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O estado

do Estado

Um debate urgente
sobre Portugal

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Em que estado está a administração pública?
O Estado emprega mais de 741
mil trabalhadores, o número
mais alto da década. E, no
entanto, há alunos que ficam
durante meses sem aulas por
falta de professores, e mais de
um milhão de portugueses
não têm médico de família.
O país tem a função pública
de que precisa? Em Junho de
2022 publicámos o grande
retrato da Administração
Pública. E lançámos o debate.
Nesta edição reunimos a série
completa de reportagens,
entrevistas e análises. Que
pode também ver aqui.
2
O estado do Estado: um debate
urgente sobre Portugal
Editorial Manuel Carvalho

LER ARTIGO

Trabalham menos? Reformam-se mais cedo?


Seis mitos (ou talvez não) sobre a função pública
Perguntas e respostas Raquel Martins

LER ARTIGO

Capítulo 1
Uma questão de números?
Função pública em máximos de 2005
enfrenta crise de credibilidade
Raquel Martins

LER ARTIGO

1. Educação
Falta de professores será pior na região Centro
Clara Viana

LER ARTIGO

2. Saúde
Médicos com mais de 65 anos representam 24% do total
Clara Viana

LER ARTIGO

3
Em que estado está a administração pública?

3. Forças de segurança
Baixos salários e média de idades acima
dos 40. PSP, GNR e PJ têm falta de efectivos
Sónia Trigueirão

LER ARTIGO

4. Justiça
Faltam mais de mil funcionários judiciais
Sónia Trigueirão

LER ARTIGO

Governo quer avançar com recrutamento


de dirigentes por equipa
Raquel Martins

LER ARTIGO

Testemunhos
Em que estado está a função pública?
O diagnóstico dos políticos e as medidas
que propõem

PS: “É essencial desenvolver


novos modelos de trabalho"
Pedro Cegonho
Deputado e Coordenador do GPPS na Comissão de Administração
Pública, Poder Local e Ordenamento do Território

LER ARTIGO

4
PSD: “Sufoco fiscal não corresponde
a serviços públicos de qualidade"
Paulo Mota Pinto
Líder da bancada parlamentar do PSD

LER ARTIGO

Chega: “O Estado está cada vez mais pesado"


Bruno Nunes
Vice-presidente e coordenador do grupo parlamentar na Comissão de
Administração Pública, Ordenamento do Território e Poder Local

LER ARTIGO

IL: É necessário "um Estado mais eficiente"


Carlos Guimarães Pinto
Deputado e coordenador do grupo parlamentar na Comissão de
Administração Pública, Ordenamento do Território e Poder Local

LER ARTIGO

PCP: “Trabalhadores têm de ser valorizados"


Diana Ferreira
Deputada

LER ARTIGO

BE: “Mais do que palavras"


José Soeiro
Deputado e coordenador do grupo parlamentar na comissão da Administração
Pública, Ordenamento do Território e Poder Local

LER ARTIGO

5
Em que estado está a administração pública?

PAN: “É preciso descentralizar


a Administração Pública"
Inês de Sousa Real
Porta-voz e deputada única do PAN

LER ARTIGO

Livre: “É prioritário contratar


mais trabalhadores"
Ana Natário
Arquitecta e membro do grupo de contacto

LER ARTIGO

A jovem interna e o director de serviço:


42 anos separam estes médicos
que trabalham num SNS “em esforço”
Reportagem Ana Isabel Ribeiro (Texto)
e Tiago Lopes (Fotografia)

LER ARTIGO

Capítulo 2
Envelhecimento
Envelhecimento na função pública é transversal
e tende a piorar. “Faz perigar o Estado social”
Patrícia Carvalho

LER ARTIGO

6
O problema não é só nosso:
procuram-se soluções para
o envelhecimento da função pública
Patrícia Carvalho

LER ARTIGO

Vestir a camisola da função pública.


Três histórias
Reportagem Ana Fernandes, Carolina Pescada,
Joana Gonçalves e Joana Bourgard

Jaime Forte – Jardim Botânico de Coimbra


“Já não há muita gente a falar
esta língua que eu falo”
LER ARTIGO

José Cardim Ribeiro – Câmara Municipal de Sintra


“O meu lema não era partidário,
não era político, era Sintra!”
LER ARTIGO

Maria da Luz Delgado – Ministério da Justiça


“Eu tentava sempre que a pessoa saísse
do balcão com uma luz ao fundo do túnel”
LER ARTIGO

7
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 3
Público vs Privado
Ser professor no ensino público ou no privado?
O que levou Maria e Vítor a escolher
Reportagem Daniela Carmo (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia)

LER ARTIGO

Carreiras indiferenciadas no Estado afastam


Ciência, Tecnologia, Engenharia ou Matemática
Victor Ferreira

LER ARTIGO

Um quinto dos trabalhadores qualificados


escolhidos pelo Estado desistiu
Raquel Martins

LER ARTIGO

Em dois anos, 26 mil funcionários públicos


atingem idade da reforma
Raquel Martins entrevista Inês Ramirez

LER ARTIGO

8
Capítulo 4
Planeamento
“Somos um Estado com uma grande miopia
estratégica”
Liliana Borges

LER ARTIGO

O futuro que já mora por aqui precisa


de um Estado mais qualificado
Clara Viana

LER ARTIGO

Melhores salários e rápida progressão:


eles trabalham na função pública lá fora
Reportagem Renata Monteiro

LER ARTIGO

Desburocratizar. Uma ideia reconhecida lá fora


que é utilizada por dois milhões de portugueses
Camilo Soldado

LER ARTIGO

O Estado 4.0 fica com quase 75% do PRR para a


digitalização
Victor Ferreira

LER ARTIGO

9
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 5
Corrupção
Processos por crimes de corrupção
em máximos desde 2011
Maria Lopes

LER ARTIGO

Nível salarial dos políticos e corrupção:


“Não podemos ligar estas duas questões”
Maria Lopes

LER ARTIGO

Capítulo 6
Defesa
O imbróglio de umas Forças Armadas
sem efectivos e com poucos recursos
Nuno Ribeiro

LER ARTIGO

Servir Portugal, acima ou apesar de tudo?


O que leva os jovens a seguir as Forças Armadas
Reportagem Inês Silva (texto), Daniel Rocha, Nuno Ferreira Santos
e Nelson Garrido (fotografias) Texto editado por Amanda Ribeiro

LER ARTIGO

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O estado do Estado:
um debate urgente
sobre Portugal

Portugal precisa de debater o estado do Estado e procurar


novas respostas. Como jornal ao serviço dos cidadãos
e do país, queremos dar o nosso contributo
Editorial Manuel Carvalho

A
discussão em torno das competências ou da dimensão do
Estado português nem sempre escapa ao maniqueísmo das
visões do mundo a preto e branco. Há demasiados funcionários
públicos ou são insuficientes, ganham mal ou são privilegiados,
trabalham muito ou são preguiçosos, respondem às necessidades
da sociedade ou estão longe de as satisfazer. Marcada pela saudável
divergência de concepções políticas ou avaliações pessoais, a discussão
tem de passar pelo que aprendemos colectivamente com a pandemia.
Sem o desempenho do Serviço Nacional de Saúde ou sem os apoios
estatais à economia, a crise da covid-19 teria sido muito pior.
O debate que o PÚBLICO lança em torno do estado do Estado parte
desta premissa básica. Portugal precisa de uma administração pública
forte, motivada e competente. Mas tem de ajustar esta ambição às

11
Em que estado está a administração pública?

capacidades que o país tem de os remunerar. Não podemos ter um Estado


forte e competente como o da Alemanha com uma economia como a
da Roménia. É, por isso, importante avaliar o desempenho das funções
públicas e saber se com os recursos disponíveis é possível fazer melhor.
Vale a pena reconhecer que em dimensões críticas como a escolaridade
básica, o ensino superior, a ciência ou a saúde, Portugal tem de estar grato
à sua administração pública. A qualidade das escolas tem melhorado nos
rankings internacionais, o SNS tem imensas dificuldades mas consegue
dar as respostas essenciais e a qualidade das nossas universidades, apesar
de desigual, não compara mal com países congéneres. Mas nem tudo está
bem: a escola pública regista um exagerado absentismo, a distância face
ao desempenho dos privados aumenta, os hospitais nem sempre são bem
geridos, a ciência continua com dificuldades em contagiar a economia, a
justiça tornou-se uma corporação alheia às necessidades dos cidadãos.
Há imenso trabalho a fazer. Os desafios são enormes. O Estado tem de
melhorar as remunerações para poder competir com os privados. Tem de
ser mais dinâmico e eficiente. A capacidade de diagnosticar e perspectivar
as prioridades revela fragilidades. A motivação é um problema. O
centralismo cria uma macrocefalia disfuncional que destrói possibilidades
e compromete a coesão nacional. A burocracia é inaceitável. As reformas
para transformar um conceito medieval do Estado num modelo da era
digital são urgentes.
Portugal precisa de debater o estado do Estado e procurar novas
respostas. Não se trata de criar um Estado obeso e supérfluo. Nem de o
substituir à iniciativa privada. Trata-se, sim, de o reconstruir com base nas
necessidades do presente e dos desafios do futuro. Como jornal ao serviço
dos cidadãos e do país, queremos dar o nosso contributo. Depois, como
sempre acontece numa democracia, as escolhas cabem aos cidadãos.

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12
mitos
(ou talvez
não) sobre
a função
pública
Trabalham menos? Reformam-se mais cedo?
Dos horários semanais aos dias de férias, uma análise ao
que une e distingue a função pública do sector privado
Perguntas e respostas Raquel Martins

1. Os funcionários públicos têm emprego para a vida?


A estabilidade laboral é uma realidade para a grande maioria dos
trabalhadores em funções públicas. Cerca de 84% dos 741.288
funcionários públicos têm contrato por tempo indeterminado com
o Estado ou vínculo de nomeação e só podem ser despedidos ou
demitidos em situações muito graves.

13
Em que estado está a administração pública?

A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas faz uma lista de


infracções que podem levar à demissão (caso o trabalhador seja
nomeado) ou despedimento (se for contratado) por motivo disciplinar.
Trata-se de situações que tornem inviável a manutenção da relação
de emprego público e podem estar relacionadas com o desvio de
dinheiros públicos, faltas injustificadas ou divulgação de informação
confidencial, por exemplo.
Se para a maioria trabalhar na Administração Pública é sinónimo
de um emprego estável, o Estado também tem trabalhadores com
vínculos precários e uma parte do aumento dos postos de trabalho nos
últimos anos tem sido feita à custa de contratos a prazo (que, no final
do primeiro trimestre, totalizavam 94.730).
A existência de vínculos não permanentes no sector público levou
mesmo o Governo a lançar, em 2017, um programa de regularização
extraordinária de precários (o PREVPAP) que permitiu dar um contrato
permanente a mais de 20 mil trabalhadores de organismos e empresas
públicas, que estavam a recibos verdes, contratos a prazo ou a estagiar.

Os funcionários públicos têm emprego para a vida?


