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No

capitalismo
sobra
cada vez
mais gente

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Uma entrevista com
Anwar Shaikh

No capitalismo
sobra cada vez
mais gente

Tradução e Comentários de
Giovanni Alves

2023

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Projeto editorial Praxis é a editora da RET
(Rede de Estudos do Trabalho)
(www.estudosdotrabalho.net)

Copyright© Projeto editorial Praxis, 2023

Coordenador-geral: Prof. Dr. Giovanni Alves (UNESP)

Conselho editorial
Dr. André Luiz Vizzaccaro-Amaral (UEL)
Dr. Francsico Luiz Corsi (UNESP)
Dr. Giovanni Alves (UNESP)
Dr. José Meneleu Neto (UECE)
Dr. Renan Araújo (UNESPAR)

ISBN 978-65-84545-11-3

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capitalismo
sobra mais
gente

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Sumário
Entrevista
“No capitalismo sobra
cada vez mais gente”
ANWAR SHAIKH.................................11

Comentários
GIOVANNI ALVES...............................55

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Entrevista
Anwar Shaikh

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Quais são as semelhanças e diferenças
na dinâmica das duas últimas grandes
crises do capitalismo (a da década de
1930 e a da década de 1970) e quais
foram as respostas do capitalismo ?1

D eixe-me começar com as semelhanças.


Acho que a semelhança fundamental é que
ambas as crises são o resultado das mesmas
forças que estão profundamente enraizadas
no sistema capitalista, afirmando-se apesar
de estruturas institucionais muito diferentes.
Argumento que essas forças têm a ver com
os efeitos sobre a acumulação de lucrativi-
dade, especificamente com o fato de que a
acumulação do capital é impulsionada por
perspectiva de lucratividade, o que é feito
no contexto da mudança tecnológica. Isso
está minando a lucratividade, diminuindo
a taxa de lucro e, finalmente, empurrando

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o sistema para um período de crise. Em
um período de crise como este, uma das
primeiras reações das empresas e até dos
governos é tentar gastar com déficit para
sair da crise com sucesso. Isso pode ter o
efeito de mascarar a profundidade da crise e
até mesmo revertê-la temporariamente por
meio dos efeitos do crédito bancário, criando
assim um boom fictício. Foi o que aconte-
ceu no capitalismo desenvolvido no final
dos anos 1920, especialmente no mercado
de ações, onde as pessoas podiam especular
tomando empréstimos lastreados em ações
que podiam comprar graças às margens de
lucro que a operação dava. Isso pode ser feito
com grande sucesso quando o mercado está
subindo, mas é fatal quando o mercado está
caindo. Eventos semelhantes ocorreram nos
Estados Unidos e em todos os países capita-
listas avançados nas décadas de 1970 e 1980.
Sabemos que houve um grande aumento da

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dívida, em particular um grande aumento
no gasto financeiro deficitário que levou a
um grande aumento na dívida. Sabemos
que esse enorme acúmulo de dívidas deu
uma saúde fictícia ao sistema, que quase
foi destruído pelo crash da bolsa de 19872.
Precipitou um colapso da economia produ-
tiva e do sistema bancário, em que todos os
principais governos do mundo intervieram
imediatamente para evitar que o crash da
bolsa causasse o colapso do sistema bancário,
tendo em vista que isso levaria ao colapso
do sistema produtivo. Continuando com
as semelhanças, o problema é saber se a
crise é marcada por um choque, por um
colapso (como ocorreu em 1929); ou se ela
se estende por um longo período sem um
colapso pontual, como aconteceu nas déca-
das de 1970 e 1980; assim como nas décadas
de 1870 e 1880, período que foi conhecido
na época como “a Grande Depressão”.

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É importante
conhecer os
períodos
históricos para
não associarmos
grandes depressões
apenas a colapsos
semelhantes a
choques.

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De qualquer forma, independentemente
de se desenvolver abruptamente ou lenta-
mente, a situação é caracterizada por
um aumento acentuado do desemprego,
aumento tremendo das desigualdades de
renda, uma queda muito grande no padrão
de vida dos trabalhadores e da população
em geral; um declínio da renda da terra
e dos preços das ações quando ajustados
pela inflação; um grande aumento nas
falências de negócios e um aumento nas
falências de bancos. Vemos essas carac-
terísticas nas três Grandes Depressões: a
Grande Depressão de 1873 a 1893, quase
exatamente 100 anos após a atual Grande
Depressão; a Grande Depressão dos anos
1920, 1930 e 1940; e, claro, argumen-
tarei que a Grande Depressão dos anos
1970, 1980 e 1990 deste século também
é a Grande Depressão3.

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Estamos, então, no meio de uma
Grande Depressão?

Nós estamos em uma Grande Depressão,


eu diria desde a década de 1970. Há alguma
evidência de que há um boom nas econo-
mias capitalistas hoje. Então o problema
é saber se estamos nos recuperando disso.
De qualquer forma, estamos em uma
Grande Depressão há vinte anos (1978-
1998). Você deve entender que, em cada
caso, estou me referindo aos países capita-
listas avançados, porque é aí que reside o
cerne do problema. É mais fácil falar sobre
a Grande Depressão no Terceiro Mundo,
mas quero me concentrar na parte mais
difícil, o núcleo orgânico da crise. Vejamos
agora o problema das diferenças: uma
diferença clara que caracterizou o período
do pós-Segunda Guerra Mundial é a
extensão da intervenção estatal. Existe,

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por exemplo, uma enorme regulação e
intervenção estatal em todo o sistema
financeiro e bancário em todos os países
capitalistas avançados. Esta intervenção
foi precisamente consequência da expe-
riência da Grande Depressão dos anos
1920 e 1930. Isto significa que o Estado
tem procurado estabelecer regras que
limitem a sensibilidade do sistema bancá-
rio de forma a evitar um colapso do tipo
choque. Isso não impediu o colapso do
sistema bancário. Sabemos que em países
como Estados Unidos, Japão e outros, as
falências e colapsos de bancos estão em
seu ponto mais alto desde a última Grande
Depressão. Por exemplo, o mercado de
ações japonês quebrou no início dos anos
1990, em termos reais ajustados pela infla-
ção, mais do que o mercado de ações dos
Estados Unidos em 1929.

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A diferença é que o
crash do mercado
de ações de 1929 foi
muito mais abrupto,
enquanto as quedas
do mercado de
ações das décadas
de 1970 e 1980 se
espalharam por
um período de
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aproximadamente
doze anos. Uma
das razões para
isso acontecer é
que havia muito
mais crédito, o
que impulsionou o
sistema à custa de
um grande aumento
da dívida.
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Isso por si só levaria a uma situação muito
perigosa, mas em todos os países capitalis-
tas avançados o Estado apoiou o sistema
bancário criando reservas, diretamente ou
incorrendo em enormes déficits. A segunda
diferença é a intervenção do Estado nas
empresas. Sabemos que ao longo da histó-
ria as grandes empresas faliram e também
os grandes bancos, que chegaram a falir
nas décadas de 1970 e 1980 em todos os
países capitalistas avançados. Vimos que o
Estado interveio para evitar essas quedas,
principalmente pelo perigo de se espalha-
rem para outras empresas. Todo jornal
de negócios está cheio dessas histórias
das últimas duas décadas. A terceira dife-
rença é o grau de extensão do Estado em
relação ao movimento operário.Sabemos
pela experiência que antecedeu à Grande
Depressão que muitas políticas que agora
são conhecidas como os alicerces do Estado

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de bem-estar foram postas em prática, em
parte por causa do risco político represen-
tado pelo desemprego em massa. Agora,
quando o desemprego aumenta, temos
coisas como seguro-desemprego e progra-
mas de auxílio-desemprego. E esses fatores
foram importantes para permitir que a crise
se estendesse no tempo e sem chegar a um
colapso abrupto ou a uma revolta popular.
Acho que essa é uma das grandes diferen-
ças entre o período atual e o anterior. Mas o
custo dessas diferenças tem sido um grande
aumento da dívida, já que a dívida é usada
para prevenir e encobrir as consequências
da crise, e isso naturalmente leva ao atual
momento de crise.

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Quais as perspectivas da crise capitalista?
O século XXI será um século de expansão
do capitalismo?4

Eu tenho algumas estatísticas muito


interessantes e dados de longo prazo que
eu poderia mostrar a você, e alguns que
seguem muito de perto as longas ondas
Kondratiev em diferentes países capitalistas
avançados. Essas estatísticas, e especial-
mente a mais importante para a economia
capitalista - que é a que indica o aumento
dos lucros - mostram uma virada ascen-
dente no crescimento dos lucros. Mas isto
não beneficia os trabalhadores, porque
sabemos que este crescimento do lucro
anda de mãos dadas com a redução da força
de trabalho, o que tornava a empresa mais
eficiente, exatamente o que Marx chamava
de concentração e centralização do capital.

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O capitalismo não
é regulado pelos
interesses dos
trabalhadores, mas
pelos interesses
do capital, então
só podemos julgar
se houve uma
recuperação do
ponto de vista do
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capital; e aqui
claramente, nos
últimos anos, nos
países capitalistas
avançados, houve,
de fato, uma
recuperação da
lucratividade.

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Aqui surge a pergunta: é uma recupera-
ção verdadeira ou falsa tendo em vista que
existe uma dívida enorme no sistema. Não
me refiro apenas à dívida do Estado e do
capital privado, mas também ao enorme
endividamento das famílias. Nunca antes
na história da humanidade tantas pessoas
puderam gastar tanto por tão pouco. Acho
que não tem ninguém aqui que não esteja
devendo dinheiro por ter feito uma compra
a prazo. Dificilmente se passa uma semana
em Nova York, onde moro, que eu não
abra meu e-mail e me depare com uma
oferta de um novo cartão de crédito, e as
empresas ou bancos que oferecem não me
perguntem nada, apenas tem que dizer sim.
Sabemos que muitas pessoas, na luta pela
sobrevivência, se endividaram e, claro, essa
dívida é uma fonte de demanda efetiva,
mas na verdade é uma bolha de demanda
efetiva. Não está claro como essa bolha

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pode se sustentar, porque por um lado
está criando demanda que infla os lucros,
mas por outro lado não está aumentando
o emprego em ritmo acelerado e, portanto,
a base da bolha, que é a renda da força de
trabalho que não está aumentando o sufi-
ciente para fechar a lacuna.

