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Âmbito de incidência do efeito suspensivo automático e aplicação da lei

no tempo: breve nota a propósito da entrada em vigor da Lei n.º


118/2019, de 17 de setembro

José Duarte Coimbra


Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Investigador do Centro de Investigação de Direito Público
Consultor Principal do Centro de Competências Jurídicas do Estado. Advogado

I. Introdução

Entraram em vigor no passado dia 17 de novembro as alterações que a Lei n.º


118/2019, de 17 de setembro, introduziu, inter alia, no Código de Processo nos
Tribunais Administrativos1.

Uma dessas alterações, quiçá das que possui maior «significado prático», é a
substancial redefinição do âmbito de incidência do efeito suspensivo automático
associado à propositura de ações administrativas urgentes de contencioso-pré-
contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação. Não
sendo naturalmente este o espaço para dar detalhada conta do alcance de todas
modificações normativas que resultam da alteração de redação dos artigos
103.º-A e 103.º-B (e, noutro plano, das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 143.º) do
CPTA, pretende-se apenas apurar o domínio de aplicabilidade temporal dessas
alterações e aferir, muito em particular, se e em que medida aquela redefinição
de âmbito afeta as ações administrativas de contencioso pré-contratual, ou os

1 17 e não 16 de novembro, como equivocadamente resulta da «Informação» que surge entretanto no Portal
dos Mandatários do sistema informático de suporte à atividade à atividade dos tribunais administrativos
e fiscais (https://mandatarios.taf.mj.pt/). Esclareça-se: (i) tendo sido a Lei n.º 118/2019 publicada no dia 17
de setembro; (ii) tendo ela própria estabelecido, no respetivo artigo 14.º, um prazo de vacatio legis de 60
dias após a sua publicação (que é coisa diferente, note-se bem, do que determinar a entrada em vigor para
o 60.º dia após a sua publicação); e (iii) sendo o dia 18 de setembro o dies a quo e o dia 16 de novembro o
dies ad quem desse prazo de vacatio ― é pois no dia 17 de novembro (i.e., às 00h00 do dia 17 de novembro)
que entra em vigor a Lei n.º 118/2019. A confusão entre a contagem de prazos de vacatio que se definam
por referência a «x dias após» e outros que apontem para o «x.º dia após» é, de resto, frequente (cfr., a
propósito da entrada em vigor do CPA/2015, A. SOUSA PINHEIRO/T. SERRÃO/M. CALDEIRA/J. D. COIMBRA,
Questões Fundamentais para a Aplicação do CPA, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 60-64), sendo talvez
potenciada pela circunstância de, como regra supletiva, o ordenamento jurídico português acolher a
segunda alternativa (cfr. o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 74/98: “ os [atos legislativos e os outros atos de
conteúdo genérico] entram em vigor, em todo o território nacional e no estrangeiro, no quinto dia após a
publicação”), a qual, no entanto e evidentemente, só se aplica “na falta de fixação do dia”, i.e., quando, como
aliás pressupõe o n.º 1 desse mesmo artigo 2.º da «Lei Formulário», o dia de entrada em vigor não seja
concretamente estabelecido. No caso da Lei n.º 118/2019 foi-o, e foi-o para o dia 17 de novembro.

-1-
eventuais incidentes de levantamento do efeito suspensivo automático, que se
encontrem pendentes à data de entrada em vigor da nova lei.

Antecipa-se que venha a residir nesta questão um campo fértil para alguma
«engenharia forense» e para algumas hesitações jurisprudenciais, sobretudo
tendo em conta o modo talvez um pouco menos avisado com que o legislador
tratou ― ou melhor: não tratou ― o problema2. O propósito desta breve nota é
assim o de contribuir para a sua adequada resolução.