Trabalhadores por tipo de vínculo

Comissão de serviço/cargo político/mandato


23.090
Nomeação
73.799
Contrato por tempo indeterminado
549.669
Contrato a termo
94.730

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2. Trabalham menos horas do que no sector privado?
No sector público, o período normal de trabalho é de 35 horas por
semana (sete horas por dia), enquanto no privado a lei prevê 40 horas
semanais (oito horas diárias).
Contudo, esta diferença não se verifica em todos os sectores de
actividade, uma vez que os contratos colectivos podem estabelecer
tempos de trabalho inferiores a 40 horas. Olhando para as
convenções publicadas em 2020, a maior parte adopta a duração
máxima de 40 horas, coincidindo com o limite previsto no Código
do Trabalho, enquanto 30% fixa um período normal de trabalho de
35 horas (sobretudo nos sectores da banca, seguros e educação) ou
entre 37 e 39 horas.
Conclusão: é verdade que os funcionários públicos trabalham menos
horas por semana, mas também no privado há sectores onde o período
normal de trabalho é inferior às 40 horas.

3. Têm mais dias de férias?


Os trabalhadores do sector público têm, à semelhança dos trabalhadores
do privado, 22 dias úteis de férias por ano. No sector público, à medida
que o tempo passa, este período vai

22
aumentando até ao máximo de quatro
dias. A Lei Geral do Trabalho em
Funções Públicas prevê que, por cada
O número de dias dez anos de serviço, acresce um dia de
de férias previstos por férias, ou seja, um funcionário público
lei no sector público e com 40 anos de serviço terá mais quatro
no privado (no Estado, dias de férias, totalizando 26 dias anuais.
os trabalhadores têm Além disso, a duração do período de
mais um dia de férias férias pode ser aumentada no quadro de
por cada dez anos de sistemas de recompensa do desempenho
serviço) previstos na lei ou em instrumentos

15
Em que estado está a administração pública?

de regulamentação colectiva de trabalho. As convenções colectivas


celebradas no sector privado também podem prever mais dias de férias,
além dos 22 previstos na lei. De acordo com um relatório publicado pelo
Centro de Relações Laborais, algumas das convenções publicadas em
2020 consagram um período anual de férias superior ao mínimo legal,
oscilando entre os 23, 24 ou 25 dias úteis. Em alguns casos, estes limites
são majorados em função da idade ou do tempo de serviço, podendo
chegar aos 30 dias de férias por ano.

4. Têm um sistema de saúde melhor?


Os funcionários públicos beneficiam do Serviço Nacional de Saúde e,
além disso, têm um subsistema de saúde próprio, financiado com os seus
descontos, que lhes permite recorrer a hospitais e clínicas privadas que
têm convenção com a ADSE (ou escolher o médico e receber parte do
valor gasto).
A Assistência na Doença dos Servidores Civis do Estado foi criada em
1963 para “colmatar a situação desfavorável em que se encontravam
os funcionários públicos em relação aos trabalhadores das empresas
privadas”. Com a instituição do SNS, o Estado optou por manter o
subsistema.
Quando foi criada, a ADSE era alimentada exclusivamente pelo
Orçamento do Estado e, mais tarde, passou a ser financiada pelos
beneficiários e pelas entidades empregadoras. Desde 2015, os serviços
deixaram de pagar para a ADSE e o sistema é alimentado pela quota
mensal de 3,5% que os trabalhadores e aposentados pagam (e que permite
que os familiares também usufruam do sistema).
A inscrição na ADSE é opcional e o sistema é solidário.
No sector privado, há empresas que oferecem seguro de saúde aos
seus trabalhadores e algumas convenções colectivas prevêem o direito a
um seguro de saúde consoante a modalidade de contrato de trabalho ou
dependendo da antiguidade do trabalhador na empresa.

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Reformam-se mais cedo e com reformas mais altas?
Média de idades dos novos pensionistas, em anos

Segurança Social 64,5


64,2 64,3
63,8
64,3 64,4
63,2
Caixa Geral de Aposentações
62,8
62,6 62,6

2016 2017 2018 2019 2020

5. Reformam-se mais cedo e com reformas mais altas?


Apesar de haver carreiras com regras próprias, neste momento, a
generalidade dos trabalhadores do sector público e do sector privado têm
regimes de aposentação semelhantes. Para ter acesso à reforma completa,
é preciso trabalhar 40 anos e ter 66 anos e 7 meses (em 2022) ou então ter
atingido a idade pessoal de acesso à pensão de velhice (a idade é reduzida
em 4 meses por cada ano completo de serviço além de 40 anos), com o
limite mínimo de 60 anos.
As condições de acesso à reforma antecipada também são semelhantes
e tanto no público como no privado está em vigor um regime para as
longas carreiras contributivas.
Em 2020, a idade média dos funcionários públicos que se reformaram
era de 64,5 anos, enquanto no regime geral da Segurança Social era de
64,4 anos. O que significa que, nesse ano, quem se reformou através da
Caixa Geral de Aposentações (CGA) precisou de trabalhar mais do que
os trabalhadores inscritos na Segurança Social, embora no passado nem
sempre tenha sido assim.

17
Em que estado está a administração pública?

A grande diferença entre o sector público e o privado reside,


sobretudo, no valor das pensões de velhice, o que se deve ao facto de
uma parte significativa dos trabalhadores do Estado terem licenciatura
e profissões mais qualificadas (sendo que a CGA também paga as
pensões de juízes e de políticos). Tomando como exemplo o ano de
2020, o valor médio das pensões pagas pela CGA era de 1341,94 euros
mensais, enquanto na Segurança Social a pensão média era de 415,3
euros por mês.

6. A função pública é pouco flexível na organização do trabalho?


A lei prevê que os regimes de adaptabilidade e de banco de horas,
previstos no Código do Trabalho, são aplicáveis aos trabalhadores com
contrato de trabalho em funções públicas e aos trabalhadores nomeados.
Além disso, os órgãos ou serviços podem adoptar, em função da
natureza da actividade, uma ou mais modalidades de horário. É o caso
do horário flexível (em que se permite uma gestão flexível dos tempos de
trabalho, nomeadamente a escolha das horas de entrada e de saída) ou
desfasado, o trabalho por turnos e a meia jornada (em que o período de
trabalho é reduzido em metade).
A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas prevê também a figura
da mobilidade, apresentada como um instrumento transitório para fazer
face, de forma flexível e ágil, às necessidades dos serviços e permitir um
melhor ajustamento dos recursos humanos da Administração Pública.
É possível haver mobilidade dentro do mesmo órgão ou serviço ou
entre órgãos ou serviços diferentes. Em alguns casos, é necessário
o acordo do serviço de origem e de destino mediante aceitação do
trabalhador, noutras situações não é necessária aceitação por parte do
trabalhador.
Têm sido criados programas de incentivo à mobilidade em áreas
específicas, como o caso dos médicos, mas o sucesso destas medidas tem
sido reduzido, ainda que estejam previstos apoios pecuniários (40% da

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remuneração-base correspondente à primeira posição remuneratória
da categoria de assistente, da carreira especial médica ou da carreira
médica) e não pecuniários. O programa de incentivo à mobilidade para
o interior, lançado em 2019, também teve um impacto marginal, pois
apenas dez trabalhadores aderiram.

Ver mais aqui

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19
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 1
Uma questão
de números?

20
Função pública em
máximos de 2005
enfrenta crise
de credibilidade
A administração pública portuguesa emprega 741.288
trabalhadores, o número mais alto em 17 anos.
Ainda assim, o sector enfrenta dificuldades em atrair
trabalhadores qualificados e em mobilizar os recursos
para onde são necessários

21
Em que estado está a administração pública?

Raquel Martins

P
ortugal tem neste momento o número mais elevado de
funcionários públicos desde 2005, mas ainda assim o sector
público vive uma crise de recursos humanos que se manifesta
na dificuldade de atrair e reter os mais qualificados, na falta de
trabalhadores em algumas áreas ou na incapacidade de mobilizar os
recursos para onde são mais necessários no presente e no futuro.
João Bilhim, antigo presidente da Comissão de Recrutamento e
Selecção para a Administração Pública (Cresap) e professor catedrático
jubilado, considera que o sector público atravessa, sobretudo, uma crise
de credibilidade.
“Não me parece que a maré esteja alta para atrair e seduzir os melhores
quadros para as fileiras do sector público”, sublinha. É que, continua,
“se há aspectos nos mercados de trabalho públicos que continuam a

Evolução dos funcionários públicos


Em milhares, entre 2011-2022
800

750 741.288
727.785
700

650
656.376
Valor mais baixo registado
600 entre 2011 e 2020
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022
Nota: os dados apresentados resultam da conjugação do Inquérito aos Recursos Humanos da Função
Pública (1979, 1983, 1986), do 1.º e 2.º Recenseamentos Gerais da Função Pública (1996, 1999), da Base
de Dados da Administração Pública (2005) e do Sistema de Informação da Organização
do Estado (SIOE) (a partir de 2007)

22
ser apelativos para certos perfis psicológicos, tais como o exercício da
autoridade, a estabilidade e a pertença a uma certa elite protectora”, há
outros aspectos “como o salário para certas categorias (os quadros do
sector privado ganham em média mais), a infeliz associação no imaginário
popular entre funcionário e político desacreditado ou o desprestígio das
instituições” que afastam os candidatos.
Resultado, “entre ter na lapela o nome de uma empresa privada e ter
o nome de uma instituição pública, o coração creio que se inclina para a
privada”.
“Perdeu-se o sentido de missão pública que ainda teria força para
atrair alguns”, lamenta. O grande desafio é voltar a credibilizar o sistema
público, “prestigiar as instituições, a política e o serviço público como
serviço à comunidade”.
José Luís Nascimento, professor no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas com um doutoramento na área dos recursos humanos,
corrobora esta visão e lamenta que não se estude de forma sistemática os

Trabalhadores Onde trabalham


por tipo de vínculo

549.669 561.090 169.077


Contrato por tempo Administração Administração
indeterminado central regional e local

94.730
Contrato
a termo

73.799
Nomeação

23.090
Comissão de serviço/ 11.121
/cargo pol./mandato Fundos de Segurança Social

23
Em que estado está a administração pública?

factores de atracção e a motivação para o serviço público.


“Temos a perspectiva completamente errada e preconceituosa de
que o funcionário público não é responsável, não gosta de trabalhar e
tem medo de progredir e não é assim. Durante a pandemia foram os
funcionários públicos na área da saúde e das forças armadas, sobretudo,
que aguentaram a crise”, frisa.
Também Alexandra Leitão, ex-ministra da Modernização do Estado
e da Administração
Idade dos trabalhadores Pública, constata que
Idade média estimada Portugal atravessa “uma
50,0 crise de vocações” para o
sector público. E, na sua

47,5
47,72 anos perspectiva, é isso que explica
que se abram vagas e se tenha
dificuldade em preenchê-
45,0 las, como aconteceu com o
recrutamento centralizado de
42,5
43,64 técnicos superiores ou com
o concurso para contratar
médicos de medicina geral e
40,0
2011 2013 2015 2017 2020 familiar, em que um terço das
vagas ficou por preencher.
“Há 20 ou 30 anos, as pessoas valorizavam muito mais o emprego para
a vida do que valorizam hoje”. Agora, observa a deputada socialista, os
jovens quando saem da universidade querem ter outras experiências e só
mais tarde, com o nascimento do primeiro filho, voltam a valorizar essa
estabilidade.