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Um resultado
possível de tudo
isso é que a bolha
de demanda efetiva
estoure na medida
em que as pessoas
de repente vejam
que seu futuro é
sombrio em termos
de emprego, e de
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repente, elas podem
simplesmente
parar de tomar
empréstimos
ou ir à falência
e, portanto, os
bancos reduziriam
rapidamente a
concessão de
cartões de crédito
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e até empréstimos.
Então a base fictícia
do boom de lucros
viria à tona.

Acho que não é fácil prever isso, porque


muito depende de como o Estado intervém
para lidar com essa situação, mas gostaria
de destacar que aproximadamente a cada
dois meses no Wall Street Journal e em
geral na imprensa econômica especializada,
há um artigo ou análise alertando sobre o
possível colapso do sistema financeiro, não
tanto pela situação dos Estados Unidos, mas
pela péssima situação financeira do Japão.

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O Japão teve a maior bolha de ações e
imóveis de qualquer país capitalista, e essa
bolha começou a desinflar na década de
1990. Isso colocou muitos bancos japone-
ses, fundos de pensão e fundos mútuos em
sério risco. Voltando às estatísticas de longo
prazo, descobriremos que há períodos seme-
lhantes de ascensão nas ondas longas que
se revelaram falsas. Um exemplo clássico
foi em 1937 nos Estados Unidos, quando
houve um crescimento muito rápido dos
lucros e da produção, e então veio o crash
de 1939, do qual o capitalismo conseguiu
emergir com a Segunda Guerra Mundial.
Portanto, não posso dizer que estou otimista,
mas certamente é uma situação que merece
um estudo mais aprofundado.

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Quais as possibilidades de investimento
dos países capitalistas avançados na
China ou nos países da antiga “órbita
socialista”?

Em primeiro lugar, gostaria de abor-


dar a questão do impacto da abertura do
mercado. Numa perspectiva superficial,
pode parecer que o mercado chinês ou
do Leste Europeu é - para cada capitalista
individual - a possibilidade de expansão
de mercado. Mas, do ponto de vista do
sistema como um todo, isto é, em grande
parte, uma ilusão, porque sabemos que os
países capitalistas avançados estão pagando
por esses mercados por meio de ajuda
externa e apoio ao investimento ou, pelo
menos no caso do Leste Europa, estes estão
sendo pagos com enormes déficits fiscais
porque suas próprias economias estão
entrando em colapso. Isso nos lembra um

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princípio elementar do comércio interna-
cional: nenhum país pode comprar mais
do que vende, a menos que se endivide.
Ou se endivida com o comprador, caso
em que ele está pagando, ou aumenta sua
dívida interna para isso.

O crédito não pode impulsionar a


produção em uma escala maior do
que antes?

Sim, essa é a questão. O crédito sustenta a


acumulação capitalista, mas a acumulação
capitalista nunca seria sustentável por si só,
a menos que a taxa de lucro fosse saudá-
vel. Mas este tipo de suporte de crédito é
limitado pelo enorme aumento da dívida
e nunca pode ser a causa verdadeira da
recuperação, embora possa ser uma ajuda
importante para ela. Por isso acredito que
a questão dos mercados externos não pode

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ser considerada uma solução para a crise
na medida em que se trata de demanda
efetiva, mas pode ser um instrumento que
ajuda na recuperação. Isso só acontecerá se
a China e os ex-países soviéticos [do Leste
Europeu] comprarem mais do Ocidente do
que o Ocidente compra deles. Por quanto
tempo eles podem fazer isso? Na verdade,
os chineses dizem que não querem fazer
isso. Eles olham para o Leste Europeu e
dizem claramente que não querem estar
nessa situação. Tem outro aspecto que você
mencionou, que é muito importante e tem
uma implicação bem diferente: os enor-
mes pools de força de trabalho barata na
China e no Leste Europeu têm um grande
potencial de recuperação de lucros. Para
um capitalista individual isso é claro, mas
a questão é que efeito isso tem sobre os
países de origem do capital, na medida
em que um aumento do desemprego nos

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países mais avançados ou pelo menos
uma queda no crescimento do emprego
não é compensado com investimento
porque você está indo para o exterior. Isso
desacelera o crescimento do mercado e é
justamente o que busca o capital que vai
para o exterior. Não me refiro necessaria-
mente à China, pode ser a América Latina,
por exemplo, no contexto do NAFTA.Um
grande número de empregos é perdido
nos Estados Unidos devido à transferên-
cia para o México, onde é produzido mais
barato, mas ao mesmo tempo o mercado
norte-americano é reduzido. Claro, para
um capitalista individual não há escolha,
porque se ele não sair, a concorrência os
liquidará, mas para o sistema como um
todo isso pode criar outros problemas.
Alguns estudos sobre as regiões que fazem
parte do acordo do NAFTA5 concluem que
a redução do emprego pode ser alcançada

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nos três países: Estados Unidos, Canadá e
México, porque a mobilidade do capital
avança e avança à medida que aumenta a
centralização e a concentração do capital.

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Você disse que o capitalismo tem que
ser avaliado do ponto de vista do
capital, mas parece que nos últimos
anos, o crescimento do desemprego
não impediu que o crescimento dos
lucros e do produto. O capitalismo
poderia estar crescendo enquanto o
desemprego aumenta?

Eu acho que essa é uma questão muito


importante porque afeta o futuro do
mundo capitalista. Claro, para cada capita-
lista individual o que conta é o seu próprio
lucro - se eles precisarem demitir 30% de
sua força de trabalho, eles o farão. Mas
é claro que, do ponto de vista social, isso
levanta uma questão: para onde vão todos
os trabalhadores demitidos?

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Acho que se
olharmos para
a história do
capitalismo, se
traçarmos no
mapa uma linha
com os limites do
capitalismo em
um período de
tempo, veremos
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que inicialmente
a área delimitada
por esses limites
seria pequena, mas,
com o passar do
tempo, essa área
cresceria e agora
possivelmente
cobriria todo o
globo, com exceção
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de pouquíssimos
países como Cuba.
Se eu perguntasse quantos estão desem-
pregados dentro desses limites, acho que
o número que poderíamos ver seria o
seguinte: no início, o capitalismo cria muito
desemprego, porque desloca campone-
ses e artesãos que não são competitivos,
pessoas que perdem o acesso à terra e coisas
assim. No entanto, também no início, o
capitalismo está crescendo muito rápido
e, portanto, em uma ou duas gerações
consegue empregar os filhos dos campo-
neses e artesãos deslocados. Mas à medida
que o capital se espalha para outras áreas
do mundo na forma de colônias, ele opera
o mesmo efeito duplo. Em países como

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a Índia, cria desemprego por desloca-
mento, mas também cria por outro lado,
na medida em que se expande, empregos.
Basicamente nas colônias, os efeitos foram
limitados pelo próprio limite do desenvol-
vimento do capital. Mas à medida que o
capitalismo se expande para essas áreas e
as transforma em países capitalistas, encon-
tramos esse fenômeno característico do
desemprego na periferia. Acho que com
o tempo esse desemprego cresceu muito,
porque as possibilidades de crescimento
do capitalismo foram diminuindo, não
tanto pelo crescimento da produção, mas o
crescimento dos empregos. Porque, como
sabemos, o grau de emprego depende do
grau de mecanização do trabalho - há
quem estime que hoje [em 1998], nos
países avançados, três em cada quatro
postos de trabalho poderiam ser eliminados
por computadores e robôs, e não falamos

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apenas sobre trabalhos simples aqui, mas
empregos altamente qualificados. Existem
computadores que já podem diagnosticar
doenças em pacientes, robôs que podem
realizar operações cirúrgicas em pacientes
e alguns robôs que já são projetados para
realizar cirurgias de precisão. E como sabe-
mos, o ensino pode ser feito por meio de
computadores e da Internet. Temos assim
a perspectiva possível de uma recuperação
dos setores capitalistas que sobreviverem à
competição, e ao mesmo tempo, um alar-
gamento do desemprego da periferia para
o centro. E muitos observadores atentos
da situação atual concordam que as pers-
pectivas são muito ruins.

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Na perspectiva marxista, como isto
influencia o movimento operário hoje
e como ele se diferencia daquele do
inicio do século XX?

Acho que na maioria dos países capita-


listas avançados, a classe trabalhadora não
entende que sua reação a isso até agora foi
mal-sucedida. Eu acredito claramente que
o colapso dos países da URSS e do bloco
soviético [em 1991] indicou claramente
que esta forma de superar o capitalismo,
falhou. Quaisquer que sejam as razões, é
claro que falhou. Mas, de qualquer forma,
também é claro que as causas que levaram
a essa tentativa de ir além do capitalismo
permanecem e são ainda piores do que
antes. A questão que se coloca é:

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por quanto tempo a
classe trabalhadora
pode suportar essas
condições? E isso
depende, em última
análise, das forças
políticas que a
classe trabalhadora
pode reunir.