II. A restrição do âmbito de incidência do efeito suspensivo automático

Em traços muito gerais, e desconsiderando por agora as respeitantes à


tramitação, ao critério decisório e aos efeitos dos recursos das decisões dos
incidentes de levantamento do efeito suspensivo automático, a principal
alteração que resulta das novas redações dos artigos 103.º-A e 103.º-B do CPTA
traduz-se na restrição do âmbito de incidência do efeito suspensivo
automático e, paralela e consequentemente, na ampliação do âmbito de
incidência das medidas provisórias. Com efeito:

(i) Até agora:

(i.1) O efeito suspensivo automático incidia sobre qualquer ação


administrativa urgente de contencioso pré-contratual que tivesse por
objeto a impugnação de um ― qualquer ― ato de adjudicação;

(i.2) Em contrapartida, a possibilidade de adoção de medidas provisórias


encontrava-se reservada para as ações que não tivessem por objeto a
impugnação de atos de adjudicação.

(ii) De ora em diante:

(ii.1) O efeito suspensivo automático só se aplica às ações administrativas


urgentes de contencioso pré-contratual que, simultaneamente3:

2 No que não é, aliás, uma novidade: também sobre as dúvidas que legitimamente se poderiam suscitar sobre
a aplicação da lei no tempo no domínio das ações de contencioso pré-contratual por força da entrada em
vigor do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro (cuja regra geral de direito transitório era, no entanto,
diferente da agora incorporada pela Lei n.º 118/2019), cfr. M. CALDEIRA, ‘Brevíssimos tópicos sobre a
aplicação da lei no tempo ― a propósito da revisão do CPTA e do “novo” regime do contencioso pré-
contratual’, e-Pública II/3 (2015), pp. 272-286.
3 Não se pretende nesta breve nota apreciar, nem mesmo minimamente, as razões pelas quais a Lei n.º
118/2019 tomou esta opção restringente ― i.e., a dupla opção de restringir o efeito suspensivo automático:

-2-
a) Tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos
a procedimentos pré-contratuais aos quais seja aplicável, nos
termos do Código dos Contratos Públicos, o assim conhecido
«período de standstill», i.e., o prazo de 10 dias úteis a contar da
notificação da adjudicação dentro do qual a entidade adjudicante
não pode iniciar a execução (no caso de contratos não submetidos
a forma escrita) ou não pode outorgar o contrato (no caso de
contratos submetidos a forma escrita)4; e

b) Sejam propostas dentro desse prazo de 10 dias úteis5.

