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do Estado
Um debate urgente
sobre Portugal
e52e68fc-bdff-4491-aca4-f54dbe36314e
Em que estado está a administração pública?
O Estado emprega mais de 741
mil trabalhadores, o número
mais alto da década. E, no
entanto, há alunos que ficam
durante meses sem aulas por
falta de professores, e mais de
um milhão de portugueses
não têm médico de família.
O país tem a função pública
de que precisa? Em Junho de
2022 publicámos o grande
retrato da Administração
Pública. E lançámos o debate.
Nesta edição reunimos a série
completa de reportagens,
entrevistas e análises. Que
pode também ver aqui.
2
O estado do Estado: um debate
urgente sobre Portugal
Editorial Manuel Carvalho
LER ARTIGO
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Capítulo 1
Uma questão de números?
Função pública em máximos de 2005
enfrenta crise de credibilidade
Raquel Martins
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1. Educação
Falta de professores será pior na região Centro
Clara Viana
LER ARTIGO
2. Saúde
Médicos com mais de 65 anos representam 24% do total
Clara Viana
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3
Em que estado está a administração pública?
3. Forças de segurança
Baixos salários e média de idades acima
dos 40. PSP, GNR e PJ têm falta de efectivos
Sónia Trigueirão
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4. Justiça
Faltam mais de mil funcionários judiciais
Sónia Trigueirão
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Testemunhos
Em que estado está a função pública?
O diagnóstico dos políticos e as medidas
que propõem
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4
PSD: “Sufoco fiscal não corresponde
a serviços públicos de qualidade"
Paulo Mota Pinto
Líder da bancada parlamentar do PSD
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5
Em que estado está a administração pública?
LER ARTIGO
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Capítulo 2
Envelhecimento
Envelhecimento na função pública é transversal
e tende a piorar. “Faz perigar o Estado social”
Patrícia Carvalho
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6
O problema não é só nosso:
procuram-se soluções para
o envelhecimento da função pública
Patrícia Carvalho
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7
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 3
Público vs Privado
Ser professor no ensino público ou no privado?
O que levou Maria e Vítor a escolher
Reportagem Daniela Carmo (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia)
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8
Capítulo 4
Planeamento
“Somos um Estado com uma grande miopia
estratégica”
Liliana Borges
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9
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 5
Corrupção
Processos por crimes de corrupção
em máximos desde 2011
Maria Lopes
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Capítulo 6
Defesa
O imbróglio de umas Forças Armadas
sem efectivos e com poucos recursos
Nuno Ribeiro
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10
O estado do Estado:
um debate urgente
sobre Portugal
A
discussão em torno das competências ou da dimensão do
Estado português nem sempre escapa ao maniqueísmo das
visões do mundo a preto e branco. Há demasiados funcionários
públicos ou são insuficientes, ganham mal ou são privilegiados,
trabalham muito ou são preguiçosos, respondem às necessidades
da sociedade ou estão longe de as satisfazer. Marcada pela saudável
divergência de concepções políticas ou avaliações pessoais, a discussão
tem de passar pelo que aprendemos colectivamente com a pandemia.
Sem o desempenho do Serviço Nacional de Saúde ou sem os apoios
estatais à economia, a crise da covid-19 teria sido muito pior.
O debate que o PÚBLICO lança em torno do estado do Estado parte
desta premissa básica. Portugal precisa de uma administração pública
forte, motivada e competente. Mas tem de ajustar esta ambição às
11
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
12
mitos
(ou talvez
não) sobre
a função
pública
Trabalham menos? Reformam-se mais cedo?
Dos horários semanais aos dias de férias, uma análise ao
que une e distingue a função pública do sector privado
Perguntas e respostas Raquel Martins
13
Em que estado está a administração pública?
14
2. Trabalham menos horas do que no sector privado?
No sector público, o período normal de trabalho é de 35 horas por
semana (sete horas por dia), enquanto no privado a lei prevê 40 horas
semanais (oito horas diárias).
Contudo, esta diferença não se verifica em todos os sectores de
actividade, uma vez que os contratos colectivos podem estabelecer
tempos de trabalho inferiores a 40 horas. Olhando para as
convenções publicadas em 2020, a maior parte adopta a duração
máxima de 40 horas, coincidindo com o limite previsto no Código
do Trabalho, enquanto 30% fixa um período normal de trabalho de
35 horas (sobretudo nos sectores da banca, seguros e educação) ou
entre 37 e 39 horas.
Conclusão: é verdade que os funcionários públicos trabalham menos
horas por semana, mas também no privado há sectores onde o período
normal de trabalho é inferior às 40 horas.
22
aumentando até ao máximo de quatro
dias. A Lei Geral do Trabalho em
Funções Públicas prevê que, por cada
O número de dias dez anos de serviço, acresce um dia de
de férias previstos por férias, ou seja, um funcionário público
lei no sector público e com 40 anos de serviço terá mais quatro
no privado (no Estado, dias de férias, totalizando 26 dias anuais.
os trabalhadores têm Além disso, a duração do período de
mais um dia de férias férias pode ser aumentada no quadro de
por cada dez anos de sistemas de recompensa do desempenho
serviço) previstos na lei ou em instrumentos
15
Em que estado está a administração pública?
16
Reformam-se mais cedo e com reformas mais altas?
Média de idades dos novos pensionistas, em anos
17
Em que estado está a administração pública?
18
remuneração-base correspondente à primeira posição remuneratória
da categoria de assistente, da carreira especial médica ou da carreira
médica) e não pecuniários. O programa de incentivo à mobilidade para
o interior, lançado em 2019, também teve um impacto marginal, pois
apenas dez trabalhadores aderiram.
VOLTAR AO ÍNDICE
19
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 1
Uma questão
de números?
20
Função pública em
máximos de 2005
enfrenta crise
de credibilidade
A administração pública portuguesa emprega 741.288
trabalhadores, o número mais alto em 17 anos.
Ainda assim, o sector enfrenta dificuldades em atrair
trabalhadores qualificados e em mobilizar os recursos
para onde são necessários
21
Em que estado está a administração pública?
Raquel Martins
P
ortugal tem neste momento o número mais elevado de
funcionários públicos desde 2005, mas ainda assim o sector
público vive uma crise de recursos humanos que se manifesta
na dificuldade de atrair e reter os mais qualificados, na falta de
trabalhadores em algumas áreas ou na incapacidade de mobilizar os
recursos para onde são mais necessários no presente e no futuro.
João Bilhim, antigo presidente da Comissão de Recrutamento e
Selecção para a Administração Pública (Cresap) e professor catedrático
jubilado, considera que o sector público atravessa, sobretudo, uma crise
de credibilidade.
“Não me parece que a maré esteja alta para atrair e seduzir os melhores
quadros para as fileiras do sector público”, sublinha. É que, continua,
“se há aspectos nos mercados de trabalho públicos que continuam a
750 741.288
727.785
700
650
656.376
Valor mais baixo registado
600 entre 2011 e 2020
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022
Nota: os dados apresentados resultam da conjugação do Inquérito aos Recursos Humanos da Função
Pública (1979, 1983, 1986), do 1.º e 2.º Recenseamentos Gerais da Função Pública (1996, 1999), da Base
de Dados da Administração Pública (2005) e do Sistema de Informação da Organização
do Estado (SIOE) (a partir de 2007)
22
ser apelativos para certos perfis psicológicos, tais como o exercício da
autoridade, a estabilidade e a pertença a uma certa elite protectora”, há
outros aspectos “como o salário para certas categorias (os quadros do
sector privado ganham em média mais), a infeliz associação no imaginário
popular entre funcionário e político desacreditado ou o desprestígio das
instituições” que afastam os candidatos.
Resultado, “entre ter na lapela o nome de uma empresa privada e ter
o nome de uma instituição pública, o coração creio que se inclina para a
privada”.
“Perdeu-se o sentido de missão pública que ainda teria força para
atrair alguns”, lamenta. O grande desafio é voltar a credibilizar o sistema
público, “prestigiar as instituições, a política e o serviço público como
serviço à comunidade”.
José Luís Nascimento, professor no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas com um doutoramento na área dos recursos humanos,
corrobora esta visão e lamenta que não se estude de forma sistemática os
94.730
Contrato
a termo
73.799
Nomeação
23.090
Comissão de serviço/ 11.121
/cargo pol./mandato Fundos de Segurança Social
23
Em que estado está a administração pública?
47,5
47,72 anos perspectiva, é isso que explica
que se abram vagas e se tenha
dificuldade em preenchê-
45,0 las, como aconteceu com o
recrutamento centralizado de
42,5
43,64 técnicos superiores ou com
o concurso para contratar
médicos de medicina geral e
40,0
2011 2013 2015 2017 2020 familiar, em que um terço das
vagas ficou por preencher.
“Há 20 ou 30 anos, as pessoas valorizavam muito mais o emprego para
a vida do que valorizam hoje”. Agora, observa a deputada socialista, os
jovens quando saem da universidade querem ter outras experiências e só
mais tarde, com o nascimento do primeiro filho, voltam a valorizar essa
estabilidade.
Salários e progressão
Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO defendem que para tornar o
Estado mais atractivo é preciso dar atenção a factores como os salários
24
ou a perspectiva de progressão nas várias carreiras. Mas nas últimas
legislaturas, a estratégia do Governo tem sido actuar ao nível dos
aumentos do salário mínimo (que em 2022 é de 705 euros mensais),
que abrange as carreiras menos qualificadas da função pública e tem
provocado uma compressão da Tabela Remuneratória Única (TRU).
Por um lado, os assistentes operacionais têm uma perspectiva de
carreira cada vez mais reduzida, uma vez que os primeiros quatro níveis
foram absorvidos pelo
Distribuição dos salário mínimo; por outro
trabalhadores por género
lado, a diferença entre os
assistentes operacionais
e os assistentes técnicos
esbateu-se [neste momento é
inferior a cinco euros]. Além
disso, os técnicos superiores
38,3% 61,7% estão também cada vez
Homens Mulheres mais próximos destas duas
carreiras.
“Esta atractividade tem
mesmo de passar por uma
descompressão da Tabela
Remuneratória Única. Em
50%
qualquer carreira, a pessoa
tem de ter alguma noção de progressão”, defende a antiga ministra
Alexandra Leitão, lamentando que a pandemia tenha deixado um
conjunto de reformas pelo caminho.
Já para o professor a Universidade de Aveiro, Miguel Lucas Pires,
a revisão do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da
Administração Pública (SIADAP) é crucial. “O facto de só uma
pequeníssima parte dos trabalhadores poder ter a classificação máxima vai
limitar muito a progressão e vai torná-la mais lenta porque só ao fim de 10
25
Em que estado está a administração pública?
26
de funcionários públicos. No final de Março, a administração pública
portuguesa empregava 741.288 trabalhadores, o número mais alto
em 17 anos e que corresponde a um pouco mais de 15% da população
empregada. Porém, pondo em perspectiva e, de acordo com os dados
mais recentes da OCDE, este rácio era de 14,07% em 2019, ficando muito
abaixo da média de 17,91% dos 34 países analisados.
Nos últimos anos, e mais recentemente por causa da pandemia,
o aumento do emprego público tem-se feito sobretudo na saúde
e da educação. Cerca de 45% do aumento de 15.821 do número de
trabalhadores registado entre o primeiro trimestre de 2021 e o de 2022
ocorreu nos hospitais e nas escolas do básico e secundário. Porém,
estas são também as áreas onde a escassez de recursos humanos mais
se tem manifestado.
Num universo tão vasto como o da Administração Pública é difícil
concluir se há funcionários a mais ou menos para as funções que o Estado
0,46
0
0,95
Público
-2
-4
Mar. 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 Mar. 2022
27
Em que estado está a administração pública?
28
“Temos de começar a perspectivar áreas de recursos humanos onde,
mesmo no privado, só agora começa a haver investimento. Uma das áreas
é a big data, a utilização de modelos de inteligência artificial de elevada
complexidade, ou a tendência para as redes sociais do trabalho serem
substituídas por redes virtuais e pelo trabalho à distância”, antecipa.
A Administração Pública, sublinha, é “fortemente regulamentada” e, por
isso, “perde capacidade de flexibilidade e de adaptação a novos contextos”.
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Em que estado está a administração pública?
PAULO PIMENTA
Educação
Falta de professores
será pior na região Centro
Clara Viana
A
té ao ano lectivo de 2030/2031, será necessário recrutar em
média 3450 novos professores por ano para garantir que
todos os alunos tenham aulas a todas as disciplinas, o que
não tem acontecido nos últimos anos. No final deste ano
lectivo, há ainda sete mil alunos que não têm professores a todas as
disciplinas. No início do 3.º período, eram cerca de 20 mil.
30
As projecções das necessidades docentes até 2030/31 foram feitas por
uma equipa da Nova SBE, por pedido do Ministério da Educação. Têm
em conta sobretudo a evolução do número de alunos e as previsões de
aposentação dos professores. Para estas contas, não entram, portanto,
os docentes que vão entrando de baixa médica, que é a situação que, por
agora, tem provocado mais escassez temporária de docentes.
Actualmente, são cerca de 120 mil os professores que leccionam no
ensino público. Destes, cerca de 47 mil irão passar à reforma até 2030/31.
A região Centro será a mais fustigada por esta vaga, prevendo-se uma
redução de 43% nos seus efectivos docentes. O Algarve é a região que
apresenta “melhores” perspectivas, com uma redução estimada de 30%.
Em 2019/2020, último ano com dados divulgados, a média de idades
dos professores do ensino básico e secundário, no sector público, era
de 51,5 anos. Para garantir a sua substituição, será preciso recrutar,
nos próximos anos, um total de 34.508 novos docentes. E só não serão
precisos mais porque o número de alunos no ensino público também está
em queda, resultado da quebra da natalidade registada nos últimos anos.
Dos professores em exercício em 2019/2020, a maior parte pertencia
aos quadros (cerca de 83%). Em todos os níveis de ensino, a percentagem
de contratados tem diminuído devido às vinculações que têm vindo a ser
feitas para cumprir uma directiva da Comissão Europeia que impede o
abuso no recurso ao trabalho a prazo.
Apesar de após a reforma de Bolonha no ensino superior, em 2006, ter
passado a ser condição para o acesso à docência ter-se o grau de mestre,
a maioria dos docentes em exercício, por se ter formado antes, é detentor
de uma licenciatura ou equiparado (cerca de 80%) e ainda há quem esteja
em funções tendo só um bacharelato (perto de 10%).
31
Em que estado está a administração pública?
RUI GAUDÊNCIO
Saúde
Médicos com mais de 65 anos
representam 24% do total
Clara Viana
C
erca de 30% dos médicos pediatras têm idades superiores a 65
anos, o que torna esta especialidade uma das mais envelhecidas
no que respeita aos recursos humanos disponíveis. Segundo
dados da Ordem dos Médicos (OM), relativos a 2021, dos 59.545
clínicos das diferentes especialidades que estão inscritos na Ordem, 24%
estavam acima dos 65 anos, enquanto 17,4% tinham menos de 31.
32
Por comparação aos dados de 2020, há a registar um aumento do
número de médicos, cujo total passou de 57.976 para 59.545, tendo
o conjunto de médicos acima dos 65 anos aumentado de 13.010 para
14.276 clínicos.
Ainda de acordo com os dados da OM, a especialidade mais envelhecida
é a Medicina Geral e Familiar: cerca de 40% dos clínicos deste grupo têm
idades superiores a 65 anos.
Olhando para as Estatísticas da Saúde de 2020, divulgadas pelo Instituto
Nacional de Estatística recentemente, constata-se que no final desse ano
estavam ao serviço nos hospitais 26.249 médicos, o que representa mais
466 do que no ano anterior. Dados provisórios da Pordata dão conta de
que a maioria destes clínicos (24.858) exercia funções nos hospitais do
Serviço Nacional de Saúde, ou seja, mais quatro mil do que em 2019.
Já nos centros de saúde serão necessários mais 780 médicos de família
para garantir a cobertura total da população residente. Nos centros
estavam em funções, no final de 2020, 5659 médicos de família.