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No momento, as coisas não estão certas,
não soam bem, não parecem boas, porque
o poder da ideologia de mercado é muito
forte, mas se o que estou dizendo sobre as
tendências do sistema de mercado estive-
rem corretas, então esses problemas não
são vão desaparecer e vemos isso com
muita clareza já nos países do antigo bloco
oriental e na China, onde é o Estado que
está empurrando o capitalismo da mesma
forma que faziam antes com o socialismo.
Há uma implicação importante disso - é
o terrível fato de que as pessoas come-
çam a ser redundantes dentro do sistema
capitalista. Mais e mais pessoas estão se
tornando redundantes sob o capitalismo
e isso traz à tona a enorme necessidade de
controle populacional6. Dizem-nos, repe-
tidas vezes, que o motivo de controlar o
crescimento populacional é reduzir a pres-
são sobre os recursos, mas, na verdade, há

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um tremendo uso de recursos nos países
centrais, pois sabemos que cada norte-a-
mericano ou europeu consome dez vezes
mais muitos recursos como qualquer outra
pessoa. Se você imaginar um mapa do
mundo em que a densidade populacional
não é medida pelo número de habitantes,
mas pela intensidade do uso de recursos
por cada pessoa, ou seja, em última análise,
a população de recursos ponderada pelo
uso, vemos que o problema de superpopu-
lação está no centro do capitalismo. E isso,
de novo, muitos reconhecem. Entretanto,
isso não cria um movimento político muito
forte nos países capitalistas do centro. Mas
ao mesmo tempo, é uma questão da qual
não podemos fugir.

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Depois do que você disse até agora, é
válido pensar em uma alternativa ao
sistema capitalista de tipo socialista,
diferente do que aconteceu na URSS?

Acho que faz muito sentido e é muito


importante apontar essa solução socialista,
mas também é claro que quando usamos a
palavra “socialismo” não devemos confun-
di-la nos marcos do passado. Não podemos
pensar em um socialismo em que o povo
esteja aprisionado dentro do socialismo,
porque assim perderemos a luta ideoló-
gica com o capitalismo. Sob o capitalismo,
a prisão é mais branda, pois para a maioria
das pessoas existe uma rede de conexões
que as mantém informadas, e isso é parti-
cularmente verdade no mundo capitalista
avançado, mas também é verdade para
alguns países do Terceiro Mundo. Se quere-
mos propor um socialismo credível, deve

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basear-se no poder das pessoas decidirem
sobre as suas próprias vidas e que as pessoas
tenham a possibilidade de abandonar a
experiência do socialismo se não gosta-
rem. No momento não temos um modelo
credível de algo semelhante, mas temos
experiências sociais em muitas partes do
mundo onde muitas pessoas estão tentando
criar comunidades alternativas e acho
muito importante estudarmos isso para
aprender as lições . Não quero dizer que
tudo tem que passar pelo parlamento,
mas acho que temos que ter imaginação
visando enfrentar os erros do passado sem
subterfúgios.

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Notas

1
Como a entrevista foi feita em 1998, Anwar
Shaik não tinha ainda presenciado as crises
de 2000 e a de 2008, a maior delas, compará-
vel à de 1929. De acordo com o economista
Michael Roberts, por conta do crash global de
2008, o capitalismo entrou na sua “terceira
longa depressão”, sendo as duas primeiras a de
1873 e a de 1929 (Roberts, 2016). Em 2010,
Shaik escreveria na Socialist Register, o ensaio
“A primeira grande depressão do século XXI”.
Ele começaria seu texto afirmando de forma
categórica: “A crise econômica geral que foi
disseminada pelo mundo em 2008 é a Grande
Depressão”.

2
O crash da bolsa de 1987 ou a segunda-feira
negra de 1987 refere-se ao dia 19 de outu-
bro de 1987, marcado pela queda de 22.61%
do índice Dow Jones, que mede a variação

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média do preço das ações negociadas a New
York Stock Exchange (Bolsa de Valores de
Nova Iorque), em Wall Street, bem como de
outros índices ao redor do mundo.[1][2] Na
Austrália, o dia é referido como Terça Feira
Negra, devido a diferença de fuso horário.
No final de 1985 e no início de 1986 a econo-
mia dos Estados Unidos começou a se alterar,
de uma rápida recuperação de uma recessão
nos anos 1980 para uma expansão mais lenta,
enquanto o Dow avançava significativamente.
Em 1986 o colapso da OPEC levou a insta-
bilidade financeira e o Dow caiu, em 14 de
outubro de 1987, 3,8% (então um recorde),
e 2,4% no próximo dia. Nos dias 15 e 16 de
outubro de 1987, o Irã atacou navios-petro-
leiros dos EUA no Kuwait, enquanto que os
mercados financeiros de Londres fecharam
mais cedo devido à grande tempestade de 1987.
A quebra dos mercados começou na manhã
do dia 19 de outubro, no mesmo dia em que

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1.indb 49 10/02/2023 12:33:27


mais petroleiros americanos foram atingi-
dos, com uma queda dos preços dos índices
ao redor do mundo. Ao final de outubro, os
mercados de Hong Kong, Austrália, Espanha,
Reino Unido, Estados Unidos e Canadá haviam
caído 45,5%, 41,8%, 31%, 26,45%, 22,68% e
22,5% respectivamente. O mercado da Nova
Zelândia foi atingido mais gravemente, caindo
60%, levando vários anos para se recuperar.

3
Anwar Shaik concebe a recessão global de
1973-1975 como dando origem a terceira
Grande Depressão capitalista, tal com o ocor-
reu em 1873 e 1929. Para ele (em 1998), desde
a década de 1970 o capitalismo tardio não
conseguiu recuperar o crescimento susten-
tável do PIB por um longo período tal como
ocorreu, por exemplo, após a Segunda Guerra
Mundial. As depressões (crises prolongadas)
se distingue das recessões (crises pontuais) por
serem períodos da economia caracterizado pela

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1.indb 50 10/02/2023 12:33:27


instabilidade financeira e econômica, desace-
leração e recessões da economia.

4
Lembremos que a entrevista com Anwar
Shaik foi concedida em 1998.

5
O NAFTA é um bloco econômico denomi-
nado de “Tratado Norte-Americano de Livre
Comércio” (em inglês North American Free
Trade Agreement) que entrou em vigor no
ano de 1994. Este Tratado vigou até julho
de 2020 quando foi substituído pelo Acordo
Estados Unidos-México-Canadá, USMCA, em
sua sigla em inglês.

6
A pandemia de 2020 e a crise sanitária perma-
nente com excessos de óbitos em vários países
capitalistas, é a grande oportunidade para o
capital operar a nova eugenia social. Este é o
verdadeiro the great reset (expressão de Klaus
Schawab, do Fórum Econômico Mundial, de

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1.indb 51 10/02/2023 12:33:27


Davos/Suiça) que o capitalismo global está
aproveitando para a “redução” do excedente
populacional sobrante no século XXI.

1.indb 52 10/02/2023 12:33:27


Comentários
Giovanni Alves

1.indb 53 10/02/2023 12:33:27


1.indb 54 10/02/2023 12:33:27
A entrevista de Anwar Shaikh intitu-
lada “En el capitalismo cada vez sobra más
gente” foi concedida em maio de 1998 a
Néstor Collazo, Juliano Varam e Mariano
Cristófaro, com a colaboração do econo-
mista argentino Rolando Astarita. Anwar
Shaik é um importante economista hetero-
doxo paquistanês-estadunidense na tradição
da economia política clássica e da economia
marxista. Ele é professor de Economia na
Faculdade de Pós-Graduação em Ciências
Sociais e Políticas da New School for Social
Research em Nova York, onde leciona desde
1972. O título original desta entrevista diz
respeito àquilo que consideramos como
sendo a problemática fundamental do
capital no século XXI: o que fazer com a
multidão de “inúteis” ou pessoas redundan-
tes, improdutivas e envelhecidas que devem
compor as sociedades capitalistas centrais

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1.indb 55 10/02/2023 12:33:27


e periféricas do século XXI? O fardo dos
“improdutivos” deve aumentar neste século,
não apenas nos países do capitalismo perifé-
rico, mas nos países do capitalismo central.
Na era da superexploração do trabalho e da
produção da mais-valia relativa e absoluta,
aumentam não apenas os “improdutivos” –
a força de trabalho nos setores dos serviços,
comércio e da administração pública, mas
também os “inúteis” ou os “excluídos” do
circuito do capital global que não tem utili-
dade enquanto capacidade de trabalho para
o capital. Em sua fase de crise estrutural, o
capital é incapaz de promover o processo
civilizatório (o desenvolvimento social e o
trabalho digno).
Iremos tratar aqui de três questões que
consideramos relevantes para a discussão
sobre o futuro da humanidade proletá-
ria: Assim, trataremos da (1) questão da
superpopulação relativa estruturalmente

56

1.indb 56 10/02/2023 12:33:27


redundante na fase atual de capitalismo
senilizado; depois, abordaremos - de modo
sintético, (2) a questão da ascensão e crise
do capitalismo global e do reordenamento
da hegemonia do imperialismo dos EUA;
e por fim, (3) o problema da periodização
histórica do capitalismo global, isto é, o
capitalismo histórico que emergiu da crise
da década de 1970. A periodização histó-
rica vai ser construída a partir da evolução
da taxa de lucros nos EUA, o país capita-
lista mais importante do mundo.

O que fazer com os “inúteis” ?

