto do Coraçao Selvagem, Alvaro Lins, para-
doxalmente, assinala esse mesmo texto corno ponto de desgaste
do espirito do romance. ' Ora, ou muito nos enganamos, ou «O
banho» é urna das mais significativas epifanias do livro: Joana
descobre, deslumbrada, o despertar de sua puberdade.
Sergio Milliet define, em 1946, a escritura do pri-
meiro romance de Clarice como um estilo «à beira do desmaio,
do 'extase» ' e, em 55, reconhece no estilo de Alguns Contos, «a
revelaçäo informe de urna coisa essencial que de repente se
fixas. '
Roberto Schwarz, em 1959, diz que a figura de
Joana, protagonista de Perto do Coraçâo Selvagem, e composta
por ilhotas de luz e engenho. Atribui à romancista o anseio de
escrever um livro «estrelado», em que os momentos brilhando,
lado a lado, sem articulaçäo cerrada, poderiam levar ao caos a
estrutura do livro, näo fosse esse um principio de composiçäo
positivo, em ficçäo. Ja näo se podem ver ai os efeitos de luz e
brilho, os instantes de iluminaçäo tao proprios do processo
epifdnico?
Em 1970, sem usar o termo epifania, ligando-se
contudo aos pareceres críticos de Benedito Nunes (1969) e Luis
Costa Lima (1966) explicitamente indicados, Massaud Moisés
refere-se ao «instante existencial», em que as personagens clari-
ceanas jogam secs destinos, evidenciando-se «por urna súbita re-
velaçäo interior que dura um segundo fugaz, corno a iluminaçäo
instantânea de um farol nas trevas, e que, por isso mesmo, recusa
ser apreendida pela palavra».

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Esse «momento privilegiado» nâo precisa ser «ex-
cepcional» ou «chocante»; basta que seja «revelador, definitivo,
determinante». Atinge assim a escritora o anelo de todo ficcionis-
ta: «o momento da lucidez plena, em que o ser descortina a reali-
dade intima das coisas e de si proprio».'
Costa Lima, em 1970, ao considerar Clarice Lispec-
tor pelo seu estilo, no primeiro plano dos escritores brasileiros,
vislumbra também certos elementos gerais da epifania:
«Trechos seus indicam uma aguda percepçäo de
detalhe, que têm como condiçäo o desmantelo da logica prosaica
e a construçäo de urna prosa mais afim do poético». "
Para Costa Lima porém, à semelhança de Alvaro
Lins, «essa reduçäo da realidade ao meramente subjetivo» resul-
taria antes em falha do que em valor, denunciando, na ficcionista,
um fundo romântico, como, paradoxalmente, ja se disse de Joyce.
Em 1961, quando Joao Gaspar Simöes, escritor e
critico português, chama Perto do Coraçäo Selvagem de «livro
fosforescente, espécie de f ogo- fsituo» ", nâo estarà divisando tam-
bém, na escritura de Clarice, efeitos globais do processo epifâ-
nico?
Haveremos de mostrar, como a epifania, extrapo-
lando de sua origem biblica, sera transformada, por Joyce, em
técnica literària, contribuindo, desta forma, para matizar os acon-
tecimentos cotidianos e transfigurà-los em efetiva descoberta do
real. A «escritura epifânica» de Clarice Lispector, nos seus me-
lhores momentos, é procedimento do seu romance metafisico. Ora,
esse aspecto especifico foi formulado por Benedito Nunes, desde
o seu primeiro ensaio. «A existência universal, cosmica nivela
tudo quanto existe. Mio hci, no mundo de Clarice Lispector, seno
urna hierarquia provisória. As grandezas sac) aparentes, tudo
existe por demais. Mesmo aquilo que é pequeno, insignificante ou
vil, pode ser objeto de urna visäo penetrante, que se estende além
da aparência. As coisas representam fisionomia dupla: o comum,
exterior, produto do hcibito, e a interna, pro funda, da qual a pri-
meira se torna simbolo»."
No ensaio de 73, Benedito Nunes emprega o sintag-
ma «descortino silencioso», que equivale à epifania. Prova disso é
que jâ usa também, explicitamente, o termo epifania, comentando
o enunciado de A Maçä no Escuro: «A narradora, que acompa-
nha a trajetória de Martim, pode representar a realidade assim
descortinada, por um encadeamento metaforico de termos — gra-
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ça, harmonia, pert e beleza. Tais siio os principais signifi-
cantes dispersos que convergem, remontando ao significado fugi-
dio de urna epifania, na palavra, glória — metdfora de melafora,
cuja saturada expressividade, pela intençäo do dizer que a sus-
tenta, tern servido à mistica e à teologia para assinalar o limite
que separa o dizivel do ser indizivef~. "
Para Affonso Romano de Sant'Anna, num trabalho
publicado em 1973, a narraçäo de Clarice Lispector converge
para a tematizaçäo da linguagem, como um fen8meno de epifania.
No ponto de major intensidade de urna dualidade invariante, de-
nominada por Romano: — eu e o outro, dualidade que se dissi-
mula sob disfarces värios, situa-se um estâgio avançado da nar-
rativa, onde ocorre a epifania, como momento necessario e in-
sustentâvel de tensdo. A narrativa tern seu momento de exceçäo
para o individuo, que vislumbra o que poderia ver e ter e fica, para
sempre, fendo nos olhos; exceçäo para o narrador, diante da
linguagem.
«A linguagem alude, é a possibilidade do impos-
sivel, o êxito do fracasso, a tentativa da fata diante do silêncios.
A curva que a maioria das personagens traça é marcada por
essa inclusäo na epifania ou exclusäo dela, a lembrança de um
certo momento atingido ou por atingir. "
O que Affonso Romano considera ponto central
de seu trabalho — a escritura de Clarice Lispector corno epif a-
nia — é também o melhor dele. Näo define, porém, os conceitos
de motivo e processo literdrio, considerando a epifania ora como
técnica ora como mero motivo entre outros: o espelho, os olhos,
o pai etc. Acenando a urna aproximaçäo corn Joyce, näo a apro-
funda entretanto, argumentando que isso näo levaria a urna maior
compreensäo do texto clariceano. Nos, ao invés, acreditamos que
tal aprofundamento seja necessario e muito esclarecedor, embora
näo estejamos pretendendo enfrentar urna critica de influências.

4.2 0 TERMO E 0 CONCEITO DE EPIFANIA EM JOYCE


O termo epifania vem do grego ht epi = sobre e
gpaEtvc» phaino = aparecer, brilhar; iatTervan epiphaneia significa
manifestaçäo, apariçäo. "
Segundo o Diciondrio de Teologia Biblica de
Johannes Bauer, epifania é um conceito central do mundo hebreu,
que mostra somente algumas coincidências exteriores corn fen8-
menos semelhantes do mundo pagäo ambiente.

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«Por epifania se entende a irrupçâo de Deus no mundo, que
se verifica diante dos olhos dos homens, em formas humanas ou
nâo humanas, com características saturais ou misteriosas que se
manifestam repentinamente, e desaparecem rapidamente»."
Ainda segundo o mesmo verbete daquele Diciond-
rio, nas religioes pagäs existem epifanias indiretas, isto é, teofa-
nias: divindades que se manifestam por meio de sinais. Na teolo-
gia biblica, porém, se faz clara distinçäo entre epifania e milagre.
O ponto alto das teofanias do Antigo Testamento é o aconteci-
mento do Sinai, corn manifestaçöes extraordinârias, relâmpagos
e trovöes (Ex 19, 19ss).
• O Novo Testamento focaliza as apariçöes de Cristo,
preparadas por apariçöes de anjos (angelofanias) ou por elas
confirmadas. No dia de Pentecostes ou da manifestaçäo do Espí-
rito Santo, as línguas de fogo (pneumatofania) säo enviadas pelo
Senhor (Jo 16,7).
A epifania constitui, portanto, urna realidade com-
plexa, perceptivel aos sentidos, sobretudo aos olhos (visöes),
ouvidos (vozes) e até ao tato (Gn 32, 24; Jo 20, 22). 0 Antigo
Testamento destaca o ouvir, o Novo Testamento, o ver, como nas
provas da Ressurreiçäo de Cristo.
Pertencendo a palavra à própria natureza de Deus,
näo existem epifanias mudas. O portador da palavra esta sempre
no centro da manifestaçäo divina. Escondido talvez, sua voz ecoa
através da sarça ardente (Ex 3), do ciciar do vento (1 Rs 19, 13)
e da nuvem (Mc 9, 7). A epifania sempre traz salvaçäo. O
descrente pode a ela subtrair-se, mas atrai sobre si o polo oposto,
isto é, a perdiçäo e o juízo.
O Cristianismo chama «Festa da Epifania» à ma-
nifestaçäo de Cristo Menino aos Reis Magos, querendo corn isso
significar seu anúncio a todos os povos e näo somente aos judeus.
Em nosso caso, as acepçöes religiosa e mistica do
termo säo importantes, porque têm reflexos no sentido literârio,
concretamente, no uso que desses processos fizeram Joyce e Cla-
rice Lispector.
Harry Levin apresenta-nos a carreira de Joyce e
sua respectiva obra, em três fases. A primeira corresponde aos
seus primeiros vinte anos vividos na Irlanda e pode ser especial-
mente representada pelo Retrato do Artista; a segunda compreen-
de os anos seguintes em Trieste e na Suíça e coroa-se corn a
publicaçäo de Ulisses, em 1922. Joyce tem, entäo, quarenta anos.