(i) objetivamente, aos procedimentos aos quais seja aplicável, nos do CCP, o «período de standstill»; e (ii)
temporalmente, aos casos em que as ações de contencioso pré-contratual sejam propostas em juízo ainda
dentro do prazo (procedimental) de duração do «período de standstill». Aponta-se apenas que semelhante
opção deriva fundamentalmente: (i) da compreensão de que, nos termos da sua última revisão, as
conhecidas «Diretivas Recursos» (Diretiva 89/665/CE e Diretiva 92/13/CE, tal como revistas pela Diretiva
2007/66/CE), associam funcionalmente o «período de standstill» ao bloqueio de efeitos sobre o ato de
adjudicação decorrente da propositura de ações que o tenham por objeto, de modo tal que o efeito suspensivo
decorrente da propositura de uma ação judicial surge como uma espécie de prolongamento do período pós-
adjudicatório dentro do qual a entidade adjudicante não pode celebrar o contrato (cfr., em particular nesse
sentido, o considerando (12) da Diretiva 2007/66/CE; e a esse propósito, C. A. FERNANDES CADILHA/A.
CADILHA, O Contencioso Pré-Contratual e o Regime de Invalidade dos Contratos Públicos, Coimbra:
Almedina, 2013, pp. 77-85); e, simultaneamente, (ii) da constatação de que, desde 2015, e ainda que
explicável por fatores de outra ordem (maxime, a em muitos casos pura e simplesmente inexplicável
delonga dos tribunais administrativos de primeira instância no julgamento dos incidentes de levantamento
do efeito suspensivo), o sistema de tutela contenciosa pré-contratual se encontrava um pouco
injustificadamente desequilibrado em favor dos impugnantes e em desfavor das entidades adjudicantes.
Nesta base, protagonizando já alterações ao regime do efeito suspensivo automático fundamentalmente
com o alcance que agora a Lei n.º 118/2019 acolheu, cfr. A. CADILHA, ‘O efeito suspensivo automático da
impugnação de atos de adjudicação (art. 103.º-A do CPTA): uma transposição equilibrada da diretiva
recursos?’, CJA 119 (2016), pp. 4-15, esp.te pp. 6-9; criticamente, não tanto quanto à restrição objetiva, mas
sobretudo quanto à restrição temporal do efeito suspensivo automático agora consagrada na lei, sugerindo
em alternativa que a alteração deveria passar pelo alargamento do próprio «período de standstill» para 30
dias, de modo a fazê-lo coincidir com o prazo (geral) de propositura das ações de contencioso pré-contratual,
cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, ‘Breve apontamento sobre algumas alterações ao Código de Processo nos
Tribunais Administrativos previstas na Proposta de Lei n.º 168/XIII’, in Iniciativas Legislativas de
Reforma do Processo Administrativo e Tributário (e-book), Lisboa: ICJP, 2019, pp. 73-78.
4 Não é senão este o alcance da remissão que o n.º 1 do artigo 103.º-A do CPTA efetua para o n.º 3 do artigo
95.º e para a alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos ― pois é nessas disposições,
que sofrem depois as exceções do n.º 4 do artigo 95.º e do n.º 2 do artigo 104.º, respetivamente, que se
encontra previsto o «período de standstill».
5 O enunciado do n.º 1 do artigo 103.º-A do CPTA não deixa dúvidas quanto ao facto de os 10 dias em questão
serem úteis. Poderá reconhecer-se alguma estranheza no facto de a lei processual fixar a este propósito um
prazo ― que é para todos os efeitos um prazo de propositura ― em dias úteis, tendo em conta que, em geral,
os prazos de propositura de ações ― incluindo o prazo de um mês estabelecido no artigo 101.º do CPTA ―
se contam em dias «corridos», por força do disposto no artigo 279.º do Código Civil e, em parte também, do
n.º 4 do artigo 138.º do Código de Processo Civil. Isso deve-se, no entanto, ao propósito de associar, em
termos temporais, a produção do efeito suspensivo automático à duração do prazo (procedimental)
correspondente ao «período de standstill» ― o qual é precisamente, nos termos do n.º 3 do artigo 95.º e da
alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do CCP, de 10 dias úteis (cfr. a alínea c) do artigo 87.º do CPA, ex vi n.º 1
do artigo 470.º do CCP). Daqui resulta que, em querendo beneficiar do efeito suspensivo automático, um
concorrente que impugne um ato de adjudicação terá, na prática, cerca de duas semanas para propor a
respetiva ação de contencioso pré-contratual. Exemplificando: notificação do ato de adjudicação ―
27/11/2019 (note-se a este propósito que, nos termos da alínea a) do artigo 469.º do CCP, a notificação da
adjudicação efetuada por via eletrónica se considera feita no dia da respetiva expedição); primeiro dia do
prazo ― 28/11/2019 (note-se que, por força do disposto na alínea b) do artigo 279.º do Código Civil, o próprio
dia da notificação da adjudicação «não conta» [e o mesmo vale, de resto, para a contagem, em termos
procedimentais, do prazo do «período de standstill»: cfr. a alínea b) do artigo 87.º do CPA, novamente ex vi
n.º 1 do artigo 470.º do CCP]); último dia do prazo ― 11/12/2019. Assinale-se por fim que a não impugnação
do ato de adjudicação até ao termo destes 10 dias úteis não tolhe a possibilidade de ser proposta, dentro do

-3-
(ii.2) As medidas provisórias podem ser adotadas no âmbito de ações que:

a) Não tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação;

b) Tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação


emergentes de procedimentos pré-contratuais aos quais não seja
aplicável o «período de standstill»;

c) Tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação


emergentes de procedimentos aos quais seja aplicável o «período
de standstill», mas que sejam propostas em tribunal já para além
do prazo de 10 dias úteis a contar da notificação da adjudicação;
ou

d) Tenham por objeto a impugnação de atos adjudicação


emergentes de procedimentos aos quais seja aplicável o «período
de standstill», que sejam propostas em tribunal dentro desse
prazo de 10 dias úteis, mas em relação às quais já tenha sido
determinado, ao abrigo do incidente previsto nos n.os 2 a 4 do
artigo 103.º-A, o levantamento do respetivo efeito suspensivo
automático.