No final de Abril passado, o número de utentes sem médico de família
era de 1,3 milhões, que representam 12,3% do total de inscritos. A região
de Lisboa e Vale do Tejo, que está à frente no número de utentes, é a que
mais carência apresenta: mais de 925 mil pessoas não têm médico de
família (24% dos inscritos).
Esta situação pode piorar já este ano, caso a maior parte daqueles
que chegam em 2022 à idade legal de aposentação decida reformar-se
em vez de optar por ficar até aos 70 anos no Serviço Nacional de Saúde:
1089 médicos de família estão em condições de sair dos centros de saúde,
segundo contas transmitidas ao PÚBLICO pelo coordenador do grupo
para a reforma dos cuidados de saúde primários, João Rodrigues.
33
Em que estado está a administração pública?
DR
Forças de segurança
Baixos salários e média de idades
acima dos 40. PSP, GNR e PJ têm
falta de efectivos
Sónia Trigueirão
S
eja na Polícia de Segurança Pública (PSP), na Guarda Nacional
Republicana (GNR) e na Polícia Judiciária (PJ) o cenário é o mesmo:
o efectivo está envelhecido e nunca é suficiente para as necessidades
dos serviços. Na GNR e na PSP destacam-se ainda outros factores
34
como os baixos salários e um risco pouco ou nada compensado que
reduzem a atractividade das carreiras nestas forças de segurança.
Na PSP, por exemplo, a falta de candidatos já levou a que a idade
de candidatura fosse antecipada dos 19 para os 18 anos, e que a idade
máxima de admissão aumentasse para os 30, em vez dos 27 anos.
Em 2020, Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos
Profissionais da Polícia (ASPP/PSP), já estimava que, “no mínimo, deviam
entrar para a PSP quatro mil polícias até 2023”, uma vez que até essa
data, as previsões apontavam para uma saída de 3600 polícias por limite
de idade. O equilíbrio entre as entradas e saídas seria atingido se fossem
recrutados anualmente, até 2023, pelo menos mil novos elementos.
O efectivo da PSP ronda os 19 mil, mas o problema é que nem todos
estão a desempenhar serviço policial como, por exemplo, nos carros
de patrulha, no serviço 112 ou no policiamento de proximidade, explica
ao PÚBLICO o sindicalista. “Por isso, dizemos que para aquilo que é o
trabalho policial faltam efectivos”, afirma, sublinhando que há bloqueios
ao nível da aposentação porque não há candidatos para a PSP. “Muitos
agentes estão a ver recusados os pedidos de pré-aposentação e alguns
até têm baixas prolongadas”, diz acrescentando que estão no quadro
orgânico, mas não ao serviço da população.
“Em muitos comandos do país, como Vila Real, Guarda, Portalegre,
Beja e Évora, temos situações em que o pessoal já ultrapassa os 50 anos
de idade”, relata. E onde há mais falta de efectivos? Paulo Santos diz que
faltam por todo o país.
O presidente da ASPP/PSP defende que há três factores para que a
carreira seja pouco atractiva. Em primeiro lugar, a tabela remuneratória que
é muito baixa, uma vez que um agente inicia a sua carreira com 809 euros.
“Para um candidato que vem de Bragança trabalhar para Lisboa os
primeiros 10 anos de serviço e tendo em conta aquilo que são os valores
das rendas e as necessidades do serviço, 809 euros é muito baixo”,
sublinha, para a seguir enumerar outro factor: o valor do subsídio de
35
Em que estado está a administração pública?
36
200 ou 300 de cada vez. “A GNR tem um défice entre quatro a cinco mil
elementos”, afirma, sublinhando que, tal como a PSP, o efectivo da GNR
tem um problema de idade cuja média está entre os 40 e os 45 anos.
“Cada vez é mais difícil recrutar. Ainda vamos tendo candidatos, mas
não em números com tínhamos há uns anos. Posso dar-lhe um exemplo,
para mil vagas antigamente tínhamos 16 mil candidatos. Actualmente
nem chega a esse número”, explica o sindicalista, acrescentando que “a
carreira também não é aliciante”.
De acordo com César Nogueira, “um guarda em início de carreira
ganha pouco mais do que o ordenado mínimo e tem de se deslocar para
300 ou 400 km de casa”. “Desde 2009 que a carreira remuneratória não
muda. Já houve actualizações noutras instituições, mas na GNR não. O
que desmotiva”, desabafa.
Onde se nota mais a falta de efectivos é no interior e também no litoral,
indica. “Temos postos em que não é possível ter uma única patrulha e
às vezes temos apenas um elemento a fazer patrulhas o que a nível de
segurança não é o ideal”, refere.
E os números corroboram o que diz César Nogueira. A GNR também
ainda não tem o relatório social de 2021 disponível, por isso recorremos
ao do ano anterior. Segundo o documento, em 31 de Dezembro de 2020,
contabilizavam-se 22.353 trabalhadores em efectividade de funções. Fruto
da sua natureza, a Guarda é uma instituição maioritariamente constituída
por militares, 21.553 (96,42%) do efectivo.
Registou-se um decréscimo de 2,15% do efectivo militar, quando
comparado com 2019. Os grupos etários mais representativos estão no
intervalo dos 40-44 anos, com 5039 trabalhadores, seguido do intervalo
35-39 anos com 4183 trabalhadores.
O nível de antiguidade mais representativo situa-se no intervalo dos
20-24 anos, com 4106 trabalhadores e verifica-se que que 10,59% dos
efectivos (2.367) detêm mais de 35 anos de serviço.
37
Em que estado está a administração pública?
38
NUNO FERREIRA SANTOS
Justiça
Faltam mais de mil
funcionários judiciais
Sónia Trigueirão
N
a área da Justiça, o calcanhar de Aquiles está na carência
generalizada de oficiais de justiça e de procuradores, apontada
como a causa de atrasos em vários processos. Aliás, um
exemplo disso mesmo foi dado recentemente, quando a revista
Visão dava conta de que o juiz Carlos Alexandre decidiu adiar várias
decisões instrutórias, entre as quais a do caso dos e-mails do Benfica
39
Em que estado está a administração pública?
40
O problema da idade também é referido, uma vez que contribui para
uma elevada taxa de absentismo por doença: há comarcas em que a
média de idades está acima dos 55 anos, sendo que na de Faro a média é
de 60 anos.
No que diz respeito à carreira dos oficiais de justiça, o problema é
ela estar estagnada há vários anos. “Somos mal pagos e não somos
remunerados pelas horas além do horário normal”, sublinha o SFJ,
segundo o qual, “há oficiais de justiça há mais de 20 anos na base da
carreira a aguardar por uma promoção que tarda em vir”.
41
Em que estado está a administração pública?
Governo quer
avançar com
recrutamento
de dirigentes
por equipa
A iniciativa foi revelada ao PÚBLICO pela secretária
de Estado da Administração Pública, Inês Ramires
Raquel Martins
O
Governo quer reformular os concursos para os dirigentes de
topo dos organismos públicos, permitindo que o recrutamento
possa ser feito por equipas. A intenção foi avançada pela
secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires.
Mantendo o modelo da Comissão de Recrutamento e Selecção para a
Administração Pública (Cresap), o executivo promete, no seu programa,
aperfeiçoar o processo de selecção dos dirigentes superiores à luz dos
problemas que têm vindo a ser identificados. Um desses problemas é o
facto de o recrutamento dos vários membros de uma direcção ter de ser
feito de forma individual, não havendo possibilidade de se recrutarem
os dirigentes por equipas e como um todo. Na prática, isto leva a que os
dirigentes máximos de um determinado serviço sejam designados em
42
NUNO FERREIRA SANTOS
43
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
44
Em que estado
está a função
pública?
O diagnóstico
dos políticos
e as medidas
que propõem
Testemunhos A pergunta foi feita a todos os grupos
parlamentares e deputados únicos. Em que estado está
a função pública? Estas são as medidas que se impõem,
nas suas visões
45
Em que estado está a administração pública?
DR
PS É essencial desenvolver
novos modelos de trabalho
Pedro Cegonho, Deputado e Coordenador do GPPS
na Comissão de Administração Pública, Poder Local
e Ordenamento do Território
A
atracção de talentos e a sua retenção na Administração
Pública são o principal desafio para que os serviços
públicos sejam qualificados e capazes de dar as respostas
adequadas aos cidadãos e às empresas, com celeridade,
eficácia e proximidade. A resposta ao necessário rejuvenescimento
46
e capacitação da função pública não está desconexa da necessidade
permanente de aperfeiçoamento e de simplificação dos diversos
processos e procedimentos administrativos e organizacionais, bem
como do desenvolvimento de novas tecnologias no sector público e da
disponibilização de soluções inovadoras de prestação de serviços públicos.
Para isso, é essencial desenvolver novos modelos de trabalho na
Administração Pública, nomeadamente o teletrabalho, considerando
e integrando a possibilidade de criar redes de proximidade em todo o
território, e estabelecendo incentivos para a deslocalização de postos de
trabalho para zonas do interior ou para fora dos grandes centros urbanos.
Ao dar prioridade a capacitar a Administração Pública, a nosso ver,
trata-se de apostar em formação dos trabalhadores, através de parcerias
com as instituições de ensino superior, e, por exemplo, promover a
valorização adicional aos titulares de doutoramento já integrados na
Administração Pública.
É importante não esquecer que, até 2026, prevêem-se investimentos
na Administração Pública com fundos do Plano de Recuperação
e Resiliência (PRR) na ordem dos 578 milhões de euros, sendo 188
milhões de euros destinados ao financiamento da reformulação do
atendimento dos serviços públicos e consulares, disponibilizando um
atendimento uniforme e omnicanal dos serviços mais procurados,
respeitando o princípio do once only, e sendo acessíveis através de
identidade electrónica. Outros 70 milhões de euros são dirigidos para
o financiamento dos serviços electrónicos sustentáveis baseados
na interoperabilidade e utilização dos dados, 47 milhões para a
cibersegurança e confiança na adopção de serviços electrónicos, 83
milhões para infra-estruturas críticas eficientes, seguras e partilhadas,
e mais 88 milhões de euros consignados para a capacitação da
Administração Pública.
47
Em que estado está a administração pública?
RUI GAUDÊNCIO
A
função pública está, desde logo, desmotivada. Infelizmente, ao
verdadeiro sufoco fiscal existente não correspondem serviços
públicos de qualidade. Falta qualidade no acesso a respostas
públicas básicas e dignidade salarial em muitas profissões.
48
Esta situação perturba e desmotiva os bons funcionários públicos. Os
problemas não são, naturalmente, todos iguais em todos os sectores e
não podemos generalizar, mas a nota dominante é a da falta de rigor e
valorização do serviço público.
Pensemos no caso da educação onde, de ano para ano, os rankings das
melhores escolas são cada vez mais dominados por colégios privados.
Como é possível que os privados consigam gerir com maior eficiência,
com custo por aluno inferior, com melhores resultados e ainda obtenham
lucro? E que o Estado, num sistema deficitário, tenha cada vez piores
resultados? O mesmo se aplica aos serviços de saúde onde, não raras
vezes, não há orientação suficiente para que os serviços públicos sequer
atendam o telefone ou respondam a e-mails.
Do ponto de vista do PSD, aos impostos altos que temos têm de
corresponder serviços de excelência e salários dignos para profissões
cruciais, como são exemplo claro as da saúde e educação, entre outras. Se
tivermos melhores serviços públicos e profissionais valorizados teremos
uma função pública completamente diferente. Infelizmente, nos últimos
anos, o Governo tem aumentado o número de funcionários no Estado em
vez de valorizar os recursos existentes e melhorar a gestão dos serviços.
Para o PSD, a prioridade das prioridades deve ser garantir que a
impostos altos corresponde acesso universal a serviços e profissionais de
excelência, motivados e a trabalhar com dignidade.
49
Em que estado está a administração pública?
RUI GAUDÊNCIO
O
Chega tem apresentado aqueles que considera serem os pontos
críticos da Administração Pública. É urgente, antes de aplicar
qualquer “medida de choque”, que seja diagnosticado onde
está o problema de uma máquina pesada, descontextualizada
para as actuais necessidades e que acumula desperdícios atrás de
50
desperdícios, com sobreposição de funções e tarefas, e que, no final do
processo, mais não faz do que aumentar a burocracia. O aparelho do
Estado tem de ser, de uma vez por todas, auditado; tem que ser feita uma
auditoria que permita aferir as reais necessidades e, posteriormente, uma
consequente elaboração de um organograma, complexo certamente,
mas eficaz, reduzindo as duplicações de tarefas e competências que se
encontram, neste momento, sem rumo e sem conhecimento por parte de
quem dirige todo o processo da Administração Pública.
É impensável manter uma macroestrutura baseada em necessidades
avulsas que, por mera dependência do Ministério ou Secretaria de Estado
errados, determinem a criação de “um mesmo” departamento com as
mesmas funções ou similares, no âmbito de actuação de outro Ministério.
Reafirmamos, por isso, a necessidade urgente de realizar uma auditoria
aos serviços, evitando o desperdício de meios financeiros, humanos e
materiais que neste momento existe.
A reforma séria da Administração Pública passa também pela urgente
necessidade de rever a forma de progressão de carreiras. O actual
sistema, SIADAP, possibilita a progressão de carreira de 10 em 10 anos, o
que torna a Administração Pública desinteressante, não valoriza o mérito,
promove o absentismo e contraria o primado de dedicação à função que
os trabalhadores desempenham.
Chegou o momento de olharmos para o Estado com eficácia
e eficiência, com objectivos claros, em que a modernização e a
digitalização sejam realmente um vector importante, mas assente
numa nova lógica de separação e “arrumação” de tarefas e
competências, garantindo que quem se esforça e tem mérito seja
reconhecido pelo trabalho desenvolvido em prol da causa pública. Isso
só pode ser feito com regulamentação séria das carreiras, progressão
de carreiras assente no mérito e aumento de vencimentos com base na
análise do valor da inflação.
51
Em que estado está a administração pública?
DR
Q
uando alguém chama a atenção para um problema de
funcionamento na Administração Pública, a resposta é quase
sempre a mesma: é preciso mais recursos, ou seja, é preciso
mais dinheiro dos contribuintes para colmatar as suas falhas.
Independentemente da área onde essas falhas são verificadas, a solução
não muda. No entanto, há algo que falha nesse raciocínio. Para os serviços
52
públicos funcionarem bem, não basta atirar dinheiro, é também preciso
que haja boa gestão e incentivos à eficiência.
Em muitos casos ainda hoje isso não acontece. Quando as melhores
escolas privadas, com as melhores condições, têm uma mensalidade
por aluno inferior ao custo desses alunos na escola pública para os
contribuintes, percebemos que há um problema de gestão de recursos
públicos. Quando um médico consegue dar mais consultas num hospital
privado do que num hospital público (e, por isso, recebe mais) sabemos
que há um problema de eficiência na organização da Função Pública.
A ineficiência na gestão é a pior forma de desperdício de recursos.
Os recursos desperdiçados pela ineficiência são recursos subtraídos aos
contribuintes, mas que não têm qualquer efeito no fornecimento de bons
serviços públicos. A ineficiência na gestão pública é um buraco sem fundo
responsável pela elevada carga fiscal e insuficiência e degradação dos
serviços ao público.
Há várias formas de resolver estes problemas. A primeira é criar
mecanismos de transparência e avaliação de performance que criem
incentivos à gestão eficiente. A segunda maneira é utilizar a pressão à
eficiência que só a concorrência pode trazer. Para este último objectivo, a
possibilidade de liberdade de escolha por parte dos utentes dos serviços
de saúde e para os pais no caso das escolas é essencial.
É importante que o dinheiro do Estado para serviços de saúde e
educação vá para as organizações (públicas ou privadas) capazes de
providenciar o melhor serviço aos cidadãos ao melhor preço para os
contribuintes. Além de garantir liberdade de escolha às pessoas, isso
colocaria pressão nos prestadores públicos para serem melhores e
gerirem os recursos da forma mais eficiente.