Salários e progressão
Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO defendem que para tornar o
Estado mais atractivo é preciso dar atenção a factores como os salários

24
ou a perspectiva de progressão nas várias carreiras. Mas nas últimas
legislaturas, a estratégia do Governo tem sido actuar ao nível dos
aumentos do salário mínimo (que em 2022 é de 705 euros mensais),
que abrange as carreiras menos qualificadas da função pública e tem
provocado uma compressão da Tabela Remuneratória Única (TRU).
Por um lado, os assistentes operacionais têm uma perspectiva de
carreira cada vez mais reduzida, uma vez que os primeiros quatro níveis
foram absorvidos pelo
Distribuição dos salário mínimo; por outro
trabalhadores por género
lado, a diferença entre os
assistentes operacionais
e os assistentes técnicos
esbateu-se [neste momento é
inferior a cinco euros]. Além
disso, os técnicos superiores
38,3% 61,7% estão também cada vez
Homens Mulheres mais próximos destas duas
carreiras.
“Esta atractividade tem
mesmo de passar por uma
descompressão da Tabela
Remuneratória Única. Em
50%
qualquer carreira, a pessoa
tem de ter alguma noção de progressão”, defende a antiga ministra
Alexandra Leitão, lamentando que a pandemia tenha deixado um
conjunto de reformas pelo caminho.
Já para o professor a Universidade de Aveiro, Miguel Lucas Pires,
a revisão do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da
Administração Pública (SIADAP) é crucial. “O facto de só uma
pequeníssima parte dos trabalhadores poder ter a classificação máxima vai
limitar muito a progressão e vai torná-la mais lenta porque só ao fim de 10

25
Em que estado está a administração pública?

anos há a progressão obrigatória e a progressão gestionária é dependente


da existência de cabimentação e de vontade das chefias”, explica.
“Basta que o trabalhador não entre na quota dos ‘excelentes’ e
torna-se praticamente impossível atingir as posições remuneratórias
superiores”, nota, acrescentando que o problema não são as quotas em
si, mas as percentagens agora previstas (25% dos trabalhadores avaliados
podem ter desempenho “relevante” e 5% podem ter nota “excelente”,
com vantagens no ritmo de
Remuneração bruta mensal
progressão na carreira).
média público vs privado
Para resolver o problema
Em euros
da compressão da TRU
2000 no imediato, o Governo
1913 apresentou aos sindicatos
Público uma proposta que passa
1664 pela valorização de 52 euros
do salário de entrada dos
1500
técnicos superiores e de 47,55
euros para os assistentes
1245 técnicos, enquanto os
Privado técnicos superiores com
1055
1000 doutoramento terão uma
2014 2021 valorização superior a 400
euros no início da carreira.
Quanto ao resto, o executivo promete retomar as actualizações salariais
anuais, rever o SIADAP, assim como a TRU, dando novas perspectivas de
progressão aos trabalhadores. Mas é um plano para a legislatura e muitos
dos problemas da Administração Pública colocam-se no imediato.

15% da população empregada


Nas últimas décadas, assistiu-se a um crescimento do peso do Estado
na economia e na área social, visível na evolução crescente do número

26
de funcionários públicos. No final de Março, a administração pública
portuguesa empregava 741.288 trabalhadores, o número mais alto
em 17 anos e que corresponde a um pouco mais de 15% da população
empregada. Porém, pondo em perspectiva e, de acordo com os dados
mais recentes da OCDE, este rácio era de 14,07% em 2019, ficando muito
abaixo da média de 17,91% dos 34 países analisados.
Nos últimos anos, e mais recentemente por causa da pandemia,
o aumento do emprego público tem-se feito sobretudo na saúde
e da educação. Cerca de 45% do aumento de 15.821 do número de
trabalhadores registado entre o primeiro trimestre de 2021 e o de 2022
ocorreu nos hospitais e nas escolas do básico e secundário. Porém,
estas são também as áreas onde a escassez de recursos humanos mais
se tem manifestado.
Num universo tão vasto como o da Administração Pública é difícil
concluir se há funcionários a mais ou menos para as funções que o Estado

Remuneração bruta regular mensal média


Variação homóloga, em %
8
6,94
6
Privado
4
2,38
2

0,46
0
0,95
Público
-2

-4
Mar. 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 Mar. 2022

27
Em que estado está a administração pública?

assegura, sobretudo porque não há um levantamento sistematizado das


necessidades de recursos humanos dos mais diversos serviços. Porém,
é unânime que há um conjunto de factores que estão a condicionar a
evolução dos recursos humanos no sector público.
Um deles é o envelhecimento do quadro de pessoal, agravado pelo
congelamento das admissões nos anos da troika, que está a deixar
algumas áreas perto da linha vermelha.
Entre 2011 e 2020, a idade média dos trabalhadores da Administração
Pública passou de 43,64 anos para 47,72 e os oficiais de registos, com uma
média etária de 55,3 anos, eram a carreira mais envelhecida do sector
público.
Mas é na educação que esse envelhecimento se tem tornado mais
visível aos olhos dos cidadãos. A idade média dos professores do
ensino básico e secundário, no sector público, ultrapassa os 50 anos.
Dos cerca de 120 mil professores que leccionam no ensino público, 47
mil vão passar à reforma até 2030/31, um problema que se vai sentir
sobretudo na região Centro.
Nas forças de segurança, o efectivo está envelhecido e não é suficiente
para as necessidades dos serviços. Na PSP, por exemplo, a falta de
candidatos já levou a que a idade de candidatura fosse antecipada dos 19
para os 18 anos, e que a idade máxima de admissão aumentasse para os
30, em vez dos 27 anos.
Também na saúde se vive um problema de recursos humanos e de
incapacidade de mobilização para o interior do país onde há maior
escassez. Essa dificuldade em “em mobilizar os recursos para onde são
necessários” é outro problema ao qual, na perspectiva de Miguel Lucas
Pires, é preciso dar atenção.
O problema de mobilização de recursos coloca-se no imediato e
também no futuro. “Estamos num período transitório que teve uma
aceleração muito grande com a crise de 2007/2008, com a pandemia de
covid-19 e agora com a guerra na Ucrânia”, antecipa José Luís Nascimento.

28
“Temos de começar a perspectivar áreas de recursos humanos onde,
mesmo no privado, só agora começa a haver investimento. Uma das áreas
é a big data, a utilização de modelos de inteligência artificial de elevada
complexidade, ou a tendência para as redes sociais do trabalho serem
substituídas por redes virtuais e pelo trabalho à distância”, antecipa.
A Administração Pública, sublinha, é “fortemente regulamentada” e, por
isso, “perde capacidade de flexibilidade e de adaptação a novos contextos”.

Ver infografia interactiva aqui

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29
Em que estado está a administração pública?

PAULO PIMENTA

Educação
Falta de professores
será pior na região Centro
Clara Viana

A
té ao ano lectivo de 2030/2031, será necessário recrutar em
média 3450 novos professores por ano para garantir que
todos os alunos tenham aulas a todas as disciplinas, o que
não tem acontecido nos últimos anos. No final deste ano
lectivo, há ainda sete mil alunos que não têm professores a todas as
disciplinas. No início do 3.º período, eram cerca de 20 mil.

30
As projecções das necessidades docentes até 2030/31 foram feitas por
uma equipa da Nova SBE, por pedido do Ministério da Educação. Têm
em conta sobretudo a evolução do número de alunos e as previsões de
aposentação dos professores. Para estas contas, não entram, portanto,
os docentes que vão entrando de baixa médica, que é a situação que, por
agora, tem provocado mais escassez temporária de docentes.
Actualmente, são cerca de 120 mil os professores que leccionam no
ensino público. Destes, cerca de 47 mil irão passar à reforma até 2030/31.
A região Centro será a mais fustigada por esta vaga, prevendo-se uma
redução de 43% nos seus efectivos docentes. O Algarve é a região que
apresenta “melhores” perspectivas, com uma redução estimada de 30%.
Em 2019/2020, último ano com dados divulgados, a média de idades
dos professores do ensino básico e secundário, no sector público, era
de 51,5 anos. Para garantir a sua substituição, será preciso recrutar,
nos próximos anos, um total de 34.508 novos docentes. E só não serão
precisos mais porque o número de alunos no ensino público também está
em queda, resultado da quebra da natalidade registada nos últimos anos.
Dos professores em exercício em 2019/2020, a maior parte pertencia
aos quadros (cerca de 83%). Em todos os níveis de ensino, a percentagem
de contratados tem diminuído devido às vinculações que têm vindo a ser
feitas para cumprir uma directiva da Comissão Europeia que impede o
abuso no recurso ao trabalho a prazo.
Apesar de após a reforma de Bolonha no ensino superior, em 2006, ter
passado a ser condição para o acesso à docência ter-se o grau de mestre,
a maioria dos docentes em exercício, por se ter formado antes, é detentor
de uma licenciatura ou equiparado (cerca de 80%) e ainda há quem esteja
em funções tendo só um bacharelato (perto de 10%).

31
Em que estado está a administração pública?

RUI GAUDÊNCIO

Saúde
Médicos com mais de 65 anos
representam 24% do total
Clara Viana

C
erca de 30% dos médicos pediatras têm idades superiores a 65
anos, o que torna esta especialidade uma das mais envelhecidas
no que respeita aos recursos humanos disponíveis. Segundo
dados da Ordem dos Médicos (OM), relativos a 2021, dos 59.545
clínicos das diferentes especialidades que estão inscritos na Ordem, 24%
estavam acima dos 65 anos, enquanto 17,4% tinham menos de 31.

32
Por comparação aos dados de 2020, há a registar um aumento do
número de médicos, cujo total passou de 57.976 para 59.545, tendo
o conjunto de médicos acima dos 65 anos aumentado de 13.010 para
14.276 clínicos.
Ainda de acordo com os dados da OM, a especialidade mais envelhecida
é a Medicina Geral e Familiar: cerca de 40% dos clínicos deste grupo têm
idades superiores a 65 anos.
Olhando para as Estatísticas da Saúde de 2020, divulgadas pelo Instituto
Nacional de Estatística recentemente, constata-se que no final desse ano
estavam ao serviço nos hospitais 26.249 médicos, o que representa mais
466 do que no ano anterior. Dados provisórios da Pordata dão conta de
que a maioria destes clínicos (24.858) exercia funções nos hospitais do
Serviço Nacional de Saúde, ou seja, mais quatro mil do que em 2019.
Já nos centros de saúde serão necessários mais 780 médicos de família
para garantir a cobertura total da população residente. Nos centros
estavam em funções, no final de 2020, 5659 médicos de família.
No final de Abril passado, o número de utentes sem médico de família
era de 1,3 milhões, que representam 12,3% do total de inscritos. A região
de Lisboa e Vale do Tejo, que está à frente no número de utentes, é a que
mais carência apresenta: mais de 925 mil pessoas não têm médico de
família (24% dos inscritos).
Esta situação pode piorar já este ano, caso a maior parte daqueles
que chegam em 2022 à idade legal de aposentação decida reformar-se
em vez de optar por ficar até aos 70 anos no Serviço Nacional de Saúde:
1089 médicos de família estão em condições de sair dos centros de saúde,
segundo contas transmitidas ao PÚBLICO pelo coordenador do grupo
para a reforma dos cuidados de saúde primários, João Rodrigues.