Os “inúteis” são a camada da classe


social proletária descartada pela concor-
rência e condenada à marginalidade social.
Eles são irrelevantes como produtores e
como consumidores. Foram tornados
“inúteis” pela automação e robotização

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1.indb 57 10/02/2023 12:33:27


(ou Intelgiência Artificial) do processo de
trabalho. Eles são as “pessoas sem valor”
desvalorizadas pelo sistema do Lucro
(Piqueras, 2018). Tendo em vista o nível
de desenvolvimento da produtividade do
trabalho, tais pessoas “inúteis” não encon-
tram mais uma inserção digna no interior
do sistema produtor de mercadorias. Os
“inúteis” são a “humanidade excedente”
do Planeta Favela (Davis, 2006); ou ainda,
a força de trabalho vivo redundante debili-
tada pelos adoecimentos físicos e mentais.
O capitalismo em sua etapa de auto-
reprodução destrutiva tornou-se uma
“máquina de produzir “inúteis”. A crise
de desenvolvimento da economia capita-
lista neoliberal desde 2008 e a pandemia
do novo coronavírus de 2020 tem produ-
zido um mundo de pessoas adoecidas (física
e mentalmente). Esta é a era da bárbarie
social. Elevou-se num patamar superior,

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1.indb 58 10/02/2023 12:33:27


o processo de destruição da capacidade
produtiva de trabalho da superpopula-
ção excedente - fisica e mental-cognitiva.
O capital manipulatório produz “zumbis
mentais”.
A pandemia da covid-19 foi o evento
histórico fundamental do século XXI. Na
perspectiva do sociometabolismo do capi-
tal, ela tornou-se o marco histórico deste
século. Diferentemente da longa depres-
são da economia capitalista (a partir de
2008); e da guerra na Ucrânia entre Rússia
e EUA-OTAN iniciada em 2022, a pande-
mia da covid-19, tornou-se funcional ao
sistema global produtor de mercadoria.
Ela opera a “lei de utilização decrescente”,
uma das determinações cruciais que estão
na raiz dos desenvolvimentos capitalistas
modernos (Mészáros, 2014). Esta lei dinâ-
mica do capital (a taxa decrescente de uso)
é em última instância, “devastadora” pois

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1.indb 59 10/02/2023 12:33:27


produz um mundo de pessoas “inúteis”
para o capital. No movimento do capita-
lismo catastrófico, o processo de produção
destrutiva do trabalho vivo tornou-se tão
necessário para o capital, quanto a explo-
ração e a superexploração da força de
trabalho. O capital global é destruitivo
- por natureza (literalmente). A auto-re-
produção destrutiva da força de trabalho é
necessária para o capital na medida em que
produção e reprodução social são proble-
mas interligados. Para além da produção
e da “destruição criativa” que caracteri-
zou o capital em sua etapa de ascensão
histórica (Schumpeter), o movimento do
capital em sua etapa de crise estrutural, é
o movimento da “produção destrutiva” da
sociedade humana (objetividade e subjeti-
vidade da classe do trabalho vivo).
Existe uma mudança qualitativamente
nova no sistema global do capital por conta

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1.indb 60 10/02/2023 12:33:27


do salto tecnológico ocorrido desde o fim
da Segunda Guerra Mundial. A terceira
revolução técnico-cientifica tornou obso-
leto, em termos relativos, o trabalho vivo
face à exuberante composição orgânica
do capital intensiva em trabalho morto.
Por conta disso, “sobra mais gente” nas
sociedades capitalistas na medida em que
o sistema do Lucro é movido pela valoriza-
ção do valor sob o chicote da concorrência
e do aumento alucinante da produtividade
do trabalho.
A exacerbação das contradições internas
do sistema de produção de mercadorias,
fez com que o capital efetuasse – desde a
década de 1970 - o deslocamento efusivo
de suas contradições internas, reestrutu-
rando-se e reorganizando-se em termos
globais. É o que presenciamos há pelo
menos meio século na era do capitalismo
global. O desenvolvimento da expansão do

61

1.indb 61 10/02/2023 12:33:27


mercado mundial, a desmedida (e a supras-
sunção) do valor em termos globais, expõe
uma mensagem trágica: os humanos torna-
ram-se obsoletos. As sociedades de mercado
organizadas pela lógica da valorização do
valor na etapa da crise estrutural do capi-
tal, são “sociedades pós-humanas”. Este é
o significado supremo da barbárie social.
Em sua entrevista, Anwar Shaik salien-
tou que as margens de manobra do capital
ou “os limites do capitalismo”, diminuíram
historicamente, embora isso não signifi-
que o “fim do capitalismo”. Pelo contrário,
enquanto houver capitalismo e crescimento
do PIB - mesmo em patamares mínimos
- haverá desenvolvimento do sistema do
poder imperialista garantindo a susten-
tação da exploração e da dominação do
capital. A história é a história da lua de
classes – e nada mais. As contradições do
capital são objetivas. O crescimento da

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1.indb 62 10/02/2023 12:33:27


produção capitalista e o desenvolvimento
da acumulação do capital, não tem signifi-
cado crescimento do emprego ou melhoria
da qualidade de vida das pessoas. Pode-se
aumentar o PIB e fazer crescer a taxa de
acumulação e inclusive a taxa de lucro em
termo relativos, mas a situação da classe
trabalhadora e da sociedade humana nos
paises capitalistas, degradou-se de forma
cumulativa.
Shaikh observou que as possibilidades de
crescimento do capitalismo implicam cada
vez mais acumulação de capital sem o cres-
cimento dos empregos. Diz ele: “Porque,
como sabemos, o grau de emprego depende
do grau de mecanização do trabalho”. Esta
é uma tendencia estrutural do desenvol-
vimento do capitalismo. O aumento da
produtividade do trabalho por meio da
mecanização, automação e robotização,
isto é, da produção da mais-valia relativa

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1.indb 63 10/02/2023 12:33:27


- significam mais produção com menos
empregos. Disse ele (em 1998), que “há
quem estime que hoje, nos países avança-
dos, três em cada quatro postos de trabalho
poderiam ser eliminados por computado-
res e robôs, e não falamos apenas sobre
trabalhos simples aqui, mas empregos alta-
mente qualificados”. Não se trata apenas
da migração de empregos dos EUA para
a Ásia tal como ocorreu com a nova divi-
são internacional do trabalho a partir da
década de 1970 e a globalização da década
de 1990, mas objetivamente, a redução do
emprego na indústria (e nos serviços capi-
talistas), tem acompanhado o aumento da
produtividade do trabalho no centro e na
periferia do sistema. O desenvolvimento
da Inteligência Artificial ou dos algorit-
mos, alavancaram o poder do capital em
propiciar a automatização e robotização
dos processos de trabalho. Shaikh observou:

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1.indb 64 10/02/2023 12:33:27


“Existem computadores que já podem diag-
nosticar doenças em pacientes, robôs que
podem realizar operações cirúrgicas em
pacientes e alguns robôs que já são proje-
tados para realizar cirurgias de precisão.
E como sabemos, o ensino pode ser feito
por meio de computadores e da Internet”.
O espectro do desemprego estrutural de
fundo tecnológico se expressa, por exem-
plo, em dois movimentos do capital global:
a ampliação da economia do trabalho precá-
rio [Gig economy]; e os empregos de baixa
qualidade [Bad Jobs]. Eles são a expressão
da senilidade do capitalismo tecnológico
sob o “salto mortal” da produtividade do
trabalho.
A crise de 2008 refuncionalizou a barbá-
rie social por meio do salto tecnológico das
plataformas digitais (o dito “capitalismo
de plataforma”). Internet, redes sociais e
a ascensão das corporações tecnológicas

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1.indb 65 10/02/2023 12:33:27


(ou as Big Techs), contribuíram para a
reorganização da superpopulação rela-
tiva. As grandes empresas de tecnologia
(as Big techs), inicialmente localizadas no
Vale do Silício (EUA), foram oriundas da
New Economy da década de 1990. Elas
operam aplicativos e serviços em nuvem,
produtos e acúmulo de dados controlando
cerca de 80% do mercado (as 5 principais
estão a Apple, Amazon, Alphabet/Google,
Microsoft e Meta).
Depois do reforçamento do poder do
dólar como moeda global (na década de
1980) e a disseminação do neoliberalismo
(na década de 1990), as Big Techs (e a
Internet e redes sociais), importantes peças
do complexo militar-industrial, se torna-
ram a ponta-de-lança da nova ofensiva
do capital imperialista visando o enfren-
tamento de sua crise estrutural.

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1.indb 66 10/02/2023 12:33:27


As inovações tecnológicas sob o capita-
lismo neoliberal, contribuiu efetivamente
para a nova onda de acumulação de capital.
Entretanto, o limite absoluto do capital é
o próprio capital. A alta composição orgâ-
nica do capital limitou a sua capacidade de
recompor-se efetivamente, mesmo com o
aumento da taxa de exploração (a superex-
ploração do trabalho) e a desvalorização do
capital constante (incluindo a ofensiva do
novo imperialismo por matérias-primas ou
fontes de energia).Como resultado, o alar-
gamento do desemprego da periferia para
o centro do sistema capitalista foi oculto
pela expansão da Gig economy e dos Bad
jobs. É por isso que, em trinta anos de
capitalismo global (1991-2021), tivemos o
aumento da desigualdade social, da preca-
rização do trabalho e da concentração da
riqueza. Na medida em que a periferia se
integrou à mundialização do capital, ou

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1.indb 67 10/02/2023 12:33:27


como diz Shaikh, “à medida que o capita-
lismo se expande para as áreas periféricas
e as transforma em países capitalistas”, a
periferia capitalista passou a conviver com
os fenômenos característicos do capita-
lismo desenvolvido: “Há uma implicação
importante disso - é o terrível fato de que
as pessoas começam a ser redundantes
dentro do sistema capitalista. Mais e mais
pessoas estão se tornando redundantes sob
o capitalismo e isso traz à tona a enorme
necessidade de controle populacional.”
Ao fazer referência ao controle popu-
lacional, Shaikh indicou como horizonte
estratégico da dominação capitalista, a
vigência de políticas malthusianas ou polí-
ticas de controle populacional. Isto não é
novidade pois o imperialismo dos EUA
incentivou há tempos na América Latina
e África, políticas de controle populacio-
nal. Por exemplo, a preocupação com a

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1.indb 68 10/02/2023 12:33:27