Melhorar os serviços públicos, taxando menos os contribuintes, não
só é possível como é o único caminho possível para um país com elevada
carga fiscal e má qualidade dos serviços prestados.
53
Em que estado está a administração pública?
DR
PCP Trabalhadores
têm de ser valorizados
Diana Ferreira, deputada
A
existência de serviços públicos de qualidade e proximidade,
que respondam às necessidades das populações e que
concretizem as funções sociais do Estado conforme
consagradas na Constituição da República Portuguesa, exige
trabalhadores em número suficiente e devidamente valorizados nas suas
carreiras e remunerações.
54
Se ainda num passado recente os trabalhadores da Administração
Pública foram considerados (e bem) fundamentais e imprescindíveis
no combate à epidemia no nosso país — não só no SNS, mas também na
Escola Pública, na Segurança Social, nas forças e serviços de segurança,
na Administração Local, entre outros sectores da Administração Pública
que mantiveram o país a funcionar — esse reconhecimento não se
traduziu em mais do que aplausos e elogios por parte dos Governos, que
continuam a desvalorizar os trabalhadores da Administração Pública e,
com isso, os serviços públicos e as Funções Sociais do Estado.
Os trabalhadores da Administração Pública continuam a perder poder
de compra (uma perda acumulada com mais de uma década), continuam
a ter baixos salários, continuam a ser poucos para responder a uma rede
de serviços públicos que tem que ser de qualidade e de proximidade às
populações, continuam a ter vínculos precários, carreiras desvalorizadas,
progressões que, na prática, não se verificam.
E o último Orçamento do Estado da maioria absoluta do PS fugiu à
resposta urgente que é necessária dar ao conjunto destes trabalhadores
que, nos últimos 12 anos tiveram salários e subsídios cortados e perderam
mais de 12% do poder de compra.
Este não é o caminho que o país precisa nem é um caminho que
rejuvenesça a Administração Pública, que atraia profissionais especializados
e qualificados ou que fixe trabalhadores na Administração Pública. Uma parte
significativa destes trabalhadores aufere o salário mínimo ou valores próximos;
muitos têm que esperar uma década para progredir na carreira; quase
nenhum trabalhador atingirá o topo da carreira face aos entraves colocados
por um sistema de avaliação injusto e penalizador dos trabalhadores, que foi
feito para que os trabalhadores não progredissem nas suas carreiras.
É urgente uma valorização salarial de todos os trabalhadores da
Administração Pública de forma significativa, repondo poder de compra
perdido, como é urgente a valorização das suas carreiras e uma efectiva
progressão com a correspondente valorização remuneratória.
55
Em que estado está a administração pública?
DR
O
s serviços públicos são condição de igualdade, de segurança
e de democracia. É o Estado Social que garante pensões na
velhice, direito à educação independentemente do dinheiro
dos pais, protecção na doença, bibliotecas, ou vacinas para
todos numa pandemia.
É por serem tão centrais na vida das pessoas e não podermos
prescindir deles que estão tão sujeitos ao apetite do mercado. E há mais
56
do que uma forma de os privatizar. Entregando directamente as funções
do Estado ao sector privado, como procurou fazer a direita. Ou deixá-
los degradar de tal forma que perdem o seu carácter universal, atirando
quem pode para o mercado e abrindo campo à externalização para os
privados, com rendas do Estado. É o risco que já estamos a atravessar em
alguns sectores, com a incapacidade do Governo fixar profissionais ou dar
resposta em áreas fundamentais.
Para proteger o que é de todos, a esquerda deve responder a quatro
grandes questões:
1. À degradação profissional. Quotas e sistemas de avaliação feitos para
impedirem progressão na carreira, salários baixos que perdem poder de
compra com a inflação (a actualização na administração pública foi de
0,9%) não permitem fixar e atrair profissionais nem valorizar e qualificar
o trabalho dos que lá estão.
2. À precariedade. O PREVPAP já devia ter encerrado. Mas há dezenas
de processos pendentes e centenas de novos precários, porque o
paradigma do recibo verde e do falso outsourcing não mudou.
3. À falta de pessoal e de orçamento. Deve agir-se nos antípodas do
paradoxo liberal, que critica os serviços públicos por não funcionarem
bem, enquanto lhes retira recursos, desviando-os para rendas
aos privados. Pelo contrário, é preciso mais investimento e mais
internalização.
4. Aos vazios do Estado Social. É o caso dos cuidados continuados,
das respostas à velhice e à dependência (apoio domiciliário, habitações
partilhadas, assistentes pessoais, rede pública de equipamentos para
pessoas dependentes). E da habitação, direito social deixado em larga
medida nas mãos do mercado e do crédito, com as consequências que
sabemos.
57
Em que estado está a administração pública?
A
Administração Pública é fundamental para assegurar
serviços públicos essenciais. Contudo, fruto de sucessivos
desinvestimentos e cortes (seja pela austeridade, seja pelas
cativações), temos hoje uma Administração Pública com
escassez de recursos em algumas áreas fundamentais, mais envelhecida,
com um sistema de avaliação (SIADAP) que mais não serve do que para
bloquear a progressão da carreira e com assimetrias salariais assinaláveis.
Para dar resposta aos vários desafios que a reforma da Administração
Pública carece, num sentido do seu rejuvenescimento, valorização de
58
carreiras e optimização de recursos, é preciso um debate mais estrutural
e que seja transversal às várias áreas, ao invés do que tem ocorrido, com
alterações avulsas ou sectoriais. Numa perspectiva regional, temos também
uma Administração Pública excessivamente centralizada e localizada
no litoral, o que, nas últimas décadas, tem colocado o país em posições
remotas em todos os indicadores de descentralização. Precisamos de uma
espécie de plano nacional de desconcentração territorial, que, com base
num cronograma estruturado, numa prévia e rigorosa avaliação de custo-
benefício e num acompanhamento em proximidade do processo, relocalize
fora de Lisboa, e preferencialmente no interior, a sede de diferentes órgãos
de soberania e de entidades públicas.
Em matéria de nomeação, os critérios não são sempre os mais
transparentes e credíveis. De facto, no actual um modelo, a CReSAP
continua a dar uma validação com cunho pretensamente técnico a
nomeações de carácter político. A intervenção do Parlamento deve
ser reforçada, pois continua a ter um peso residual no processo
de designação, nomeadamente, dos membros dos conselhos de
administração das entidades reguladoras e do Banco de Portugal. Faria
sentido implementar um modelo dual de recrutamento e de selecção dos
cargos dirigentes/cargos de direcção superior da Administração Pública,
que, como em França, Estónia e Irlanda, estabeleça procedimentos
de selecção diferenciados conforme estejam em causa cargos
predominantemente técnicos ou cargos de confiança política. Deve ainda
ser limitado o número de renovações das comissões de serviço dos cargos
de direcção intermédia para promover a sua renovação e o acesso dos
jovens a estes cargos e, logo, a cargos de direcção superior.
Em matéria de transparência na contratação pública, dada a sistemática
falta de publicação das peças procedimentais de certos contratos públicos,
é premente a consagração da obrigatoriedade da sua publicação e
disponibilização pública de todas as peças procedimentais relativas aos
contratos por ajuste directo e respectiva justificação detalhada.
59
Em que estado está a administração pública?
O
Livre defende como prioridades nacionais a aposta na
educação, formação e qualificação da população, assim
como o desenvolvimento de políticas que garantam a justiça
intergeracional, a sustentabilidade ambiental e a igualdade
social. São os funcionários públicos através do Estado central ou
local que protegem e gerem os bens comuns, quer os sociais como os
naturais, promovendo uma melhor
gestão dos recursos e salvaguardando a
sustentabilidade social e ambiental do país.
A dignificação da Administração
Pública e das entidades do Estado,
assim como dos funcionários públicos
é importante para o Livre. Para tal é
necessário a melhoria das condições de
trabalho, quer das instalações como dos
recursos, a formação dos profissionais do
Estado e proceder à revisão da Lei Geral
do Trabalho em Funções Públicas.
É prioritário promover um
programa de emprego para reforço
da Administração Pública, com a
contratação de mais trabalhadores com vista à reversão do processo de
envelhecimento e o combate à precariedade dos funcionários do Estado
local e central, garantindo a sua efectivação nos quadros e a estabilidade
60
laboral. Destacamos os problemas de falta de pessoal especializado
no Serviço Nacional de Saúde, a instabilidade laboral dos professores,
a precariedade dos trabalhadores da Cultura ou a sua falta na área da
Conservação da Natureza. Para colmatar estas carências os recrutamentos
devem ser processos centralizados e expeditos e cujas remunerações
iniciais sejam adequadas ao nível de qualificação dos candidatos.
É igualmente prioritário a revisão do Sistema Integrado de Gestão e
Avaliação do Desempenho na Administração Pública (SIADAP), por ser
excessivamente burocrático, dificultar a progressão na carreira para
limitar que se alcance os escalões máximos e contribuir para situações
injustas entre trabalhadores.
É preciso motivar os funcionários públicos. Para tal deve-se procurar
corresponder às suas expectativas salariais e de reconhecimento do seu
trabalho, através da actualização das posições remuneratórias em função
do nível de qualificação do trabalhador e considerar a contagem integral
do tempo de serviço dos professores e dos outros trabalhadores das
carreiras e corpos especiais da administração pública.
O Governo deve ser o primeiro a combater a precariedade no Estado
local e central; apostando em sistemas de avaliação de trabalhadores que
promovam a motivação e a cooperação.
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61
Em que estado está a administração pública?
A jovem interna e o
director de serviço:
42 anos separam
estes médicos que
trabalham num SNS
“em esforço”
62
António Sarmento e Carolina Guimarães fazem parte da
equipa médica do SNS no Hospital de São João, no Porto.
Quarenta e dois anos de profissão separam a vida destes
dois profissionais que dizem trabalhar num sector “em
esforço”. “O que cansa não é ver doentes, é a falta de
condições”, diz a jovem médica
Reportagem Ana Isabel Ribeiro (Texto) e Tiago Lopes (Fotografia)
A
ntónio Sarmento, médico e director do serviço de infecciologia
do Hospital de São João, no Porto, palmilha os corredores do
2.º andar como se estivesse em casa. Na verdade, o hospital
é a segunda casa deste médico de 66 anos que completou 44
de carreira. A rotina é sempre a mesma: começa a trabalhar às 8h com
paragem obrigatória pela sala de ambulatório, onde estão os enfermeiros,
e pela biblioteca, local onde, normalmente, se reúne com o médico que
esteve de serviço durante a noite. Pelos longos corredores, conversa com
enfermeiros, auxiliares, doentes e familiares de doentes.
De um lado estão os vários gabinetes de consulta e, do outro, os
quartos de isolamento de quem está, muitas vezes, inconsciente e
a respirar com a ajuda de um ventilador. Meia hora depois, António
Sarmento chega à sala de cuidados intensivos para discutir o estado
clínico de cada paciente. Aqui, grande parte dos internados luta contra
a covid-19, mas também há quem padeça de tuberculose, como é o caso
de Fernando. Depois de uma breve conversa com o paciente, António
regressa ao corredor. “Um professor meu dizia-me uma frase muito
importante que era ‘uma pessoa, para ser, precisa de estar nos sítios’.
É estando nos sítios que os problemas vêm ter connosco e que nós os
resolvemos à nascença”, começa por contar.
63
Em que estado está a administração pública?
64
trabalhar um bocadinho contrariadas e já não se consegue prestar os
mesmos cuidados aos doentes”, resume. A situação agrava-se durante o
turno da noite, horário que não envolve “um único minuto de descanso”
e em que os médicos se dividem entre a urgência, o internamento e
as consultas. “Se convertesse todas as urgências de 24h, em anos, era
como se estivesse quatro anos consecutivos fora de casa”, nota António
que abandonou este horário no ano passado depois de ter feito uma
operação ao coração.
65
Em que estado está a administração pública?
66
infecciologia. Reconhecer e valorizar o trabalho destas pessoas também
é um bom ponto de partida para ver a situação melhorada. Para António,
o aumento do salário é um extra. “Teria de me queixar se pretendesse ser
rico, mas como não pretendo…”
No caso de Carolina, ser médica compensa todos os esforços, pelo
menos na maioria dos dias. Mas também há momentos em que se
questiona: os dias sem ir a casa, o pouco tempo com a família e até os seis
anos de duração de curso. Tudo isto vale a pena para uma profissão em
que a qualidade de vida e o salário não correspondem ao esforço diário?
“Vivo com o meu noivo e só por isso é que consigo morar no centro do
Porto, em frente ao meu local de trabalho e dar-me ao luxo de chegar ao
Verão e ir de férias ou ser preciso pagar um seguro do carro e ter dinheiro
para cobrir”, explica, sem mencionar o valor do vencimento. Contudo, as
dúvidas dissipam-se sempre que começa a próxima consulta. “Sónia, há
quanto tempo é que tem o pé inchado? E dores, tem?”
De acordo com a tabela salarial de 2022 disponibilizada pelo Sindicato
dos Médicos do Norte, um chefe de serviço recebe mais três mil euros
do que um médico interno. Um médico com a carreira de António, que
trabalhe uma média de 50 horas por semana, deverá receber perto
de 4200 euros brutos enquanto no caso de uma jovem médica como
Carolina serão à volta de 1800, explica ao PÚBLICO fonte do sindicato.
Ambos defendem que a sua gestão financeira é “muito regrada”, mas
assumem que não precisam de um salário muito elevado. No caso de
Carolina apenas um pequeno aumento. Apesar do salário considerável,
só recentemente é que António comprou um segundo carro, ainda que
antigo, e um apartamento de férias. Questionado sobre a possibilidade de
poder ter isto mais cedo se recebesse mais num hospital privado, lembra:
“O privado, vai pagar muito bem enquanto houver carência de médicos,
enquanto não houver vai pagar mal com certeza.”
Apesar do problema, Carolina sabe reconhecer o valor da função
pública: “O SNS é das melhores coisas que temos em Portugal. Temos
67
Em que estado está a administração pública?
68
cuidados de excelência, temos portas 100% abertas a qualquer pessoa
independentemente de terem ou não dinheiro para pagar. Fazem-se
tratamentos, colocam-se dispositivos na ordem das centenas de milhares
de euros gratuitos para o doente”, destaca.
Questionados sobre a profissão, os dois médicos fazem um balanço
positivo e comparam o trabalho a uma relação amorosa entre duas
pessoas que se casam “porque gostam e para gostarem uma da outra”,
atira o médico. Na medicina as pessoas têm de encontrar motivações
para que isso nunca desapareça. “E isto para quê? Para resistirem”,
salienta. Ainda assim, António admite estar cansado. Afinal de contas, a
capacidade física aos 20 anos não é a mesma que se tem aos 60, justifica.
Carolina, por outro lado, ainda está na fase do “encantamento inicial”
da relação. “Gosto muito do que faço, sinto-me feliz naquilo que faço, o
saldo ainda é positivo.”
Positivo é também como António perspectiva o futuro da medicina nos
próximos 30 anos. Ainda assim, defende, tudo dependerá de profissionais
altruístas, dedicados e com vontade de ajudar. Ser médico é uma missão.
“Se for na função pública, fantástico, gostei imenso de ser funcionário
público. Se tiver que ser noutra função qualquer que não seja pública,
fantástico se eu puder ajudar os outros também.”
Por enquanto, para o futuro da jovem médica, reina ainda a incerteza.
Quando terminar a especialidade, volta a integrar a lista de colocações
para hospitais públicos e privados. Mas enquanto tal não acontece, a
certeza é só uma: António Sarmento permanecerá como director do
serviço de infecciologia do São João. “Quando as coisas acalmarem,
depois posso pensar se quero mudar de actividade”, conclui. Durante
a manhã, os dois médicos atenderam e monitorizaram doentes, deram
consultas e marcaram exames. O relógio marca 12h22.