Naquilo que para os propósitos desta breve nota mais interessa sublinhar, o
que daqui resulta é, por comparação com o regime até agora em vigor, uma
significativa redução do número de ações administrativas urgentes de
contencioso pré-contratual cuja propositura determina a automática
suspensão dos efeitos do ato de adjudicação impugnado ― e, por isso,
uma significativa redução do número de casos em que, a partir do momento em
que seja citada, a entidade adjudicante fica proibida de celebrar o
correspondente contrato ou, no caso de já o ter feito, prosseguir com a sua
execução. E isso é assim sobretudo porque, a partir de agora, ficam a
descoberto do efeito suspensivo automático todas as ações que tenham
por objeto a impugnação de atos de adjudicação emergentes de
procedimentos de formação de contratos cujo valor (estimado) seja

prazo de um mês estabelecido no artigo 101.º do CPTA, uma ação de contencioso pré-contratual, incluindo
com pedido de impugnação de um ato adjudicatório. Só que, nesse cenário, a respetiva propositura não
espoleta o efeito suspensivo automático previsto no n.º 1 do artigo 103.º-A, restando ao concorrente a
faculdade de requerer ao juiz, ao abrigo do n.º 1 do artigo 103.º-B, a adoção de medidas provisórias ― as
quais, note-se bem, em sendo concedidas, podem eventualmente ter por alcance a suspensão dos efeitos do
ato de adjudicação impugnado.

-4-
inferior aos limiares de aplicação das Diretivas sobre Contratação
Pública, na medida em que: (i) o convite/anúncio de tais procedimentos não
está sujeito a publicação no Jornal Oficial da União Europeia; e,
consequentemente, (ii) a tais procedimentos não se aplica o «período de
standstill»6.

Pela positiva, significa isto que, doravante, e grosso modo, só beneficiam do


efeito suspensivo automático as ações que, sendo propostas dentro do prazo de
10 dias úteis a contar da notificação da adjudicação a todos os concorrentes,
tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a:

(i) Procedimentos de formação de contratos de aquisição/locação de bens e


serviços cujo valor seja ≥ a €144.000,00 (no caso do Estado ou outras
entidades adjudicantes «centrais»), ≥ a €221.000,00 (no caso de quaisquer
outras entidades adjudicantes), ou ≥ a €443.000,00 (no caso de contratos
dos «setores especiais»)7;

(ii) Procedimentos de formação de contratos de empreitada de obras


públicas/concessão de obras públicas/concessão de serviços
públicos cujo valor seja ≥ 5.548.000,008.

A esta luz, não são então de difícil mapeamento as situações em que antes a
(mera) propositura da ação de contencioso pré-contratual determinava a
suspensão dos efeitos do ato de adjudicação impugnado, e em que agora isso já
não ocorre. São disso exemplo, entre muitas outras hipóteses configuráveis:

6 Tal como resulta do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 95.º e na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 104.º do
CCP, o «período de standstill» também não se aplica: (i) a procedimentos de ajuste direto ou consulta prévia,
mesmo quando, nos casos que a sua escolha se funde num critério material, o valor do contrato a celebrar
seja superior aos limiares de aplicação das Diretivas; (ii) procedimentos ― não-concorrenciais ― de
formação de contratos celebrados ao abrigo de acordo quadro cujos termos abranjam todos os seus aspetos
(cfr., a esse propósito, a alínea a) do n.º 1 do artigo 252.º e o artigo 258.º do CCP), independentemente do
valor do contrato a celebrar; e (iii) a procedimentos ― de qualquer tipo ― no âmbito dos quais tenha só
tenha sido apresentada uma proposta, também independentemente do valor do contrato a celebrar. Por
simplificação do discurso, omitem-se em geral do texto estas (e outras) subvariantes.
7 Limiares aplicáveis até ao final do ano de 2019. A partir de 1 de janeiro de 2020, esses limiares descem,
respetivamente, para €139.000,00, €214.000,00 e €428.000,00 (por força das alterações introduzidas na
Diretiva 2014/24/UE e na Diretiva 2014/25/UE pelo Regulamento Delegado (UE) 2019/1828 e pelo
Regulamento Delegado (UE) 2019/1829, ambos de 30 de outubro de 2019).
8 Limiar aplicável até ao final do ano de 2019. A partir de 1 de janeiro de 2020, esse limiar desce para
€5.350.000,00 (por força das alterações já referidas na nota anterior e, bem assim, das introduzidas na
Diretiva 2014/23/UE pelo Regulamento Delegado (UE) 2019/1827, também de 30 de outubro de 2019).