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a terceira fase e en-
França " constituem
ano» na alar ern Finnegans Wake. Outras obras de
Seus últimos
contram eXpressâo ring ä mara, Stephan, o Herói e Dublinenses,
eC
Música de teatro Desterrados, estâo intimamente li -
J oyce cornosua peça A primeira fase.
bem COMO tema e pela estrutura,
gadas, p de Umberto Eco chega-nos a informaçâo
por rbio rafia por Richard Elmann), de
urna biografia de Joyce, termo epifania de Gabriele
(extraida de
escritor irlandese retirou o (1900) cuja primeira parte
que o Il Fuo co, se
rom
D'Annunzio, do do Fogo Aí nâo somente sâo descritos os
intitula de St 1a a e ifanias da Beleza, mas tamb~rn
elio Ef chama, brilho, fogo.
éxtases de de fuscament o,
os efeitos o confirmai, corn essa indicaçâo, sua tese
Eco visa a
urna conotaçâo «decadente». Em-
tern, em Joyce,
deque o termo chame sua estética de «Säo Tomäs aplica_
bora o proprio Joyce na sua evoluçâo, da ortodoxia to-
afasta-se sensivelmente,
do»,
mista. " de epifania em Joyce se relaciona
Se o conceito os rdos
de Santo Toms de
corn a estética âm vinculâ-loi a certas passagenssdosde
Umbertode Eco também p texto fundamental
Walter Pater. 1-la urn deste autor,
citado por Eco, texto bastante significativo em suas próprìas
escritos
momentos excepcionais do existir:
sugestóes de formal aparece
«A Lodo instante, urna perfeiçäo sobre as colins ou
num rosto; urna tonalidade
num gesto ou mais requintada que as outras; urna paixdo, urna
sobre o mar é
urna excitardo intelectual tornam-se, a nossos olhos,
visäo, ou
irresistivelmente reais e atraentes, por um momento, apenas... s =•
Depois, tudo se dissolve sob nossos passos. Aquele
urna realidade, e a expe-
momento, porém, adquiriu um valor,
si mesma. É um momento de extase, que
riencia torna-se fim de
entre os dedos. Vistos sob urna luz ins-
gostaríamos de prender tintas
podemos tentar fixar e cores estranhas,
tantànea e nova,
odores delicados ou as feiçóes de um ser Amado. "
Pater, na Conclusäo de sua obra sobre o Renasci-
mento, mostra a acentuada tendência do pensamento moderno de
considerar as coisas e seus princípios como mutdveis e sujeitos
a inúmeras combinaçóes. As impressiies sâo instäveis, incoerentes
e, além do mais, prisioneiras do «eu» de cada um, em perpétua
fuga.
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Na evoluçâo da estética de Joyce, a t8nica sera
diferente. Mas tanto um corno outro, so à Arte concedem o poder
de captar e exprimir esses «intervalos» de vida.
Ao acompanhar os desdobramentos da estética
joyceana, deparamos corn esta significativa passagem epifânica
de Stephen Hero ", à qual se segue a primeira definiçâo de epi-
fania, formulada pelo jovem narrador:
«Urna jovem estava de pé na escada de urna dessas
casas de tijolo escuro, que parecem a encarnaçâo perfeita da para-
lisia da Irlanda. Um moço apoiava-se na grade enferrujada do
patio. Stephen colheu, ao passar, migalhas do seguinte dialogo,
e guardou delas urna viva impressâo, que feriu profundamente
sua sensibilidade.
Dizia a jovem (corn urna voz secretamente lân-
guida):
— Ah sim ... eu estava... na... ca... pela.
Diz o jovem (inaudivel): — Eu... (sempre inau-
divel): Eu...
A jovem (corn doçura): — Ah... mas... voté
é... muito... mal... doso»."
O trivial incidente sugeriu-lhe a idéia de juntar
instantâneos dessa natureza e fazer urna coletânea de epifanias.
«Par epifania, ele entendia urna súbita manifesta-
çâo espiritual, que surgia tanto em melo as palavras ou gestos
mais corriqueiros quanto na mais memoravel das situaçiies espi-
rituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registrar tais
epifanias corn extremo cuidado, pois elas representam os mais
delicados e fugidios momentos da vida»."
Conversando corn seu amigo Cranly, Stephen de-
clara que o relógio do Bureau de Leste também era suscetivel
de epifania. Tenta animadamente vencer a indiferença ou o ceti-
cismo de Cranly.
«— ... quantas vezes passo diante dele, faço-lhe
alusdes, falo dele, olho-o de relance. Nâo passa de um artigo
no cadastro patrimonial das ruas de Dublin. De repente, um belo
dia olho-o e vejo-o tal como é: ulna epifania»."
Ante o espanto do amigo, ele continua explicando:
«— Imagine meus olhares sobre esse relógio como
experiências de um olho espiritual, tentando fixar a propria
rada através de um preciso foco de luz. No momento em que o
foco é ajustado, o objeto é epifanizado. Ora, é nesta epifania

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que reside para mim a terceira qualidade, a qualidade suprema
do belo»."
Embora seja impossível conciliar entre si todas as
tradiçoes de beleza, Stephen acredita que nâo é impossível, estu-
dando o mecanismo interior da apreensâo estética, encontrar uma
razâo comum para todas as formas sob as quais a beleza é
cultuada na terra... "
Os trés requisitos tomistas do belo sâo integritas,
proportio e claritas, que Stephen traduz por integridade, harmo-
nia e radiância. "
Procurando penetrar no pensamento do Aquinate,
Stephen descobre que o terceiro atributo, Claritas, é quidditas.
«É esse o instante que chamo epifania. Constata-
mos primeiro que o objeto é uma coisa Integra; em seguida, que
apresenta urna estrutura composita e organizada, que é efetiva-
mente urna coisa; enfim, quando as relaçiies entre as partes estâo
bem estabelecidas, os pormenores estâo conformes à intençâo
particular, constatamos que esse objeto é o que é. Sua alma, sua
qüididade, de súbito se desprende, diante de nos, do revestimento
da aparência. A alma do objeto, seja ele o mais comum, cuja
estrutura é assim demarcada, assume um brilho especial a nossos
olhos. O objeto realiza sua epifania»."
A exposiçao das idéias estéticas de Joyce é mais
detalhada no Retrato do Artista quando Jovem. Segundo Umberto
Eco, ali sâo sintetizados os temas principais da estética de Ste-
phen Dedalus: a subdivisâo da arte em tres generos: lirico, épico
e dramâtico; a objetividade e impessoalidade da obra; a autono-
mia da arte; a natureza da emoçâo estética e os critérios de
beleza. "
Deste último tema emerge, como alias jâ vimos no
Stephen Hero, a doutrina da epifania.
Além do episodio da menina-pâssaro que é a mais
bela epifania do Retrato, ha outra significativa anâlise da per-
cepçâo de objetos:
«Stephen apontou um cesto que um entregador de
açougue trazia enfiado na cabeça.
— Olha aquele cesto ali, disse.
— Estou vendo, respondeu Lynch.
— Para ver aquele cesto, prosseguiu Stephen, —
o teu espirito, antes de mais nada, separa o cesto do resto do
universo visivel que nâo é o cesto. A primeira fase de apreensâo

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é uma linha limitando, contornando o objeto a ser apreendido.
Urna imagem estética se nos apresenta, seja no espaço ou no
tempo. O que é audivel apresenta-se no tempo, o que é visive!
apresenta-se no espaço. Mas, tanto temporal como espacial, a
imagem estética é em primeiro lugar, luminosamente apreendida
como autolimitada e autocontida sobre o incomensurdvel segundo
plano do espaço ou do tempo, que, com ela, näo se identificam.
Tu a apreendes como uma coisa. Tu a enxergas corn um todo.
Apreendes a sua totalidade. Eis o que é integritas». "
Percebemos, na esteira de Umberto Eco, corno o
enfoque desloca-se do metafisico para o psicologico: a integritas
joyceana ja näo é um fato de inteireza substancial, näo é um
problema de volume ontologico, mas de delimitaçäo espacial. É
a imaginaçäo que escolhe e evidencia o objeto. "
Em seguida, o ritmo da estrutura do objeto é sentido como
proporçäo e simetria. A sintese da percepçäo imediata segue-se
a analise. A coisa, o objeto é apreendido como complexo, múlti-
plo, divisivel, separavel, harmônico.
Apreender a cesta como urna coisa, na globalizaçäo
da integritas; ou apreendê-la depois como coisa, na anâlise da
proportio, delineiam «a (mica sintese logica e esteticamente per-
missívelb, Segundo o Retrato." Por que esteticamente? Porque
esta superada a logica classica e medieval. Os modos tomistas
e ontolôgicos da beleza transformam-se, sob a visada joyceana,
em modos de apreender ou até de produzir a beleza, no mundo
moderno.
A claritas é o terceiro momento. Veja-se a conti-
nuaçäo do texto do Retrato:
«Tal qualidade suprema é sentida pelo artista quan-
do primeiro a imagem estética é concebida em sua imaginaçäo.
O espirito, nesse misterioso instante, Shelley cornparou-o linda-
mente a um carväo se apagando. O instante em que essa supre-
ma qualidade de beleza, a radiaçäo claro da imagem estética, é
apreendida luminosamente pelo espirito que foi surpreendido por
sua inteireza e fascinado por sua harmonia é a luminosa «êxtase»
silenciosa de prazer estético, um estado espiritual muito similar à
condiçäo cardiaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, ser-
vindo-se durra frase quase tao bonita quanto a de Shelley, chamou
de encantamenta do coraçäo». "
Em Stephen Hero, o momento de esplendor vinha
decididamente caracterizado com o termo epifania. Por que Joyce

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o evita agora, se os termos «carväo se apagando», «encanta_
mento do coraçäo» näo significam outra coisa?
Näo só Umberto Eco, mas Harry Levin, Jacques
Aubert e outros procuram responder ao questionamento que os
textos de Joyce provocam. Segundo Eco, tendo evoluido a pro-
pria teorizaçäo da epifania, que passa de um modo de descobrir
o real a um modo de defini-lo e até produzi-lo pela palavra,
Joyce abandona o termo que caracteriza a primeira fase de sua
evoluçäo estética.
No Stephen Hero, a epifania é ainda um modo de
ver o mundo e, portanto, um tipo de experiência intelectual e
emotiva. No Retrato, ela se transforma num processo de criar
um universo, por meio da palavra poética. A epifania, «de mo-
mento emotivo que a palavra artistica serviria no màximo para
rememorar, torna-se um momento operativo da arte, que funda
e institui näo um modo de experimentar a vida, mas de former-la.
Joyce näo usa mais o termo epifania. Para Eco,
este termo Ihe recordava demais «um momento de visäo», rio
qual alguma coisa se revela; o que ora lhe interessa, porém, é
«o ato do artista que revela alguma coisa, por meio de uma eta-
boraçäo estratégica da imagem». "
Epifania pode ser arte e pode ser vida. Como no
Retrato só a arte interessa, o termo desaparece. "
Harry Levin diz que Joyce näo incorporou o termo
no Retrato, porque as epifanias correspondiam a urna experiência
demasiado intima. Por isso também as satiriza em Ulisses, pre-
tendendo enviar sua coleçäo às bibliotecas do mundo, inclusive
à célebre e destruida biblioteca de Alexandria.
«Esta doutrina é, sem dévida, a base de toda a
obra de Joyce: os cumes encobertos do Retrato, os fantasmas da
embriaguez em Ulisses e o intermincivel pesadelo de Finnegans
Wake». "
O artista, tal como o mistico, hà de ser sensivel
às coisas simples, que tecem urna complexa rede de associaçóes
e manifestaçóes. O que, para outros, pode ser detalhe trivial, para
o artista, transforma-se em prodigiosos símbolos.
«Seguado este critério, todas as obras posteriores
de Joyce parecem reconstruçóes arti ficiais de uma concepçdo
transcendental da experiencia. Suas mutaçóes vertiginosas, da mis-
tificaçäo ao exibicionismo, dos experimentos lingüísticos à con-
fissäo pornogrcifica, do mito à autobiografia, do simbolismo ao

138
naturalismo, têm, por objeto, criar um substituto literario para
as revelaçóes da religiao». "
Em Joyce, diz Harry Lewin, sac) analogos o papel
do artista e o do sacerdote; porém ao escritor moderno interes-
sam a rotina cotidiana, os mecanismos da conduta humana, e
seu desejo é descobrir o modo mais econ8mico de apresentar urna
imensa quantidade desse material. Ha que definir as nuanças,
o matiz. Mais urna vez se constata como o conceito de epifania
emigra da teologia para a literatura, transformando-se numa téc-
nica quase cinematografica.
«Podemos considera-la como a contribuiçâo de Joy-
ce para essa série de mudanças que condensaram a narrativa do
conto e substituiram o enredo pelo escilo, transformando o nar-
rador num perito de camera fotografica. A medida do êxito numa
forma literdria, tao sem ornamentos, radica, naturalmente, no
seu grau de condensaçao»."
A posiçâo de Jacques Aubert, rastreando os passos
de Umberto Eco, é, porém, mais radical e muito significativa.
Seu estudo Introduction à l'Esthétique de James Joyce foi apre-
sentado como tese de doutorado em 1971. Toma o termo Esté-
tica no sentido estrito de Baumgarten, como ciência caçula da
Lógica, tratando do dominio «inferior» das sensaçòes e das leis
que as regem. Concorda que ha um esboço de teoria estética no
Retrato do artista. Mas se questiona: Por que somente traços?
Por que Joyce cancelou setores inteiros de seu itinerario? A que
projeto ele, definitivamente, renunciou? Que significam os traços
que subsistem?
Aubert toma como ponto de partida a totalidade
dos textos e documentos exteriores à grande obra propriamente
dita de Joyce, respeitando-lhes a cronologia: urna dissertaçâo de
1899 e urna conferência, ambas visando a definir o dramatico;
diversos escritos correspondentes a urna época de sondagens:
um artigo a respeito de Ibsen, um panfleto de 1901 intitulado
«O triunfo da Canalha» e urna conferência de 1902: «James Cla-
rence Mangani. Finalmente as notas de leitura consignadas por
Gorman, os esboços teóricos do Paris Notebook e de Pola Note-
book, as entrevistas dadas por Joyce a diversos jornais, princi-
palmente ao Daily Express, de 1902 a 1903.
Em 1899, a verdadeira experiência pessoal de Joy-
ce é a de escritura. No início de 1900, escreveu sua primeira anto-
logia de poemas originais Shine and Dark e começou a revelar