33
Em que estado está a administração pública?

DR

Forças de segurança
Baixos salários e média de idades
acima dos 40. PSP, GNR e PJ têm
falta de efectivos
Sónia Trigueirão

S
eja na Polícia de Segurança Pública (PSP), na Guarda Nacional
Republicana (GNR) e na Polícia Judiciária (PJ) o cenário é o mesmo:
o efectivo está envelhecido e nunca é suficiente para as necessidades
dos serviços. Na GNR e na PSP destacam-se ainda outros factores

34
como os baixos salários e um risco pouco ou nada compensado que
reduzem a atractividade das carreiras nestas forças de segurança.
Na PSP, por exemplo, a falta de candidatos já levou a que a idade
de candidatura fosse antecipada dos 19 para os 18 anos, e que a idade
máxima de admissão aumentasse para os 30, em vez dos 27 anos.
Em 2020, Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos
Profissionais da Polícia (ASPP/PSP), já estimava que, “no mínimo, deviam
entrar para a PSP quatro mil polícias até 2023”, uma vez que até essa
data, as previsões apontavam para uma saída de 3600 polícias por limite
de idade. O equilíbrio entre as entradas e saídas seria atingido se fossem
recrutados anualmente, até 2023, pelo menos mil novos elementos.
O efectivo da PSP ronda os 19 mil, mas o problema é que nem todos
estão a desempenhar serviço policial como, por exemplo, nos carros
de patrulha, no serviço 112 ou no policiamento de proximidade, explica
ao PÚBLICO o sindicalista. “Por isso, dizemos que para aquilo que é o
trabalho policial faltam efectivos”, afirma, sublinhando que há bloqueios
ao nível da aposentação porque não há candidatos para a PSP. “Muitos
agentes estão a ver recusados os pedidos de pré-aposentação e alguns
até têm baixas prolongadas”, diz acrescentando que estão no quadro
orgânico, mas não ao serviço da população.
“Em muitos comandos do país, como Vila Real, Guarda, Portalegre,
Beja e Évora, temos situações em que o pessoal já ultrapassa os 50 anos
de idade”, relata. E onde há mais falta de efectivos? Paulo Santos diz que
faltam por todo o país.
O presidente da ASPP/PSP defende que há três factores para que a
carreira seja pouco atractiva. Em primeiro lugar, a tabela remuneratória que
é muito baixa, uma vez que um agente inicia a sua carreira com 809 euros.
“Para um candidato que vem de Bragança trabalhar para Lisboa os
primeiros 10 anos de serviço e tendo em conta aquilo que são os valores
das rendas e as necessidades do serviço, 809 euros é muito baixo”,
sublinha, para a seguir enumerar outro factor: o valor do subsídio de

35
Em que estado está a administração pública?

risco. “Pagar 68 euros de subsídio de risco não abona para chamar os


jovens candidatos”, diz, referindo que em terceiro lugar está o facto de, a
nível interno, não ser fácil a mobilidade.
“Um jovem da Guarda ou de Beja sabe que os primeiros 10 anos vão ser
em Lisboa. Isso tem implicações ao nível da estabilidade familiar “, relata
ainda. Por fim, as expectativas de carreira são poucas.
Em termos de dados estatísticos, a PSP ainda não tem disponível o
Balanço Social de 2021, por isso usamos os dados do ano anterior. O
efectivo da PSP diminuiu 2% em 2020, passando dos 20.977 elementos em
2019 para os 20.557. As carreiras em que o efectivo mais decresceu foram
as de agente, menos 312 efectivos, e chefe, menos 94.
Dos 20.557 elementos da PSP, 96,47% são polícias, que no final de
2020 ascendiam a 19.915, distribuídos pelas carreiras de agentes (84,82%)
chefes (11,19%) e oficiais (3,99%).
No que diz respeito às idades, 20,22% do efectivo da PSP tinha entre
50 e 54 anos de idade, 19,03% tem ente 45 e 49 anos, 15,24% entre os 40 e
44 anos, 13,88% entre os 55 e 59 anos e 12,34% entre os 35 e os 39 anos de
idade. Estes cinco grupos etários, no seu conjunto, representam 80,71%
do total dos recursos humanos da PSP.
Em 2020, registaram-se 299 situações de admissão ou regresso de
pessoal policial e não policial e foram registadas 653 saídas de efectivos
nomeados ou em comissão de serviço, sendo o motivo de saída mais
relevante a aposentação (72,74%).

GNR: “Pouco mais do que o ordenado mínimo"


No que diz respeito à GNR, em Janeiro de 2020, a Associação dos
Profissionais da Guarda (APG/GNR) defendia que “no mínimo” deviam
ser recrutados 1100 militares por ano até 2023, tendo em conta as 3322
saídas previstas.
Segundo César Nogueira, presidente da AGP/GNR, o recrutamento
está a ser feito, mas devido à pandemia os cursos têm sido feitos com

36
200 ou 300 de cada vez. “A GNR tem um défice entre quatro a cinco mil
elementos”, afirma, sublinhando que, tal como a PSP, o efectivo da GNR
tem um problema de idade cuja média está entre os 40 e os 45 anos.
“Cada vez é mais difícil recrutar. Ainda vamos tendo candidatos, mas
não em números com tínhamos há uns anos. Posso dar-lhe um exemplo,
para mil vagas antigamente tínhamos 16 mil candidatos. Actualmente
nem chega a esse número”, explica o sindicalista, acrescentando que “a
carreira também não é aliciante”.
De acordo com César Nogueira, “um guarda em início de carreira
ganha pouco mais do que o ordenado mínimo e tem de se deslocar para
300 ou 400 km de casa”. “Desde 2009 que a carreira remuneratória não
muda. Já houve actualizações noutras instituições, mas na GNR não. O
que desmotiva”, desabafa.
Onde se nota mais a falta de efectivos é no interior e também no litoral,
indica. “Temos postos em que não é possível ter uma única patrulha e
às vezes temos apenas um elemento a fazer patrulhas o que a nível de
segurança não é o ideal”, refere.
E os números corroboram o que diz César Nogueira. A GNR também
ainda não tem o relatório social de 2021 disponível, por isso recorremos
ao do ano anterior. Segundo o documento, em 31 de Dezembro de 2020,
contabilizavam-se 22.353 trabalhadores em efectividade de funções. Fruto
da sua natureza, a Guarda é uma instituição maioritariamente constituída
por militares, 21.553 (96,42%) do efectivo.
Registou-se um decréscimo de 2,15% do efectivo militar, quando
comparado com 2019. Os grupos etários mais representativos estão no
intervalo dos 40-44 anos, com 5039 trabalhadores, seguido do intervalo
35-39 anos com 4183 trabalhadores.
O nível de antiguidade mais representativo situa-se no intervalo dos
20-24 anos, com 4106 trabalhadores e verifica-se que que 10,59% dos
efectivos (2.367) detêm mais de 35 anos de serviço.

37
Em que estado está a administração pública?

Segundo o relatório social da GNR, em 2020 ficaram por ocupar 540


postos de trabalho previstos, relativos ao efectivo civil e verificou-se um
défice de cerca de 4624 efectivos militares.

PJ: 70% dos investigadores criminais com mais de 45 anos


Já no que diz respeito à Policia Judiciária (PJ), segundo a Associação
Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal (ASFIC/PJ), a idade do
efectivo também não abona a favor do serviço.
De acordo com o sindicato, que cita o balanço social de 2021, existem
na investigação criminal da PJ 1233 funcionários, 70% dos quais com mais
de 45 anos de idade.
E a falta de efectivos também é um problema. Segundo o sindicato, são
necessários, pelo menos 1800 funcionários na investigação criminal, pelo
que no imediato há uma carência efectiva de cerca de 600 pessoas.
“Este número subirá em breve face à saída de colegas para a
disponibilidade e reforma”, sublinha a ASFIC, acrescentando que “todas
as direcções centrais, directorias e departamentos da PJ estão com uma
enorme escassez de meios humanos, sendo que entre os departamentos
onde se sente mais essa escassez face à pendência processual, constam
Braga, Vila Real e Setúbal”.
Já segundo a direcção da PJ, os inspectores actualmente em falta já
não serão tantos como em 2021. Em Abril tomaram posse 100 e em
Outubro está previsto que mais 98, que estão agora no curso, tomem
posse. Acresce que está em curso um concurso para mais 70, que, se
tudo correr bem, podem iniciar formação até ao início do próximo ano.
“O objectivo é atingir a meta de 1800 inspectores nos próximos quatro
anos”, refere a mesma fonte.

38
NUNO FERREIRA SANTOS

Justiça
Faltam mais de mil
funcionários judiciais
Sónia Trigueirão

N
a área da Justiça, o calcanhar de Aquiles está na carência
generalizada de oficiais de justiça e de procuradores, apontada
como a causa de atrasos em vários processos. Aliás, um
exemplo disso mesmo foi dado recentemente, quando a revista
Visão dava conta de que o juiz Carlos Alexandre decidiu adiar várias
decisões instrutórias, entre as quais a do caso dos e-mails do Benfica

39
Em que estado está a administração pública?

divulgados pelo Porto Canal, devido à falta de funcionários judiciais no


Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).
Também os mais recentes relatórios das 23 comarcas judiciais
portuguesas, uma por distrito, mostram como este défice crónico de
oficiais de justiça se agudizou em 2021 em vários pontos do país.
Os baixos salários, 800 euros de ordenado para quem entra na carreira,
e a sobrecarga de trabalho ajudam a explicar o fenómeno. Isso e o facto
de não abrirem há vários anos concursos para esta carreira — por muito
que a falta de atractividade faça com que as vagas nunca fiquem todas
preenchidas e que haja quem use esta porta de entrada na função pública
para transitar logo que possível para funções fora dos tribunais.
Para satisfazer as necessidades dos serviços, neste momento é
necessário o ingresso de, pelo menos, 1100 oficiais de justiça, segundo
dados do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ).
Em 31 de Dezembro, de 2021 existiam 7616 oficiais de justiça,
distribuídos pelas várias categorias. O SFJ explicou ao PÚBLICO que,
“desde 2005 tem-se verificado um decréscimo acentuado no número
destes profissionais e, se nesse ano eram cerca de 9200, a partir dessa
data o seu número começou a cair a pique até 2014, onde chegaram a ser
apenas cerca de 7440, tendo, então, atingido o valor mais baixo de que há
memória”.
Refere o SFJ que, “apesar de ter havido algumas oscilações positivas
entre 2015 e 2019, agora estão outra vez a cair de forma acentuada,
cifrando-se, como já se afirmou supra, nos 6471 que exercem funções
efectivas nos tribunais”.
As comarcas com maior défice de recursos humanos e em que há uma
maior discrepância entre os quadros oficiais e os quadros reais, são as
três de Lisboa, as duas do Porto, e as comarcas de Braga, Setúbal, Aveiro,
Leiria, Beja e Faro. “Para se ter uma dimensão mais realista da situação
caótica da falta de recursos humanos, só nas três comarcas de Lisboa
faltam em conjunto 483 oficiais de justiça”, sublinha o SFJ.