“bomba demográfica” foi uma constante
do pensamento estratégico do poder impe-
rialista dos EUA. Em 1968, Paul R. Ehrlich
fez uma previsão catastrófica. Disse ele que
o mundo tinha pessoas demais, e milhões
morreriam de fome, se não houvesse um
controle do aumento populacional. A
teoria era parte do livro Population bomb
(Bomba populacional), que se tornou um
dos mais vendidos da época e reabriu uma
discussão antiga (a do economista inglês
Thomas Malthus) sobre a sustentabilidade
da vida de bilhões de pessoas no planeta.
A ideologia da “bomba demográfica” foi
na época, bastante funcional à estratégia
de controle imperialista. Em “Preparando
para o século XXI” (1993), Paul Kennedy
intitulou o capítulo 2 de seu livro, “A
explosão demográfica”. Enfim, o espec-
tro de Malthus estava presente mais do
que nunca, no capitalismo do pós-Segunda

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1.indb 69 10/02/2023 12:33:27


Guerra Mundial. A partir da década de
2000, a tese da “segunda transição demo-
gráfica” colocou para o capital, a questão
do envelhecimento populacional. Assim,
ao lado da preocupação com a “bomba
demográfica” (a população humana conti-
nua crescendo, mas numa velocidade
menor), colocou-se no horizonte ideoló-
gico dos estrategistas globais do capital, a
“explosão” do envelhecimento popula-
cional e da nova dinâmica demográfica
(incluindo China e Índia). O problema se
deslocou do “controle populacional” para
o “controle do envelhecimento”. Isto é, o
que fazer com uma massa de envelheci-
dos (o trabalho vivo “mais velho” e idoso)
objetivamente improdutivos para o capital.
Desde a década de 1990, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) difunde a ideo-
logia do “envelhecimento ativo”, isto é, a
idéia dos “velhos produtivos”. As pessoas

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1.indb 70 10/02/2023 12:33:27


acima de 65 anos que, ao invés de aposen-
tarem, devem prolongam a vida ativa (as
Reformas da Previdência elevam cada vez
mais, a idade mínima para aposentar-se). O
que está em foco é a preocupação do capi-
tal em evitar o desequilíbrio orçamentário
dos Estados que ameace os compromissos
com o pagamento da dívida pública (os
interesses do capital financeiro).
No ano de início da pandemia da covid-
19, a Assembleia Geral das Nações Unidas
declarou o período de 2021 a 2030 como
“Década do Envelhecimento Saudável”.
Em 28 de janeiro de 2023, a The Economist
colocou como matéria de capa a reportagem
“A era dos avôs chegou”, tendo em vista que
a proporção de avós para filhos é maior do
que nunca. Ao mesmo tempo, tudo isso é
uma trágica ironia tendo em vista que uma
das maiores vítimas da covid-19 depois dos
“pobres” são as pessoas idosas vulneráveis

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1.indb 71 10/02/2023 12:33:27


à contaminação pelo novo coronavirus. O
que se coloca efetivamente para as socieda-
des capitalistas é o que fazer com aqueles
que, por conta da situação de classe, se
tornaram velhos, pobres e doentes, pressio-
nando os sistemas públicos de Previdência
Social e Saúde. A “eugenia social” operada
pela estratégia do capitalismo em lidar com
a covid-19, é ocultada pelo discurso ideo-
lógico das burocracias transnacionais e da
mídia dominante.
A pandemia da covid-19 (e sua “norma-
lização” a partir de 2022 com a política
“Convivendo com a Covid-19), tornou-
-se uma “arma biológica” a serviço da
“higiene social” do capital. Não se trata
de conspiração capitalista, mas estraté-
gia política levada a cabo pelos guardiões
da ordem burguesa. Apesar da vacina-
ção, desmontou-se protocolos sanitários,
aumentando a contaminação pelo Sars-cov

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1.indb 72 10/02/2023 12:33:27


2. As novs subvariantes da ômicron não
possuem a letalidade das primeiras cepas.
Mas por conta da evasão imunológica,
conviver com a covid-19 ela tem sido um
risco extremo para as pessoas mais velhas
e idosas vulneráveis. Deste modo, a nova
política de “conviver com a covid-19” tem
um alto custo social para os pobres, velhos
e doentes. Abriu excelente oportunidade
para o Sistema do Lucro reestruturar-se
visando impulsionar um novo patamar
de acumulação do capital a nível global. A
eliminação gradual e silenciosa das popu-
lações pobres envelhecidas e idosas frágeis
tornou-se o grande trunfo para o desen-
volvimento do capital no século XXI. O
descontrole da nova fase da pandemia
deve aumentar a partir de 2023, excessos
de óbitos dos mais fracos e débeis. Como
Anwar Shaikh ressaltou há pouco mais de

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1.indb 73 10/02/2023 12:33:27


vinte anos: “O problema de superpopula-
ção está no centro do capitalismo”.

Crise global e reordenamento


do imperialismo dos EUA

A partir da grande crise capitalista na


década de 1970, ocorreu um processo
amplo de reestruturação capitalista e de
reorganização do poder geopolítico e geoe-
conômico do capital global. Com resultado
histórico, tivemos o neoliberalismo e a
transição para o capitalismo global a partir
da década de 1990. A Queda do Muro de
Berlim (1989), o Consenso de Washington
(1989) e o fim da URSS (1991) foram
marcos históricos da ofensiva do capital
visando impulsionar a nova mundializa-
ção capitalista (Amin, 1991). Ocorreu a
transição para a “condição pós-moderna”
(Harvey, 1989) ou a mundialização do

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1.indb 74 10/02/2023 12:33:27


capital (Chesnais, 1994). A década de
1990 foi a década de ascensão histórica
da globalização neoliberal. Iniciou-se a
era do globalismo (Ianni, 1996). O fim
da URSS foi o marco histórico de ascen-
são do capitalismo global e de triunfo do
neoliberalismo. O imperialismo dos EUA
foi alçado a um patamar superior de domi-
nação geopolítica. A primeira metade da
década de 1990 foram anos de exultação
liberal pelo mundo. Este foi o resultado
histórico do primeiro “reset” da mundiali-
zação do capital iniciado na década de 1970
que fez triunfar o projeto da nova hege-
monia americanista unipolar. Em termos
geopolíticos denominou-se “Projeto para
o novo século americano”.
Mas não se tratou efetivamente de
uma verdadeira “reinicialização” do capi-
tal tendo em vista que os problemas de
lucratividade e da reprodução social nos

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1.indb 75 10/02/2023 12:33:27


países capitalistas, centrais e periféricos,
não foram efetivamente desde a década
de 1970. Pelo contrário, eles se aprofun-
daram no começo do século XXI. Apesar
de alguns economistas marxistas terem
considerado a “revolução neoliberal” de
ressurgência do capital (Dumenil e Lévy,
2004), ele não conseguiu, apesar de seu
triunfo político-ideológico, resolver efeti-
vamente o problema da lucratividade e da
crise estrutural do capital.
A ideologia da globalização neoliberal
disseminou-se pelo mundo nas décadas de
1980 e 1990, operando processos de “trans-
formismo” político-ideológicos no campo
da esquerda socialista e comunista. Como
dissemos, a primeira metade da 1990 foram
anos de triunfo neoliberal, logo ofuscados
pela crise financeira no México, Sudeste
Asiático, Rússia e Brasil (1994-1999) e
pela ascensão dos movimentos sociais

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1.indb 76 10/02/2023 12:33:27


antiglobalização. Mas a escalada da rees-
truturação produtiva a partir da recessão
nos EUA do começo da década de 1990,
a crise profunda da esquerda socialista e
comunista a partir de 1989, aprofundada
pelo fim da URSS (em 1991), fortaleceram
a Doutrina do Choque neoliberal, sendo
ela adotada na América Latina e Leste
Europeu (incluindo a Rússia de Yeltsin).
A adoção das políticas neoliberais pros-
seguiu no começo do século XXI, sendo
adotada, por exemplo, na União Europeia
depois da crise de 2008 (as políticas de
austeridade neoliberal sob o FMI e Banco
Mundial). O tratamento de choque neoli-
beral teve o poder de mobilizar o espírito
do conformismo social. Desde o thatche-
rismo da década de 1980, propagou-se
no discurso da globalização neoliberal, a
crença de que “Não há Alternativa”.1 O
neoliberalismo é a ideologia exclusiva do

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1.indb 77 10/02/2023 12:33:27


“Pensamento Único” da administração do
Estado capitalista. A era do globalismo e
seu complexo de transformações geopo-
líticas e geoeconômicas, identificada como
a era do pós-capitalismo ou do modo de
produção global (Dreifuss, 2004); ou do
“Império” – sem imperialismo (Hardt e
Negri, 2000). Mas o globalismo neoliberal
foi de fato, a fase superior do novo capita-
lismo imperialista (o “novo imperialismo”)
(Harvey, 2003).
A era do globalismo neoliberal foi a época
do poder da ideologia neoliberal enquanto
ferramenta de manipulação do imperia-
lismo estadunidense. Ideais caros do projeto
civilizatório do Ocidente como direitos
humanos e democracia, ícones da era liberal
clássica (desde a Revolução Americana em
1776 e da Revolução Francesa em 1789),
tornaram-se “armas ideológicas” da quarta
geração de guerras: as guerras híbridas. O

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1.indb 78 10/02/2023 12:33:27


neoliberalismo – ele próprio – foi uma arma
de guerra. De acordo com Perry Anderson,
o universo neoliberal reuniu amplamente
a fórmula plena de uma ordem hegemo-
nia: consentimento mais coerção: “Não
existe hoje – disse ele em 2006 - alter-
nativa a isto que se trata de um sistema
governante de idéias de alcance planetá-
rio. [O neoliberalismo] é a ideologia política
mais exitosa da história mundial” [o grifo
é nosso] (Anderson, 2006).
A geopolítica tornou-se tão impor-
tante quanto a economia política para
o entendimento da nova mundialização
do capital. O projeto estratégico geopo-
lítico dos EUA-OTAN era fragmentar a
Federação Russa (o que iniciou-se com
Yeltsin e as Reformas neoliberais leva-
das a cabo por ele na primeira metade da
década de 1990); e converter a China que
fez Reformas pró-mercado nas décadas de