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69
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 2
Envelhecimento
70
Envelhecimento
na função pública
é transversal e tende
a piorar. “Faz perigar
o Estado social”
Há concursos que não abrem há décadas e outros que,
abrindo, não vêem as vagas preenchidas. Sem tornar as
carreiras mais atractivas será difícil inverter a situação
Patrícia Carvalho
C
om a chegada do Verão agudiza-se o drama das conservatórias
do país. A viver uma brutal falta de funcionários (sobretudo
conservadores e oficiais de registos), há várias que correm o
risco de ter de encerrar portas porque os poucos que existem
vão de férias e não há quem os substitua. Acentua-se também o “bailinho
das cadeiras” da mobilidade interna. “Pede-se funcionários emprestados
por um bocadinho, para aguentar”, diz Margarida Martins, da Associação
Sindical dos Conservadores dos Registos, desfiando o nome de alguns
locais que arriscam ver interrompidos estes serviços nos próximos
tempos: Vila Flor, Góis, Pampilhosa da Serra… O envelhecimento dos
71
Em que estado está a administração pública?
72
NELSON GARRIDO
César Madureira: "Uma verdadeira reforma implica uma reforma dos modelos de organização"
73
Em que estado está a administração pública?
74
de mil atingem a idade da reforma —, numa altura em que há ainda um
milhão de portugueses sem ter um. E a previsão é que os dois próximos
anos continuem muito complicados a este nível. Também na justiça
os alertas já começaram a surgir, com a falta de pessoal a ser agravada
pelas aposentações dos actuais funcionários — só na comarca de Braga,
segundo um relatório recente, a média de idades ronda os 55 anos.
“Esta questão do envelhecimento é transversal a toda a
administração pública. Agora, o que se torna mais visível, até em
termos mediáticos, são questões muito prementes do dia-a-dia das
pessoas, como a saúde, a educação dos filhos ou a protecção social.
Mas há uma série de serviços que fazem um trabalho de back office,
que é indirectamente importante para os cidadãos e as empresas,
e que não está a ser efectuado nem está a ser realizado qualquer
diagnóstico das necessidades”, alerta César Madureira.
O envelhecimento dos trabalhadores, associado à não abertura de
concursos para recrutamento e, em muitos casos, à dificuldade em atrair
candidatos quando esses concursos abrem, leva a uma situação de que
é difícil sair a menos que algo mude — há poucos funcionários, os que
há acabam por ficar sobrecarregados, e, por serem mais velhos acabam
por ser também mais propensos a problemas de saúde, o que leva a
mais situações de baixa médica, mais sobrecarga para quem fica, menos
funcionários disponíveis…
Além disso, há um outro problema, para o qual a provedora de
Justiça, Maria Lúcia Amaral, já alertou, numa audiência parlamentar: a
falta de renovação geracional nos serviços. “Está a sair uma geração de
funcionários que poderia transmitir ensinamentos e boas práticas a quem
vem e essa relève [renovação] geracional, não estamos a conseguir fazê-
la”, dizia, em 2019. Arménio Maximino recorre, agora, à mesma expressão.
“Não há um único concurso externo [nos registos] há mais de 20 anos.
Não foi possível fazer uma transmissão de conhecimento intergeracional,
o que é uma perda incomensurável”, diz. Sebastião Santana resume a
75
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
76
O problema não
é só nosso:
procuram-se
soluções para
o envelhecimento
da função pública
Portugal é o país da OCDE em que mais cresceu a
percentagem de funcionários públicos com 55 anos ou mais,
comparando 2015 com 2020. Itália tem a maior percentagem
de funcionários nesta faixa etária
Patrícia Carvalho
O
envelhecimento dos trabalhadores da função pública está
longe de ser um problema exclusivo de Portugal e o último
relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE), Government at a Glance 2021 (Panorama da
Administração Pública 2021), é um bom retrato disso. Com o diagnóstico
feito, o que faltam são soluções eficazes.
77
Em que estado está a administração pública?
78
Mas não é o único. Uma classe docente envelhecida, e a consequente
falta de professores no sistema, é um problema comum a vários países
europeus e já há quem comece a desenhar tentativas para ultrapassar
o problema. Em Espanha, por exemplo, permitiu-se que entrem na
carreira professores que ainda não têm o mestrado que os habilitava
para a docência - e que era exigido até há cerca de um ano. E Portugal
já admitiu querer formar diplomados noutras áreas para se tornarem
professores. No Reino Unido é a saída anunciada de um elevado
número de médicos de família, por causa de reforma, que faz soar os
alarmes - tal qual como em Portugal. E se, no passado, a falta de outros
profissionais na área da saúde, como os enfermeiros (não por questões
de envelhecimento) foi parcialmente colmatado com a contratação
de profissionais estrangeiros, incluindo muitos portugueses, o Brexit
dificulta, hoje, o recurso a esta medida.
O relatório da OCDE deixa algumas recomendações para tentar
ultrapassar problemas relacionados com uma função pública
envelhecida, realçando que o ideal é ter equipas com várias gerações.
Criar programas de mentoria — valorizando a experiência dos mais
velhos e motivando, em simultâneo quem chega de novo — é uma
das recomendações deixadas, a par com uma maior capacidade de
atractividade no recrutamento de profissionais por parte do Estado. E
isto passa, e muito, por tornar as carreiras mais atractivas (recomenda-se,
por exemplo, que seja possível cobrir os salários oferecidos no privado) e
também por haver uma capacidade de recrutamento mais proactiva, que
seja capaz de identificar e motivar os potenciais interessados, em vez de
aguardar que eles se apresentem a algum concurso.
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79
Em que estado está a administração pública?
Vestir a
camisola
da função
pública
Em todos os departamentos do Estado, quer na
administração local, quer central, há funcionários
que sobressaem pela sua dedicação e exemplo. Elogiados
por todos, o que os move? O PÚBLICO foi falar com alguns.
Encontrou paixão pela profissão e espírito de missão
de serviço público
Reportagem Ana Fernandes, Carolina Pescada,
Joana Gonçalves e Joana Bourgard
80
“Já não há muita gente a
falar esta língua que eu falo”
Jaime Forte, Jardim Botânico de Coimbra
Q
uando olha em volta, a cada passo que dá, Jaime Forte
apresenta-nos todos os seres que nos rodeiam. Conhece-os
intimamente ou não os chamasse pelo seu nome em latim,
dando assim conta do seu género e o epíteto específico. É
uma relação com as plantas de longa data, tinha 12 anos quando a
paixão de uma vida germinou.
“Terminei a quarta classe numa sexta-feira e na segunda-feira
apresentei-me no Botânico para trabalhar. Estávamos a 15 de Julho de
1963 e fui para as estufas”, conta Jaime Forte, hoje já reformado. Esta
“seiva” de jardineiro corria na família — o avô e o pai também metiam
as mãos na terra do jardim da Universidade de Coimbra e Jaime estava
ansioso: “Ia entusiasmado, a miséria era muita, o meu pai tinha quatro
filhos”. Ia ganhar o seu primeiro salário: dez escudos por dia.
Entrou na secção de sementes e plantas do herbário do Departamento
de Botânica, onde começou a correr toda a região Centro, a pedido dos
professores, para fazer colheita de plantas e a prepará-las para as aulas,
exames e frequências. Hoje, não há espécie que por ali cresça que não
identifique imediatamente.
Um conhecimento elogiado pelos professores de Coimbra,
impressionados pelo seu rápido olho na identificação das espécies. Um
saber feito de quilómetros no campo, de aprendizagem com os colegas
colectores, de uma análise atenta de tudo o que já estava catalogado na
secção do herbário.
“Fui sabendo os nomes, as famílias, os géneros. Comecei a apaixonar-
me pelas plantas”, conta.
81
Em que estado está a administração pública?
82
Foi uma vida a correr campos, dunas e serras a fazer colheitas. Nas
suas mãos trazia instrumentos para ajudar milhares de estudantes a
trilhar os caminhos da botânica, assim como material para enriquecer o
herbário da Universidade.
Tanto destas colheitas como dos viveiros, vários jardineiros garantiam
que Coimbra tivesse um rico Index seminum, um catálogo anual com a
listagem de todas as sementes ali existentes. O objectivo? Responder aos
pedidos que chegavam de instituições do mundo inteiro e para quem
eram enviados pequenas embalagens com as promessas das plantas à
guarda da Universidade.
Nesse departamento estavam cinco pessoas na década de 60. Hoje não
resta ninguém. Foram-se reformando até que “fechou a loja”, lamenta.
“Ainda hoje pergunto a mim próprio como é que antigamente tinha de se
apanhar plantas para as aulas e hoje não se apanha nada. Como é que o
ensino hoje se faz?”, questiona.
“Não se remodelou, não se colocou ninguém a aprender os nomes das
plantas, das famílias. Sinto uma certa mágoa porque vi acabar uma secção
que tinha muita importância na Biologia,” lamenta.
Não esconde a tristeza. Por algumas vezes teve oportunidades de sair,
para ganhar mais. Mas foi ficando pelo gosto que as plantas lhe davam. Até
que esbarrou na carreira. Com apenas a quarta classe, já não conseguia
progredir mais. Com os anos que levava na função pública, maximizados
pelo tempo passado no Ultramar, aos 47 anos pode-se reformar.
Mas se saiu do Botânico, a botânica não saiu dele. “Criei uma empresa
de jardinagem e ainda hoje a minha vida é lidar com as plantas”. Ficar
parado é que não, além de que a reforma era magra — “não daria para
viver como vivo”.
“Eu gosto de fazer jardins e já corri ceca e meca a fazê-los”, conta, por
entre os canteiros que plantou no jardim da Quinta das Lágrimas. Custa-
lhe voltar ao Jardim Botânico, sabe que já não encontra a azáfama de
jardineiros de outros tempos, lamenta não se ter passado o testemunho.
83
Em que estado está a administração pública?
S
intra. Nas palavras de José Cardim Ribeiro transborda o amor a
esta terra, à sua paisagem, à sua história, ao seu património, às
suas tradições. Foi a ela que dedicou a vida, por quem se bateu
para que fosse protegida, tanto como paisagem natural como
cultural, duas realidades indissociáveis, faz questão de sublinhar.
Era ainda um jovem historiador, com pouco mais de 20 anos e
breves experiências a dar aulas numa escola e a trabalhar no Museu
Nacional de Arqueologia, na Academia das Ciências e no Museu
da Marinha, quando é desafiado, em 1977, para ser consultor da
Câmara Municipal de Sintra na área do património arqueológico,
artístico e etnográfico. “Aceitei imediatamente o convite embora
economicamente fosse inferior ao Museu da Marinha”.
Embora nascido em Lisboa, morava em Colares e a região já lhe corria
no sangue. Face à riqueza que reconhecia no terreno, decidiu ir além
do desafio inicial e propôs a criação dos serviços culturais municipais.
“Fiz a proposta dividindo-a em várias áreas: bibliotecas, arquivos,
museus e dei uma importância especial à parte do património histórico.
84
Talvez os percursos da função pública
sejam longos demais. O mundo muda
e era bom que as pessoas também
pudessem mudar mais cedo
José Cardim Ribeiro
85
Em que estado está a administração pública?
Porque faltava uma coisa essencial que era tentar conhecer e fazer o
levantamento exaustivo do património monumental de Sintra a todos os
níveis. Era uma tarefa hercúlea.”
Com o apoio do historiador de arte Vítor Serrão, ambos com 25,
26 anos, levaram a empreitada para a frente e criaram uns serviços
culturais de referência, com dezenas de projectos em desenvolvimento.
“Porque fomos levados a sério e isso é algo que eu hoje estranho
um pouco, mas na época existiam, digamos, os ‘homens bons’ de
Sintra: sintrenses ou radicados em Sintra há muitos anos que amavam
profundamente Sintra e que nos ajudaram e se reviram nas nossas
posições e nas nossas preocupações”.
Não esconde o orgulho da obra, que não esgota aqui, antes pelo
contrário, está também na génese do Parque Natural Sintra-Cascais mas,
sobretudo, na classificação desta paisagem cultural como Património
da Humanidade, em 1995, que “foi o coroar das nossas diligências
patrimoniais”. O que o movia? A protecção da riqueza que tanto a
natureza como a história ali deixaram e que via ameaçada pelo abandono
ou avanço das urbanizações. “Lutámos muito para que houvesse uma
mudança de mentalidades”.
“O meu lema não era partidário, não era político, era Sintra. A minha
lealdade durante esses anos todos foi para o seu património”, faz
questão de sublinhar.
Muitos mais exemplos haveria, como o Centro Cultural Olga Cadaval
ou a — extraordinária — descoberta do Santuário Romano do Alto da
Vigia, mas a sua obra é também indissociável do Museu Arqueológico
de São Miguel de Odrinhas, a que dedicou os seus últimos anos na
Função Pública. “Um museu que teve um grande papel para sensibilizar
as populações rurais relativamente ao património romano e que se
transformou num grande museu moderno nesta área”, descreve.
Queria ter feito mais, como um Museu das Tradições. E não cala
as críticas à gestão do Património Mundial. Lamenta que não haja
86
uma gestão conjunta das três áreas incluídas na classificação: a
zona inscrita, que corresponde ao centro histórico e aos principais
monumentos da serra, a zona-tampão que vai até ao mar e que inclui
o resto da serra toda e a zona de transição, que inclui uma vasta zona
rural a norte da serra. “Isso nunca aconteceu, está remetido para as
sensibilidades das várias câmaras”.
Lamenta ainda a tremenda turistificação de Sintra, uma consequência
da classificação da UNESCO, admite. Reformado desde 2019, critica ainda
a crescente politização dos cargos da administração e deixa um conselho:
“Talvez os percursos da função pública sejam longos demais. O mundo
muda e era bom que as pessoas também pudessem mudar mais cedo. Há
uma altura que é preciso transmitir aos mais novos e nós devemos afastar-
nos e tentar não interferir”.
A
energia de Maria de Luz é tão electrizante quanto o seu
entusiasmo. Chegou muito jovem ao Ministério da Justiça, 3 de
Outubro de 1978, lembra-se bem. Apenas com o secundário,
seguiu as pisadas da irmã e arriscou o estágio, não remunerado,
mas onde persistiu até ser integrada. Pelo caminho adquiriu “muitos
conhecimentos”. Um foco que a guiou toda a vida, formação atrás de
formação, até chegar ao topo da carreira de oficial de justiça.
87
Em que estado está a administração pública?
88
A função pública que eu encontrei
trabalhava muito por amor à camisola.
Depois, em 1983, 84, tivemos um aumento
substancial e entrou muita gente
e dava gozo trabalhar nos tribunais
Maria da Luz Delgado
89
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
90
Capítulo 3
Público vs Privado
91
Em que estado está a administração pública?
Ser professor
no ensino público
ou no privado?
O que levou Maria
e Vítor a escolher
Maria Sanches Ribeiro é professora de Biologia e Geologia.
Exerce há 22 anos, mas nos primeiros 17 não saiu do 1.º
escalão de uma carreira de dez. Vítor Bastos, professor de
Geografia há tantos anos como Maria, procurou estabilidade
no ensino privado. É mais o que os une ou o que os separa?
92
Reportagem Daniela Carmo (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia)
M
aria Sanches escolheu ser professora no ensino público.
Esteve 17 anos a contrato, todos os anos um novo, sem saber
ao certo onde daria aulas, até entrar, por fim, num Quadro
de Zona. Nunca pensou desistir. É na escola pública que se
realiza, apesar da burocracia que, diz, lhe consome tanto tempo. E de,
segundo relata, ter de assumir também as tarefas de assistente social, de
psicóloga, de enfermeira. Tudo isso, para além das aulas.
Vítor Bastos também passou pelo ensino estatal, mas acabou por
escolher o privado. As tarefas extra-aulas que a colega de profissão
relata estão menos presentes no colégio onde trabalha. “Talvez seja
uma vantagem do ensino privado. Fazemos apenas o necessário, com
as direcções de turma por exemplo. Acho que a tendência, felizmente, é
para tornar esta carga burocrática menos pesada”, reflecte.
Passámos algumas horas com Maria Sanches Ribeiro, de 51 anos, da
Escola Secundária de Passos Manuel, em Lisboa, e com Vítor Bastos, de
50 anos, no Colégio Vasco da Gama, em Sintra. É muito diferente ser
professor do público e do privado?