40
O problema da idade também é referido, uma vez que contribui para
uma elevada taxa de absentismo por doença: há comarcas em que a
média de idades está acima dos 55 anos, sendo que na de Faro a média é
de 60 anos.
No que diz respeito à carreira dos oficiais de justiça, o problema é
ela estar estagnada há vários anos. “Somos mal pagos e não somos
remunerados pelas horas além do horário normal”, sublinha o SFJ,
segundo o qual, “há oficiais de justiça há mais de 20 anos na base da
carreira a aguardar por uma promoção que tarda em vir”.

Faltam mais de 100 procuradores


Do lado dos procuradores do Ministério Público (MP), o cenário não
melhora. De acordo com os dados oficiais do “Quadro Estatístico de
Magistrados”, publicado pelo Conselho Superior do Ministério Público,
relativo a 2021, há um total de 1678 magistrados, dos quais 1559 estão em
exercício efectivo de funções, os demais encontram-se em situação de
ausência prolongada ou em comissões de serviço em diversas entidades
do Estado. Em termos de idades, 776 magistrados estão acima dos 50
anos e nos próximos cinco anos estarão em condições de aposentação/
jubilação 255 magistrados.
De acordo com dados do Sindicato dos Magistrados do Ministério
Público (SMMP), “em relação ao quadro mínimo legal de cada um dos
serviços estão em falta, neste momento, 104 magistrados, sendo que esse
quadro mínimo é em muitos dos departamentos/serviços manifestamente
insuficiente”. Em relação ao quadro máximo, faltarão 204.
“Saliente-se que esse número apenas permitiria a estabilização do
quadro, mas ainda assim seria insuficiente para dotar o MP de capacidade
de resposta às necessidades decorrentes da criminalidade complexa e
organizada, a exigir a intervenção de equipas de magistrados em todas
as fases processuais, o que exigiria um reforço ainda maior do quadro”,
refere o SMMP.

41
Em que estado está a administração pública?

Governo quer
avançar com
recrutamento
de dirigentes
por equipa
A iniciativa foi revelada ao PÚBLICO pela secretária
de Estado da Administração Pública, Inês Ramires
Raquel Martins

O
Governo quer reformular os concursos para os dirigentes de
topo dos organismos públicos, permitindo que o recrutamento
possa ser feito por equipas. A intenção foi avançada pela
secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires.
Mantendo o modelo da Comissão de Recrutamento e Selecção para a
Administração Pública (Cresap), o executivo promete, no seu programa,
aperfeiçoar o processo de selecção dos dirigentes superiores à luz dos
problemas que têm vindo a ser identificados. Um desses problemas é o
facto de o recrutamento dos vários membros de uma direcção ter de ser
feito de forma individual, não havendo possibilidade de se recrutarem
os dirigentes por equipas e como um todo. Na prática, isto leva a que os
dirigentes máximos de um determinado serviço sejam designados em

42
NUNO FERREIRA SANTOS

Quando dizemos que queremos recrutar


por equipas, significa que os cargos
de direcção superior de um organismo
seriam abrangidos como um todo
Inês Ramires, secretária de Estado
da Administração Pública

43
Em que estado está a administração pública?

momentos diferentes, sem se avaliar como funcionarão em equipa.


“Quando dizemos que queremos recrutar por equipas, significa que
os cargos de direcção superior de um organismo seriam abrangidos
como um todo”, adianta a secretária de Estado, reconhecendo que será
necessário prever um período de transição, sem se comprometer com
uma data para esta reformulação dos concursos.
“Quando um membro do governo envia os perfis de que precisa para
ocupar os cargos de direcção superior de um organismo público está a dar
a complementaridade dos perfis de que precisa. No caso de um dirigente
máximo e dois sub [dirigentes], por exemplo, precisamos, atendendo
à natureza do serviço, que tenham efectivamente uma perspectiva
complementar e possam trabalhar em equipa. Como traduzimos isso em
termos de regras de recrutamento é o trabalho que nos propomos fazer”,
destacou. É também intenção de Inês Ramires limitar a possibilidade de
renovação das comissões de serviço, incluindo das chefias intermédias,
“para permitir uma maior rotatividade dentro das próprias organizações”.
No que respeita à nomeação de dirigentes em regime de substituição,
que nos concursos abertos pela Cresap acabam por sair favorecidos em
relação a outros candidatos, o Governo mantém a intenção de rever estes
procedimentos, tendo em conta o debate que tem sido feito.
De acordo com a secretária de Estado, do total de 380 dirigentes de
organismos da Administração Pública sujeitos à avaliação da Cresap, 243
estavam designados em comissão de serviço no final do ano passado e
os restantes estavam em regime de substituição ou os lugares estavam
por preencher. Os regimes de substituição, reconhece, “foram muito
potenciados no período em que o Governo não pôde fazer designações
[antes das legislativas de Janeiro], mas pretendemos dar a maior
estabilidade a todos os processos”.

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44
Em que estado
está a função
pública?
O diagnóstico
dos políticos
e as medidas
que propõem
Testemunhos A pergunta foi feita a todos os grupos
parlamentares e deputados únicos. Em que estado está
a função pública? Estas são as medidas que se impõem,
nas suas visões

45
Em que estado está a administração pública?

DR

PS É essencial desenvolver
novos modelos de trabalho
Pedro Cegonho, Deputado e Coordenador do GPPS
na Comissão de Administração Pública, Poder Local
e Ordenamento do Território

A
atracção de talentos e a sua retenção na Administração
Pública são o principal desafio para que os serviços
públicos sejam qualificados e capazes de dar as respostas
adequadas aos cidadãos e às empresas, com celeridade,
eficácia e proximidade. A resposta ao necessário rejuvenescimento

46
e capacitação da função pública não está desconexa da necessidade
permanente de aperfeiçoamento e de simplificação dos diversos
processos e procedimentos administrativos e organizacionais, bem
como do desenvolvimento de novas tecnologias no sector público e da
disponibilização de soluções inovadoras de prestação de serviços públicos.
Para isso, é essencial desenvolver novos modelos de trabalho na
Administração Pública, nomeadamente o teletrabalho, considerando
e integrando a possibilidade de criar redes de proximidade em todo o
território, e estabelecendo incentivos para a deslocalização de postos de
trabalho para zonas do interior ou para fora dos grandes centros urbanos.
Ao dar prioridade a capacitar a Administração Pública, a nosso ver,
trata-se de apostar em formação dos trabalhadores, através de parcerias
com as instituições de ensino superior, e, por exemplo, promover a
valorização adicional aos titulares de doutoramento já integrados na
Administração Pública.
É importante não esquecer que, até 2026, prevêem-se investimentos
na Administração Pública com fundos do Plano de Recuperação
e Resiliência (PRR) na ordem dos 578 milhões de euros, sendo 188
milhões de euros destinados ao financiamento da reformulação do
atendimento dos serviços públicos e consulares, disponibilizando um
atendimento uniforme e omnicanal dos serviços mais procurados,
respeitando o princípio do once only, e sendo acessíveis através de
identidade electrónica. Outros 70 milhões de euros são dirigidos para
o financiamento dos serviços electrónicos sustentáveis baseados
na interoperabilidade e utilização dos dados, 47 milhões para a
cibersegurança e confiança na adopção de serviços electrónicos, 83
milhões para infra-estruturas críticas eficientes, seguras e partilhadas,
e mais 88 milhões de euros consignados para a capacitação da
Administração Pública.

47
Em que estado está a administração pública?

RUI GAUDÊNCIO

PSD Sufoco fiscal não


corresponde a serviços
públicos de qualidade
Paulo Mota Pinto, líder da bancada parlamentar do PSD

A
função pública está, desde logo, desmotivada. Infelizmente, ao
verdadeiro sufoco fiscal existente não correspondem serviços
públicos de qualidade. Falta qualidade no acesso a respostas
públicas básicas e dignidade salarial em muitas profissões.

48
Esta situação perturba e desmotiva os bons funcionários públicos. Os
problemas não são, naturalmente, todos iguais em todos os sectores e
não podemos generalizar, mas a nota dominante é a da falta de rigor e
valorização do serviço público.
Pensemos no caso da educação onde, de ano para ano, os rankings das
melhores escolas são cada vez mais dominados por colégios privados.
Como é possível que os privados consigam gerir com maior eficiência,
com custo por aluno inferior, com melhores resultados e ainda obtenham
lucro? E que o Estado, num sistema deficitário, tenha cada vez piores
resultados? O mesmo se aplica aos serviços de saúde onde, não raras
vezes, não há orientação suficiente para que os serviços públicos sequer
atendam o telefone ou respondam a e-mails.
Do ponto de vista do PSD, aos impostos altos que temos têm de
corresponder serviços de excelência e salários dignos para profissões
cruciais, como são exemplo claro as da saúde e educação, entre outras. Se
tivermos melhores serviços públicos e profissionais valorizados teremos
uma função pública completamente diferente. Infelizmente, nos últimos
anos, o Governo tem aumentado o número de funcionários no Estado em
vez de valorizar os recursos existentes e melhorar a gestão dos serviços.
Para o PSD, a prioridade das prioridades deve ser garantir que a
impostos altos corresponde acesso universal a serviços e profissionais de
excelência, motivados e a trabalhar com dignidade.

49
Em que estado está a administração pública?

RUI GAUDÊNCIO

Chega O Estado está


cada vez mais pesado
Bruno Nunes, vice-presidente e coordenador do grupo
parlamentar na Comissão de Administração Pública,
Ordenamento do Território e Poder Local

O
Chega tem apresentado aqueles que considera serem os pontos
críticos da Administração Pública. É urgente, antes de aplicar
qualquer “medida de choque”, que seja diagnosticado onde
está o problema de uma máquina pesada, descontextualizada
para as actuais necessidades e que acumula desperdícios atrás de

50
desperdícios, com sobreposição de funções e tarefas, e que, no final do
processo, mais não faz do que aumentar a burocracia. O aparelho do
Estado tem de ser, de uma vez por todas, auditado; tem que ser feita uma
auditoria que permita aferir as reais necessidades e, posteriormente, uma
consequente elaboração de um organograma, complexo certamente,
mas eficaz, reduzindo as duplicações de tarefas e competências que se
encontram, neste momento, sem rumo e sem conhecimento por parte de
quem dirige todo o processo da Administração Pública.
É impensável manter uma macroestrutura baseada em necessidades
avulsas que, por mera dependência do Ministério ou Secretaria de Estado
errados, determinem a criação de “um mesmo” departamento com as
mesmas funções ou similares, no âmbito de actuação de outro Ministério.
Reafirmamos, por isso, a necessidade urgente de realizar uma auditoria
aos serviços, evitando o desperdício de meios financeiros, humanos e
materiais que neste momento existe.
A reforma séria da Administração Pública passa também pela urgente
necessidade de rever a forma de progressão de carreiras. O actual
sistema, SIADAP, possibilita a progressão de carreira de 10 em 10 anos, o
que torna a Administração Pública desinteressante, não valoriza o mérito,
promove o absentismo e contraria o primado de dedicação à função que
os trabalhadores desempenham.
Chegou o momento de olharmos para o Estado com eficácia
e eficiência, com objectivos claros, em que a modernização e a
digitalização sejam realmente um vector importante, mas assente
numa nova lógica de separação e “arrumação” de tarefas e
competências, garantindo que quem se esforça e tem mérito seja
reconhecido pelo trabalho desenvolvido em prol da causa pública. Isso
só pode ser feito com regulamentação séria das carreiras, progressão
de carreiras assente no mérito e aumento de vencimentos com base na
análise do valor da inflação.