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1.indb 79 10/02/2023 12:33:27


1980 e 1990, num polo capitalista (o que
levaria à sua fragmentação na medida em
que o capitalismo neoliberal seria incapaz
de promover a coesão social necessária
num país continental como a China sob
demanda social crescente).
O processo de reordenamento imperial
dos EUA após a década de 1970 articulou
o imperialismo monetário, o imperialismo
ideológico e o imperialismo tecnológico -
modalidades do poder imperial desde os
anos de 1970. Eles compõem o softpower
do Poder Americano tão poderoso quanto
os armamentos de força militar. Reforçam
o poder do consentimento pela Moeda,
Idéias e Tecnologia.
Os EUA debilitaram a pretensão de qual-
quer aliado em concorrer com o dólar como
moeda global. Por exemplo, foi o que acon-
teceu com a “sabotagem” da nova moeda
(o Euro da União Européia) a partir da

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1.indb 80 10/02/2023 12:33:27


crise de 2008 com a política de austeri-
dade neoliberal. Antes, em 1987, fizeram o
mesmo com o Yen face a crise de 1987 no
Japão. De certo modo, a estratégia geoe-
conômica dos EUA significou “canibalizar”
aliados – como o Japão e União Européia -
que tinham pretensão hegemônica2.
Portanto, as finanças globais sob o
controle do FMI e do Banco Mundial;
e o poder do dólar (o Federal Reserve e
os bancos centrais aliados), tornaram-se
“armas de guerra” dos EUA. Esta é a posi-
ção defendida pelo economista Michael
Hudson no livro “Super-Imperialism: The
Economic Strategy of American Empire”
(originalmente publicado em 1972 e com
nova edição em 2021). Neste livro, Hudson
analisou o nascimento da ordem mundial
americana logo após o fim da Primeira
Guerra Mundial, sendo consolidada a
partir de 1947 por meio de instituições do

81

1.indb 81 10/02/2023 12:33:27


império americano: Banco Mundial, GATT
(ou OMC), Programas de Ajuda Econômica
e o FMI. Hudson dedicou a última parte do
livro ao tratamento do imperialismo mone-
tário e o poder do dólar (em seu último
livro, intitulado The destiny of civilization:
capitalismo financeiro, capitalismo indus-
trial or socialism (de 2022), Hudson tratou
da contrarrevolução dos rentistas abor-
dando a era do globalismo neoliberal sob a
hegemonia do dólar).Portanto Hudson fez
um panorama histórico do imperialismo
dos EUA no século XX e seu declínio no
começo do século XXI.
Ao lado do imperialismo monetário, os
EUA têm incentivado o surgimento das Big
Techs. Enquanto parceiras do complexo
militar-industrial, as empresas da Internet
representam o imperialismo tecnológico.
A era do globalismo neoliberal é a era do
tecnocapitalismo (Suarez-Villa, 2012). O

82

1.indb 82 10/02/2023 12:33:27


desenvolvimento da Internet na década de
1990 enquanto a nova teia global, repre-
sentação da “sociedade da informação”,
teve uma função de imperialismo tecnoló-
gico. Não foi coincidência a New Economy
e a ideologia da Silicon Valley, ter sido
impulsionada sob o novo projeto de hege-
monia americana para o século XXI. Mais
tarde, na década de 2010, floresceu o “capi-
talismo de plataformas”, consolidando o
poder das Big Techs (Apple, Amazon, Meta,
Alphabet/Google). As novas ferramentas
informacionais em rede, o capitalismo de
vigilância, foi bastante adequada para a
era das “guerras híbridas”. Não se tratou
apenas de capitalismo da vigilância, mas
capitalismo de manipulação. Foi nesta
época que se incentivou o uso dos smar-
tphones, aparelhos de comunicação e (des)
informação de massa utilizando sistemas
operacionais e aplicativos das Big Techs e

83

1.indb 83 10/02/2023 12:33:27


afiliadas. Devido o alto custo do investi-
mento para Pesquisa e Desenvolvimento
(P&D), as inovações tecnológicas passa-
ram a ser financiadas pelos oligopólios
financeiros globais e pelos Estados-nação
desenvolvidos.
O economista político Giovanni Arrighi
observou em 2007 que os EUA abandona-
ram o “Projeto do novo século americano”
por conta do fracasso na guerra no Iraque.
Mas nem tanto - na década de 2010, a
retomada hegemônica global do impe-
rialismo dos EUA e do seu complexo
militar-industrial, foi deveras efetiva como
demonstraram a “Primavera Árabe” (2010-
2012), a incursão contra a Líbia (2011)
e a Síria (2011)e o Euromaidan (2013-
2014). O historiador Luiz Alberto Moniz
Bandeira publicou em 2016 o livro intitu-
lado “A desordem mundial: O espectro da
total dominação: guerras por procuração,

84

1.indb 84 10/02/2023 12:33:27


terror, caos e catástrofes humanitárias”.
Moniz Bandeira concluiu a sua trilogia do
Poder Imperial Americano, iniciada com
“A formação do Império Americano” e
“A Segunda Guerra Fria”. Neste último
livro, ele descreveu o novo cenário geopo-
lítico da década de 2010. Foi nesta década
que tivemos a escalada da guerra comer-
cial-tecnológica dos EUA contra a China,
com Donald Trump (2017-2020), e Joe
Biden (2021-...). A guerra na Ucrânia em
2022, foi o marco histórico incerto da nova
geopolítica do século XXI. O imperialismo
dos EUA opera uma luta catastrófica face ao
reposicionamento estratégico dos inimigos
geopolíticos: Rússia e China. A preocupa-
ção maior é com a ascensão geoeconômica
da China com a “Nova Rota da Seda”.
Trata-se do maior desafio geopolítico do
Império Americano após a Segunda Guerra
Mundial. Isso ocorre no contexto histórico

85

1.indb 85 10/02/2023 12:33:27


da pandemia do novo coronavírus, da
mudança climática e do aprofundamento
da crise da economia capitalista global.
Ao lado do “imperialismo monetário” e
do “imperialismo tecnológico”, temos o
“imperialismo ideológico”, caracterizado
pela política de disseminação de idéias-
-forças da doutrina neoliberal e dos valores
do “capitalismo do desastre” numa inten-
sidade (e extensividade) nunca vistas. A
“era da informação” é a era dos mídias
globais de informação e comunicação a
partir dos quais se disseminam os valores-
-fetiches e as utopias de mercado (Alves,
2011). Os valores do mercado capita-
lista formatam a linguagem das empresas
(privadas ou públicas), escolas (privadas ou
públicas) e inclusive, igrejas. Desde 1990,
constituiu-se a “sociedade neoliberal”
como produto do imperialismo ideológico.
“A nova razão do mundo” é a razão do

86

1.indb 86 10/02/2023 12:33:27


imperialismo dos EUA enquanto o impé-
rio do Ocidente neoliberal que defende o
modo de produção capitalista. Interessa
ao imperialismo estadunidense produzir
sujeitos neoliberais por meio da “captura”
da subjetividade. O imperialismo ideoló-
gico a partir do qual se constitui a razão
liberal, tem como eixo estruturante o
processo de “dessubjetivar” a classe social
do trabalho, isto é, fragmentar (e destruir)
coletivos de defesa do trabalho, manipular
a consciência social no sentido da confor-
mação à ordem do mercado capitalista.
Como ideologia estruturante do processo
de dominação neoliberal, temos o “iden-
titarismo” nas suas várias denominações.
Desde a década de 1990, a nova pauta da
razão liberal tem sido financiada pelos
EUA e pelas ONG´s (organizações não-go-
vernamentais), como a Fundação Open
Society, do megainvestidor George Soros.

87

1.indb 87 10/02/2023 12:33:27


Inclusive, pode-se verificar o esforço coor-
denado de parcerias entre tecnoburocracias
globais do capital, tais como ONU, Banco
Mundial e FMI, e ONG´s visando dissemi-
nar pautas ideológicas com o nítido sentido
de diversionar a profunda crise do socio-
metabolismo capitalista. A luta ideológica
(ou guerra cultural) é um fato histórico das
últimas décadas tendo em vista a agudiza-
ção das contradições capitalistas e o risco
da anomia social por conta do aprofun-
damento da reificação e do fetichismo na
vida social. Destacamos por exemplo, dois
movimentos ideológicos que fazem parte
do acervo complexo do imperialismo ideo-
lógico no começo do século XXI.
1. A partir de 2004, surgiu a ideologia do
ESG (Enviromental Social Governance; ou
as políticas de meio-ambiente, responsabi-
lidade social e governança, termo cunhado
no auge da bolha financeira da década

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1.indb 88 10/02/2023 12:33:27


de 2000 - numa publicação do “Pacto
Global” em parceria com o Banco Mundial,
chamada Who Cares Wins (o secretário
da ONU, Kofi Annam tinha provocado
50 CEO´s de grandes instituições finan-
ceiras, sobre como integrar fatores sociais,
ambientais e de governança no mercado
de capitais. O fracasso das promessas da
globalização neoliberal da década de 1990
e a crise do capitalismo global logo no
começo da década de 2000, exigiu uma
nova ofensiva ideológica do capital global
capaz de dar resposta no plano do imaginá-
rio social, às contradições sociais expostas
pelo neoliberalismo.
3. A Agenda 2030 estabelecida em 2015
pela ONU, foi o plano global para se atin-
gir um mundo melhor. Mais uma vez,
desenhado logo após a crise do capita-
lismo neoliberal (2008-2011), a Agenda
2030 da ONU estabelecia metas ousadas

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1.indb 89 10/02/2023 12:33:27


1.indb 90
Gráfico 1
Taxa de Lucro das Corporações Não-financeiras nos EUA (1947-2007)

90
Fonte: SHAIKH, 2011

10/02/2023 12:33:27
para políticas do Estado neoliberal impos-
síveis de serem efetivamente realizadas.
Não se questionava as trocas desiguais do
comércio global, o sistema financeiro inter-
nacional e as políticas neoliberais adotadas
no mundo, responsáveis pela concentra-
ção de renda e desigualdade social.