O sofá vermelho e os bancos almofadados com motivos de banda
desenhada à direita não fazem adivinhar que entramos numa sala de
aula, muito menos as cadeiras — com rodinhas, mesa e suporte para a
mochila já incluídos — dispostas quase em fila única ao longo das janelas.
O grande espaço vazio no meio da sala do Colégio Vasco da Gama, em
Sintra, contrasta com a bancada composta por várias mesas ao centro
do laboratório de Biologia da Escola Secundária de Passos Manuel, em
Lisboa. Vítor Bastos e Maria Sanches Ribeiro são quem hoje comanda as
turmas de 9.º e 12.º anos, respectivamente.
De cabelo grisalho e com os óculos na ponta do nariz, Maria Sanches
Ribeiro, vai distribuindo as fichas de trabalho pelos alunos, que à entrada
93
Em que estado está a administração pública?
94
deixar de ser sensível, gosto muito desses momentos de interacção
directa com os alunos”, diz-nos.
E os mais novos mostram-se deveras interessados pelo que na sala de
aula se passa. Maria Sanches Ribeiro chama os alunos, um a um, para que
respondam às questões sobre o que é a fenolftaleína — um indicador de
pH — e a solução de hidróxido de sódio — um composto químico.
As conclusões da experiência vão sendo apontadas no quadro branco
da sala de aula, e entre os risos dos alunos absorvidos pela aula, a
professora vai explicando a relação dos resultados com a vida real.
À procura de estabilidade
Maria Sanches Ribeiro dá aulas na Escola Secundária de Passos
Manuel, em Lisboa, há cerca de cinco anos. Não está nos quadros do
estabelecimento, mas sim colocada em Quadro de Zona Pedagógica, o
que lhe permite não se afastar da área de residência. Mas nem sempre foi
assim, já teve de percorrer distâncias maiores, mas nada como o cenário
de professor com a casa às costas a que muitos são obrigados.
Uma boa média à saída da faculdade permitiu-lhe, assim como ao
professor Vítor Bastos, conseguir colocações relativamente perto da zona
de residência. Evitar a dança entre cidades a que viam (e continuam a
ver) muitos colegas sujeitar-se foi, como dizem, um descanso. “Conheci
colegas que passaram 20 anos com a casa às costas e isso é de uma
violência enorme, inclusivamente com crianças pequenas. É uma
violência enorme”, lamenta Maria Sanches Ribeiro.
Durante os 17 anos em que esteve a trabalhar como professora
contratada, sempre no sistema público, a maior distância que teve
de percorrer foi entre Lisboa e Vila Franca de Xira. “Tive sempre a
possibilidade de trabalhar em escolas que estavam ao alcance da minha
residência. Ali nos anos iniciais gastei mais dinheiro em deslocações, é
verdade. Mas nada que se compare a muitos outros casos de professores
que conheci ao longo dos anos.”
95
Em que estado está a administração pública?
96
Já Vítor Bastos procurou a estabilidade no ensino privado ao fim de
seis anos a mudar de escola. Mas passado algum tempo percebeu que
essa mudança também lhe fazia falta e, por isso, optou por concorrer a
horários reduzidos noutras escolas públicas, acumulando com o horário
no colégio, onde entrou há 17 anos.
“Uma coisa que me fez muita confusão quando vim para o colégio,
depois dos anos todos em que andei a saltitar entre escolas, foi sentir falta
de andar a saltitar de escola em escola.” O professor também nunca foi
obrigado a grandes deslocações — passou por outras duas escolas, mas
ambas no distrito de Lisboa.
Salários diferentes
Ambos na casa dos 50 anos e com mais ou menos o mesmo tempo de
serviço, Vítor Bastos e Maria Sanches Ribeiro estão no 4.º de uma carreira
de dez escalões. Contas feitas, no escalão a que pertencem o vencimento
mensal base é de 2006,25 euros brutos, no ensino público. A tendência
no privado é que o salário seja um pouco mais baixo em relação ao
público. No caso de Vítor Bastos a diferença não é grande: aufere um
rendimento bruto de 1991,50 euros.
1300 3200
1250€
1200 3100 3105€
Privado Privado
1100 3000
2017 2018 2020 2022 2017 2018 2020 2022
Por mês cada um dos professores leva para casa cerca de 1400 euros,
dependendo dos descontos a que estão obrigados tendo em conta o
número de pessoas no agregado familiar.
Prestes a entrar no 5.º escalão da carreira está Maria Sanches
Ribeiro, se a escola tiver quotas suficientes para isso e se a própria tiver
aproveitamento
Salários no públicopara tal. Mas a professora tem uma certeza: “Jamais
e no privado
chegarei ao topo da carreira docente.”
INÍCIO DA CARREIRA FIM DA CARREIRA
Maria Sanches viu a carreira bloqueada
1600 Euros 3500 Euros
durante os 17 anos em que
trabalhou a contrato,1536,9€
período em que não subiu do primeiro escalão. “Fui
3405€
1500
sempre colocada durante todos3400
Estatal esses anos. Isto significa que não foi por
falta
1400 de vagas que não entrei para o quadro
3300 Estatal mais cedo na carreira. Foi
exactamente porque o acesso à carreira estava bloqueado e no primeiro
1300 3200
momento em que desbloquearam
1250€ o acesso à carreira, eu entrei para o
quadro
1200 de Zona Pedagógica, onde 3105€
3100me encontro actualmente, e subi do
Privado Privado
primeiro para o terceiro escalão”, aponta.
1100 3000
2017 2018 2020 2022 2017 2018 2020 2022
* sujeito a quotas para progressão (a) Tempo de permanência obrigatório em cada escalão
(b) Número de anos em média que os professores que estão no escalão já cumpriram
98
Quando lhe perguntamos se sente que a compensação mensal que
leva para casa serve para fazer face ao número de horas que dispensa ao
trabalho, a resposta é curta: “Não”. Por ali, como em muitos sítios, não
se é apenas professor. A burocracia ocupa um espaço grande na gestão
de todo o tempo, algo que Maria Sanches Ribeiro acredita ser uma das
consequências da formação dos Agrupamentos de Escolas.
Tarefas de secretaria
“Muito do trabalho burocrático que era feito pelas secretarias das escolas
passou a ser feito pelos professores.” E dá vários exemplos: “Nós passamos
constantemente por vários tipos de funções. Se estamos a tratar do cheque
dentista dos nossos alunos, estamos a trabalhar ao nível da enfermagem.
Se estamos a tratar dos computadores para emprestar aos alunos, estamos
a trabalhar ao nível da assistência social. Se estamos a tentar perceber que
99
Em que estado está a administração pública?
100
Durante a aula de Geografia de uma das turmas do 9.º ano, os mais
novos não se coíbem em chamar pelo “stôr”. “Quem me chamou?”,
pergunta e vários respondem “fui eu”. “Não posso perguntar isto”, ri-se.
Hoje é dia de fazerem a auto-avaliação, mas à moda do professor Vítor
Bastos. O desafio é, primeiro, responderem às perguntas que o docente
deixou na plataforma online para depois elaborarem um guião e, no fim,
gravarem um vídeo em que explicam a nota que pensam merecer.
“Gosto de tornar as aulas mais didácticas com a ajuda da tecnologia
também e criar formas em que eles trabalhem também a autonomia,
a auto-regulação”, explica. Esse ponto de vista é partilhado por Maria
Sanches Ribeiro, que procura desenvolver experiências educativas que
estimulem essas mesmas competências nos mais novos: os alunos do 12.º,
por exemplo, dão aulas aos alunos do 9.º ano, que, por sua vez, dão aulas
aos do 7.º ano.
Mas, apesar de partilharem ideias semelhantes sobre formas de ensinar,
não partilham do mesmo ponto de vista em relação ao ensino privado.
Maria Sanches nunca passou pelo ensino particular nem tenciona fazê-lo.
101
Em que estado está a administração pública?
“Foi uma opção minha porque eu não concebo uma educação que
deixa qualquer jovem ou qualquer criança de fora. Eu não concebo
uma selecção e nós estamos a falar da escolaridade obrigatória.
Portanto, para mim, uma escola que selecciona alunos é uma escola que
necessariamente está a deixar alunos de fora.”
Nem o facto de a carga horária e o peso da burocracia a demovem.
“É uma profissão que exige, de facto, amor, carinho, motivação para o que
se faz porque é uma profissão muito dura, muito exigente. Mas é também
uma profissão muito empolgante. Eu não sei se toda a gente, todos os dias,
se sente tão satisfeita com aquilo que faz como eu tendo a sentir-me agora.”
Já Vítor Bastos está no ensino privado por opção, procurava
estabilidade e conseguiu-a. Além disso, também gosta do sítio em que
está. “Sinto-me bem aqui, o espaço é óptimo, o ambiente com os colegas
é óptimo. Mas isto não quer dizer que de hoje para amanhã não haja um
problema qualquer e eu tenha de ir para o Estado. Neste momento não
estou a visualizar isso e não quero mudar.”
VOLTAR AO ÍNDICE
102
Carreiras
indiferenciadas
no Estado afastam
Ciência, Tecnologia,
Engenharia ou
Matemática
Áreas tecnológicas estão a abrir vagas, mas o sector público
só parece ser atractivo à saída da escola. Os mais experientes
acabam por sair para o privado
Victor Ferreira
U
ma em cada cinco pessoas, entre os 20 e os 29 anos, que
concluem estudos superiores em Portugal forma-se nas áreas
de Ciências, Tecnologia, Engenharia ou Matemática (CTEM).
É um rácio praticamente em linha com a média europeia ainda
que ligeiramente acima. O problema é que a média da União Europeia
(UE), incluindo Portugal, é baixa. A digitalização e a transição climática
levam a abrir vagas que a UE não consegue preencher. O sector público
é o que mais sofre, porque embora seja atractivo para quem chega ao
103
Em que estado está a administração pública?
104
depois quando já se tem alguma experiência percebe-se que a carreira
pública não é aliciante.”
Rogério Reis, matemático doutorado em ciência de computadores,
professor auxiliar na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP)
e investigador no Centro de Matemática da UP, trabalha com alunos que
estão a sair para o mercado de trabalho e com aqueles que acabam de
chegar ao ensino superior. Entre eles, a carreira pública surge como uma
opção? “Nem por isso.”
“Há muito tempo que não se abrem lugares nos quadros das
universidades. Os investigadores têm como perspectiva de vida a
precariedade”, descreve Reis.
A história recente mostra que o emprego em algumas áreas
CTEM cresceu mais do que a generalidade do emprego. O número
de trabalhadores especializados em Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC), por exemplo, cresceu 50,5% entre 2012 e 2021,
segundo o Eurostat. O que é oito vezes mais do que o crescimento de
6,3% do emprego total na UE nesse mesmo período.
105
Em que estado está a administração pública?
106
A diferença faz-se a jusante: no privado, a administração tem margem
para decidir, ao passo que no sector público, essa flexibilidade não
existe. Muitas vezes, nem sequer há dinheiro. Ou lugares interessantes.
“Os profissionais muito bons estão ‘condenados’ a sair de Portugal.
Na investigação precisaríamos de acabar com a precariedade. As
universidades precisam de conseguir ficar com os melhores, corremos o
risco de 15% a 30% dos professores universitários nos próximos dez anos
se reformarem. São saberes que demoraram 20, 30 anos a construir e que
se perdem. Anuncia-se mais investimento nas universidades, mas este
mantém-se aos níveis de 2000”, argumenta Rogério Reis.
Fernando Matos, presidente da Associação Portuguesa de Ciência de
Dados, por seu lado, vê “muita coisa aliciante por fazer” nestas áreas, seja
no privado ou no público. “Há muito espaço para os profissionais destas
áreas poderem crescer, serem mais eficientes, mais produtivos, mais
eficazes e vejo muitas pessoas com essa preocupação também no sector
público”, afiança. Porém, “tem de existir diferenciação” de carreiras,
defende, até porque esse é o esforço que está a ser feito no privado e que
se deverá intensificar nos próximos anos.
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107
Em que estado está a administração pública?
Um quinto dos
trabalhadores
qualificados
escolhidos pelo
Estado desistiu
Depois de analisar o recrutamento centralizado feito
em 2019, o Governo quer simplificar o processo e torná-
lo mais rápido. O objectivo é lançar um novo concurso
transversal em 2023
Raquel Martins
E
m Junho de 2019, o Governo lançou um concurso para criar uma
bolsa de mil técnicos superiores com o objectivo de rejuvenescer
e dotar a Administração Pública de trabalhadores qualificados
na área jurídica, da estatística, da gestão ou do planeamento. O
resultado deste processo é um exemplo da dificuldade que o Estado tem
em atrair os jovens qualificados: um quinto dos 860 técnicos superiores
colocados nos serviços desistiu e acabaram por não assinar contrato, ao
passo que a idade média destes novos trabalhadores era de 35 anos.
Os dados solicitados à secretaria de Estado da Administração Pública
mostram que, dos 860 técnicos seleccionados através do recrutamento
108
centralizado, a maioria (682) celebrou contrato por tempo indeterminado
com os serviços e organismos onde foram colocados, mas 21% (178)
acabaram por desistir, deixando os lugares vagos.
Para a secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires, um
dos factores que levou a que um quinto das pessoas não tivesse celebrado
contrato tem a ver com o tempo que demorou entre a apresentação da
candidatura e a homologação.
“Sobre este processo, ainda estamos a interagir com as próprias
entidades empregadoras, para percebermos até que ponto as
necessidades foram cobertas com os candidatos”, sublinhou em
entrevista ao PÚBLICO, acrescentando que, neste concurso, os serviços
limitaram-se a indicar os lugares vagos e a receber os candidatos,
sem qualquer intervenção no processo de selecção que foi conduzido
centralmente pelo Instituto Nacional de Administração (competência
que, entretanto, passou para a Direcção-Geral da Administração e do
Emprego Público).
109
Em que estado está a administração pública?
110
Estatística; na Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; no
Centro de Competências de Apoio à Política Externa; no Instituto da
Habitação e da Reabilitação Urbana; na Agência para o Desenvolvimento e
Coesão; no IAPMEI; nas Comissões de Coordenação Regional do Alentejo
e de Lisboa e Vale do Tejo; na Direcção-Geral de Segurança Social; no
Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais; na Autoridade
Tributária; na Direcção-Geral da
Administração e do Emprego Público; no
No trabalho não Gabinete de Estratégia e Planeamento;
qualificado as na Secretaria-Geral da Presidência do
carreiras ainda Conselho de Ministros ou na Direcção-
Geral das Artes.
são atractivas Os profissionais colocados
porque o salário vinham das áreas de Direito, Gestão
é igual ou até e Administração, Ciência Política e
Relações Internacionais, Sociologia,
superior ao Psicologia e Economia.
privado. Quanto Quando lançou o recrutamento
centralizado de técnicos superiores,
mais qualificada um dos objectivos do Governo era
é a actividade, rejuvenescer a Administração Pública,
menos atractivo mas quando se olha para o perfil dos
trabalhadores colocados percebe-se
é o exercício de que esse objectivo não foi totalmente
funções públicas atingido.
Miguel Lucas Pires A idade média dos técnicos superiores
era de aproximadamente 35 anos (à data
de candidatura), abaixo da média de 47,7
anos do total da Administração Pública é
certo, mas ainda assim longe de se tratar
de recém-licenciados.
111
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
112
Inês Ramirez
Em dois anos, 26
mil funcionários
públicos atingem
idade da reforma
Secretária de Estado da Administração Pública, revela que
o Governo vai “apresentar um cabaz de aumentos para a
função pública” para compensar inflação. Mas sublinha que
a estratégia é “pensar no médio e no longo prazo para atrair
e reter” trabalhadores.
O
aumento dos salários da função pública no próximo ano
continua a ser uma incógnita e o tema só vai começar
a ser discutido com os sindicatos em Setembro. Sem se
comprometer com aumentos ao nível da inflação, a secretária
de Estado, Inês Ramires, diz que as actualizações anuais dos salários
terão de ser conjugadas com as medidas para reter os funcionários
públicos, que terão um “grande impacto orçamental”.