139
suas epifanias. Das peças teatrais que escreveu, na época, A Bril-
liant Carrer perdeu-se e so podemos, pelo título, fazer conjeturas.
A significaçâo, porém, dessa experiência pratica de escritura é
inseparavel da concepçâo teorica que a acompanha: é preciso
levar a sério a invençâo do termo epifania aplicado aos poemas
em prosa e a dedicatoria do A Brilliant Carrer:
«A minha alma dedico a primeira verdadeira obra
de minha vida».
Estas peças e estes poemas representam, de fato,
um esforço de construçâo de estruturas dramaticas ou rítmicas,
integrando a experiência de um acontecimento, isto é, visando a
situar o artista de diversas maneiras na obra. "
Em James Clarence Mangan, redigido sob a in-
fluência das leituras de Plotino, o belo é uma presença graciosa
que acompanha a imaginaçAo no momento em que ela contempla:
«é o jogo da luz sobre a simetria». "
Continua a analise de Aubert: A luz, segundo Joyce,
é um milagre, uma operaçâo excepcional, um acontecimento-signo
que, por convençâo e comodidade, se denomina beleza: a beleza
é urna presença e rido a representaçâo de urna Idéia. Joyce nâo
faz senâo transcrever em termos teóricos sua experiência das
epifanias. Continua pensando que a estrutura que define essas
relaçóes é o drama, isto é, urna forma de arte que se relaciona
cour as leis, as razóes da natureza.
O problema é complexo, os dados, em aparência,
contraditórios: de um lado, urna experiência concreta, na qual o
acontecimento, a epifania, a luz como sinal de beleza é um acorn-
panhamento, isto é, nem causa nem conseqüência; de outro lado,
urna exigência, segundo a qual, o sentido é dado pela coinci-
dência do sujeito cognoscente e do objeto conhecido, na estru-
tura deste Ultimo. Ai, segundo Aubert, se encontra a verdadeira
problematica de Joyce, a problematica subjacente à sua pesquisa.
Coexistem simultaneamente nele uma experiência real, a da epifa-
nia, e tentativas de definiçâo da experiência possível (drama,
poesia). Por isso inventou um termo para descrever a primeira;
trata-se, porém, de urna experimentaçâo. A epifania é experi-
mentada como dom do céu, rido como urodelo da obra a reali-
zar, nâo como a propria obra futura.
A transformaçâo do primeiro esquema, isto é, o
conceber a criaçâo como experimentaçâo absoluta, se darà opor-
tunamente.

140
O elemento motor, que farà Joyce evoluir do
Stephen Hero para o Retrato e depois para Ulisses, é a desco-
berta da falsidade do modelo enquanto modelo, da epifania en-
quanto paradigma. •'
Para isso, ele terà que reelaborar a noçäo de
mimesis aristotélicas e o faz, diz Aubert, à luz dos escritos de
Butcher. A mimesis näo deverd ser traduzida por «imitaçäo»,
mas por «simulacro». Reabilita-se assim o «fantasma sensorial»,
contra o idealismo platônico, e a arte recupera sua autonomia em
face da natureza. Ela näo é copia da natureza, mas um novo
«eidos», urna nova forma que organiza o material dos sentidos
à sua maneira e segundo suas leis. Urna obra de arte reproduz
um original, näo corno é, mas como aparece aos sentidos. A arte
liberta-se da sujeiçäo à realidade, é principio de emancipaçâo.
Constatada esta reelaboraçäo, convém voltar ao pro-
blema da evoluçäo da epifania:
No Stephen Hero, a claritas identificada como
quidditas era definida como a alma do objeto. A palavra alma
é abandonada no Retrato e isso é mais significativo, para Aubert,
que o do termo epifania. Aquele abandono corresponde ao reco-
nhecimento final de que, no epifânico, o objeto näo tern alma,
nem sequer do ponto de vista metaforico; ou mais exatamente,
se o objeto pode ser percebido como tendo urna alma, cessa de
te-la no objeto de arte, que, por definiçào, näo pode ser senäo
um simulacro, isto é, um «fantasma sensorial*.
A epifania deixa de ser usada como conceito e de
ser transcrita como experiéncia «identificadora», enquanto reve-
laçäo. Ela se integra nas obras de Joyce, num sentido muito mais
profundo: constitui seu principio de funcionamento. A epifania
é a apariçäo do sentido, numa espécie de jogo de cena; näo é a
revelaçâo fortuita de urna alma. Se Joyce passou da concepçäo
estrita de mimesis, como imitaçäo, à idéia de simulacro, graças
à teoria do fantasma sensorial e da funçâo liberadora da arte,
foi-lhe possivel entrever como, no simulacro, no seu funciona-
mento interno, se encontrasse a verdadeira libertaçäo da arte
moderna. As novas experiências de escritura teräo levado Joyce
a isso: revisäo dos Dublinenses e do Retrato, operaçäo pessoal
dolorosa, porque devia retalhar seus proprios fantasmas.
Hoje, esta claro para nos, sustenta Aubert: Joyce
tentou conciliar urna experiéncia real do Belo e a exigência da
criaçäo literària possivel; tentou harmonizar a dupla herança neo-

141
platonica e aristotélica assumidas por Santo Tomas. Esta herança
parecia fornecer-lhe a descriçäo de um fato real e a possibilidade
pratica de sua integraçâo numa escritura. Vimos como Joyce de-
fine, teoricamente, sua estética pela formula: trata-se de «Santo
Tomas aplicado». Aubert concede que ele possa ter permanecido
apegado, implicita ou inconscientemente, a urna visa() «imagina-
ria» da realidade; mas a tirania da imagem (romantica, neo-sim-
bolista, decadente) cedera depressa à vivência da escritura, pela
simples razäo de que ele tinha se enganado a respeito de sua
experiência pessoal: a epifania näo era totalmente «real»; ela,
por seus proprios meios, estava engajada no simbolico. No plano
estético, a concepçäo, gestaçäo e produçâo artistica exigem de
Joyce urna nova terminologia e ulna nova experiência, como alias
ele ja tinha sentido e formulado no Retrato." Mas esta näo é
urna estética do inefavel. Ao contrario. E a experiência do cria-
dor que afirma e ordena «urna outra natureza» artificial, num
Logos partido. Näo se trata mais «do que pode ser dito de algu-
ma coisa», porém, «do que diz a linguagem», toda a linguagem,
tudo o que é linguagem. Nasce a literatura em relaçäo corn o
ser moderno da linguagem. Näo mais se trata de «simbolizar o
real», mas de «problematizar a linguagem» e, desde logo, estäo
em pauta o sujeito e a enunciaçäo. A epifania, como conceito,
cede lugar aos mecanismos das fases do tempo, o passado defi-
nido «como fluida sucessäo de presentes» (no Retrato) e até aos
mecanismos da frase e da letra, em Ulisses e Finnegans Wake,
conclui Aubert. "
Poderiamos sintetizar esses enfoques da epifania
joyceana:

1. os três, Eco, Levin e Aubert, admitem urna incontestavel


evoluçäo da teorizaçäo da epifania, nas obras de Joyce;
2. admitem também que essa evoluçäo passa de um modo
de ver o real (emotivo), para um modo de fazer ver,
um processo de criar (operativo, artistico);
3. admitem ainda, corn nuanças diversas, que a epifania,
abandonada como termo, passa a integrar a obra de Joyce,
como escritura, de modo que ele se insere radicalmente
na linhagem dos criadores da literatura moderna compro-
metida corn o ser da linguagem.

Nos dez anos que medeiam entre o Stephen Hero


e a redaçäo final do Retrato, situam-se os relatos Dublinenses. "

142
Harry Levin faz, a respeito dessas estórias, ràpidos
e lúcidos comentàrios, que procuraremos selecionar.
A intençäo de Joyce, segundo confessou a seu edi-
tor, foi «escrever um capítulo da história moral» de sua terra
e escolheu o cenano de Dublin, porque esta cidade se Ihe afigu-
rava como centro da paralisia irlandesa.
Em cada um dos quinze relatos do livro, encontra-
mos sempre a estória de urna frustraçâo.
Joyce parece evitar, deliberadamente, tudo quanto
indique movimento. A narraçäo — de camera retardada — se
harmoniza corn a natureza paralisante do assunto. O narrador
observa, os personagens aparecem e todo o acento se desloca
para a técnica expositiva. Ha um cheiro especial de corrupçâo,
comum, porém, a todas as cidades. As virtudes dos dublinenses
sâo raras: conversar, cantar e beber, até à saciedade. O pito-
resco da conversaçâo, tipicamente irlandesa, atenua as sórdidas
realidades dos ambientes.
Em «Argila», a epifania é o momento em que urna
velha lavadeira, corn voz trêmula e fraca, se póe a cantar:

«Num paldcio de mcírmore, sonhei que morava


rodeada de servos e vassalos
E que eu era a esperança e o orgulho de todos
Que entre aquelas paredes habitavam.
As riquezas que eu tinha, impossivel contar
E de um nome ilustre podia me orgulhar
Mas também sonhei, o que mais me agradou,
Que teu amor por mim nunca mudoun. "
Ninguém procura desenganar a pobre velha Maria,
que canta sonhos jamais vividos. No leitor, a emoçâo mescla-se
de piedade e ternura.
No conto «Arabia» aparece o contraste entre o
fascinio que o nome exerce sobre um menino, e sua desilusâo ao
saber que Arabia indica apenas uma quermesse de beneficência.
A crueldade dessa desilusâo infantil nâo justifica, porém, o total
desalento da última frase:
«Fitando a escuridäo, eu me vi como urna criatura
tangida e ludibriada por quimeras. Meus olhos queimavam de
angústia e odio»."
No último conto, «Os mortos», Gabriel Conroy
preside a urna festa de Natal, oferecida pelas tias solteironas.