-5-
(i) Ações de impugnação de atos de adjudicação emergentes de procedimentos
de ajuste direto ou consulta prévia para a celebração de qualquer tipo de
contrato ― v.g., uma aquisição de serviços no valor de €70.000,00;

(ii) Ações de impugnação de atos de adjudicação emergentes de concursos


públicos/concursos limitados sem publicação de anúncio no JOUE para a
celebração de qualquer tipo de contrato ― v.g., uma aquisição de bens por
parte do Estado no valor de €120.000,00; uma aquisição de bens por parte
de um Município no valor de €200.000,00; uma empreitada no valor de
€4.000.000,00;

(iii) Ações de impugnação de atos de adjudicação emergentes de procedimentos


aos quais seja aplicável ao «período standstill» mas que, ainda que dentro
do prazo de um mês estabelecido no artigo 101.º do CPTA, tenham sido
propostas para além do «período de standstill» (i.e., para além do prazo de
10 dias úteis a contar da notificação da adjudicação a todos os
concorrentes).

Até agora, ninguém duvida, ações deste tipo beneficiavam, por força do disposto
no n.º 1 do artigo 103.º-A do CPTA, do efeito suspensivo automático, com a mera
propositura da ação a servir para «bloquear» os efeitos do ato de adjudicação
impugnado. Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019 a esse
preceito, já não. E é aqui que surge a questão: em que termos é que esta
restrição do âmbito de incidência do efeito suspensivo automático se aplica no
tempo?

III. Aplicação no tempo

Acolhendo aquela que é a regra mais ou menos tradicional do ordenamento


jurídico português em matéria de aplicação de «leis processuais» no tempo,
determina o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 118/2019, na parte que aqui interessa
destacar, que “as alterações efetuadas pela presente lei ao Código de Processo
nos Tribunais Administrativos são imediatamente aplicáveis aos processos
administrativos pendentes”. Simplificando o muito que poderia ser dito sobre
tal disposição transitória, dela se extraem, no essencial, duas regras:

-6-
(i) As alterações agora introduzidas no CPTA repercutem-se, desde logo e
naturalmente, sobre os processos novos ― isto é, sobre as ações de
contencioso pré-contratual que tenham sido ou venham a ser propostas
depois das 00h00 do dia 17 de novembro de 2019;

(ii) Tais alterações também se repercutem em relação aos processos pendentes


― isto é, sobre as ações que tenham sido propostas antes das 00h00 do dia
17 de novembro de 2019.

A primeira não suscita, à partida, dificuldades de maior no contexto particular


das ações administrativas urgentes de contencioso pré-contratual que tenham
por objeto a impugnação de atos de adjudicação. Sendo propostas a partir do
dia 17 de novembro de 2019, só beneficiarão do efeito suspensivo automático se
e na medida em que se reúnam os pressupostos (objetivos e temporais) que
acima se sintetizaram. Assim, e por exemplo, estando em causa um ato de
adjudicação emergente de uma consulta prévia, a sua impugnação jurisdicional
― a partir daquela data ― não espoleta o efeito suspensivo previsto no n.º 1 do
artigo 103.º-A, restando ao autor a possibilidade de requerer medidas
provisórias (cuja concessão depende sempre de decisão do juiz) ao abrigo do
disposto no artigo 103.º-B. Em contrapartida, tratando-se de um ato de
adjudicação emergente de um concurso público cujo anúncio tenha sido objeto
de publicação no JOUE, a respetiva impugnação jurisdicional, espoleta o efeito
suspensivo previsto no n.º 1 do artigo 103.º-A, conquanto a respetiva ação dê
entrada em juízo dentro do «período de standstill»9.