113
Em que estado está a administração pública?
114
No recrutamento centralizado de técnicos superiores, lançado em
2019, 21% das pessoas colocadas nos serviços acabaram por desistir.
Porquê?
Daquilo que podemos aferir neste momento, um dos factores foi o tempo
que demorou desde a candidatura até à homologação. Estamos a interagir
com as entidades empregadoras para percebermos até que ponto as
necessidades foram cobertas com os candidatos. Como os serviços não
tiveram intervenção, e é isso que estamos a tentar alterar, limitaram-se a
receber os candidatos.
115
Em que estado está a administração pública?
116
Quando é que abrirão um novo concurso centralizado?
Estamos a preparar-nos para ter, articulados com o Ministério das
Finanças, alguma coisa no próximo ano.
117
Em que estado está a administração pública?
118
Quando é que a valorização dos níveis de entrada entra em vigor?
Em 2022?
Não lhe posso dizer a si o que não disse aos sindicatos. Vamos fazer contas
e na próxima reunião, dia 29, diremos.
119
Em que estado está a administração pública?
O que está a dizer é que será preciso combinar medidas como as que
foram apresentadas aos sindicatos com a actualização geral anual?
120
Exactamente. Se vai haver uma alteração estrutural na retenção de
pessoas dentro da AP, isso vai ter um impacto orçamental que tem de ser
conjugado com o que vamos conseguir fazer em termos conjunturais para
dar resposta à situação actual.
121
Em que estado está a administração pública?
122
Em relação à semana de quatro dias, o sector público já teve esta
experiência. Mobilizou muitos trabalhadores?
A informação da Direcção-Geral da Administração e do Emprego
Público era que não havia praticamente trabalhadores neste regime.
Agora vamos ter de estudar como é que regimes que conferem direitos
a trabalhadores podem ser ajustados às especificidades do Estado. Uma
coisa é uma empresa decidir que passa à semana de quatro dias com ou
sem supressão de horas e outra é a responsabilidade que o Estado tem de
responder a um conjunto de sectores que trabalham 24 sobre 24 horas ou
que têm especificidades próprias, como a educação.
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123
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 4
Planeamento
124
“Somos um Estado
com uma grande
miopia estratégica”
125
Em que estado está a administração pública?
Liliana Borges
V
ista por alguns como “um chavão”, a promessa de “reformar
o Estado” atravessa governos de direita e de esquerda e tem
assumido a forma de comissões, programas de reestruturação
da Administração Central e “guiões”. Consoante a cor
partidária, uma reforma pode passar pelo emagrecimento ou pelo
aumento do tamanho do Estado. Ao longo das últimas décadas, os
exemplos de sucesso e falhanço são transversais aos partidos do poder
e revelam as resistências que existem no caminho de optimização dos
serviços públicos do Estado.
Nas palavras do primeiro-ministro, uma reforma “não é uma folha
de PowerPoint”. A frase de António Costa, proferida em 2017, sintetiza
os complexos processos de reformas, frequentemente arrastados.
O primeiro exercício passa por definir o que é “reformar o Estado”.
Em conversa com o PÚBLICO, o economista e ex-governante António
Bagão Félix recorda que já no Governo de Francisco Sá Carneiro
(entre 3 de Janeiro e 4 de Dezembro de 1980) se falava em reformar o
Estado, desconcentrando o poder do aparelho e descentralizando a
posição política. Também a ex-ministra da Presidência e Modernização
126
Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, lembra que “no final
dos anos 80” as correntes neoliberais então dominantes e o início das
privatizações — que coincidiram com o Governo de Aníbal Cavaco Silva e
com “a ideia de emagrecer o Estado — trouxeram os estudos e promessas
de reforma para a agenda política. Tantas que o ex-ministro das Finanças
fala numa “overdose de diagnósticos”.
“Cheguei a integrar um grupo de trabalho coordenado pela ex-
secretária de Estado da Modernização Administrativa Isabel Corte-Real
sobre a reforma administrativa do Estado em 1993. Já lá estavam as linhas
todas. Trinta anos depois é um bocadinho desanimador que muitas não
tenham saído do papel”, diz.
De lá para cá, as estratégias foram-se adaptando, consoante as
ideologias que alternaram no poder. “Quando essa ideia vem de partidos
mais à direita, normalmente a ideia é reduzir o papel do Estado. Muitas
vezes não é dito, mas durante o Governo de Passos Coelho o que estava
por trás era a ideia de reduzir o número de funcionários públicos”,
descodifica Leitão Marques. “Há muito a ideia de que a reforma do Estado
é menos funcionários”, insiste a socialista.
De facto, em 2013, Paulo Portas, então vice-primeiro-ministro de
Pedro Passos Coelho, apresentava o seu guião para a Reforma do Estado
— que ficaria para a memória pelo enorme tamanho do corpo do texto
e espaçamento entre parágrafos — e afirmava que “reformar o Estado, é
continuar a privatizar”.
Mas a esquerda tem outra visão. “Muitas vezes ouvi os mesmos
partidos que advogavam essas reduções no Estado dizer que tínhamos
funcionários a menos nos hospitais e que as consultas estavam atrasadas,
o que é contraditório”, argumenta Maria Manuel Leitão Marques.
“Quando dizemos que temos de crescer o número de funcionários não
falamos de todos os serviços públicos. Podemos, ao mesmo tempo,
extinguir serviços e criar outros. Essa é a ideia de adaptar o Estado às
circunstâncias”, acrescenta a ex-governante.
127
Em que estado está a administração pública?
128
“A produção e distribuição de bens e serviços públicos por organismos
públicos apenas deve ocorrer quando estes não possam ser produzidos e
distribuídos tão bem e de forma mais barata pela sociedade civil através
da sua enorme panóplia de configurações organizacionais. É preciso
voltar a discutir as funções do Estado e que tipo de Estado queremos e
podemos ter. Os anos recentes só trouxeram névoa sobre este debate
pejado de ciladas de pequena política”, considera.
“O Estado não tem de remar mais, tem de pilotar melhor”, atira Bagão
Félix. “O que é que isso significa? Que, em abstracto, tem de ter menos
serviços, mas os que tem têm de funcionar melhor, ter mais autoridade,
mais competências técnicas e ser mais escrutinados”, defende.
Para Bagão Félix, o primeiro passo é definir que “não é a sociedade
que se deve moldar às conveniências do Estado, mas é o Estado que se
deve moldar às necessidades da sociedade” e por isso para uma reforma
ser bem-sucedida “é preciso mudar o ónus da discussão”. “Quando
falamos de reformas na Educação falamos de professores, não falamos
129
Em que estado está a administração pública?
João Bilhim
130
disruptivas” como a que deu origem ao Cartão do Cidadão. “Foi preciso
fazer alterações em várias infra-estruturas essenciais do Estado: nos
registos, nas Finanças, na Segurança Social, no registo dos utentes do
Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, nota, distinguindo estas alterações de
mudanças “mais incrementais” como a redução do papel.
Quer Leitão Marques, quer Bagão Félix concordam com a
importância de apostar na desconcentração e descentralização de
serviços do Estado e de competências. Para Leitão Marques, a “mãe”
do Simplex — o programa destinado a agilizar o funcionamento da
máquina do Estado e a travar a burocracia do funcionamento da
Administração Pública —, a melhor abordagem de reforma de um
Estado “é simplificar e tornar os serviços mais eficientes”. Para que
a reforma tenha sucesso “não deve ser uma abordagem holística”,
defende Leitão Marques. Ou seja, tem de haver “uma abordagem
incremental e contínua”.
131
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
132
O futuro que já mora
por aqui precisa
de um Estado
mais qualificado
O futuro da administração pública terá de passar
por melhores qualificações, pela renovação de quadros,
pela captação de novos talentos e tal só será possível
com vencimentos mais altos e mais possibilidades
de progressão, entre outras condições. O estado
da arte visto por três especialistas
Clara Viana
A
s partes do futuro que já se encontram em cima da mesa e as
outras que surgirão, por certo difíceis neste mundo cada vez
mais complexo e incerto, exigem “um Estado forte na sua
capacidade de antecipação e de planeamento estratégico” e
tal só será possível se a administração pública contar com “recursos
humanos qualificados”.
O diagnóstico é do director do novo Centro de Competências de
Planeamento, de Políticas e de Prospectiva da Administração Pública,
Paulo Areosa Feio, que funciona na dependência da Presidência
133
Em que estado está a administração pública?
134
de 20 anos sem aumentos salariais, e que se encontra profundamente
desmotivada”, destaca o investigador do ISCTE César Madureira, que se tem
dedicado sobretudo às áreas da administração e políticas públicas. A isto
junta-se “a ausência de um diagnóstico profundo” sobre as necessidades e
competências existentes e as que serão necessárias: “Existe a percepção clara
que neste contexto não é possível melhorar a administração pública.”
Para Alvarenga, não é um “fatalismo que o Estado deixe de ser atractivo
para as novas gerações”. “Claro que tem de remunerar melhor, tem de
haver vagas, existir flexibilidade e possibilidade de promoção”. E existindo
essas condições pode “ser muito atractivo para o talento já que o Estado
tem um conjunto de funções com um impacto social enorme”.
Paulo Areosa Feio sublinha que que Portugal precisa de “uma
administração pública rejuvenescida, mais capacitada para apoiar o
desenvolvimento de funções estratégicas do Estado”. Frisa que “os
cenários futuros da administração pública vão resultar das escolhas
135
Em que estado está a administração pública?
Preparar o futuro
Mas, só por si, rejuvenescer e qualificar serão insuficientes se não existirem
objectivos e cenários de previsão que moldem as funções que o Estado
deve assumir face a um futuro que também se prevê de emergência e a um
presente que está já marcado por enormes mudanças. António Alvarenga
aponta alguns exemplos: as alterações climáticas, os desafios energéticos,
o envelhecimento da população, as várias transições (digital, energética,
demográfica) e as “grandes surpresas” dos últimos tempos, como a guerra
na Ucrânia ou o Brexit, que ameaçam abrir uma caixa de pandora.
É face a tudo isto que o pensamento estratégico e a chamada prospectiva
se tornam cada vez mais vitais, por se basearem na antecipação de cenários
e com base nisso permitirem que se tracem planos de acção.
“Há uma grande parte do futuro que já está inscrito. Por exemplo, o
envelhecimento da população. De acordo com o que sabemos hoje, seria
uma loucura não nos prepararmos para essa transformação estrutural da
nossa sociedade. E isso significa abranger áreas como a saúde, segurança
136
social ou fiscalidade, entre outras”, aponta Alvarenga.
A prospectiva pode até ser uma área de conhecimento desconhecida
de muitos, mas a necessidade de antecipar o futuro para agir começa
a estar na agenda das sociedades e com impactos esperados. É o que
aponta Paulo Areosa Feio: “Por ventura, como consequência das crises
que se desenvolveram nas primeiras décadas do século ou de catástrofes
naturais de efeitos devastadores, parece evidente que se expande
uma nova consciência social de que há riscos maiores que não podem
continuar a ser desconsiderados. E isso introduz uma pressão positiva,
no sentido de atribuirmos tempo e recursos ao que está para além da
resposta ao problema que despontou esta manhã.”
O director do PlanoAPP alerta, contudo, que “introduzir a perspectiva
do longo prazo nas decisões que hoje se tomam exige novas formas de
envolvimento da sociedade, novas formas de colaboração entre Estado e
sociedade”. É uma das missões do “seu” centro de competências.
Este dirigente salienta ainda que estes “tempos da incerteza, da
volatilidade e da complexidade exigem mais do que os tradicionais
137
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
138
Melhores salários
e rápida progressão:
eles trabalham
na função pública
lá fora
Perseguiram um sector e empregos “com impacto positivo
na sociedade”. São portugueses funcionários públicos
noutros países europeus, o que às vezes os deixa a pensar.
“Se trabalhas em políticas públicas, há sempre um gozo
especial em trabalhar territórios que te digam alguma coisa.”
S
empre que corriqueiramente lhe perguntam o que faz,
José Pedro Reis responde que trabalha “para o mayor” de
Londres. Se a resposta provocar suficiente interesse, como
quase sempre provoca, o engenheiro civil do Porto procede a
explicar que trabalha na estratégia económica da Autoridade para a
Grande Londres, órgão descentralizado de governação regional. Está
principalmente focado no plano de recuperação económica da capital
inglesa, pós-pandemia.
139
Em que estado está a administração pública?
140
câmaras e sub-regiões do Reino Unido em projectos de desenvolvimento
económico, descentralização e crescimento inclusivo para ganhar menos
no sector público inglês — pelo contrário.
No início de 2019, depois de explorar a academia e o sector privado,
encontrou online a vaga para a equipa que criou a primeira estratégia de
resiliência urbana de Londres, ao abrigo do projecto 100 Resilient Cities,
financiado pela Rockfeller Foundation. Lisboa, mais perto de casa do que
Londres, também estava no programa.
“Se trabalhas em políticas públicas, há sempre um gozo especial em
trabalhar em temas ou territórios que te digam alguma coisa”, diz. Apesar
disso, existem barreiras reais (e outras percebidas) que lhe esmorecem o
desejo de voltar.
“Existem as dificuldades de entrar na Administração Pública
portuguesa, a ideia de que é difícil inovar e a questão do salário. Depois,
grande parte do trabalho que faço seria um cargo de nomeação política
em Portugal”, avalia.
141
Em que estado está a administração pública?
142
“de pára-quedas no serviço de endoscopia” de um hospital do serviço
nacional de saúde inglês (NHS).
“Não aprendemos muito em Enfermagem sobre isso. O que estou a
fazer aqui em Portugal só os médicos é que fazem”, apresenta.
Uma vez que o protocolo com a agência lhe pagou “a viagem, o curso
e exame de inglês, alojamento durante três meses e o primeiro ano de
quotas na Ordem dos Enfermeiros de Inglaterra”, Ana Correia não teve de
“juntar muito dinheiro para ter uma vida estável, nos primeiros meses”.
“Era das coisas que mais me assustava enquanto emigrante: vir para um
país e ficar sem dinheiro.”
Começou em Setembro de 2019 a trabalhar como auxiliar de acção
médica, enquanto não recebia o pin de enfermeira. “A partir daí, tenho
saltado de trabalho para trabalho muito rápido”, conta. “A diferença de
Portugal e Inglaterra, em termos de progressão de carreira, é gigante.”
143
Em que estado está a administração pública?
144
Reino Unido — e sabia que tinha de lá pôr o outro antes das restrições
do “Brexit” entrarem em vigor.
Sabia que não queria fazer noites, queria ter os fins-de-semana livres e
trabalhar um horário banal, das 9h às 17h. Isto dá-lhe tempo e orçamento
para ir ao ginásio, ir visitar Londres ou deixar-se ficar pelos muitos
parques do condado a que informalmente chamam o jardim de Inglaterra.
No prédio gigantesco onde vive, num T1 partilhado com o namorado,
a 20 minutos de autocarro do hospital, conhece pelo menos 12 vizinhos
profissionais de saúde portugueses.
Considera as rendas caras, mas não acha “as compras no
supermercado” desajustadas, mesmo com o impacto auto-infligido
do abandono do mercado único da União Europeia e com as pressões
externas da guerra na Ucrânia. O aumento dos preços ainda não a forçou
a fazer “horas extras muito bem pagas”.
“Não vim para aqui com o intuito de ser rica. Queria equilíbrio de
vida e trabalho: por isso as minhas 37 horas estão bem”, ri-se, com um
encolher de ombros.
Os cuidados de saúde em Inglaterra “não são uniformes”, pelo que o
relato da “cultura de valorização” feito por Ana Correia não caracteriza
todos os contextos e experiências. Ainda assim, a enfermeira defende que
a necessidade urgente de enfermeiros bem preparados leva a condições
melhores do que os profissionais encontram em Portugal. “Se não me
vejo a voltar agora é porque aqui me dão as condições que nunca na vida
teria no meu país”, resume, em jeito de justificação.
Também por Inglaterra vê “pressões que existem pela falta de staff ”,
diz. “Às vezes nota-se que as chefias não estão a conseguir resolver os
problemas, o que não deveria transparecer”, comenta. Hesita antes de
dizer que vê racismo.