143
Importante é a lembrança que desperta em Gretta, sua mulher,
um fragmento de cançâo. O que Gabriel instintivamente percebe,
naquele momento epifânico, sem ter consciência disso, é a marca
do amor no semblante da esposa.
«Deixou-se ficar na obscuridade do vestibulo, ten-
tando captar a chia que a voz interpretava e contemplando a
mulher. Havia graça e mistério em sua atitude, como se ela fosse
ulna figura simbolica. Perguntou a si mesmo que simbolizaria
urna mulher, imOvel na penumbra de uma escada, ouvindo urna
distante melodia. Se fosse pintor, retratd-la-ia naquela postura.
O chapéu de feltro azul ressaltaria o bronze de seus cabelos con-
tra o fundo negro, e as cores claras do vestido realçariam as
cores escuras. Musica Distante era o nome que darla ao quadro,
se fosse pintor»."
Jamais Gabriel Conroy participara daquela lem-
brança, de um amor que a mulher tivera na adolescência; o
rapaz morrera aos 17 anos. Num outro momento de epifania
iranica, Gabriel percebe que ele e Gretta sac) dois estranhos e
as preciosas lembranças que os ligavam ha anos, nâo os tinham
revelado um ao outro. Sua propria pessoa nao Ihe parece mais
consistente do que o longínquo e desconhecido rival defunto,
Michael Furey. A luz dessa epifania, o mundo material diminui
e se dissolve e rido restam dele niais que a reliquia dos mortos
e a massa dos moribundos. «Um por um, estavam todos se
transformando em sombras»."
Pela janela, via os flocos de neve que cobriam
toda a Irlanda.
Essa neve é indiciada desde o principio do conto e
lentamente se acumula pela repetiçâo de certas palavras-chave:
frio, sombras, parado, morto, escuro, negro/branco.
Gabriel e Gretta chegam à casa das tias, numa
noite de nevada. Gabriel demora-se limpando a neve das galo-
chas (scraping the snow from his goloshes). A neve estendera
delgado manto nos ombros de seu sobretudo e cobrira com bran-
cas biqueiras a ponta de suas galochas (A light fringe of snow
like a cape on the shoulders of his overcoat and like toscape
on the toes of his goloshes). Um clima de frio e sombra prepara
a cena final, produzindo, imperceptivelmente, no leitor, certo mal-
estar, provocado também pela adjetivaçâo. O sobrado da ilha de
Usher `°, onde moram as tias e sobrinha, é enorme e lugubre
(in the dark, gaunt house); Lily, a empregada, precipita-se pelo

144
corredor vazio (bare hall way) para receber os hóspedes; ela
responde corn azedume (bitterness) a uma pergunta de Gabriel e
cria-se, entre ambon, urna situaçäo de constrangimento. O inci-
dente lança urna sombra (a gloom) sobre o espirito de Gabriel.
Lily tern rosto pcdlido (pale in complexion) cabelos
cor de feno (hay — coloured hair) e a luz do gas torna-a ainda
mais palida (look still paler). Os degraus da casa sâo escuros
(dark stairs), a noite parece toda feita para nevar ((‹Is it snowing
again, M. Conroy? asked Lily. — Yes, Lily, he answered, and
I think we're in for a night of it»). O frio endurece o pano das
roupas (snow — stiffened frieze), um sopro gélido vem das ruas
(a cold, fragrant air from out-of-doors).
O rosto de tia plia, cuja morte Gabriel pressentira
no final do conto, é largo e flacido, de um cinzento carregado
de sombras (with darker shadows). Os olhos tristonhos (her
mirthless eyes), o olhar vago e a boca entreaberta davam-Ihe a
aparência de urna mulher que nâo sabia onde estava nem para
onde is (her slow eyes and parted lips gave her he appearance
of a woman who did not know where she was or where she was
going).
Aqui e ali, pequenos incidentes desagradaveis apon-
tarn a crosta da paralisia irlandesa.
O incidente corn Molly Ivors, amiga de infância
de Gabriel, deixa-o agitado e ofendido.
Molly Ivors chama-o de «Inglês» (West Briton),
isto é, um traidor da Irlanda. Ela descobrira que Gabriel escre-
via para a Daily Express, e ele recusa-se a participar de urna
excursâo corn Gretta, para as ilhas de Aran, a oeste da Irlanda.
Gabriel prefere urna viagem de bicicleta, corn os amigos, A Fran-
ça, Bélgica ou Alemanha. Por que prefere isso, a conhecer sua
patria? Para manter contacto corn outras línguas e mudar de
ambiente.
Molly Ivors, irlandesa fanatica, acha que ele deve-
ria preferir visitar sua terra e manter contacto corn sua propria
lingua. Gabriel, cada vez mais irritado, declara que o irlandês
nâo é sua lingua e, quanto A Irlanda, ele esta farto de seu pais.
Dai a pouco, vem a saber que sua esposa adoraria
rever Galway. A frieza atinge agora as palavras de Gabriel:
— Você poderd ir, se quiser — respondeu fria-
mente (said Gabriel coldly).
Pouco antes da cela, Gabriel aproxima-se da jane-
la e tamborila os dedos trêmulos na vidraça gelada (trembling

145
fingers tapped the cold pane of the window). A neve devia
cobrir os galhos das ârvores (the snow would be lying on the
branches of the trees). No fim da ceia, pouco antes de seu dis-
curso em louvor das anfitriâs, Gabriel apoiarâ os dez dedos
trêmulos sobre a mesa (leaned his ten trembling fingers on the
table cloth) imaginando pessoas paradas na neve la fora (were
standing in the snow on the quay out side), e o parque corn as
ârvores pesadas de flocos (the park, where the trees were weight-
ed with snow). O monumento de Wellington tal como ele, Gabriel,
ao entrar na casa, esta coberto agora corn um manto cintilante
de neve (wore a gleaming cap of snow) e brilha em direçâo do
oeste (that flashed west wards).
O discurso de Gabriel é todo pontuado pela lem-
brança dos antepassados mortos, que souberam cultivar a hospi-
talidade irlandesa (still cherish in our heats the memory of those
dead).
Depois da ceia, antes de partir, no recanto escuro
do vestibulo (in a dark part of the hall) Gabriel olha para o
alto da escada e percebe sua esposa, imóvel (stillness) na pe-
numbra (in the shadow also). As sombras transformavam as fai-
xas rosa e marrom do vestido dela em branco e negro (shadow
made appear black and white).
Gabriel deixou-se ficar na obscuridade do vesti-
bulo (he stood still in the gloom of the hall). O que simboliza-
ria, perguntava-se ele, uma mulher imóvel na penumbra? (What
is a woman standing on the stairs in the shadow).
O chapéu de feltro azul ressalta o bronze de seus
cabelos contra o fundo negro (against the darkness) e as cores
claras do vestido realçam as cores escuras (and the dark panels
of her shirt would show off the light ones).
A cançâo ouvida é triste e fala de um filho que jaz,
enregelado, em alguma parte (my baby lies cold...). Ao parti-
rem, Mary Jane, a sobrinha, diz ter lido nos jornais que nab
nevava assim ha trinta anos e a nevasca é geral em toda a Irlan-
da (that the snow is general all over Irland).
A paisagem de neve é triste: a manhâ ainda estava
escura (The morning was still dark), havia lama no châo e flocos
de neve nos telhados. O ar era brumoso (the murky air) e o
Palâcio da Justiça recortava-se ameaçador contra o céu sombrio
(the palace of the Four Courts stood out menacingly against
the heavy sky).

146
Também contra o enlevo amoroso de Gabriel e a
pungente sensualidade que Gretta nele desperta, naquela noite,
num hotel longe da rotina cotidiana, opbe-se o proprio pensa-
mento da esposa, preso as lembranças de seu passado de ado-
lescente.
Ao conhecer o segredo das lâgrimas de Gretta,
que chora sobre a morte do jovem que a amara outrora, todas
as palavras indices da cena final invadem o discurso e o quarto
sem luz.
Ante o frio interrogatorio (cold interrogation) de
Gabriel, sabe-se que o jovem esta morto (he is dead), morreu
aos 17 anos (terrible thing to die so young), morreu por ela,
Gretta (he died for me).
Tornado de vago terror (vague terror) Gabriel sen-
te que algum ser impalpàvel e vingativo (some impalpable and
vindicative) reúne forças contra ele no seu obscuro mundo (in
its vague world).
No inverno, morreu o jovem Michael Furey, depois
de ter enfrentado o frio do jardim da casa de Gretta, antes que
ela partisse para o internato.
As palavras «tiritando de frio» (shivering), «estava
parado» (he was standing), «estava morto» (he was dead), «mor-
rera por ela» (had died for her sake), «afrontara a morte» (had
braved death), criam urna ambiência de frio (neve) e morte, de
paralisia geral. Gabriel lembra-se da tia Julia e pressente que
ela morrerà, em breve (she too, would soon be a shade with the
shade of Patrick Morkan and his horse). Ele surpreendera esse
lugubre presscígio em sua face (that haggard look upon her
face), enquanto ela cantava. Imagina como ele, vestido de preto
(dressed in black), ouviria de tia Kate como tia Julia morrera
(how Julia had died). O ar gelido do quarto fê-lo estremecer
(The air of the room chilled his shoulders). Deslizou (he stretch-
ed) para o leito, sob as cobertas. Um por um, estavam todos se
transformando em sombras (they were all becoming shades). E
penoso chegar à velhice, extinguir-se e murchar lentamente corn
a idade (fade and wither dismally with age). Gabriel imaginou
ver, na penumbra do quarto, um jovem parado sob urna arvore
encharcada (in the partial darkness he imagined he saw the form
of a young man standing under a dripping tree).
O quarto enchia-se de formas, ele acercava-se da
regiâo habitada pela vasta legiâo dos mortos, de suas existências

147
vacilantes e incertas (that region where dwell the vast hosts of
the dead; (...) their wayward and flichering existence).
Sua identidade dissolvia-se num mundo cinzento e
h1Cotrtoreo. (His own identity was fading). O mundo real desa-
gtvgava-se (was dissolving and dwindling) .
Gabriel ouve level batidas na vidraça. É a neve,
prateados e negros (silver and dark) cain
1111tta vet, 3etts tlocos
obliquamente, contra a luz do lampiào (falling obliquely).
Era tempo de preparar sua viagem para o oeste
militara o irlandês Wellington?
(westward). Para a terra onde
mais para o leste, a França,
Um West Briton? Um traidor? Nâo
o oeste da Irlanda, a que antes
a Bélgica, a Alemanha? Ou para
violentamente se recusara? Aceitarâ a paralisia geral? A neve
tâo was general all over Irland). A neve
cobria toda a Irlanda (snow sombria planicie central (It was fall-
cala em todas as partes da neve tombava
ing on every part of the dark central plain). A
mansa (falling softly), ma i s para o oeste (farther westward),
(dark waves) do cem itério abandonado, onde
nas ondas escuras
jasia Michael Furey. Para esse oeste, é que era tempo de Gabriel
preparar sua viagem?
«Sua alma (soul) desmaiava lentamente (swooned
slowly), enquanto ele ovvia a neve cair suave (snow falling
faintly) através do universo, cair brandamente (faintly falling)
— como se !lies descesse a bora final — sobre todos os vivos
e todos os mortos (the dead). •'
Italo
Svevo, ao comentar a importância de Dubli-
nenses, diz que Joyce lançou nessas estórias todas as
suas bases.
«Esses contos sew exatamente o inverso dos contos de
sant, que sabem como encerrar um destino numa Maupas-
casca de noz.
No caso de Joyce, so entra na casca a parte do
destino que pode
caber ali dentro. No entanto, a virtuosidade de Joyce é tamanha
que a defasagem é imperceptive! e nos damos por
satisfeitoss.'•
Dublinenses foi muito mal recebido na Irlanda e,
em 1912, queimado pelo proprio editor.
Voltando à obra de Umberto Eco, cumpre-nos res-
saltar como ele avalia o sentido geral da epifania nesses relatos.
«Cada novela desta coletânea parete, no fundo, como urna vasta
epifania, ou o desenrolar de fatos que tendem a resolver-se numa
expericncia epifeinica; nâo se trata, porém, de urna anotaçâo ra-
pida e passageira, um relato quase estenogrc f ico da experiéncia
vivida. Aqui, o fato real, a experiência emotiva é isolada e mon-