51
Em que estado está a administração pública?

DR

IL Um Estado mais eficiente


Carlos Guimarães Pinto, deputado e coordenador do
grupo parlamentar na Comissão de Administração
Pública, Ordenamento do Território e Poder Local

Q
uando alguém chama a atenção para um problema de
funcionamento na Administração Pública, a resposta é quase
sempre a mesma: é preciso mais recursos, ou seja, é preciso
mais dinheiro dos contribuintes para colmatar as suas falhas.
Independentemente da área onde essas falhas são verificadas, a solução
não muda. No entanto, há algo que falha nesse raciocínio. Para os serviços

52
públicos funcionarem bem, não basta atirar dinheiro, é também preciso
que haja boa gestão e incentivos à eficiência.
Em muitos casos ainda hoje isso não acontece. Quando as melhores
escolas privadas, com as melhores condições, têm uma mensalidade
por aluno inferior ao custo desses alunos na escola pública para os
contribuintes, percebemos que há um problema de gestão de recursos
públicos. Quando um médico consegue dar mais consultas num hospital
privado do que num hospital público (e, por isso, recebe mais) sabemos
que há um problema de eficiência na organização da Função Pública.
A ineficiência na gestão é a pior forma de desperdício de recursos.
Os recursos desperdiçados pela ineficiência são recursos subtraídos aos
contribuintes, mas que não têm qualquer efeito no fornecimento de bons
serviços públicos. A ineficiência na gestão pública é um buraco sem fundo
responsável pela elevada carga fiscal e insuficiência e degradação dos
serviços ao público.
Há várias formas de resolver estes problemas. A primeira é criar
mecanismos de transparência e avaliação de performance que criem
incentivos à gestão eficiente. A segunda maneira é utilizar a pressão à
eficiência que só a concorrência pode trazer. Para este último objectivo, a
possibilidade de liberdade de escolha por parte dos utentes dos serviços
de saúde e para os pais no caso das escolas é essencial.
É importante que o dinheiro do Estado para serviços de saúde e
educação vá para as organizações (públicas ou privadas) capazes de
providenciar o melhor serviço aos cidadãos ao melhor preço para os
contribuintes. Além de garantir liberdade de escolha às pessoas, isso
colocaria pressão nos prestadores públicos para serem melhores e
gerirem os recursos da forma mais eficiente.
Melhorar os serviços públicos, taxando menos os contribuintes, não
só é possível como é o único caminho possível para um país com elevada
carga fiscal e má qualidade dos serviços prestados.

53
Em que estado está a administração pública?

DR

PCP Trabalhadores
têm de ser valorizados
Diana Ferreira, deputada

A
existência de serviços públicos de qualidade e proximidade,
que respondam às necessidades das populações e que
concretizem as funções sociais do Estado conforme
consagradas na Constituição da República Portuguesa, exige
trabalhadores em número suficiente e devidamente valorizados nas suas
carreiras e remunerações.

54
Se ainda num passado recente os trabalhadores da Administração
Pública foram considerados (e bem) fundamentais e imprescindíveis
no combate à epidemia no nosso país — não só no SNS, mas também na
Escola Pública, na Segurança Social, nas forças e serviços de segurança,
na Administração Local, entre outros sectores da Administração Pública
que mantiveram o país a funcionar — esse reconhecimento não se
traduziu em mais do que aplausos e elogios por parte dos Governos, que
continuam a desvalorizar os trabalhadores da Administração Pública e,
com isso, os serviços públicos e as Funções Sociais do Estado.
Os trabalhadores da Administração Pública continuam a perder poder
de compra (uma perda acumulada com mais de uma década), continuam
a ter baixos salários, continuam a ser poucos para responder a uma rede
de serviços públicos que tem que ser de qualidade e de proximidade às
populações, continuam a ter vínculos precários, carreiras desvalorizadas,
progressões que, na prática, não se verificam.
E o último Orçamento do Estado da maioria absoluta do PS fugiu à
resposta urgente que é necessária dar ao conjunto destes trabalhadores
que, nos últimos 12 anos tiveram salários e subsídios cortados e perderam
mais de 12% do poder de compra.
Este não é o caminho que o país precisa nem é um caminho que
rejuvenesça a Administração Pública, que atraia profissionais especializados
e qualificados ou que fixe trabalhadores na Administração Pública. Uma parte
significativa destes trabalhadores aufere o salário mínimo ou valores próximos;
muitos têm que esperar uma década para progredir na carreira; quase
nenhum trabalhador atingirá o topo da carreira face aos entraves colocados
por um sistema de avaliação injusto e penalizador dos trabalhadores, que foi
feito para que os trabalhadores não progredissem nas suas carreiras.
É urgente uma valorização salarial de todos os trabalhadores da
Administração Pública de forma significativa, repondo poder de compra
perdido, como é urgente a valorização das suas carreiras e uma efectiva
progressão com a correspondente valorização remuneratória.

55
Em que estado está a administração pública?

DR

BE Mais do que palavras


José Soeiro, deputado e coordenador do grupo
parlamentar na comissão da Administração Pública,
Ordenamento do Território e Poder Local

O
s serviços públicos são condição de igualdade, de segurança
e de democracia. É o Estado Social que garante pensões na
velhice, direito à educação independentemente do dinheiro
dos pais, protecção na doença, bibliotecas, ou vacinas para
todos numa pandemia.
É por serem tão centrais na vida das pessoas e não podermos
prescindir deles que estão tão sujeitos ao apetite do mercado. E há mais

56
do que uma forma de os privatizar. Entregando directamente as funções
do Estado ao sector privado, como procurou fazer a direita. Ou deixá-
los degradar de tal forma que perdem o seu carácter universal, atirando
quem pode para o mercado e abrindo campo à externalização para os
privados, com rendas do Estado. É o risco que já estamos a atravessar em
alguns sectores, com a incapacidade do Governo fixar profissionais ou dar
resposta em áreas fundamentais.
Para proteger o que é de todos, a esquerda deve responder a quatro
grandes questões:
1. À degradação profissional. Quotas e sistemas de avaliação feitos para
impedirem progressão na carreira, salários baixos que perdem poder de
compra com a inflação (a actualização na administração pública foi de
0,9%) não permitem fixar e atrair profissionais nem valorizar e qualificar
o trabalho dos que lá estão.
2. À precariedade. O PREVPAP já devia ter encerrado. Mas há dezenas
de processos pendentes e centenas de novos precários, porque o
paradigma do recibo verde e do falso outsourcing não mudou.
3. À falta de pessoal e de orçamento. Deve agir-se nos antípodas do
paradoxo liberal, que critica os serviços públicos por não funcionarem
bem, enquanto lhes retira recursos, desviando-os para rendas
aos privados. Pelo contrário, é preciso mais investimento e mais
internalização.
4. Aos vazios do Estado Social. É o caso dos cuidados continuados,
das respostas à velhice e à dependência (apoio domiciliário, habitações
partilhadas, assistentes pessoais, rede pública de equipamentos para
pessoas dependentes). E da habitação, direito social deixado em larga
medida nas mãos do mercado e do crédito, com as consequências que
sabemos.

57
Em que estado está a administração pública?

NUNO FERREIRA SANTOS

PAN É preciso descentralizar


a Administração Pública
Inês de Sousa Real, Porta-voz e deputada única do PAN

A
Administração Pública é fundamental para assegurar
serviços públicos essenciais. Contudo, fruto de sucessivos
desinvestimentos e cortes (seja pela austeridade, seja pelas
cativações), temos hoje uma Administração Pública com
escassez de recursos em algumas áreas fundamentais, mais envelhecida,
com um sistema de avaliação (SIADAP) que mais não serve do que para
bloquear a progressão da carreira e com assimetrias salariais assinaláveis.
Para dar resposta aos vários desafios que a reforma da Administração
Pública carece, num sentido do seu rejuvenescimento, valorização de

58
carreiras e optimização de recursos, é preciso um debate mais estrutural
e que seja transversal às várias áreas, ao invés do que tem ocorrido, com
alterações avulsas ou sectoriais. Numa perspectiva regional, temos também
uma Administração Pública excessivamente centralizada e localizada
no litoral, o que, nas últimas décadas, tem colocado o país em posições
remotas em todos os indicadores de descentralização. Precisamos de uma
espécie de plano nacional de desconcentração territorial, que, com base
num cronograma estruturado, numa prévia e rigorosa avaliação de custo-
benefício e num acompanhamento em proximidade do processo, relocalize
fora de Lisboa, e preferencialmente no interior, a sede de diferentes órgãos
de soberania e de entidades públicas.
Em matéria de nomeação, os critérios não são sempre os mais
transparentes e credíveis. De facto, no actual um modelo, a CReSAP
continua a dar uma validação com cunho pretensamente técnico a
nomeações de carácter político. A intervenção do Parlamento deve
ser reforçada, pois continua a ter um peso residual no processo
de designação, nomeadamente, dos membros dos conselhos de
administração das entidades reguladoras e do Banco de Portugal. Faria
sentido implementar um modelo dual de recrutamento e de selecção dos
cargos dirigentes/cargos de direcção superior da Administração Pública,
que, como em França, Estónia e Irlanda, estabeleça procedimentos
de selecção diferenciados conforme estejam em causa cargos
predominantemente técnicos ou cargos de confiança política. Deve ainda
ser limitado o número de renovações das comissões de serviço dos cargos
de direcção intermédia para promover a sua renovação e o acesso dos
jovens a estes cargos e, logo, a cargos de direcção superior.
Em matéria de transparência na contratação pública, dada a sistemática
falta de publicação das peças procedimentais de certos contratos públicos,
é premente a consagração da obrigatoriedade da sua publicação e
disponibilização pública de todas as peças procedimentais relativas aos
contratos por ajuste directo e respectiva justificação detalhada.