Num relatório lançado recentemente, o sindicato Royal College of
Nursing sugere que o racismo é “endémico” na área da saúde. Um
inquérito a quase dez mil enfermeiros concluiu que aqueles que são
145
Em que estado está a administração pública?
146
Um bom domínio da língua
era também obrigatório
para a maior parte das vagas
que encontrou no site da
câmara de Vantaa, onde vive,
mas uma rápida chamada
telefónica para o município
deu-lhe uma pista para uma
vaga por anunciar. “Ser [uma
função no sector] público
já me dava uma confiança
maior. Ouço falar bem”, diz.
A directora do jardim-de-
infância com muitas famílias
multiculturais, “que tem o
inglês como língua principal”,
gostou de a conhecer. “Não
me negou por não ter a
formação específica de
educadora de infância, o
Em Portugal, não que é muito comum dos
teríamos conseguido finlandeses”, comenta.
sem um fiador Numa entrevista anterior,
numa creche privada,
Cristiana Levinthal, disseram-lhe que caso
psicóloga na Finlândia fosse aceite seria com
um corte salarial, por não
ter a formação específica.
“Ela foi mais flexível e
valorizou muito a minha
formação”, diz.
147
Em que estado está a administração pública?
VOLTAR AO ÍNDICE
148
Uma ideia
reconhecida lá fora
que é utilizada por
dois milhões de
portugueses
Chave móvel digital é um dos instrumentos que veio
ajudar a desburocratizar a relação dos cidadãos com
o Estado. Há ferramentas implementadas pelos governos
portugueses que geram interesse em outros países.
149
Em que estado está a administração pública?
Camilo Soldado
H
á uma certa ideia de complexidade quando o assunto
é preencher documentação relativa a impostos, obter
certidões, resolver problemas com a Segurança Social. Com a
digitalização de muitos dos balcões, vários desses processos
ficaram mais ágeis e há uma ferramenta que veio simplificar o primeiro
passo na relação com todos esses serviços: a Chave Móvel Digital (CMD)
começou por ser uma forma simples de autenticação em vários sites
públicos e privados. Passou também a ser possível assinar documentos
digitais com a mesma validade de uma assinatura à mão.
A CMD torna “claramente” a máquina do Estado “mais célere e
mais leve”, diz Alexandra Leitão, ex-ministra da Modernização do
Estado e da Administração Pública, que assumiu a pasta entre 2019
e 2022. De acordo com o portal de dados abertos da administração
pública, desde Julho de 2014 até Fevereiro de 2022, há registo de
3,8 milhões de activações da CDM. A Agência para a Modernização
Administrativa (AMA) refere ao PÚBLICO que, neste momento, há
“mais de dois milhões de CDM activas”. A segurança do sistema foi
reconhecida pela União Europeia “como um meio de identificação
electrónica com o nível de segurança ‘elevado’”, ( juntamente com
sistemas de 18 outros países, nem todos com o mesmo nível de
segurança), refere a AMA.
Mas o percurso não é sempre linear, sublinha a ex-ministra da
Presidência e da Modernização Administrativa entre 2015 e 2019, Maria
Manuel Leitão Marques. O chip que está no Cartão de Cidadão permite
“fazer tudo o que a CMD faz: assinar e autenticar”. Mas a sua utilização
“era tudo menos amigável”, diz. “Era preciso ter o leitor, era preciso
instalar o programa no computador, havia muitos constrangimentos”,
explica a actual eurodeputada. “Também temos que saber lidar com o
fracasso e perceber porque não resultou”.
150
Para apontar outra medida paradigmática que gerou atenção, a ex-
ministra regressa a 2005, quando foi lançada a iniciativa Empresa
na Hora. Leitão Marques, que viria a ser secretária de Estado da
Modernização Administrativa entre 2007 e 2011, refere que há um dado
que permite aferir o impacto desta medida, explica: antes, para se criar
uma empresa, era preciso uma jornada de várias dezenas de dias para se
criar uma; com a criação da plataforma, passou a ser possível fazê-lo em
“menos de uma hora”.
Para o interior da administração pública, uma redução destas oferece
um bom exemplo; para o exterior, permite que haja mais pessoas a
criar a sua empresa “sem medo” e que haja maior rapidez na criação de
empregos. Leitão Marques dá exemplo do Uruguai, que partiu do modelo
português para “implementar algo semelhante”.
Mais recentemente, em Março, outra ferramenta desenvolvida numa
das vagas do Simplex, a aplicação ID.gov, gerou interesse de outros
países europeus, conta Alexandra Leitão, sobre o instrumento que
permite armazenar e partilhar vários documentos emitidos pelo Estado
português no smartphone. Já no final do seu mandato, participou num
encontro de ministros da Administração Pública, em Estrasburgo, para
partilhar novas medidas. “Nós apresentámos o ID.gov e eles [outros
países] ficaram muito interessados”, recorda, dando o exemplo do
governo irlandês. A AMA contabiliza mais de um milhão de instalações
da aplicação id.gov em dispositivos móveis.
Apesar de registar os avanços tecnológicos, a agora deputada
socialista ressalva que, havendo ainda “muita falta de literacia digital”,
o atendimento presencial vai ser “muito necessário durante algumas
gerações”, sob pena de “criarmos uma nova forma de exclusão social,
que é a exclusão digital”.
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151
Em que estado está a administração pública?
O Estado 4.0
fica com quase
75% do PRR para
a digitalização
Portugal é um dos dez países mais bem avaliados no
Governo Electrónico, mas pode melhorar na justiça e
no apoio às famílias. Governo quer os 25 serviços mais
requisitados num único portal.
Victor Ferreira
O
Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) reserva quase 15%
dos 16,6 mil milhões de euros para a digitalização e, dentro
deste pilar, a maior parte (73,58%) irá para a transição digital na
administração pública.
A transição digital tem 2461 milhões no PRR. É a fatia mais pequena de
entre os três pilares (Resiliência, Clima e Digitalização), dividindo-se em
1800 milhões para a administração pública e cerca de 650 milhões para
ajudar na transição digital das empresas.
Em 2018, Portugal ainda era um dos dez melhores no chamado
Governo Electrónico. Os dados do Eurostat mostram, no entanto, que
há espaço para melhorar, sobretudo no que se refere à relação entre a
administração pública e as famílias. Se é preciso fortalecer um Estado
152
4.0, mais digital, de acesso universal e eficaz, então o PRR será uma
importante fonte de investimento até 2026.
Um dos investimentos visa agrupar os 25 serviços públicos mais
procurados no “portal único renovado”, no “centro único de contacto” e
na “rede de atendimento presencial”. A entidade gestora é a Agência para
a Modernização Administrativa (AMA). Essa transição da administração
pública é um “desafio imenso”, destacava a Comissão Nacional de
Acompanhamento do PRR, no seu primeiro relatório.
Mas nem tudo é uma questão de tecnologia. A Direcção-Geral
do Emprego e Administração Pública irá gerir três programas: um
contrato de cerca de 37 milhões de euros para 1500 estágios para
técnicos superiores; e a promoção do teletrabalho e a instalação de 23
espaços de coworking.
153
Em que estado está a administração pública?
154
Depois, estão prometidos 267 milhões de euros para melhorar a justiça
económica e o ambiente de negócios. Será para desenvolver múltiplas
plataformas digitais, do cartão do cidadão aos processos de insolvência
e recuperação, e até mesmo para apoiar investigação criminal e forense.
Quem conhece os tribunais portugueses sabe que até o sistema de vídeo
ou de som nos julgamentos pode ser um problema. No PRR ficou a
promessa de “apetrechamento tecnológico” e de videoconferência para
tribunais, conservatórias e outros serviços da Justiça.
Há ainda 200 milhões para a transição digital na Segurança Social e
mais 43 milhões para a Autoridade Tributária.
“Notamos que 73,58% dos montantes do PRR afectos à área de
Transição Digital são destinados a investimentos a realizar por instituições
da Administração Pública na dependência directa dos Ministérios
Coordenadores [e] 4,07% destinam-se a formação de recursos humanos”,
sumarizava o primeiro relatório daquele órgão quando ainda era
presidido por António Costa Silva, agora ministro da Economia e do Mar.
Portugal tem melhor desempenho digital no apoio às empresas, ao
ensino e à busca de emprego, e tem mais margem de progressão no
acesso digital à justiça e no apoio às famílias. É isso que dizia o estudo
eGovernment Benchmark 2021, preparado para a Comissão Europeia.
Se é certo que há serviços públicos integralmente online, apenas 49%
dos portugueses contactaram serviços públicos na Internet em 2021,
diz por seu lado o Eurostat. Isto coloca o país no último terço da tabela,
liderada Islândia (85%), Suécia (80%) e Estónia (76%).
Essa percentagem é ainda mais baixa (34%) quando se refere à
proporção de portugueses que preenchem e entregam formulários
completos nos serviços públicos através da Internet.
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155
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 5
Corrupção
156
Processos por
crimes de corrupção
em máximos
desde 2011
Em 2021, a PJ recebeu 705 processos e as restantes polícias
mais 100. Combate à corrupção é dificultado pela falta
de estatísticas consolidadas sobre processos levados a
julgamento, condenações e até tipos de crimes.
Maria Lopes
157
Em que estado está a administração pública?
158
Uma das opções legislativas para
o combate à corrupção tem sido aumentar
as penas. São medidas de testosterona.
Do que vale haver penas pesadas
se as pessoas não são condenadas?
José Tavares
159
Em que estado está a administração pública?
160
O também presidente do Tribunal de Contas – o crivo de muitas
autorizações de alta despesa pública — considera que mais leis “só
criam dificuldades na sua interpretação e aplicação”. “As que regulam
e disciplinam o fenómeno da corrupção e infracções conexas são
suficientes. O importante é que as instituições de investigação e de
julgamento, mas também as de prevenção, façam o seu trabalho da
melhor forma e com a maior celeridade possível.”
Um dos exemplos apontados como ilustrativo dos atrasos na Justiça
nesta área é a Operação Marquês, no âmbito da qual o Ministério Público
imputou 31 crimes ao antigo primeiro-ministro José Sócrates (de um total
de 189 crimes distribuídos por 28 arguidos), sendo que este acabará por
ser levado a tribunal apenas por seis depois de Ivo Rosa ter feito cair os
três crimes de corrupção.
Questionado sobre se o aumento sucessivo de processos de crimes
de corrupção representa um crescimento do fenómeno ou apenas da
sensibilidade da sociedade para o tema, José Tavares acredita que “o grau
de percepção da corrupção é superior à que realmente existe”. E que a
educação é a base da prevenção do fenómeno — porque “a educação, a
ciência, a cultura e a ética são as bases do desenvolvimento”. O conselho
recomendou, em 2008, que todas as instituições públicas criassem planos
de prevenção de riscos de corrupção e todos os meses fazia uma visita
inspectiva a uma entidade de maior relevância financeira que abrangeram
mais de nove mil dirigentes e técnicos do sector público, recorda o
presidente. “Temos a noção de que se não houvesse acompanhamento,
os planos teriam morrido.”
Susana Coroado preferia uma aposta na prevenção com instrumentos
como “os impedimentos de conflitos de interesses dentro das instituições
— no Governo e AR e depois, em cascata, na administração pública — com
sanções, aumento das medidas de transparência como a regulamentação
do lobbying, mais dados sobre os escritórios de advogados que fazem as
propostas de lei, e sobre contratação pública”, elenca.
161
Em que estado está a administração pública?
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162
Nível salarial
dos políticos e
corrupção: “Não
podemos ligar estas
duas questões”
Presidente da República e primeiro-ministro ganham cerca
de três vezes o salário médio nacional, o que os coloca num
patamar inferior à maioria dos países da União Europeia
163
Em que estado está a administração pública?
Maria Lopes
À
velha pergunta sobre se os políticos portugueses ganham
muito ou pouco a resposta continua a não ser consensual,
mas tanto o presidente do Conselho de Prevenção da
Corrupção como a presidente da associação Transparência
e Integridade afastam uma relação directa entre o nível dos salários e o
fenómeno da corrupção.
“Não podemos ligar essas duas questões. A corrupção e as infracções
conexas prendem-se com valores e princípios fundamentais, como a ética
em sociedade, e não com salários”, defende José Tavares. “É por isso que
tem sentido que haja mecanismos de defesa da sociedade como são os
instrumentos de controlo e prevenção.”
“Essa é uma pergunta a que a ciência política tenta responder há anos
sem o conseguir”, avisa Susana Coroado. “Ainda que os baixos salários
possam, de alguma forma, estimular e abrir a porta a que quem tem
alguma necessidade financeira se sinta tentada a aceitar um suborno ou
desviar dinheiros públicos, a verdade é que, se olharmos para os casos
de corrupção mais mediatizados nos últimos anos, não estamos a falar
de pessoas que ganham pouco. São pessoas de altos cargos do sector
financeiro ou de antigos monopólios estatais, por exemplo”, lembra a
presidente da associação Transparência e Integridade.
Ou seja, não se consegue desenhar um perfil económico-financeiro
típico do agente corrompido e do seu corruptor. “Não me parece que se
encontre uma relação directa entre os rendimentos e a corrupção.”
Quando comparados com o salário médio ou mesmo com o salário
mínimo, percebe-se que os níveis de vencimentos dos principais
políticos portugueses ficam abaixo da generalidade dos seus congéneres
europeus. De acordo com um estudo comparativo da IG, uma consultora
britânica de mercados financeiros, com valores relativos a 2018, entre 32
164
países da OCDE, António Costa era o 28.º no rácio entre o salário bruto
de primeiro-ministro (sem despesas de representação) e o salário médio
do país (que era de cerca de 1700 euros na altura): ganhava três vezes o
salário médio nacional.
Salário mínimo
Parlamento Europeu
Eurodeputado 9166 (+ 4778 de subsídio)
Assembleia da República
Deputado 3668 705
Deputado em exclusividade 4054 (+ 386 de subsídio)
Vice-secretário da Mesa da AR 4247
Presidente de comissão 4247
Secretário da Mesa 4440
Presidente de grup. parlam. 4440
Membro do cons. admin. 4633
Vice-presidente da AR 4633
Presidente da AR 8339
Câmara municipal
(a tempo inteiro) Presidente Vereador
Lisboa e Porto 5272 3880
Mais de 40 mil eleitores 4793 3534
Entre 10 mil e 40 mil eleitores 4313 3180
Restantes 3834 2827
Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa 10.424
Governo português
António Costa (prim.-minist.) 7818 705
Ministro 6774
Secretário de Estado 6022
Subsecretário de Estado 5095
*Abdicou do salário Nota: salários dos políticos portugueses mantêm uma redução de 5% desde 2010
165
Em que estado está a administração pública?
166
Centeno entre quem ganha mais do que Marcelo
A hierarquia dos vencimentos dos políticos está estabelecida numa lei
de 1985, todos indexados ao do Presidente da República: o presidente do
Parlamento ganha 80% do Presidente da República, o primeiro-ministro
75%, os ministros 65%, os secretários de Estado 60%, os sub-secretários
de Estado 55%, os deputados 50%, os presidentes das câmaras de Lisboa e
Porto 55%, os dos municípios que têm mais de 40 mil eleitores 50%, entre
10 mil e 40 mil 45% e os restantes 40%; os vereadores a tempo inteiro
ganham 80% do presidente do seu município.
Há três anos, quando promulgou o novo Estatuto dos Magistrados
Judiciais que (por proposta do PS) permitiu aos juízes ganharem mais
que o primeiro-ministro e aumentou os juízes conselheiros de tribunais
superiores em 700 euros, Marcelo Rebelo de Sousa avisou para o
acentuar da “desigualdade de tratamento” e criticou a “multiplicação
de responsáveis públicos” com salário acima do chefe de Governo. Na
verdade, não faltam exemplos acima do seu salário: o governador do
Banco de Portugal, Mário Centeno, ganha 17.130 euros; na administração
da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, a
presidente recebe 11.557 euros, o vice 15.440 e o vogal (o ex-ministro da
Economia Manuel Caldeira Cabral) 10.691 euros.