148

~vt'.0
, ~
tada, mediante uma aguda estratégia de meios narrativos, situa-
dos no ponto culminante da estória, da qual se tornam climax,
resumo e juizo sintetico. Assim, as epifanias de Dubliners apa-
recem como momentos-chave, momentos-simbolo de uma dada
situaçäo, e embora surgindo num contexto de indicaçöes realisti-
cas e nâo constituindo seno fatos ou frases normais e comuns,
adquirem um valor de emblema moral, de denúncia de certo
vazio e inutilidade da existência»."
Constatamos como a epifania se integra na escri-
tura joyceana, de tal maneira que, além de realizar-se em instan-
tes emotivos de visäo, ela ja se torna operativa, e recobre o texto,
corn um efeito procurado e total.
Harry Levin escreve, no prefacio à antologia ame-
ricana dos principais escritos de Joyce:
«Chamando esses apontamentos originais de epifa-
nias, Joyce enfatizou o irônico contraste entre a manifestaçâo
que ofuscou os Reis Magos e as apariçöes que se manifestam
nas ruas de Dublin; ele também sugeriu que essas patéticas e
sórdidas visöes oferecem ao observador sensivel uma espécie de
revelaçäo». "
«The Dead» é intimamente identificavel corn sua
atmosfera imediata. Gabriel Conroy é o que Joyce se teria tor-
nado, se tivesse permanecido na Irlanda, e os paragrafos finais
sac, urn discurso de despedida. "
Sera, porém, em Ulisses e em Finnegans Wake, que
a epifania atingira os mecanismos da palavra e até os da letra,
como disse Aubert.
A propria palavra se tornarti epifânica. Haroldo de
Campos escreve:
«Joyce é levado à microscopia pela microscopia,
enfatizando o detalhe — panorama/panorama — a ponto de con-
ter todo um cosmo metaforico nuora so palavra»."
Criam-se as palavras-paisagens e a epifania atinge
o nível microestético. A invençäo verbal incorpora a imaginaçäo
epifânica.
Citamos um exemplo de Joyce, explicado num tex-
to de Décio Pignatari:
«Silvamoonlake
(silva = silva (do latim, selva) e
silver = prata, moon = lua, lake = lago». 4'
Por isso, porque a técnica epifânica se incorporou
na sua linguagem, Joyce rido precisou mais falar nela. Näo por-

149
que a repudiasse, como pensa Umberto Eco, mas porque a as-
sumiu tao intrinsecamente, que nâo precisou mais nem nomea-la,
nem definì-la.
Nâo somente visao, mas também verbo, voz, es-
critura.
Cremos que, nesta altura, sera faci] reconhecer em
Joyce trés tipos de epifania ou trés niveis de procedimento
epifânico:
19) a epifania-visâo como revelaçâo presentativa,
imediata, provida ou nâo de desenvolvimento, explicitaçâo, co-
mentârio. Servem de exemplos textos de Stephen Hero, o episo-
dio da menina-pâssaro no Retrato.
24) a epifania-critica como reversäo irônica (a anti-
epifania), dos Dublinenses, que a analise de «Os Mortos» nos
ajudou a tipificar.
39) a epifania-linguagem (revelada na propria pa-
lavra), epifania operativa ao nível da microestética.
Desta sintese, podemos passar à narrativa de Cla-
rice Lispector e ao uso que ela faz do processo epifânico.

4.3 A EPIFANIA EM CLARICE LISPECTOR

O título de seu primeiro livro Perto do Coraçäo


Selvagem inspira-se em Joyce. A epigrafe desta obra, publicada
em 1944, é retirada do Retrato do artista quando jovem e diz
textualmente:
«Ele estava so. Estava abandonado, feliz, perto
do selvagem coraçäo da vida». (He was alone. He was unheeded,
happy and near to the wild hearth of li f e). "
O texto precede a urna das mais características
epifanias de Joyce. Se bem que seja longo, é melhor transcrevê-Io
integralmente para nâo truncar o prazer da leitura. Stephen estâ
junto do mar. Tira os sapatos e chapinha ao longo da praia,
sobre as ondas, carregadas de sargaços. Uma vida nova e sel-
vagem canta-lhe nas veias. A infância distancia-se. Esta sozinho,
diante do mar. «lima menina-moça apareceu diante dele no meio
da correnteza, sozinha e quieta, contemplando o mar. Era como
se magicamente tivesse sido transformada na semelhança duma
estranha e linda ave marinha. Suas longas peinas, esguias e
nuas, eram delicadas como as dam grou e eram claras até onde

150
a esmeralda da dgua do mar as rodeava, marcando a sua carne.
As coxal, rijas, duma coloraçäo suave como a do marfim, esta-
vam à mostra quase até os quadris, onde as alvas franjas do
seu calçäo eram como penugem de alvo e macia pluma. A orla
azul-clara do seu saiote ajustava-se garridamente em torno de
sua cintura, abotoando-se atrds. O peito era o de um pdssaro,
macio e leve, tao leve e macio como o de um pombo de penas
negras. Mas os seus cabelos compridos eram de menina; e de
garota, tocada pelo deslumbramento duma beleza mortal, era a
sua face.
Ela estava sozinha e parada, contemplando o mar;
e quando lhe sentiu a presença e o olhar maravilhado, volveu até
ele os olhos numa calma aceitaçäo do seu deslumbramento, sem
pejo nem luxdria. Muito, muito tempo agüentou ela aquela con-
templaçäo; e depois, calmamente, afastou os olhos dele e os
abaixou para a correnteza, graciosamente enrugando a dgua corn
o pé, para Id e para cd. O primeiro ruido leve da dgua assim
agitada graciosamente quebrou o silêncio; um ruido vagarono,
leve, sussurrante, leve como os sinos do sono; para Id e para cd,
para Id e para cd; um leve rubor tremulava em suas faces.
— Deus do céu! — exclamou a alma de Stephen,
numa explosäo de alegria profana.
Subitamente se afastou dela e seguiu através da
praia. Todo o seu rosto estava afogueado; todo o seu corpo
abrasado; os sens membros tremiam. Caminhou, caminhou, ca-
minhou, a passos largos, até longe, por sobre a praia, cantando
selvagemente para o mar, gritando para saudar o advento da
vida que tinha gritado para ele.
A imagem dela entrara na sua alma para sempre,
e palavra alguma finira quebrado o silêncio sagrado do seu ar-
roubo. Os olhos dela o tinham chamado; e a sua alma saltara
a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além
da vida! Um anjo selvagem Ihe tinha aparecido, o anjo da mo-
cidade e da beleza mortal, um mensageiro das cortes esplêndidas
da vida, para escancarar diante dele, num instante de deslum-
bramento, os portoes de todos os caminhos do erro e da gloria»."
Essenciais elementos epifânicos estäo ai presentes:
a visâo transfigurada, o deslumbramento da beleza mortal, a
contemplaçäo, o silêncio sagrado, o som dos sinos do sono, a
explosäo de alegria profana, a revelaçâo da vida, o arroubo, a
apariçäo do anjo, a gloria.

151
Clarice privilegia este momento da obra de Joyce
na sua propria inauguraçäo como romancista. Jamais usa o termo
epifania e se tem consciência deste processo, näo o demonstra
explicitamente. Vejamos um exemplo de Perto do Coraçäo Sel-
vagem, que alias nos remete, por vârios traços, se bem que em
situaçäo diversa, ao episodio paradigmal da moça-na-ägua, de
Joyce. Trata-se do capitulo «... O banho...»
«A dgua cega e surda, mas alegremente näo-muda
brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banhei-
ra, o quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados,
o reflexo do corpo ja nu de urna jovem nos mosaicos amidos
das paredes.
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas
pernas delgadas, Iisas, os seios pequenos brotaram da ägua. Ela
mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infân-
cia. Estende urna persa, olha o pé de longe, move-o terna, lenta-
mente corno a urna usa frdgil. Ergue os braços acima da cabeça,
para o teto perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum
sentimento, so movimento. O corpo se alonga, se espreguiça, re-
fulge amido na meia escuridäo — é urna linha tensa e tremula.
Quando abandona os braços de novo se condensa, branca e se-
gura. Ri baixinho, move o longo pescoço de urn a outro lado,
inclina a cabeça para t'as — a relva é sempre fresca, alguém
vai beijd-la, coelhos macios e pequenos agasalham-se uns nos
outros de olhos fechados. — Ri de novo, em leves murmarios
como os da dgua. Alisa a cintura, os quadris, sua vida.
Imerge na banheira corno no mar. Um mundo mor-
no se fecha sobre ela silenciosamente, quietamente. Pequenas bo-
Ihas deslizam suaves até se apagarem de encontro ao esmalte. A
jovem sente a ägua pesando sobre o seu corpo, para um instante
como se lhe tivessem tocado de leve o ombro. Atenta para o que
esta sentindo, a invasäo da mare. Que houve? Torna-se urna cria-
tura séria, de pupilas largas e profundas. Mal respira. O que
houve? Os olhos abertos e mudos das toisas continuum brilhando
entre os vapores. Sobre o mesmo corpo que adivinhou alegria
existe ägua-ägua. Näo, näo... Por que? Seres nascidos no mun-
do corno a agua. Agita-se, procura fugir. Tudo — diz devagar
como entregando uma toisa, perscrutando-se sem se entender.
Tudo. E essa palavra é paz, grave e incompreensivel como um
ritual. A dgua sobre seu corpo. Mas o que houve? Murmura bai-
xinho, diz sílabas mornas, fundidas.

152
O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coi-
sas e as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A
âgua esfria ligeiramente sobre sua pele e ela estremece de medo
e desconforto.
Quando emerge da banheira é urna desconhecida
que näo sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece.
Estri leve e triste, move-se lentamente, sem pressa por muito
tempo. O frio corre corn os pés gelados pelas suas costas mas
ela nâo quer brincar, encolhe o torso fenda, infeliz. Enxuga-se
sem amor, humilhada e pobre, envolve-se no roupâo corno em
braços mornos. Fechada dentro de si, nâo querendo olhar, ah,
nâo querendo olhar, desliza pelo corredor — a longa garganta
vermelha e escura e discreta por onde afundard no bojo, no tudo.
Tudo, tudo, repete misteriosamente» (PCS, p. 61-2).
Nâo nos resta outro recurso senâo retalhar um
pouco a impressionante totalidade desta epifania, reduzindo-a a
alguns de seus elementos.
Temos um espaço fechado: o quarto de banho, a
banheira. Um elemento sensível: a âgua.
Predominam, no texto, sensaçöes tâteis e, entre elas,
especificamente, as térmicas derivadas da âgua: vapores mornos,
umidade, espelhos embaçados.
HA urna personagem: a moça, ou mais exatamente,
o seu corpo. Ela é, de inicio, só movimento, sem nenhum senti-
mento. Sua alegria nada tern de emotiva, é pura sensaçäo cor-
poral. Os seios e as pernas brotam da âgua.
O simile que compara o pé a uma asa fragil nos
leva a pensar em bailarina e pâssaro. e•
Puros movimentos: de pernas, pé, braços, pescoço,
cabeça. As sensaçöes térmicas exprimem e acalentam a sensua-
lidade nascente: por associaçâo de movimentos, quando a moça
inclina a cabeça para trâs, lembra o frescor da relva e espera o
beijo. Na relva, os pequenos coelhos. As sensaçöes térmicas ga-
nham entâo calor animal; a maclez e o aconchego dos pêlos,
apenas adivinhados, sugerem o corpo nascente da mulher. Fun-
dem-se o movimento e o tato e a moça alisa sua propria vida, me-
tonimicamente significada pelos quadris. As sensaçöes produzidas
pela âgua morna, que Ihe abraça o corpo e sobre ele pesa, ex-
pressas por um novo simile — lembram o mar, por nova asso-
ciaçào. A invasâo da maré no corpo da moça é uma metafora
do ritual da fecundaçâo, da iniciaçâo para a vida, tangível agora,
na alegria da puberdade.