Crise capitalista e periodização


histórica

A discussão da crise capitalista conduz


à discussão da periodização histórica da
crise. Desde o ano de 1998, o capitalismo
global ascendente enfrentou pelo menos
duas importantes crises: a crise de 2000 e
a crise de 2008, considerada por Shaikh
como sendo the first Great Depression of
the 21st Century.3 A discussão da crise
capitalista e da sua periodização tem sido
um tema fundamental recorrente para

91

1.indb 91 10/02/2023 12:33:27


Shaikh.4 A questão-chave, diz ele, “é como
o capitalismo, mesmo modificando suas
instituições, formas de regulação e estru-
tura política, apresenta sempre os mesmos
padrões econômicos ao longo de sua evolu-
ção, os quais contribuem para a ocorrência
de crises”.
A resposta é que a lógica do lucro condena
a história do capitalismo a se repetir.
A busca do lucro é o regulador central
das decisões e do comportamento que
movimentam a economia capitalista: “O
invólucro do capitalismo se modifica cons-
tantemente para que seu núcleo permaneça
o mesmo” (Shaikh, 2011, p.46)5.
O neoliberalismo e a ofensiva do capital
ocorrida após a crise da década de 1970,
contribuíram para que o sistema recu-
perasse a dinâmica de aumento da taxa
de lucro. Por um lado, a acumulação do
capital é impulsionada por perspectiva de

92

1.indb 92 10/02/2023 12:33:27


lucratividade, o que é feito no contexto da
mudança tecnológica. Isso está minando a
lucratividade, diminuindo a taxa de lucro
e, finalmente, empurrando o sistema
para um período de crise. Mas no período
neoliberal, por vinte anos (1978-2008), o
sistema driblou a crise, mascarando sua
profundidade e – diz Shaikh – “até mesmo
revertê-la temporariamente por meio dos
efeitos do crédito bancário, criando assim
um boom fictício”. Foi o que aconteceu nos
Estados Unidos e em todos os países capita-
listas centrais nas décadas de 1970 e 1980.
O Gráfico 1 (taxa de lucro das corpora-
ções não-financeiras nos EUA) demonstra
isso. À crise de estagflação (1966-1982)
segue-se um boom (1982-2007). A recupe-
ração da taxa de lucro indicado por Shaikh
corresponde à transição para o capitalismo
neoliberal (década de 1980) e ascensão do
neoliberalismo (década de 1990 e começo

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1.indb 93 10/02/2023 12:33:27


dos anos 2000). No seio da crise de esta-
gflação e da luta de classes que ocorreu a
partir dela, operou-se a ofensiva sistêmica
do capital. O período histórico de 1966 a
1982 é um período de profunda reação
capitalista (econômica, tecnológica, ideo-
lógica, política e geopolítica) – o primeiro
“reset” indicado acima – que por conta
da derrota da classe operária com a vitó-
ria das forças neoconservadoras no pólo
orgânico do sistema global, com Thatcher
e Reagan, nos projetou para uma nova
temporalidade histórica, o boom neolibe-
ral de 1982 a 2007.
A reação orgânica do capital foi tão forte
que destruiu a URSS que desde a crise da
década de 1970 estava com uma econo-
mia fragilizada. A globalização neoliberal
foi o resultado sistêmica da recuperação
capitalista indicada por Shaikh.

94

1.indb 94 10/02/2023 12:33:27


1.indb 95
Gráfico 2
Taxa de Lucro das Empresas nos EUA (1947-2007)

95
Fonte: SHAIKH, 2011

10/02/2023 12:33:27
Como explicar o boom da era
neoliberal?

Houve um grande aumento da dívida,


em particular um grande aumento no
gasto financeiro deficitário que levou a
um grande aumento na dívida pública
cujo acúmulo deu uma “saúde fictícia”
ao sistema.
EM SÍNTESE: o boom da era neolibe-
ral foi explicada assim, pela ascensão da
financeirização da riqueza capitalista e do
importante papel do Estado na coordena-
ção macroeconômica a serviço do poder
do capital financeiro. Identificar neolibe-
ralismo com Estado mínimo é falso. Pelo
contrário, o Estado capitalista nunca teve
tanto poder para intervir na economia a
serviço dos interesses do capital financeiro.
É pura manipulação diversionista acredi-
tar que o Estado deixou a cena histórica

96

1.indb 96 10/02/2023 12:33:27


em prol do mercado. O Estado neoliberal
é um Estado forte.
A primeira grande crise financeira do
capitalismo global ocorreu com o crash da
bolsa no Japão de 1987. Naquela época,
a intervenção do Estado tornou-se funda-
mental para evitar o crash da bolsa e o
colapso do sistema bancário, tendo em
vista que isso levaria ao colapso do sistema
produtivo. A extensão da intervenção esta-
tal face as crises financeiras, a enorme
regulação e intervenção estatal em todo
o sistema financeiro e bancário em todos
os países capitalistas avançados, tornou-
-se muito importante, evitando a crise e
o colapso como o de 1929. Na verdade,
isto se tornaria o padrão de coordenação
macroeconômica dos Bancos Centrais das
economias capitalistas nas condições da
mundialização do capital (o que presen-
ciamos nas crises financeiras seguintes

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1.indb 97 10/02/2023 12:33:28


- de 2000 e 2008 e na década de 2010).
O neoliberalismo em ascensão propiciou
uma recuperação dos lucros desde a reces-
são global de meados da década de 1970.
Portanto, para Shaikh, o período de ascen-
são do neoliberalismo (até 2008) foi um
período de recuperação da taxa de lucro
com o capitalismo global superando a
grande crise de 1973.
Pela estimativa da taxa de lucros feita por
Shaikh, ocorreu na década de 1980, um
padrão de restauração da lucratividade.
O Gráfico 2 (taxa de lucro das Empresas
nos EUA, 1947-2008), numa perspectiva
alongada desde 1947, mostra que a taxa
de lucro teve uma leve recuperação no
boom de 1982-2007. Na verdade, obser-
vou-se uma grande variação na flutuação
da taxa de lucro no curto prazo, influen-
ciada por diferentes eventos históricos. No
entanto, em se tratando de longo prazo, é

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1.indb 98 10/02/2023 12:33:28


evidente – diz ele - a tendência declinante
da taxa de lucro. Deste modo, pode-se
discutir se a leve recuperação se configu-
rou de fato, como uma recuperação da taxa
de lucro desde a crise de estagflação. Na
verdade, pode-se entende-la como sendo
uma interrupção da queda tendencial da
taxa de lucro.

Como explicar a “interrupção”


da queda da taxa de lucro?

Em primeiro lugar, (1) a diminuição do


crescimento dos salários reais em compa-
ração às décadas do pós-guerra; e depois,
(2) a política de redução da taxa de juros,
ambos os processos se iniciaram, mais ou
menos, ao mesmo tempo. Entretanto, o
boom de recuperação da lucratividade na
década de 1980 foi inerentemente contra-
ditório, pois enquanto a diminuição sem

99

1.indb 99 10/02/2023 12:33:28


precedentes dos salários reais em relação
à produtividade nos EUA e Reino Unido
deu um grande impulso à taxa de lucro,
“o efeito colateral normal” – diz ele – foi a
estagnação de gastos reais dos consumido-
res. Mas, com as taxas de juros em queda
e o crédito facilitado, o consumo e outros
gastos continuaram a subir, impulsiona-
dos por uma onda crescente de dívidas.
Disse ele: “Todos os limites pareciam
suspensos, todas as leis do movimento,
abolidas. E, então, desabou”. Na verdade,
ele observou que a crise das hipotecas nos
Estados Unidos foi apenas o estopim. O
problema subjacente é que a queda nas
taxas de juros e o aumento da dívida que
alimentou o boom tinham atingido os seus
limites”(Shaikh, 2011, p.45). Na teoria
de Marx – diz ele - o lucro do capitalista
refere-se à diferença entre o mais-valor
gerado e o pagamento de juros e, assim

100

1.indb 100 10/02/2023 12:33:28


sendo, os juros constituem uma parcela
do mais-valor. A relação entre a taxa de
lucro e a de juros é estabelecida a partir
da noção de que é “a diferença entre as
duas taxas, a qual ele chama de taxa de
lucro da empresa (r – z), que impulsiona o
investimento ativo” (Shaikh, 2011, p.46).
Dessa forma, é a taxa de lucro da empresa
[r – z] que consiste no motor central da
acumulação, o fundamento de reprodu-
ção e ampliação do capital industrial. Foi
o freio na tendência de crescimento dos
salários reais em relação à produtividade,
associado à substancial queda da taxa de
juros, que possibilitou a elevação da taxa
de lucro da empresa a partir dos anos 1980.
Os gastos do Estado são importantes estí-
mulos contracíclicos em uma economia
em crise - diz Shaikh. Esta foi a lição da
Grande Depressão da década de 1930. Os
gastos públicos de incentivo à economia

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1.indb 101 10/02/2023 12:33:28


podem ter duas formas: primeiro, a da
demanda direta do Estado; e segundo, a
da geração de empregos pelo Estado. Na
conjuntura política do capitalismo neoli-
beral, a geração de empregos pelo setor
público é improvável, visto tendo em vista
que a contratação direta de força de traba-
lho pelo Estado subordinaria a motivação
do lucro aos fins sociais, sendo isto uma
ameaça à ordem capitalista. Além disso, ela
interferiria no plano neoliberal de baratear
a força de trabalho permitindo a redução
de custos para exportação e manutenção da
restrição ao crescimento dos salários reais
domésticos (Shaikh, 2011). Na verdade,
o que vai ser importante para a recupera-
ção além da demanda direta do Estado, é a
trajetória dos salários reais e a evolução da
taxa de juros e do crédito – que compen-
saria a queda dos salários reais.