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167
Em que estado está a administração pública?
Capítulo 6
Defesa
168
O imbróglio de umas
Forças Armadas
sem efectivos e com
poucos recursos
Serão as actuais sociedades receptivas aos valores da
hierarquia e disciplina que moldam os exércitos. Ou a falta de
vocações castrenses é a consequência deste novo tempo?
Nuno Ribeiro
É
uma política de Estado, e de soberania, que tem suscitado planos,
mudanças, contestações várias, com uma peculiar situação.
Falta de recursos humanos, salários baixos e várias formas de
contabilizar efectivos.
Em entrevista ao PÚBLICO, em Dezembro de 2019, a então recém-
empossada Directora do Instituto de Defesa Nacional (IDN) e hoje
ministra da pasta da Defesa, Helena Carreiras, fez um diagnóstico
certeiro sobre a situação das Forças Armadas. “Os jovens nas
Forças Armadas não devem ser mão-de-obra barata”, disse, com a
experiência de ter tido um papel relevante no Plano de Acção para a
Profissionalização apresentado em Abril daquele ano, cujo objectivo
era resolver a falta de vocações castrenses.
169
Em que estado está a administração pública?
Os números
Segundo os números facultados ao PÚBLICO pelo Ministério da
Defesa Nacional a 6 de Maio último, em 2021 o total de efectivos
das Forças Armadas nos três ramos era de 29.980, dos quais 11.153
contratados. No ano anterior, eram dez mil os contratados para um
total de 29.076. Já em 2019, para 29.346 efectivos, estavam em regime
de contratos 9739. E, em 2018, havia 10.511 contratados para um
total de 29.921. Só em 2017, o valor global de efectivos ultrapassou a
constância dos 29 mil — foram, então, 30.510 —, com os em regime de
contrato a serem 10.867.
No entanto, segundo os números da Associação de Oficiais das
Forças Armadas (AOFA), com base nos dados oficiais da Direcção-
Geral de Administração e Emprego Público, em 2021 os efectivos eram
170
Efectivos nas Forças Armadas
TOTAL GERAL 20.297 Total do quadro permanente Total em regime de contrato
14.386
5911
4935 283 776 8392
Activo Reserva Reserva fora Reforma
efectividade da efectividade
492
308
66
Evolução
Evolução dos efectivos
dos efectivos Remuneração-base
Remuneração-base médiamédia mensal
mensal bruta:bruta:
globais das Forças Armadas
globais das Forças Armadas ForçasForças Armadas
Armadas em comparação
em comparação
e comparação
e comparação com as
com as com Forças de Segurança
com Forças de Segurança
Forças
Forças de Segurança
de Segurança Valores
Valores em euros
em euros
GNR — oficiais
GNR — oficiais 2555,32555,3
35.000 35.000
PSP — oficiais
PSP — oficiais 2205,62205,6
Forças Forças
ArmadasArmadas Polícia Judiciária
Polícia Judiciária 2115,9 2115,9
30.000 30.000 Serviço Serviço
de Estr. de Estr. e Fronteiras
e Fronteiras 2064,72064,7
GNR— sargentos
GNR— sargentos 1897,2 1897,2
25.616 25.616
Forças Armadas
Forças Armadas — oficiais
— oficiais 1860,6 1860,6
25.000 25.000 PSP — chefes
PSP — chefes 1827,6 1827,6
GNR GNR 22.30922.309 Média
Média da dapública
admin. admin. pública 1527,4 1527,4
Forças Armadas
Forças Armadas — sargentos
— sargentos 1440,9 1440,9
20.000 20.000 PSP — agentes
PSP — agentes 1398,9 1398,9
PSP PSP 20.70820.708 GNR — guardas
GNR — guardas 1498,9 1498,9
Guardas-prisionais
Guardas-prisionais 1074,3 1074,3
15.000 15.000
Polícia Municipal 1026,6 1026,6
Dez.Dez.
Dez. Dez. Dez.Dez.
Dez.Dez.
Dez. Mar.
Dez. Mar. Polícia Municipal
2011 1320111513 17 15 1917 19
22 22 Forças Armadas
Forças Armadas — praças — praças 823,9 823,9
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Em que estado está a administração pública?
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Os salários
A questão remuneratória das Forças Armadas tem vários aspectos de
défice. A tabela salarial das praças “arranca” com 871,99 euros brutos,
sendo que 705 são a base de salário mínimo nacional e o restante de
suplemento da condição militar. Depois, um soldado aufere 883,58 euros,
o cabo 940,25 e tem o topo do seu vencimento em 1022,7 euros.
Estes valores são sempre inferiores aos agentes da PSP e das polícias
municipais, aos guardas da GNR, o que não torna a carreira competitiva.
O salário mínimo nacional nas praças é também inferior ao dos
bombeiros profissionais.
A taxa de retenção das praças sofre de uma regressão na carreira se
comparada com as forças de segurança ou das empresas de segurança,
que é o destino mais comum das praças depois do final dos contratos.
Fizeram a formação nas Forças Armadas e, depois, vão servir na polícia,
GNR e em serviços privados.
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Em que estado está a administração pública?
Problemas de conceitos
Aquando do chumbo pela Assembleia da República da primeira versão
do Orçamento do Estado para 2022, que ditou a queda do Governo e
a convocatória de eleições legislativas antecipadas, em declarações ao
PÚBLICO o ministro João Gomes Cravinho lamentou que tal incidência
tenha adiado a discussão do futuro Conceito Estratégico de Defesa
Nacional. O que Gomes Cravinho pretendia era um modelo mais
próximo do anglo-saxónico, no seguimento, aliás, da aprovação da nova
Lei de Organização de Bases das Forças Armadas (LOBOFA). Tinha,
inclusivamente, pensado uma estrutura dividida em dois sectores: um de
“sábios” e académicos; e outro de executivos.
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No entanto, o Ministério da Administração Interna vai avançar com
o seu próprio conceito de segurança. “Misturar Segurança com Defesa
começa a criar sérias dificuldades na separação de fronteiras, o que cria
complicações na própria condição do que é ser militar”, observa Lima
Coelho. “Convém que haja um equilíbrio entre uma coisa e outra, e não é
isso que temos visto”, assegura o líder associativo dos sargentos. “Desde
a queda do muro de Berlim houve um desenvolvimento militar, mas a
partir dos atentados de 11 de Setembro houve um incremento das forças
de segurança, numa espécie de pêndulo que ainda não encontrou o seu
ponto de equilíbrio”, comenta.
“A Defesa não dá votos”, dizem os militares, contrapondo à
segurança interna. “As Forças Armadas chegaram a ser um elevador
social, mas não há sensibilidade financeira no Governo para a Defesa”,
garantem. E chegam a um extremo acusatório: “António Costa sempre
teve aversão à Defesa.”
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Em que estado está a administração pública?
176
deste mês na cimeira de Madrid com o conselho Estratégico da NATO”,
pondera o socialista Marcos Perestrello, presidente da comissão
parlamentar de Defesa Nacional.
“O novo Conselho Estratégico Nacional vai determinar a futura Lei de
Programação Militar (LPM), só então estará definido o que se pretende
das Forças Armadas na opção da política externa, só depois se vão
disponibilizar os recursos necessários”, refere. “É o que faz sentido neste
ambiente em que a Europa actualmente se movimenta”, insiste o ex-
secretário de Estado da Defesa Nacional.
O deputado do PS nega qualquer contradição entre Segurança —
interna — e Defesa — externa. Há sempre aspectos próprios, mas tudo é
segurança, não estão em conflito e ambas são necessárias até porque os
recursos vêm todos do mesmo sítio”, dos contribuintes”, assinala. “Assim,
temos de clarificar o que queremos das Forças Armadas, esta é uma
questão que não pode ser tratada em abstracto”, conclui.
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Em que estado está a administração pública?
“Há que definir uma LPM que responda ao que queremos”, concorda
Proença Garcia. As prioridades estão definidas. “O grande desafio é
recrutar e reter, manter a carreira atractiva, não precisamos de mais
equipamento mas pôr a funcionar o que há, das fragatas aos navios
patrulha oceânicos feitos em Portugal, com transferência tecnológica para
as academias e empresas de forma a que o investimento seja produtivo
e não comprado através das agências da NATO”, prossegue. Executar a
LOBOFA e olhar para o mar são outras das prioridades.
As Forças Armadas dividem-se, modernamente, em dois sectores: as
tecnológicas e as menos tecnológicas, com uma diferente relação nos
seus componentes. Nas primeiras, existe um ratio de um oficial para três
sargentos e seis praças. Nas segundas, tal relação é de um oficial para
quatro sargentos e dez praças. “Dada a escassez de efectivos, o ratio
português é de um oficial para 1,3 sargentos e 1,67 praças”, assegura Ângelo
Correia. A opção do modelo tem de combinar as necessidades com os
compromissos, os meios com a sua escassez. É este o imbróglio da Defesa.
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Servir Portugal,
acima ou
apesar de
tudo? O que
leva os jovens a
seguir as Forças
Armadas
Se para uns o universo militar é ainda desconhecido,
é lá que outros encontram os valores que procuravam.
Com a noção de que são “poucos”, e que “a mesma
profissão noutro contexto possa até ser mais bem
remunerada”, há quem fique. E há quem saia.
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Em que estado está a administração pública?
N
unca pensei entrar para as Forças Armadas”, começa por dizer
Pedro Costa. A oportunidade surgiu numa fase em que não
estava “feliz” com o emprego que tinha numa fábrica na área
da tecnologia mecânica, e um panfleto conduziu-o até ao site de
recrutamento do Exército. “Depois de me informar, fiquei interessado e
quis mesmo dar o meu máximo para conseguir entrar.”
E conseguiu. Entrou no limite de idade — aos 24 anos — para a categoria
de praça. Fez duas missões no estrangeiro: uma no Afeganistão, em 2018,
outra na República Centro-Africana, em 2020. Agora, findo o contrato de
seis anos, e sem vontade de seguir carreira nas forças militarizadas, não
sente “saudades da instituição”. “Sinto é falta de voltar a esses teatros [de
operações], a esses sítios, porque me sentia útil e realizado.”
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As “missões a nível internacional” são também “um sonho” para Mónica
André. “Quando terminar a Academia, gostava bastante de ir lá para fora
e poder dar o meu contributo”, refere a aluna do 3.º ano do mestrado
integrado em Ciências Militares da Academia Militar do Exército.
A cadete de 21 anos acredita que, apesar de Portugal não ter nenhum
conflito activo, a guerra que acontece na Ucrânia pode despertar nos
jovens a vontade de se alistarem. “Penso que aquilo a que [os jovens]
têm assistido na televisão seja um factor motivacional para ingressar nas
Forças Armadas e querer naturalmente servir o país, porque é esse o
nosso objectivo.”
O propósito de serviço público é chamativo, mas será que a carreira
militar continua a ser atractiva para os jovens?
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Em que estado está a administração pública?
182
escolha profissional ou académica viesse a acarretar ainda mais custos” para
os pais. “As academias [das Forças Armadas], ao serem isentas de propinas,
acabaram por também se tornar atractivas por esse motivo”, refere.
“Durante este tempo [seis anos] que eu vou estar em formação, não
pago propinas, tenho alojamento, não pago alimentação, não pago
literalmente nada e até recebo uma ajuda de custo”, concorda Marina
Cantarelli, que iniciou, este ano lectivo, o caminho para se tornar
engenheira aeronáutica, na Academia da Força Aérea. Com 18 anos e um
padrasto que é militar, Marina cresceu no Montijo, onde “há a Base Aérea
N.º 6”. “Sempre vi muitas aeronaves a passar e fascinava-me o facto de
aquelas coisas enormes estarem a voar”, conta.
183
Em que estado está a administração pública?
184
colmatado pelo Dia da Defesa Nacional (DDN), que, por definição, “visa
sensibilizar os jovens para a temática da defesa nacional e divulgar o
papel das Forças Armadas”, mas o ex-militar Pedro Costa, de 30 anos,
conta que, enquanto estava ainda no Exército, durante “dois ou três
meses” recebiam no quartel “cerca de 100 a 150 ‘miúdos’”, a propósito
do DDN, e o que notava era desinteresse. “Ficavam a olhar para nós, não
faziam perguntas, não faziam nada”, lamenta.
No estudo da Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional, Os Jovens
e as Forças Armadas, realizado em 2018, cerca de 80% dos inquiridos
referiram “ter gostado, ou gostado muito”, do Dia da Defesa Nacional.
No total, a edição desse ano contou com a presença de 102.919 jovens,
“dos quais resultaram 66.566 inquéritos, correspondendo a uma taxa de
cobertura de 64,7%”.
Para José Rocha, aluno do 4.º ano do curso de Piloto Aviador da
Academia da Força Aérea, o DDN não foi o ponto de viragem. Ainda
assim, permitiu “conhecer e orientar melhor, dentro dos ramos que
existem nas Forças Armadas, para a vertente da Força Aérea”. “Não tenho
Para o trabalho e
influência que temos no
país, ao nível de praças
ganhamos muito pouco
Pedro Costa, ex-militar
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Em que estado está a administração pública?
uma imagem negativa nem olho para o Dia da Defesa Nacional como uma
obrigação que apenas tem que se cumprir”, afirma.
À luz dos recentes debates que concernem o futuro do serviço militar
em Portugal, incluindo o ressurgimento do serviço militar obrigatório
— já afastado pela ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras —, têm-
se discutido novas modalidades de envolvimento dos jovens com as
Forças Armadas. Margarida Moita, cadete da Escola Naval, crê que “todos
deveriam ter pelo menos uma semana em que tivessem noção do que é
a vida militar”, até porque, segundo a própria, “há valores que se têm
vindo a perder ao longo dos tempos”.
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cumprida. E é isso também que nos motiva a poder continuar de um dia
para o outro”, garante o jovem de 22 anos.
Porém, as conclusões do estudo Militares RV/RC: Características
e Percepções, do Ministério da Defesa Nacional, apontam para
níveis consideráveis de insatisfação dos militares em vários campos
— oportunidades de carreira, incentivos, condições de apoio. A
percentagem mais elevada de descontentamento recai sobre o salário,
sendo de, aproximadamente, 46% na Força Aérea, 60% na Marinha e
cerca de 66% no Exército.
“Para o trabalho e influência que temos no país, ao nível de praças
ganhamos muito pouco”, diz Pedro Costa. “Eu posso dizer que, por
mês, retirava 650 euros mais ou menos”, relata o ex-militar, realçando as
diferenças salariais das missões, em que a remuneração “chegava aos 3000
[euros] e qualquer coisa”, à qual acrescia um subsídio de “cerca de 2000”.
Um tema discutido no dia-a-dia do quartel e que motivava saídas
antecipadas. “Por acaso, mantive-me até ao fim, porque também
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Em que estado está a administração pública?
Sem arrependimentos
Com os olhos postos no futuro, David Castro, que defenderá em Setembro
a dissertação de mestrado no curso de Marinha, crê que o papel das Forças
Armadas “na salvaguarda” da soberania e valores de Portugal “não irá mudar”.
Há pouco mais de dois meses no curso de comandos, Diogo Sequeira,
de 23 anos, lembra que “o mundo é muito grande e há muita coisa para
fazer” e, por isso, “se calhar, hoje em dia, os jovens cada vez vão dar
menos valor ou menos atenção àquilo que são as Forças Armadas”.
“Depende das escolhas de cada um”, conclui.
“Acho que o Exército só vai acordar ou tentar melhorar os aspectos
negativos quando cair mesmo no fundo e para se reerguer vai ter de
mudar muita coisa. Falar nos incentivos e nos salários acho que já era um
bom começo”, defende, por seu turno, Pedro Costa.
Para Mónica, David, Marina, José, Diogo e Margarida, o que os
motivou a entrar nas Forças Armadas é o mesmo que os leva a ficar. Do
lado de fora e sem arrependimentos, Pedro reconhece: “Foi uma boa
experiência, mas já passou.”
Texto editado por Amanda Ribeiro
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