9 Assinale-se apenas a necessidade de ter presente as soluções gerais de direito intertemporal em matéria
de sucessão de prazos que resultam do artigo 297.º do Código Civil, que o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º
118/2019 não afasta, e que se repercutem sobretudo sobre potenciais impugnações de atos de adjudicação
que tenham sido objeto de notificação aos concorrentes em dias anteriormente próximos ao 17/11/2019,
data de entrada em vigor da nova lei. Pense-se, por exemplo, num ato de adjudicação que seja objeto de
notificação aos concorrentes no dia 12/11/2019. Pois bem: (i) não fossem as alterações agora introduzidas
nos artigos 103.º-A e 103.º-B, beneficiaria do efeito suspensivo automático qualquer concorrente que
impugnasse tal ato no prazo de 1 mês (ou seja: até 12/12/2019 [isto tendo presente a orientação
jurisprudencial ― errada, mas não interessa aqui discutir o ponto ― segundo a qual, por se tratar de um
prazo fixado em meses, a aplicação da alínea c) «bloqueia» a aplicação da alínea b) do artigo 279.º do Código
Civil, fazendo-se por isso a contagem «de mês a mês», nela incluindo o dia da própria notificação]); (ii) mas,
por conta dessas alterações, só beneficiará se o propuser a ação dentro do «período de standstill» (que
termina a 26/11/2019 [= 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação]). Fácil é pois verificar
que a entrada em vigor das alterações ao CPTA implica, em casos como este, uma diminuição de um prazo
legal ― leia-se, o prazo (de propositura de uma ação de contencioso pré-contratual) para beneficiar do efeito
suspensivo automático. Por ser assim, e por força do disposto no n.º 1 do artigo 297.º do CC (“a lei que
estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável
aos prazos que já estivem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não
ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar”), o novo prazo [de 10 dias
úteis], embora sendo aplicável, só se conta a partir da data de entrada em vigor da lei nova. No exemplo
dado, isto significa que o efeito suspensivo automático se gera se a ação de contencioso pré-contratual der

-7-
O cenário parece não ser tão linear, contudo, em relação à aplicabilidade das
alterações do CPTA nesta matéria em relação aos processos pendentes. Não
estranhará decerto que se venha a sustentar que, por conta da regra da
aplicação imediata prevista no n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 118/2019, as
alterações agora introduzidas nos artigos 103.º-A e 103.º-B determinarão, por
si só, o «levantamento» do efeito suspensivo automático no âmbito de ações
pendentes que antes dele beneficiavam, mas que agora deixaram de beneficiar.
Exemplificando novamente:

(i) Uma ação de impugnação de um ato de adjudicação relativo a um concurso


público sem publicidade internacional que tenha dado entrada junto de um
tribunal administrativo em setembro de 2019, ainda não decidida em
primeira instância, e no âmbito da qual, ou não tenha sido deduzido
qualquer incidente de levantamento do efeito suspensivo, ou tenha sido
deduzido mas ainda não decidido tal incidente;

(ii) Uma ação de impugnação de um ato de adjudicação relativo a um concurso


público com publicidade internacional que tenha sido proposta em
setembro de 2019, ainda que dentro do prazo de um mês estabelecido no
artigo 101.º do CPTA, já para lá do «período de standstill».

Dir-se-ia que, por força daquela regra de aplicação imediata, casos como estes
seriam imediatamente afetados pela lei nova, razão pela qual onde antes havia
efeito suspensivo automático, agora, por mera ação das alterações legislativas
trazidas pela Lei n.º 118/2019, deixaria de haver. Mais: estando nestes casos
pendentes de decisão incidentes de levantamento do efeito suspensivo,
extinguir-se-iam os mesmos por inutilidade superveniente da lide, pois que, por
via da aplicação imediata da lei nova, o efeito suspensivo, deixando de vigorar,
levantar-se-ia sem mais. Ou, mais ainda: tivessem já sido definitivamente
decididos tais incidentes, e deles tivesse resultado o não levantamento do efeito
suspensivo, mais uma vez da aplicação imediata resultaria, nos casos em que
agora deixou de haver lugar a efeito suspensivo automático, o seu
levantamento ex lege.

entrada até ao dia 29/11/2019 (= 10 dias úteis contados a partir da data entrada em vigor da Lei n.º
118/2019).