59
Em que estado está a administração pública?

Livre É prioritário contratar


mais trabalhadores
Ana Natário, arquitecta e membro do grupo de contacto

O
Livre defende como prioridades nacionais a aposta na
educação, formação e qualificação da população, assim
como o desenvolvimento de políticas que garantam a justiça
intergeracional, a sustentabilidade ambiental e a igualdade
social. São os funcionários públicos através do Estado central ou
local que protegem e gerem os bens comuns, quer os sociais como os
naturais, promovendo uma melhor
gestão dos recursos e salvaguardando a
sustentabilidade social e ambiental do país.
A dignificação da Administração
Pública e das entidades do Estado,
assim como dos funcionários públicos
é importante para o Livre. Para tal é
necessário a melhoria das condições de
trabalho, quer das instalações como dos
recursos, a formação dos profissionais do
Estado e proceder à revisão da Lei Geral
do Trabalho em Funções Públicas.
É prioritário promover um
programa de emprego para reforço
da Administração Pública, com a
contratação de mais trabalhadores com vista à reversão do processo de
envelhecimento e o combate à precariedade dos funcionários do Estado
local e central, garantindo a sua efectivação nos quadros e a estabilidade

60
laboral. Destacamos os problemas de falta de pessoal especializado
no Serviço Nacional de Saúde, a instabilidade laboral dos professores,
a precariedade dos trabalhadores da Cultura ou a sua falta na área da
Conservação da Natureza. Para colmatar estas carências os recrutamentos
devem ser processos centralizados e expeditos e cujas remunerações
iniciais sejam adequadas ao nível de qualificação dos candidatos.
É igualmente prioritário a revisão do Sistema Integrado de Gestão e
Avaliação do Desempenho na Administração Pública (SIADAP), por ser
excessivamente burocrático, dificultar a progressão na carreira para
limitar que se alcance os escalões máximos e contribuir para situações
injustas entre trabalhadores.
É preciso motivar os funcionários públicos. Para tal deve-se procurar
corresponder às suas expectativas salariais e de reconhecimento do seu
trabalho, através da actualização das posições remuneratórias em função
do nível de qualificação do trabalhador e considerar a contagem integral
do tempo de serviço dos professores e dos outros trabalhadores das
carreiras e corpos especiais da administração pública.
O Governo deve ser o primeiro a combater a precariedade no Estado
local e central; apostando em sistemas de avaliação de trabalhadores que
promovam a motivação e a cooperação.

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61
Em que estado está a administração pública?

A jovem interna e o
director de serviço:
42 anos separam
estes médicos que
trabalham num SNS
“em esforço”
62
António Sarmento e Carolina Guimarães fazem parte da
equipa médica do SNS no Hospital de São João, no Porto.
Quarenta e dois anos de profissão separam a vida destes
dois profissionais que dizem trabalhar num sector “em
esforço”. “O que cansa não é ver doentes, é a falta de
condições”, diz a jovem médica
Reportagem Ana Isabel Ribeiro (Texto) e Tiago Lopes (Fotografia)

A
ntónio Sarmento, médico e director do serviço de infecciologia
do Hospital de São João, no Porto, palmilha os corredores do
2.º andar como se estivesse em casa. Na verdade, o hospital
é a segunda casa deste médico de 66 anos que completou 44
de carreira. A rotina é sempre a mesma: começa a trabalhar às 8h com
paragem obrigatória pela sala de ambulatório, onde estão os enfermeiros,
e pela biblioteca, local onde, normalmente, se reúne com o médico que
esteve de serviço durante a noite. Pelos longos corredores, conversa com
enfermeiros, auxiliares, doentes e familiares de doentes.
De um lado estão os vários gabinetes de consulta e, do outro, os
quartos de isolamento de quem está, muitas vezes, inconsciente e
a respirar com a ajuda de um ventilador. Meia hora depois, António
Sarmento chega à sala de cuidados intensivos para discutir o estado
clínico de cada paciente. Aqui, grande parte dos internados luta contra
a covid-19, mas também há quem padeça de tuberculose, como é o caso
de Fernando. Depois de uma breve conversa com o paciente, António
regressa ao corredor. “Um professor meu dizia-me uma frase muito
importante que era ‘uma pessoa, para ser, precisa de estar nos sítios’.
É estando nos sítios que os problemas vêm ter connosco e que nós os
resolvemos à nascença”, começa por contar.

63
Em que estado está a administração pública?

O relógio marca 8h50. Ao fundo, na última ala de internamento covid,


assiste-se à troca de turno: médico e enfermeiros que trabalharam
durante a noite partilham o que foi feito a quem começa agora, explica
António, que assiste à conversa desde a entrada da porta.
Durante o percurso profissional, que começou no Hospital Pedro
Hispano com mais cinco colegas, já perdeu a conta ao número de doentes
que tratou. A carreira, que abraçou sempre com entusiasmo no sector
público, está prestes a terminar, mas ainda não pensa na reforma, pelo
menos durante os próximos três anos. “Achei útil manter-me aqui. A
nossa missão de médicos não acaba com a reforma. A reforma é uma
coisa burocrática em que a pessoa tem que mudar a actividade, mas eu
nisso cito o médico Ricardo Jorge que dizia ‘Médico e português retinto,
hei-de sê-lo até às portas da morte’”.
O plano de carreira de Carolina Guimarães, que iniciou o percurso
profissional há apenas dois anos, não é muito diferente. É no serviço de
urgência do São João, dois pisos abaixo da unidade dirigida por António
Sarmento, que a médica interna de 28 anos diagnostica vários pacientes
durante o dia.
Trabalha 40 horas por semana, das 8h às 20h ou das 20h às 8h, mas se
tiver pessoas para atender não espera pelo dia seguinte. “É por isso que eu
digo que há hora de entrar, mas não há hora de sair. Isto significa que, na
verdade, nós temos 40 horas, mas depois temos muitas outras horas disto
por amor à camisola e o horário vai facilmente para as 50 ou 60 horas”,
explica ao PÚBLICO enquanto circula pelos corredores da urgência. No
fundo, tenta que os doentes não esperem, situação cada vez mais difícil
tendo em conta a falta de contratação de profissionais de saúde.
O problema do Serviço Nacional de Saúde (SNS), explica, torna o
trabalho na urgência ainda mais stressante. “Há uma parte do stress
que é expectável e natural, mas há uma que nos está a ser imposta por
um sistema que está completamente em esforço há muito tempo. Isto
está a ser um bocadinho círculo vicioso: as pessoas estão cansadas, vão

64
trabalhar um bocadinho contrariadas e já não se consegue prestar os
mesmos cuidados aos doentes”, resume. A situação agrava-se durante o
turno da noite, horário que não envolve “um único minuto de descanso”
e em que os médicos se dividem entre a urgência, o internamento e
as consultas. “Se convertesse todas as urgências de 24h, em anos, era
como se estivesse quatro anos consecutivos fora de casa”, nota António
que abandonou este horário no ano passado depois de ter feito uma
operação ao coração.

“Não nos estão a deixar ser médicos"


No total, 42 anos separam as carreiras destes dois médicos, mas para o
director do serviço de infecciologia não existem grandes diferenças entre
profissionais mais antigos e quem está agora a começar. “Não vejo que
eles estejam piores agora do que nós, não vejo. Nem nós melhores do que
eles”, afirma. Carolina não vê as coisas da mesma forma: “Acho que está
diferente para pior em termos de condições de trabalho e perspectivas de
futuro. Não nos estão a deixar ser médicos.”
A falta de compensação, quer a nível monetário quer em relação à
progressão na carreira, é outro aspecto, senão o principal, que desmotiva
a médica. “O que nos cansa no dia-a-dia não é ver doentes, não é mesmo,
é lidar com estas assimetrias, com a falta de condições, com muito
trabalho que, se calhar, não devia passar por nós.” E é quando pensa
neste esforço diário que entra a concorrência com do SNS com o sector
privado. “Sou uma defensora acérrima do [sector] público, mas será que
o meu futuro passará pelo privado?”, questiona-se. “Eventualmente,
sim.” Mas idealmente não, acrescenta.
Para captar e manter profissionais nos hospitais públicos é necessário
dar aos médicos boas condições de trabalho, desde logo em relação
aos equipamentos. Um cirurgião tem de ter todos os instrumentos
de que precisa num bloco operatório e o mesmo deve acontecer com
enfermeiros, assistentes, técnicos e auxiliares, esclarece o director de

65
Em que estado está a administração pública?

Um professor meu dizia-me:


'uma pessoa, para ser,
precisa de estar nos sítios.'
É estando nos sítios que os
problemas vêm ter connosco
António Sarmento

66
infecciologia. Reconhecer e valorizar o trabalho destas pessoas também
é um bom ponto de partida para ver a situação melhorada. Para António,
o aumento do salário é um extra. “Teria de me queixar se pretendesse ser
rico, mas como não pretendo…”
No caso de Carolina, ser médica compensa todos os esforços, pelo
menos na maioria dos dias. Mas também há momentos em que se
questiona: os dias sem ir a casa, o pouco tempo com a família e até os seis
anos de duração de curso. Tudo isto vale a pena para uma profissão em
que a qualidade de vida e o salário não correspondem ao esforço diário?
“Vivo com o meu noivo e só por isso é que consigo morar no centro do
Porto, em frente ao meu local de trabalho e dar-me ao luxo de chegar ao
Verão e ir de férias ou ser preciso pagar um seguro do carro e ter dinheiro
para cobrir”, explica, sem mencionar o valor do vencimento. Contudo, as
dúvidas dissipam-se sempre que começa a próxima consulta. “Sónia, há
quanto tempo é que tem o pé inchado? E dores, tem?”
De acordo com a tabela salarial de 2022 disponibilizada pelo Sindicato
dos Médicos do Norte, um chefe de serviço recebe mais três mil euros
do que um médico interno. Um médico com a carreira de António, que
trabalhe uma média de 50 horas por semana, deverá receber perto
de 4200 euros brutos enquanto no caso de uma jovem médica como
Carolina serão à volta de 1800, explica ao PÚBLICO fonte do sindicato.
Ambos defendem que a sua gestão financeira é “muito regrada”, mas
assumem que não precisam de um salário muito elevado. No caso de
Carolina apenas um pequeno aumento. Apesar do salário considerável,
só recentemente é que António comprou um segundo carro, ainda que
antigo, e um apartamento de férias. Questionado sobre a possibilidade de
poder ter isto mais cedo se recebesse mais num hospital privado, lembra:
“O privado, vai pagar muito bem enquanto houver carência de médicos,
enquanto não houver vai pagar mal com certeza.”
Apesar do problema, Carolina sabe reconhecer o valor da função
pública: “O SNS é das melhores coisas que temos em Portugal. Temos

67
Em que estado está a administração pública?

O que nos cansa não é ver doentes,


é lidar com as assimetrais, a falta de
condições, com muito trabalho que,
se calhar, não devia passar por nós
Carolina Guimarães

68
cuidados de excelência, temos portas 100% abertas a qualquer pessoa
independentemente de terem ou não dinheiro para pagar. Fazem-se
tratamentos, colocam-se dispositivos na ordem das centenas de milhares
de euros gratuitos para o doente”, destaca.
Questionados sobre a profissão, os dois médicos fazem um balanço
positivo e comparam o trabalho a uma relação amorosa entre duas
pessoas que se casam “porque gostam e para gostarem uma da outra”,
atira o médico. Na medicina as pessoas têm de encontrar motivações
para que isso nunca desapareça. “E isto para quê? Para resistirem”,
salienta. Ainda assim, António admite estar cansado. Afinal de contas, a
capacidade física aos 20 anos não é a mesma que se tem aos 60, justifica.
Carolina, por outro lado, ainda está na fase do “encantamento inicial”
da relação. “Gosto muito do que faço, sinto-me feliz naquilo que faço, o
saldo ainda é positivo.”
Positivo é também como António perspectiva o futuro da medicina nos
próximos 30 anos. Ainda assim, defende, tudo dependerá de profissionais
altruístas, dedicados e com vontade de ajudar. Ser médico é uma missão.
“Se for na função pública, fantástico, gostei imenso de ser funcionário
público. Se tiver que ser noutra função qualquer que não seja pública,
fantástico se eu puder ajudar os outros também.”
Por enquanto, para o futuro da jovem médica, reina ainda a incerteza.
Quando terminar a especialidade, volta a integrar a lista de colocações
para hospitais públicos e privados. Mas enquanto tal não acontece, a
certeza é só uma: António Sarmento permanecerá como director do
serviço de infecciologia do São João. “Quando as coisas acalmarem,
depois posso pensar se quero mudar de actividade”, conclui. Durante
a manhã, os dois médicos atenderam e monitorizaram doentes, deram
consultas e marcaram exames. O relógio marca 12h22.