153
De sensaçóes visuais, hà o reflexo do corpo nu, nos
mosaicos. Os olhos se fecham para permitir a expansao dos ou-
tros sentidos, especialmente do tato, essencial à plenitude do
corpo. O «adoçar» das paredes, pela fumaça dos vapores, tam-
bém é urna sensaçäo tàtil.
Vislumbra-se a crise da identidade, quando a moça,
emergindo da infância, näo se reconhece. Essa crise, acumulan-
do-se, provoca um questionamento progressivo e as sensaçóes
de medo e desconforto. Esses tremores manifestam-se quando a
àgua esfria e a moça està para emergir da banheira. Nesse ins-
tante, desconhecendo-se, estranhando seu proprio sentir, a crise
da propria identidade coincide com o corte do frio, que lhe fere
o dorso.
O texto näo cabe todo numa epifania da vis-do
reveladora, embora dela ostente a graça e o brilho.
O questionamento progressivo do que acontece e
de suas razóes profundas, atrai alguns movimentos desarmônicos
de agitaçäo e tentativas de fuga. Esse questionamento enfatiza-se
no nível da sintaxe: «que houve»? «O que houve»? «Mas o que
houve»? «Por que»? A resposta, ao nível do corpo, é dada tam-
bém por sensaçées cromâticas: o vermelho, o escuro, indicam o
sangue púbere, que inaugura em Joana, a vida de mulher.
O estado a que ela, finalmente, chega, caracteriza-
se, porém, por uma adjetivaçäo negativa, nesta epifania critica,
que operativamente se construiu pela linguagem. Trata-se, por-
tanto, a partir de certo momento, de urna antiepifania corrosiva
da primeira irrupçäo epifânica.
O movimento unido ao tato, no ato de enxugar-se,
acompanha-se de emoçóes, que marcam estados negativos: a
moça esta leve e triste, infeliz, humilhada, pobre, sem amor por
si mesma. Os movimentos, antes vivos e gentis, se ralentam. Mor-
reu a infância. A moça näo quer brincar. Ao calor, segue-se, o
frio. Ferida no dorso, sem cabeça e sem membros, ela é so um
tronco de mulher. A sensaçâo de calor que a envolve, jà näo é
animal, mas lhe vem dos braços mornos do roupäo. Seu movi-
mento deslizante pelo corredor, até o quarto de dormir, é o
deslizar do proprio sangue, pelas paredes intimas de seu corpo.
Ela mesma desliza inteira pela sua natureza desconhecida de
mulher, ela mesma se afunda pela garganta escura e discreta,
no bojo da vida.

154
No escuro do quarto, na cama silenciosa, a única
sensaçâo que lhe sobra é a de aconchego no ventre mudo e
perdido.
As sensaçòes auditivas, associadas à propria natu-
reza da linguagem, que transcende o tâtil, sâo mínimas: de ini-
cio, só o gorgolejo da àgua. O riso da moça, trés vezes repe-
tido, lhes serve como murmúrios de ressonància. Quando o ritual
se completa, a linguagem verbal, que formulara as perguntas,
concentra-se na palavra «tudo», palavra chave das aspiraçòes
absolutas de Joana. Enquanto as sensaçöes térmicas sâo predo-
minantemente positivas, elas invadem o verbal e as próprias síla-
bas sâo mornas, se fundem.
A aproximaçâo entre a mulher e a àgua é urna
das imagens recorrentes de Clarice Lispector: Joana e o mar,
Lori e o mar.
«Ai estava o mar, a mais ininteligivel das existên-
cias nâo-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteli-
give! dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma
pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligivel dos
seres onde circulava sangue. Ela e o mar (...)
Deviam ser seis horas da manhâ. O câo livre hesi-
tava na praia, o cao negro. Por que é que um câo é tao livre?
Porque ele é o mistério vivo que nao se indaga. A mulher hesita
porque vai entrar (...)
Vai entrando. A cigua salgadissima é de um frio
que !he arre pia e agride em ritual as pernas.
Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatali-
dade — ja a tomou, embora nem Ihe ocorra sorrir. Pelo contra-
rio, esta multo séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que
a desperta de seu mais adormecido sono secular (...)
O caminho lento aumenta sua coragem secreta —
e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o
lodo, tudo liquido deixam-na por uns instantes cega, toda escor-
rendo espantada de pé, fertilizada» (LP, p. 83-4).
Seria um nunca mais acabar, se apenas alinhdsse-
mos todas as epifanias de beleza dos livros de Clarice: os cava-
los brancos, a pantera, o vento, os amantes, enfim, todos os
intervalos da vida que a preenchem e dela transbordam.
Seus momentos epifânicos nâo sâo necessariamen-
te transfiguraçòes do banal em beleza. Muitas vezes, como marca
sensível da epifania critica, surge o enjôo, a nausea. A transfi-

155
guraçäo näo é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engor-
durado e demoniaco.
«Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda
vivia, vira um homem guloso correndo. Espiara seus olhos arre-
galados, brilhantes e estúpidos, tentando näo perder o menor gos-
to do alimento. E as mäos, as mäos. Urna delas segurando o
garfo espetado num pedaço de carne sangrenta — näo morna
e quieta, mas vivissima, irônica, imoral —, a outra crispando-se
na ansia de ja corner novo bocado. As pernas sob a mesa mar-
cavam compasso a urna música inaudivel, a música do diabo, de
pura e incontida violéncia. A ferocidade, a riqueza de sua cor...
Avermelhada nos lcibios e na base do nariz, pcilida e azulada sob
os olhos miúdos. Joana estremecera arrepiada diante de seu pobre
café. Mas näo saberia depois se fora por repugnância ou por
fascinio e voluptuosidade. Por ambos certamente. Sabia que o
homem era uma força» (PCS, p. 15).
Ela vislumbra, nessa violência, a vida, o gosto do
mal. Quando recorda seu casamento corn Otàvio, se lembra de
si mesma, em pé, no topo da escadaria. Os leques, palavras em
francês sussurradas corn cuidado, por lâbios juntos. A epifania
se torna tâtil, quando entre homens e mulheres näo existem
espaços duros, mas tudo se mistura, molemente.
Assim como existe em Clarice toda urna gama de
epifanias da beleza e visäo, existe também urna outra, de epifa-
nias criticas e corrosivas, epifanias do mole e das percepçöes
decepcionantes, seguidas de nausea ou tedio; os seios flâcidos
da tia que a acolhem depois da morte do pai, o professor hipo-
condríaco rodeado de chinelos e remédios, o marido Otâvio fraco
e incapaz de agredir a vida, a barata, massa informe de matéria
viva.
Em A Cidade Sitiada, Lucrécia, a protagonista, in-
capaz das epifanias da visäo, reduz-se ao ver de superficie, para-
digma da epifania irônica ou antiepifania, em relaçäo As paisa-
gens urbanas.
A Cidade Sitiada tern, guardadas todas as dife-
renças, o humor, a ironia das sórdidas visöes das ruas irlande-
sas: S. Geraldo é urna réplica de Dublin. Embora assaltada pelo
progresso, sua paralisia näo é menos sensível. Se Gabriel Conroy
é o que Joyce se teria tornado se tivesse permanecido na Irlanda,
Lucrécia Neves näo sera o avesso possivel de Clarice? O narrador
de A Cidade Sitiada observa a protagonista, de longe, corn olhos

156
oblíquos, e ela 'mesma é como urna estàtua, para ser vista, na
praça pública.
Embora nâo exista em Clarice nem sequer a men-
çäo da palavra epifania, contudo pode-se deduzir de sua ficçäo
toda urna poética do instante, essencialmente ligada à linguagem,
enquanto questiona o proprio ato de nomear os seres. Essa poé-
tica se formula claramente em Agua Viva.
«Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimen-
sao do instante — ja que de tao fugidio nao é mais porque agora
tornou-se um novo instante — ja que também nâo é mais. Cada
coisa tern um instante em que ela é. Quero apossar-me do é
da toisa» (AV, p. 9).
Esse é da coisa tem que ser captado no àtimo do
tempo presente e seu maior obstàculo é a discursividade da lin-
guagem, contra a qual Clarice luta, corpo a corpo.
«Esses instantes que decorrem no ar que respiro:
em fogos de artificio eles espocam mudos no espaço. Quero pos-
suir os cttomos do tempo. E quero capturar o presente que pela
sua propria natureza me é interdito: o presente me foge, a atua-
lidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no jci» (AV, p. 10).
Os termos que lhe saem da pena, porque a palavra
é sua quarta dimensäo, estäo saturados dos efeitos epifânicos ja
apontados: joia que refulge no ar, gloria estranha do corpo, ma-
téria sensibilizada pelo arrepio dos instantes, alegria e canto de
aleluia!
A graça da epifania é urna espécie de graça pro-
fana; nao é a graça dos santos.
O texto intitulado «Estado de graça» aparece no
jornal do Brasil a 6 de abril de 1968. Depois em Uma Aprendi-
zagem, em 1969, em seguida em Agua Viva, em 73. Segundo de-
claraçäo da propria Clarice, o texto publicado em jornal, embora
de data anterior, foi retirado do livro, que jà estava pronto. Em
Uma Aprendizagem, o estado de graça é sentido por Lori. Ela
entra em casa, morde urna linda maçä escarlate, que estava sobre
a mesa, como se fosse a maçä proibida do paraiso. Conhecendo
o bem e nâo so o mal como antes, ela sente algo suave lhe
acontecendo: era o começo de um estado de graça.
Todo o capítulo estâ em terceira pessoa, escrito
no passado (LP, p. 146-150).
Para o jornal do Brasil, o texto é reescrito em pri-
meira pessoa, no presente, e o estado de graça é sentido por ela,

157
Clarice Lispector. A l • pessoa e o presente dao, no caso, maior
densidade à linguagem, e o leitor identifica, imediatamente, aquele
estado conio a percepçâo direta e imediata da graça do existir.
Em Agua Viva, o texto continua em primeira pes-
soa, e quem o vive é a pintora-narradora. Ela cai em estado de
graça as cinco horas da madrugada do dia 25 de julho. Seu tra-
balho agora é contar como luta para descrever o indizivel. Para
isso, pede a empatia do leitor, apela para a sua capacidade de
sentir.
A fini de perpetuar a alegria daquele estado, a es-
critora usa a objetividade da palavra. Procura no dicionàrio o
vocàbulo que melhor exprima aquela felicidade e acha o detes-
tàvel termo «beatitude», que significa «gozo da alma».
Tudo isso lhe desagrada, inclusive a continuaçao
do que diz o dicionàrio: «de quem se absorve em contemplaçao
mistica». Ora, o estado de graça da epifania nâo tem a ver corn
meditaçâo e religiosidade. Nem corn drogas ou alucinaçóes. Em
pieno cotidiano. Ela acabara de tomar o café, sentada, corn um
cigarro queimando no cinzeiro (Cf. AV, p. 104-7).
A discursividade limitadora fa-la desejar, para a
linguagem, os processos da pintura e até da fotografia e nos
lembramos do narrador do último conto de Dublinenses, queren-
do pintar o retrato da mulher epifanizada.
«Que estou fazendo ao te escrever? estou tentando
fotografar o perfume» (AV, p. 63).
«Novo instante em que vejo o que vai se seguir.
Embora para falar do instante de visâo eu tenha que ser mais
discursiva que o instante: muitos instantes se passarâo antes que
eu desdobre e esgote a complexidade una e rapida de um re-
lance» (AV, p. 63).
Se a escritura é epifânica, a escrita é um rito que
se cumpre como forma de «submissâo ao processo». " Enquanto
rito, «essa narrativa epifânica se repete a si mesma, repetindo seul
mesmos lugares, corn a quase rigidez do rito sempre velho e novo,
hicomo a gufar urna série de simbolos em torno de um mesmo
eixo enfatizando sua insuperavel circularidade». °'
O recurso estilistico da repetiçäo se muda assim
anum instrumental desse processo maior, que visa a epifanizar,
criticamente, certos aspectos mínimos da realidade. Estaria tam-
bém a repetiçao a serviço daquele «estilo humilde» que tern lido
urna das confissóes de Clarice a respeito de si mesma, um estilo