-8-
Concede-se que a circunstância de o artigo 13.º da Lei n.º 118/2019 não ter
estabelecido, como talvez em boa política legislativa o devesse ter feito,
qualquer exceção à regra da aplicação imediata da lei nova em relação às
alterações que efetuou a respeito das ações de contencioso pré-contratual,
venha a potenciar interpretações deste género. Sucede que tais interpretações
― e as consequências que delas decorreriam para as ações de contencioso pré-
contratual pendentes ― não são minimamente viáveis à luz do ordenamento
jurídico português. E isto por três motivos:

(i) Desde logo porque, sendo a paralisação automática dos efeitos do ato de
adjudicação impugnado um efeito constituído e geneticamente dependente
da e modelado pela prática de um ato processual específico (a propositura
de uma ação de contencioso pré-contratual), e sendo o n.º 1 do artigo 103.º-
A do CPTA uma disposição que, na sua anterior e na sua atual versão,
atribui e regula esse efeito por causa da prática desse ato processual, a
norma de direito transitório que se aplica é, na realidade, a que consta da
primeira parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil (“quando a lei
dispõe sobre [os efeitos de um facto], entende-se, em caso de dúvida, que só
visa os factos novos”). E, por ser assim, dela resulta a sobrevigência da lei
antiga quanto aos efeitos de atos processuais já praticados em processos
pendentes, sobrevigência essa que só poderia ser afastada se, em solução
específica de direito transitório, se estipulasse de forma expressa a
retroatividade da lei nova em relação a tais atos ― coisa que o n.º 2 do artigo
13.º da Lei n.º 118/2019, ao limitar-se a dispor sobre os processos pendentes,
manifestamente não fez10;

(ii) Em qualquer caso porque, mesmo que se de outra forma se viesse a


interpretar o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 118/2019, e dessa interpretação
viessem a resultar as consequências que acima se equacionaram

10 Concretizando os termos de aplicação da primeira parte do n.º 2 do artigo 12.º do CC em relação aos atos
processuais exatamente nos termos referidos no texto, destacando que “[a] aplicação imediata [da lei
processual] não afeta, salvo retroatividade da lei nova, a validade e a eficácia dos atos praticados antes da
sua vigência, pelo que os atos processuais realizados durante a vigência da lei antiga, em regra, não são
atingidos pelas eventuais alterações introduzidas pela lei nova”, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao
Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 2000, p. 49; destacando também já como «limite» ao princípio da
aplicabilidade imediata das leis processuais a circunstância de “a nova lei deve[r] respeitar os atos
anteriores à sua vigência ― atos cuja regularidade e eficácia continuam a ser aferidos pela lei antiga”, cfr.
M. DOMINGUES DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora,
1979, p. 43; atribuindo por seu turno ao dito princípio da aplicação imediata das leis processuais (também)
o sentido de que “a lei processual se aplica imediatamente aos processos pendentes, pelo que respeita aos
atos que de futuro neles hajam de ser praticados”, cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo
do novo Código Civil, Coimbra: Almedina, 1968, p. 274, nota 210.

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(designadamente: levantamentos imediatos de efeitos suspensivos
automáticos por mera entrada em vigor da lei nova; extinção por
inutilidade superveniente dos incidentes de levantamento pendentes), daí
resultaria a sua inconstitucionalidade material, por violação do
princípio da tutela da confiança (ínsito, nos termos bem consolidados
na nossa jurisprudência constitucional, no princípio do Estado de Direito:
artigo 2.º da Constituição). Na realidade, e sem que pareça necessário
desenvolver muito o ponto, aquelas consequências determinariam, de
forma não-contrabalançada por qualquer outra norma de estalão
constitucional, a supressão de posições de vantagem já constituídas (vulgo,
«legítimas expetativas») ― in casu, o «direito» dos autores de ações de
contencioso pré-contratual propostas antes do dia 17 de novembro de 2019
de beneficiarem da suspensão automática dos efeitos do ato de adjudicação
impugnado até decisão jurisdicional que a reverta11;