102

1.indb 102 10/02/2023 12:33:28


As divergências teóricas sobre
a era neoliberal

Existe um debate entre economistas


marxistas sobre a periodização histórica
do capitalismo desde a crise da década de
1970. Para Anwar Shaik, Gérard Duménil e
Dominique Lévy (2014); e Michel Husson
(2008), o período neoliberal (1982-2007)
foi considerado como sendo um novo
boom da economia capitalista a partir do
qual recuperou-se a taxa de lucratividade.
Tanto que em 1999, Shaikh observou
contra economistas como Andrew Kliman,
por exemplo, que o capitalismo estava
numa longa onda de recuperação com
os outros países centrais começando a se
mover na direção dos EUA e do Reino
Unido: “[...] choramingar não muda os
fatos [lamenting it does not change the
fact]”. Deste modo, a periodização histórica

103

1.indb 103 10/02/2023 12:33:28


foi a seguinte: primeiro, a crise de esta-
gflação (1966-1982); e depois, o boom
do capitalismo neoliberal (1982-2007).
A seguir, Shaikh reconheceu que a crise
de 2008 foi “a primeira grande depressão
do capitalismo do século XXI”. Duménil e
Lévy seguem a mesma linha de análise de
Shaikh. Os economistas franceses observa-
ram no começo da década de 2000 que o
“‘neoliberalismo’ - o termo usado hoje para
descrever as transformações pelas quais
o capitalismo passou na virada dos anos
1970 e 1980 [...] – produziu “um capita-
lismo ressurgente e insosso [unpreified],
sem graça, insípido e tedioso [...]”. A taxa
de lucro que atingiu um mínimo no início
dos anos 1980, aumentou no período do
neoliberalismo (Duménil e Lévy, 2004).
Por outro lado, outros marxistas discor-
daram de Anwar Shaikh e de Duménil
Levy. Por exemplo, para Andrew Kliman

104

1.indb 104 10/02/2023 12:33:28


(2012) e Michael Roberts, o período de
ascensão neoliberal representou uma rela-
tiva estagnação da economia capitalista
central. Entretanto, tanto Roberts quanto
Shaikh concordaram em conferir à taxa
de lucratividade um papel importante na
explicação da crise capitalista, diferente-
mente de Duménil e Levy – e outros como
David Harvey - que afirmaram uma expli-
cação multicausal da crise capitalista.
Para Anwar Shaik, como vimos, a taxa de
lucro é a “taxa de lucro da empresa” (rate
of profit-of-enterprise), isto é, a razão entre
os lucros menos os juros e taxas. Por outro
lado, Andrew Kliman (2012) se contrapõe
a essa visão, argumentando que a taxa de
lucro nunca realmente se recuperou da
crise da década de 1970. De fato, a questão
pode ser explicada pela metodologia
diferenciada de estimação da taxa de lucro
dos autores. Esta discussão da periodização

105

1.indb 105 10/02/2023 12:33:28


da crise capitalista após a Segunda Guerra
Mundial é relevante, na medida em que,
como observou Shaikh, “é importante
conhecer os períodos históricos para não
associarmos grandes depressões apenas a
colapsos semelhantes a choques”.
Finalmente, podemos propor como
periodização histórica uma dupla fase
de desenvolvimento da era neoliberal.
O Gráfico 3 (vide página 108), ilustra
a partir da evolução da Taxa de Lucro
das Corporações não-Industriais nos EUA
(tomando como base os custos correntes)
tal periodização histórica do capitalismo
global. O sistema do capital global se
desenvolve numa descendente histórica
de lucratividade, oscilando entretanto,
baixas e altas das taxas de lucro, onde
não consegue repor de forma sustentável,
a lucratividade num patamar supe-
rior àquele da década de 1970. Mesmo

106

1.indb 106 10/02/2023 12:33:28


operando um complexo de contratenden-
cias à queda da lucratividade como por
exemplo, o aumento da taxa de explora-
ção e a desvaloirização do capital fixo e
constante, o desenvolvimento sustentá-
vel é deveras problemático. Assim, temos
uma primeira ou a fase de ascensão histó-
rica do capitalismo global que intitulamos
de era neoliberal 1; e uma segunda fase
ou fase de crise do capitalismo global ou
a era neoliberal 2, onde a hegemonia do
capital financeiro persiste sob as condições
da profunda crise estrutural do sistema tal
como verificamos hoje em 2023.

Capital financeiro e “distorção”


do cálculo da lucratividade

O cálculo da lucratividade das corpora-


ções não-financeira tem que levar em conta
o aumento da financeirização da riqueza

107

1.indb 107 10/02/2023 12:33:28


1.indb 108
Gráfico 3
o capitalismo global a partir da evolução da taxa de llucro nos EUA (1945-2020)

108
Fonte: ROBERTS, Michael. Disponível em https://thenextrecession.wordpress.com.

10/02/2023 12:33:28
capitalista pelo menos desde a década de
1980. Os lucros operacionais confun-
dem-se com lucros não-operacionais (ou
financeiros), ocasionando a “ilusão de
ótica” na interpretação da dinâmica capi-
talista do período ascensional neoliberal.
O crescimento da taxa de lucratividade
no período de 1982-2007 foi explicado
pelo aumento da taxa de exploração ou
como Shaikh salientou, a diminuição do
crescimento dos salários reais em compa-
ração às décadas do pós-guerra; e – isso é
importante para ele - (2) a política de redu-
ção da taxa de juros (ambos os processos
se iniciaram, mais ou menos, ao mesmo
tempo). Entretanto, não se pode desconsi-
derar no período de 1982-2007, o aumento
dos ganhos financeiros. Como observamos
no Gráfico 4 – A participação do superávit
financeiro no excedente total das corpo-
rações nos EUA, os ganhos financeiros

109

1.indb 109 10/02/2023 12:33:28


aumentaram de forma significativa a partir
de 1987, crescendo até 2007 ás vésperas do
crash financeiro global. Mesmo depois da
crise de 2008, que Duménil e Levy consi-
deraram como a “crise do neoliberalismo”,
o excedente financeiro voltou a crescer
de forma significativa. Em 1998, Shaikh
chegou a interrogar-se sobre a sustentabi-
lidade do boom das economias capitalistas:
“Então o problema é saber se estamos nos
recuperando disso”. À pergunta “[...] esta-
mos nos recuperando?”, ele respondeu de
modo categórico com o “sim”. Em 2004,
Duménil e Levy lançaram o livro Capital
Resurgent: Roots of the neoliberal revo-
lution, defendendo a tese de que após o
grande crise da década de 1970, o capi-
tal conseguiu se recuperar e ressurgir
sob a dominância das finanças (o neoli-
beralismo). Após a crise de 2001, por
outro lado, Shaikh percebeu que a era

110

1.indb 110 10/02/2023 12:33:28


1.indb 111
Gráfico 4
Parcela do superávit financeiro das empresas nos EUA (1945-2020)

111
Fonte: ROBERTS, Michael. Disponível em https://thenextrecession.wordpress.com.

10/02/2023 12:33:28
de recuperação de lucros estava ameaçada
pelo boom de credito fácil que ocultava
a recuperação frágil (ou “fictícia” – diria
Kliman) da taxa de lucro desde a década
de 1970.Duménil e Levy não consideram
a crise de 2008 como sendo uma crise de
lucratividade, mas uma crise financeira ou
crise do neoliberalismo entendido como
o império do capital financeiro. Eles não
atribuem à taxa de lucro a causalidade
fundamental das crises capitalistas (o que
os diferencia de Shaikh). Entretanto, a
crise de 2008 não foi a crise terminal do
neoliberalismo. Mesmo depois do crash
financeiro de 2008, a parcela de supervávit
financeiro das empresas nos EUA conti-
nuou crescendo, tal como tem feito desde
meados da década de 1980. É o que nos diz
o Gráfico 4 (da página 111), que mostra a
parcela do superávit financeiro das empre-
sas nos EUA, de 1945-2020. Assim, mesmo

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depois da crise de 2008, a oligarquia finan-
ceira persistiu “dando as cartas”, operando
a salvação dos bancos e recomendando
a politica de austeridade neoliberal. Na
mesma linha, adotou a redução de juros
– pelo menos na década de 2010.

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Notas
1
István Mészáros percebeu que o poder da
ideologia neoliberal em ascensão a partir de
1980, baseava-se na crença de que “Não há
Alternativa”, Em 1979, o filósofo húngaro
decidiu estudar a filosofia de Jean-Paul Sartre.
Disse ele: “Sartre foi um homem que sempre
pregou que há uma alternativa, deve haver
uma alternativa: como indivíduos devemos
nos rebelar contra esse poder, esse monstruoso
poder do capital”.
2
De certo modo, a guerra na Ucrânia de 2022
confirma a estratégia de “canibalização” de alia-
dos na medida em que o custo geoeconômico
(e geopolítico) de “demonização” da Rússia
será bastante elevado para a economia euro-
péia. A economia industrial da Alemanha, a
maior da União Européia, está sendo devas-
tada pelo aumento do custo energético.
3
“The First Great Depression of the 21st
Century”. Socialist Register, Fall, p.44-63,
2011.

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4
Com destaque para o texto quase clássico:
“SHAIKH, A. “Uma introdução à história das
teorias de crise”. Ensaios FEE, Porto Alegre,
4(1), p.5-45, 1983.
5
Shaikhh, Anwar. “The First Great Depression
of the 21st Century”. Socialist Register, Fall,
p.44-63, 2011.

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