158
de busca? Seria realmente a repetiçâo o instrumental de sua
escritura epifânica? Nâo seriam antes dois polos em constante
oposiçâo: o modo de iluminaçâo, epifânico, glorioso, que muitos
ja sentiram como urna espécie de barroco, e o estilo humilde,
rastreante da antiepifania, feito de repetiçóes que chegam ao
balbucio, onde o silêncio cobre a personagem, mas nâo cobre o
narrador?
É o momento de discordar daqueles que identificam
Joana ou G.H. corn Clarice. Joana chega ao limite de si mesma.
G.H. chega ao limite da linguagem, ao limite do humano. Mas,
pondo-se a escrever sua estranha experiência, transforma-se em
narrador. É Clarice quem se salva. Ela narra, e narrando salva
a linguagem enquanto se salva a si mesma.
É verdade que tanto nos seus «clarbes» como nos
seus «padroes», ambos, de certo modo, epifânicos (ora como
visâo, ora como rastro), o texto clariceano pode falhar como
informaçâo estética. Esta é, porém, urna questâo critico-valora-
tiva que nâo vem ao caso abordar neste passo. Voltaremos a
esse aspecto, no capítulo deste trabalho acerca da escritura. Na
sua luta pela expressâo, Clarice pode capitular no banal, na
repetiçâo diluida, ao nível da mera redundância. A custa de
repetir-se, ela pode desepifanizar o achado primeiro e a metafora
pode tornar-se lexical e banal. .1 nas alternâncias entre um estilo
brilhante e um estilo pobre, ou na confluência de ambos, que se
pode encontrar o seu limite como romancista.
Clarice tern consciência desse perigo. O interlocutor
de A Paixâo segundo G.H. é um interlocutor ficticio dentro da
propria ficçâo. Assim, ela desventra a funçâo fâtica de Jakobson
e expoe a nu o proprio esqueleto da estrutura narrativa. Para
narrar, é preciso urn interlocutor ao menos para manter o cir-
cuito comunicativo. Valha-nos urna aproximaçâo corn Guimarães
Rosa. Em Grande Sertâo: Veredas, o interlocutor existe. O nar-
rador precisa dele, como contraponto do seu narrar. O leitor nâo
o ve, mas ele esta ali. É um «tu», que intervém implicitamente
no relato, faz perguntas que so o narrador escuta, interpela o
vaivém da memoria temporal que narra o acontecido antes
dos fatos acontecerem...
Grande Sertao: Veredas é urna narrativa até certo
ponto épica, de fatos e açöes, e o narrador tem toda a tessitura
da vida para revirar e compreender os seus avessos.
G.H. quer alguém que lhe segure a mäo. A expe-
riência da ruptura pela qual passou, e que Os em choque a sua

159
própria identidade, näo Ihe permite ter segurança como sujeito
do narrar. G.H. tern de fingir esse alguém, que se desvaneceu
na sua experiência mistica do nada. Mas G.H. näo é Clarice
Lispector. Esta, como ficcionista, ainda tern os seus recursos:
se salva a personagem, fingindo-Ihe um interlocutor necessario,
um «tus para o dialogo, liberando assim o texto como narrativa
e comunicaçäo, faz isso corn pieno dominio de seus meios de
expressâo. A linguagem pode triunfar na medida mesma em que
parece crucial o impasse da personagem.
Em Grande Sertao: Veredas se questiona tudo: luz/
sombra, Deus/diabo, vida/morte, mas näo se questiona a pró-
pria dualidade, a contradiçäo que gera o dialogo e a vida.
Em A Paixäo segundo G.H. a dualidade é fingida
e criticamente afirmada, por exigência da própria linguagem e
da pesquisa do ser.
A narrativa, no caso, é, se usarmos a terminologia
do Eco, urna «metafora epistemologica» do texto do existir. Ela
simboliza, no plano da episteme, do conhecimento, o risco glo-
rioso de urna apaixonada pesquisa existencial no plano da co-
municaçao. O eu que precisa do outro; o escritor que näo existe
sem o público, sem o leitor.
Näo se desventra assim o cerne da própria ficçAo?
A escritura epifânica é, portanto, do dominio do narrador. Se-
gundo a liçäo de Joyce, é na pagina escrita, na alta montagem
dos recursos de estilo, que se configura o momento epifânico.
Fora da pagina, ele na() existe. O silêncio que ameaça a perso-
nagem é um recurso, urna técnica, para realçar o imperativo da
fala, a necessidade da narrativa como necessidade do proprio
viver. Nesse jogo de desgaste que se preenche a si mesmo, se
percebe como o tornar possivel o impossível venha a ser auten-
tica necessidade do homem. Como exprimir o inexpressivo seja
a sofrida gloria do escritor. Ou vice-versa, barthesianamente,
«inexprimir o exprimívelx...
Quern conseguiu falar essa magnifica verdade, dizer
sse sentido afônico da literatura, decerto maneja, corn mestria,
s instrumentos da expressäo, entre eles, a epifania, como um
seus mais eficazes procedimentos.
Clarice näo usa a epifania do vocabulo, em si mes-
, näo cria palavras-metaforas como Joyce. Seu caminho é
róprio. O questionamento que faz da linguagem nos levara, num
outro capitulo, esperamos, ao núcleo de sua escritura.

r 160
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS E NOTAS

1. Refere-se à epigrafe de Perto do coraçdo selvagem, retirada do livro


de Joyce Retrato do artista quando jovem, que focalizaremos adiante.
2. Lins, Alvaro. A experi[ncia incompleta: Clarice Lispector. In: Os
mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1963, p. 188.
3, 4. Levin, Harry. James Joyce: Introducción critica: traducción y notas
de Antonio Castro Leal. México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econo-
mica, 1959; Breviarios del Fondo de Cultura Economica, p. 26, 27. Nesse
sentido toda arte é epifdnica. Destacando a epifania na escritura de Cla-
rice Lispector, pretendemos provar que ela, conio Joyce, fez da epifania
um procedimento especffico, construido em linguagem, que sobressai em
relevo, nas camadas sensiveis de sua escritura.
5. Lins, Alvaro. Os mortos de sobrecasaca, p. 190.
6. Milliet, Sérgio. Diario critico. SP, Livraria Martins, 1946, 5° v., p. 41.
7. Milliet, Sérgio, op. cit., 1955, v. 10, p. 235.
8. Cf. Schwarz, Roberto. <Perto do coraçâo selvagem». In: A sereia
e o desconfiado, 1965, p. 39.
9. Moisés, Massaud. <Clarice Lispector: ficçâo e cosmovisâo». O Esta-
do de Sao Paulo. SP, 26 set. 70, 03 out. 70, Suplemento Literârio.
10. Lima, Luis Costa. <O engano da linguagem». In: Coutinho, Afrâ-
nio, Literatura no Brasil, v. V1, p. 452.
11. Simoes, Joâo Gaspar. <Clarice Lispector, inovadora do romance bra-
sileiro». In: Literatura, literatura, literatura... Lisboa, Portugâlia Edi-
tore, 1964, coleçâo Problemas, p. 314; antes publicado em 1961.
12. Nunes, B. O mundo de Clarice Lispector, p. 56.
13. Nunes, B. Clarice Lispector, p. 123.
14. Cf. Sant'Anna, Affonso Romano de. <Lagos de familia e Legiâo
estrangeira». In: Andlise estrutural de romances brasileiros, p. 209.
15. Littré, E. Dictionnaire de la langue française, verbete Epiphanie.
16. Bauer, Johannes B., Dicionario de Teologia Biblica; trad. de Hel-
muth Alfredo Simon. SP, Loyola, 1973, verbete Epifania.
17. Joyce radicou-se em Paris em 1920 e viveu na Franca até 1939;
de 1939 a 1941, voltou a residir na Suiça (Zurique), onde morreu.
18. D'Annunzio, Gabriele. <L'Epifania del fuoco». In: II fuoco; con
una cronologia della vita dell'Autore e dei suoi tempi, un'introduzione
all'opera e una bibliografia a cura di Giansiro Ferrata. Milano, Monda-
dori, 1975, p. 43.
19. Eco publicou estudos a respeito da estética de Joyce. Passamos a
elencar os que conhecemos e dos quais aqui nos servimos:
- Le poetiche di Joyce apareceu pela primeira vez na ediçâo italiana
de Opera aperta, Milano, Bompiani, 1962. A ediçâo que citamos intitula-se:
Le poetiche di Joyce: dalla Summa al Finnegans Wake, Milano, Bompiani,
1966. Esta ediçâo se diferencia da precedente so por retoques de forma
e alguma atualizaçâo bibliografica.
- Il problema estetico in Tommaso D'Aquino, seconda edizione riveduta
e accresciuta. Milano, Bompiani, 1970. 0 livro foi escrito como tese de
doutoramento, em Estética, em 1954 e editado em 1956. Segundo o proprio
Umberto Eco, no prefâcio, é um livro velho, nâo tanto pela data. quanto
porque constitui obra tipica de juventude. Atuais sâo a colocaçâo histo-
riogrâfica e as conclusties. Começou sua pesquisa em 1952, num espirito

161

1
de adesâo à metafisica tomista e As suas perspectivas teológicas; fez o
balanço delas, passando pela Estética. Afirma que a estética tomista nao
cessou de influenciar o pensamento contemporAneo. Joyce é o principal
exemplo de um escritor de vanguarda, que funda sua poética juvenil
sobre a estética escolàstica.
— «Sobre ma noçâo joyceana». In: Joyce e o escudo dos romances
modernos: traduçâo de S. Lemos, SP, ed. Mayo, 1974, p. 53-63.
20. Citamos pela ediçâo italiana de Pater, Walter. Il Rinascimento: a
cura di Mario Praz. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 1946, p. 248.
21. Cf. Pater, Walter, op. cit., p. 248.
22. Stephen Hero é o que resta da primeira autobiografia de Joyce. Ste-
phen é o sujeito e o objeto da narrativa, a qual cobre seus primeiros
anos na Universidade de Dublin. É o primeiro esboço do Retrato do Artis-
ta quando jovem redigido aos 19 ou 20 anos. Existe urna diferença muito
grande entre Stephen Hero e o Retrato, que foi publicado cerca de dez
anos mais tarde. Personagens e incidentes, que aparecem no primeiro,
foram suprimidos no segundo. A evoluçâo espiritual de Stephen é des-
crita de modo mais direto nesta obra, como nos diz Theodore Spencer,
na introduçâo à ediçAo inglesa. Embora Joyce tenha abandonado o ma-
nuscrito de Stephen Hero e o tenha considerado como «elocubraçdes de
um estudante», o livro tem especial interesse para nos. O termo epifania
que ai aparece é eliminado no Retrato.
23. Joyce, James. Stephen Hero: part of the first draft of A Portrait
of the Artist as a Young Man; edited with an introduction by Theodore
Spencer. London, Jonathan Cape, 1950, p. 188.
«A young lady was standing on the steps of one of those brown
houses which seem the very incarnation of Irish paralysis. A young
gentleman was leaning on the justy railings of the area. Stephen as he
passed on his quest heard the following fragment of colloquy out of
which he received an impression keen enough to afflict his sensitiveness
very severely.
The young Lady — (drawling discreetly) ... O, yes... I was... at
the cha... pel...
The young Gentleman — (inaudibly) ... I... (again inaudibly) ... I.. .
The young Lady — (sottly)... O... but you're.., ve... ry... wick... ed...
24. Joyce, J., op. cit., p. 188: «By an epiphany he meant a sudden
spiritual manifestation, whether in the vulgarity of speech or of gesture
or in a memorable phase of the mind itself. He believed that it was for
the man of letters to record these epiphanics with extreme care, seeing
that they themselves are the most delicate and evanescent of moments».
25. Joyce, J., op. cit., p. 189. «... I will pass it time after time, allude
to it, refer to it, catch a glimpse of it. It is only an item in the cata-
logue of Dublin's street furniture. Then all at once I see it and I know
at once what it is: epiphany».
26. Joyce, J., op. cit., p. 189. «Imagine my glimpses at that clock as
the gropings of a spiritual eye which seeks to adjust its vision to an
exact focus. The moment the focus is reached the object is epiphanised.
It is just in this epiphany that I find the third, the supreme quality
of beauty».
27. Cf. Joyce, J., op. cit., p. 189. «It is almost impossible to reconcile
all tradition where as it is by no means impossible to find the justifi-