(iii) Em terceiro lugar porque, agora especificamente em relação a hipóteses


em que, no contexto de ações de contencioso pré-contratual pendentes, já
tenham sido proferidas e transitado em julgado decisões (de
improcedência) de incidentes de levantamento do efeito suspensivo
automático, a repercussão imediata (em rigor: retroativa) da lei nova ― com
o (supostamente) consequente levantamento ex lege do efeito suspensivo
nos casos em que ele agora deixou de ter cabimento legal ― implicaria nova
inconstitucionalidade material, desta feita por violação do princípio
da intangibilidade do caso julgado por leis retroativas (o qual se
extrai, salvo em matéria sancionatória e em cenário de favorabilidade da
lei nova, a simile do n.º 3 do artigo 282.º da Constituição)12.

IV. Conclusão

Em suma:

11 Mais uma vez no sentido que se entende correto, assinalando que, no domínio da aplicação temporal das
normas processuais, “a regra da aplicação imediata também não pode ser seguida quando haja que
acautelar as legítimas expetativas das partes”, exemplificando de seguida com a hipótese ― que tem algum
paralelo com o caso do texto ― em que uma lei nova venha a restringir as possibilidades de recurso que
vigoravam à data de propositura da ação, cfr., novamente, M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução, p. 50.
12 Sobre este limite à retroatividade da lei nova, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução do Direito, Coimbra:
Almedina, 2012, pp. 292-293.

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(i) As alterações que por força da entrada em vigor da Lei n.º 118/2019 foram
introduzidas a propósito do âmbito de incidência do efeito suspensivo
automático de atos de adjudicação não se repercutem sobre as ações
administrativas urgentes de contencioso pré-contratual/incidentes de
levantamento pendentes;

(ii) Deste modo, se, por força da anterior versão do n.º 1 do artigo 103.º-A do
CPTA, o autor de uma ação de contencioso pré-contratual pendente ― isto
é: que tenha sido proposta antes do dia 17 de novembro de 201913 ―
beneficia do efeito suspensivo automático sobre o ato de adjudicação
impugnado, continuará dele a beneficiar desde essa data em diante, só
podendo o mesmo vir a ser revertido por decisão jurisdicional proferida no
âmbito de um incidente de levantamento14.

13 Sublinha-se que o que releva para que se gere o efeito suspensivo automático é a propositura da ação, não
a citação da entidade demandada, pois que uma coisa é o efeito legal de suspensão dos efeitos da adjudicação
(cujo facto constitutivo é a propositura da ação) e outra, diferente, é a proibição de a entidade adjudicante
executar ato de adjudicação (cujo facto constitutivo é, naturalmente, a citação). Neste preciso sentido, cfr.
M. AROSO DE ALMEIDA/C. A. FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 837-838 e 841.
14 Um apontamento final: o texto dedicou-se apenas a apurar o impacto da entrada em vigor da Lei n.º
118/2019 sobre o âmbito de incidência do efeito suspensivo automático, deixando assim de fora outras
questões que, a propósito das ações de contencioso pré-contratual, também podem em tese suscitar-se à luz
das demais alterações agora introduzidas nos artigos 103.º-A e 103.º-B (e, bem assim, no artigo 143.º) do
CPTA. Pense-se, por exemplo, na questão de saber em que termos é que o critério decisório dos incidentes
de levantamento de efeito suspensivo agora renovadamente inscrito no n.º 4 do artigo 103.º-A se aplica a
incidentes pendentes ou que venham a deduzir-se no âmbito de ações de contencioso pré-contratual já
pendentes. Ou ainda na questão de saber em que termos é que estipulação de efeito meramente devolutivo
para o recurso de decisões proferidas no âmbito de incidentes de levantamento do efeito suspensivo (cfr. a
nova alínea c) do n.º 1 do artigo 143.º) se aplica a decisões que, por referência a incidentes pendentes,
venham entretanto a ser objeto de recurso. Uma e outra questão mereceriam certamente alguns
desenvolvimentos, mas a verdade é que, segundo se julga, a entrada Lei n.º 118/2019 não comportou a
propósito de nenhuma delas qualquer alteração normativa propriamente dita, mas antes meras alterações
de redação que, não obstante clarificadoras, não modificaram verdadeiramente o status quo ante.

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