162
cation of every form of beauty which has been adored on the earth
by an examination into the mechanism of esthetic aprehension...»
28. Wholeness, Harmony and Radiance.
29. Joyce, J., op. cit., p. 100. This is the moment which I call epi-
phany. First we recognise that the object is one integral thing, then we
recognise that it is an organized composite structure, a thing in fact:
finally, when the relation of the parts is exquisite, when the parts are
adjusted to the special point, we recognise that it is that thing which
it is. Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appear-
ance. The soul of the commonest object, the structure of which is so
adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany».
30. Cf. Eco, U., Le poetiche di Joyce, p. 25.
31. A Portrait of the Artist as a Young Man; with an Introduction &
Notes by Harry Levin. New York, The Viking Press, 1949, p. 478.
Usamos a traduçâo de José Geraldo Vieira, Civilizaçâo Brasileira, 1970,
p. 218. Fizemos-Ihe algumas pequenas alteraçóes.
'Stephen pointed a basket which a butcher's boy had slung inverted
on his head.
- Look at that basket, he said.
- I see it, said Lynch.
- In order to see that basket, said Stephen, your mind first of all
separates the basket from the rest of the visible universe which is not
the basket. The first phase of apprehension is a bounding line drawn
about the object to be apprehended. An esthetic image is presented to
us either in space or in time. What is audible is presented in time,
what is visible is presented in space. But temporal or spatial, the esthetic
image is first luminously apprehended as self bounded and selfcontained
upon the immeasurable background of space or time which is not it.
You apprehended it as one thing. You see it as one whole. You apprehend
its wholeness. That is integritas».
32. Cf. Eco, Umberto, op. cit., p. 40.
33. Joyce, J., op. cit., p. 46.
34. Joyce, J., op. cit., p. 479. «This supreme quality is felt by the artist
when the esthetic image is first conceived in his imagination. The mind
in that mysterious instant Shelley likened beautifully to a fading coal.
The instant where in that supreme quality of beauty, the clear radiance
of the esthetic image, is apprehended luminously by the mind which
has been arrested by its wholeness and fascinated by its harmony is the
luminous silent stasis of esthetic pleasure, a spiritual state very like to
that cardiac condition which the Italian physiologist Luigi Galvani, using
a phrase almost as beautiful as Shelly's, called the enchantment of the
heart» (Trad. de José Geraldo Vieira, p. 219).
35. Eco, U., op. cit., p. 49-50.
36. Cf. Eco, U., op. cit., p. 50, nota 49.
37. Levin, H., op. cit., p. 35.
38. Levin, H., op. cit., p. 36.
39. Levin, H., op. cit., p. 37.
40. Cf. Aubert, Jacques. Introduction à l'Esthétique de James Joyce.
Paris, Didier, 1973, p. 73. etudes Anglaises, 46.
41. Aubert, J., op. cit., p. 117.
42. Cf. Aubert, J., op. cit., p. 119, 124.

163
43. «When we come to the phenomena of artistic conception, artistic
gestation and artistic reproduction, 1 require a new terminology and a
new personal experience) (Joyce, J., A Portrait, p. 475).
44. Aubert, J., op. cit., p. 179.
45. Joyce, James. Dublinenses, 20 ed. revista pelo tradutor Hamilton
Trevisan. RJ, Civilizaçâo Brasileira, 1970.
46. «1 dreamt that I dwelt in marble halls
With vassals and serfs at my side,
And of all who assembled within those walls
That I was the hope and the pride.
I had riches too great to count; could boast
of a high ancestral name,
But I also dreamt, which pleased me most,
That you loved me still the same).
(Joyce, James, «Clay) in Dubliners, p. 117; <Argila» in Dublinenses,
p. 93. Cf. Levin, H., op. cit., p. 40).
47. «Grazing up into the darkness I saw myself as a creature driven
and derided by vanity; and my eyes burned with anguish and anger)
(James, J., <Arabia». In: Dubliners, p. 46; «Arabia). In: Dublinenses, p.27).
48. «He stood still in the gloom of the hall, trying to catch the air
that the voice was singing and gazing up at his wife. There was grace
and mystery in her attitude as if she where a symbol of something. He
asked himself what is a woman standing on the stairs in the shadow,
listening to distant music, a symbol of. If he where a painter he would
paint her in that attitude. Her blue felt hat would show off the bronze
of her hair against the darkness and the dark panels of her shirt would
show off the light ones. Distant Music he would call the picture if he
were a painter) (Joyce, James, <The Dead). In: Dubliners, p. 228-9; «Os
mortos). In: Dublinenses, p. 183-4).
49. «One by one, they were all becoming shades) (Joyce, J., «The dead),
in Dubliners, p. 241; <Os mortos), in Dublinenses, p. 194. Cf. Levin, H., op.
cit., p. 42).
50. A associaçâo com a sombria casa de Usher, do conto de Poe, se
impbe à mente do leitor.
51. To swoon = faint (desmaiar, desmaio)
To faint = lacking strength (desmaiar)
To fade = to sink away: vanish (murchar, dissolver-se)
Portanto swoon = faint = fade
soul = alma, identidade = living = vida
snow = neve = dead = morto
52. Svevo, Italo. «Urna visâo de Ulisses). In: Joyce e o romance mo-
derno, trad. J.C. Netto. SP, Ed. Documentos, 1969, p. 39.
53. Eco, U., op. cit., p. 48.
54. Levin, Harry. «Editor's Preface (Dubliners)». In: The Portable
James Joyce. New York, The Viking Press, 1949, p. 18.
55. Levin, H., op. cit., p. 18.
56. Campos, Haroldo de. «A obra de arte aberta). In: Teoria da poesia
concreta. SP, Duas Cidades 1975, p. 31.
57. Pignatari, Décio. <Poesia concreta: pequena marcaçâo histbrica). In:
Teoria da poesia concreta, p. 62.
58. Na primeira ediçâo do livro, a frase de Joyce esta colocada logo
abaixo do titulo do Cap. 1: «0 Pai). Clarice conta, em entrevista a Pedro

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Bloch: cFoi este o meu primeiro livro. Um dia, quis mostra-lo a Lúcio
Cardoso, mas nâo tinha o titulo. Quando Lúcio me ouviu dizer que, se
tivesse escrito uma frase que eu havia lido em Joyce, descansaria cinco
anos, perguntou: «Nessa frase nâo existe o titulo de seu livro?» Nâo
serve? Servia demais! Meu coraçao bateu de alegria. Mas isso foi dar a
maior pista falsa que você possa imaginar. Começaram a falar na in-
fluência de Joyce. Depois inventaram o negócio de Virginia Woolf, que
so fui ter muito depois. Guardadas as proporçbes, acho que temos em
comum certo preciosismo, mas a comparaçao me dói, porque sinto que
ela queria urna coisa que atingiu plenamente, e que eu quero tuna coisa
completamente diferente e que nâo atingi» (Manchete, RJ, 637: p. 99-101,
4 jul. 1964).
59. James, Joyce. The Portrait, p. 431-3. «A girl stood before him in
midstream, alone and still, gazing out to sea. She seemed like one whom
magic had changed into the likeness of a strange and beautiful seabird.
Her long slender bare legs were delicate as a crane's and pure save where
an emerald trail of seaweed had fashioned itself as a sign upon the
flesh. Her thighs, fuller and soft-hued as ivory, were bared almost to
the hips where the white fringes of her drawers were like feathering of
soft white down. Her slate-blue skirts were kilted boldly about her waist
and dovetailed behind her. Her bosom was as a bird's, soft and slight,
slight and soft as the breast of some dark-plumaged dove. But her
long fair hair was girlish: and girlish, and touched with the wonder of
mortal beauty, her face.
She was alone and still, gazing out to sea; and when she felt his
presence and the worship of his eyes her eyes turned to him in quiet
sufferance of his gaze, without shame or wantonness. Long, long she
suffered his gaze and then quietly withdrew her eyes from his and
bent them towards the stream, gently stirring the water with her foot
hither and thither. The first faint noise of gently moving water broke
the silence, low and faint and whispering, faint as the bells of sleep;
hither and thither, hither and thither; and a faint flame trembled on her
cheek.
— Heavenly God! cried Stephen's soul, in an outburst of profane joy.
He turned away from her suddenly and set off across the strand. His
cheeks were aflame; his body was aglow; his limbs were trembling. On
and on and on and on he strode, far out over the sands, singing wildly
to the sea, crying to greet the advent of the life that had cried to him.
Her image had passed into his soul for ever and no word had broken
the holy silence of his ecstasy. Her eyes had called him and his soul
had leaped at the call. To live, to err, to fall, to triumph, to recreate life
out of life! A wild angel had appeared to him, the angel of mortal youth
and beauty, an envoy from the fair courts of life, to throw open before
him in an instant of ecstasy the gates of all the ways of error and glory»
(Trad. de José Geraldo Vieira, p. 174-5).
60. (A bailarina feita
de borracha e passaro
dança no pavimento
anterior do sonho» (João Cabral de Melo Neto, «A bailarina», in:
O Engenheiro. Obras Completas, RJ, Sabia, 1968, p. 342).
61, 62. Sant'Anna, A.R. de. «Laços de famflia e Legiâo estrangeira».
In: Analise estrutural de romances brasileiros, p. 188.

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Capítulo V

Urna escritura
metaf órico-metafisica:
eixos do universo clariceano'

Saiu em agosto de 1973 a primeira ediçâo de


Agua Viva; sob o titulo, lê-se: ficçâo. Em 1974, Onde estivestes
de ,noite; sob o titulo, nada se lê. Serâo contos? Estórias? Textos?
Desde seu primeiro romance, Clarice Lispector percorreu um ar-
duo caminho. Entrevistada pela Revista Textura, disse: «Eu sou
aberta a qualquer experiência. Näo sei mesmo qual o meu futuro
literario. É o que vier».'
Clarice parece inaugurar nâo propriamente um con-
ceito novo, mas tema nova praxis de escritura, porque se esta é
original, o seu ponto de vista declarado a respeito do ato criativo
é o velho conceito de inspiraçâo: «Näo sigo nenhum plano, ne-
nhuma teoria. Eu trabalho sob inspiraçâo. Näo consigo obedecer
pianos, assim tomo näo consigo plane jar minha vida. Tudo me
vem impulsivo e compulsivo. Brota de mim».' «As vezes me
acontece de reescrever um texto, näo por senso critico, mas por
inspiraçäo, por sentir que algo näo vai bem, para movimentar a
coisa de novo».' «Eu reivindico para mim o direito de eu ter
nascido e me criado e de um dia eu morrer! Näo estou apren-
dendo liçóes senäo da vida»." Eis a declaraçâo. Mas a praxis,

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