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69
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 2
Envelhecimento

70
Envelhecimento
na função pública
é transversal e tende
a piorar. “Faz perigar
o Estado social”
Há concursos que não abrem há décadas e outros que,
abrindo, não vêem as vagas preenchidas. Sem tornar as
carreiras mais atractivas será difícil inverter a situação

Patrícia Carvalho

C
om a chegada do Verão agudiza-se o drama das conservatórias
do país. A viver uma brutal falta de funcionários (sobretudo
conservadores e oficiais de registos), há várias que correm o
risco de ter de encerrar portas porque os poucos que existem
vão de férias e não há quem os substitua. Acentua-se também o “bailinho
das cadeiras” da mobilidade interna. “Pede-se funcionários emprestados
por um bocadinho, para aguentar”, diz Margarida Martins, da Associação
Sindical dos Conservadores dos Registos, desfiando o nome de alguns
locais que arriscam ver interrompidos estes serviços nos próximos
tempos: Vila Flor, Góis, Pampilhosa da Serra… O envelhecimento dos

71
Em que estado está a administração pública?

funcionários, um problema transversal a toda a função pública, associado


à não abertura de concursos externos para a sua substituição, é a
principal razão.
Um dos casos mais graves aconteceu na ilha do Corvo, onde, entre
2017 e 2018, a conservatória esteve encerrada por falta de funcionários.
Arménio Maximino, do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e
Notariado (STRN) diz que foram “seis meses” em que não era possível
tratar de qualquer registo, fazer um divórcio, a regulação do poder
parental ou um casamento. Basta olhar para o balanço social do Instituto
dos Registos e do Notariado (IRN), referente a 2020, para perceber que a
situação é quase insustentável: havia, nessa altura, 1719 postos de trabalho
previstos e não ocupados.
O grupo dos oficiais dos registos correspondia ao que mais sofria
com a falta de pessoal (faltavam 1187 pessoas nos serviços), seguido dos
conservadores (237 em falta). Segundo o STRN, que fez o seu próprio
estudo, incluindo já dados de 2021, a situação agravou-se, tendo saído
2005 profissionais dos serviços, desde 2001 (incluindo 1722 oficiais de
registo). O sindicato contabiliza ainda que existem 1756 conservadores e
oficiais em falta nos serviços, para um quadro de pessoal que deveria ter,
para estar completo, 5676 pessoas. Ou seja, estão em falta quase 31% dos
profissionais necessários.
O balanço social do IRN diz ainda que, em 2020, 40% das saídas foram
causadas pela aposentação, sendo que entre oficiais e conservadores não
havia qualquer trabalhador com menos de 40 anos. “Os trabalhadores
da administração pública têm umas faixas etárias assustadoras. Cerca de
dois terços já têm mais de 55 anos”, avisa Sebastião Santana, da Frente
Comum dos Sindicatos da Função Pública.
Os últimos dados oficiais sobre o envelhecimento nesta área estão no
Boletim Estatístico do Emprego Público da DGAEP — Direcção-Geral da
Administração e do Emprego Público, de Junho do ano passado e dizem
respeito ao ano de 2020. Segundo esse documento, a idade média dos

72
NELSON GARRIDO

César Madureira: "Uma verdadeira reforma implica uma reforma dos modelos de organização"

trabalhadores da administração pública era de quase 48 anos (muito


superior à idade média do total da população activa, que não chegava aos
44 anos), tendo aumentado mais de quatro anos em comparação com
2011. E se se retirarem destas contas os funcionários das forças armadas e
de segurança, onde a idade tende a ser menor, a média subia para os 48,7
anos. Olhando para as diferentes áreas de serviço, os oficiais de registos,
com uma média etária de 55,3 anos, era a carreira mais envelhecida de
todas. A situação terá, entretanto, piorado.
“Já temos todas as áreas de governação do país com uma média etária
acima dos 50 anos, algumas a atirar para os 52 anos de idade média. Isto
é um fenómeno completamente inédito no nosso país”, diz o investigador
César Madureira, do ISCTE. Em 2014 foi ele o responsável pelo estudo
do DGAEP, intitulado Envelhecimento demográfico na administração

73
Em que estado está a administração pública?

pública. Uma abordagem prospectiva, que olhou para a evolução desse


envelhecimento entre 1996 e 2013.
Entre as conclusões indicava-se que dos 137.440 trabalhadores que
existiam nas carreiras gerais em 2013, já só restassem “51.687, ou seja,
37,6% do efectivo actual” em 2033. “O somatório das saídas ao longo deste
intervalo é de 85.753 trabalhadores”, lê-se no documento que dizia ainda
que entre as carreiras mais afectadas pelo decréscimo de funcionários
causado pelo envelhecimento estavam os assistentes operacionais (que
perderiam 70,8% do efectivo em 20 anos) e os assistentes técnicos (com
uma diminuição de 63,6%).
A análise não olhava apenas para o horizonte de 2033, estimando-
se, por exemplo, que a quebra de assistentes operacionais, causada
por aposentações, seria de 11,6% em 2018 e de 21,8% em 2023. Por 2018
ser o primeiro ano tratado nesta análise prospectiva, recomendava-se
expressamente que se procedesse, nessa altura, “a uma comparação
entre os dados reais e aqueles que foram previstos”. Mas tal não
aconteceu, confirma César Madureira. “Não chegou a ser feito e não
tem havido demonstração de grande interesse do poder político de
o voltar a fazer. O que verificamos, se se tiver um olhar comparativo
de ano para o ano, é que o envelhecimento nas diferentes áreas de
governação é avassalador”. E isto, avisa, “faz perigar uma série de coisas”.
Nomeadamente, “faz perigar o Estado social”.

Quase 40% dos professores perto da reforma


Um dos casos que mais tem sido falado, em relação ao envelhecimento, é
o dos professores. Um estudo da Nova SBE, encomendado pelo Ministério
da Educação e divulgado em Novembro do ano passado, indicava que
até 2030 pelo menos 39% dos professores em funções no ano lectivo de
2018/2019 se irão reformar, o que obrigará à contratação, até 2030, de
mais de 34 mil docentes. Na saúde, surgiu o alerta de que este ano se
pode atingir o pico das aposentações entre os médicos de família — mais

74
de mil atingem a idade da reforma —, numa altura em que há ainda um
milhão de portugueses sem ter um. E a previsão é que os dois próximos
anos continuem muito complicados a este nível. Também na justiça
os alertas já começaram a surgir, com a falta de pessoal a ser agravada
pelas aposentações dos actuais funcionários — só na comarca de Braga,
segundo um relatório recente, a média de idades ronda os 55 anos.
“Esta questão do envelhecimento é transversal a toda a
administração pública. Agora, o que se torna mais visível, até em
termos mediáticos, são questões muito prementes do dia-a-dia das
pessoas, como a saúde, a educação dos filhos ou a protecção social.
Mas há uma série de serviços que fazem um trabalho de back office,
que é indirectamente importante para os cidadãos e as empresas,
e que não está a ser efectuado nem está a ser realizado qualquer
diagnóstico das necessidades”, alerta César Madureira.
O envelhecimento dos trabalhadores, associado à não abertura de
concursos para recrutamento e, em muitos casos, à dificuldade em atrair
candidatos quando esses concursos abrem, leva a uma situação de que
é difícil sair a menos que algo mude — há poucos funcionários, os que
há acabam por ficar sobrecarregados, e, por serem mais velhos acabam
por ser também mais propensos a problemas de saúde, o que leva a
mais situações de baixa médica, mais sobrecarga para quem fica, menos
funcionários disponíveis…
Além disso, há um outro problema, para o qual a provedora de
Justiça, Maria Lúcia Amaral, já alertou, numa audiência parlamentar: a
falta de renovação geracional nos serviços. “Está a sair uma geração de
funcionários que poderia transmitir ensinamentos e boas práticas a quem
vem e essa relève [renovação] geracional, não estamos a conseguir fazê-
la”, dizia, em 2019. Arménio Maximino recorre, agora, à mesma expressão.
“Não há um único concurso externo [nos registos] há mais de 20 anos.
Não foi possível fazer uma transmissão de conhecimento intergeracional,
o que é uma perda incomensurável”, diz. Sebastião Santana resume a

75
Em que estado está a administração pública?

sua visão da situação: “Das duas uma, ou se alteram as políticas para os


trabalhadores da administração pública ou isto só se vai agravar.”
César Madureira também acredita que é assim. “Não há soluções
mágicas, eu não as tenho e Portugal não se vai tornar num país rico de um
dia para o outro. Mas há uma coisa sobre a qual estou certo: nada se vai
fazer, não havendo vontade política. E uma verdadeira reforma tem de
implicar uma reforma dos modelos de organização do trabalho”, defende.
Ou seja, defendem ambos, o Estado tem de investir no sector e torná-
lo atractivo. Há que abrir concursos e recrutar quem possa substituir
os trabalhadores que, ano após ano, saem em elevado número para a
reforma. Mas, é preciso que esses concursos, se e quando existirem,
sejam capazes de atrair candidatos. “Há muitos factores de desmotivação,
mesmo nas carreiras especiais, como professores, médicos,
enfermeiros ou informáticos, porque os salários no sector privado são
substancialmente maiores. Estamos a empurrar a situação para um sítio
em que, daqui a 10 ou 15 anos, os trabalhadores vão ser muito menos. Por
um lado, por causa das reformas, e por outro porque não se consegue
criar carreiras atractivas para garantir que as pessoas não vão trabalhar
para o sector privado”, diz o responsável da Frente Comum.
O custo de não se mudar de rumo será, certamente, muito pesado,
avisa César Madureira: “Temos um Estado do qual me orgulho de
ser cidadão, em que o Serviço Nacional de Saúde, com todos os seus
erros, deficiências e insuficiências, trata um emigrante ilegal se ele, por
exemplo, cair a trabalhar numas obras. Somos dos poucos países em que
assim é. A pergunta que temos de fazer é se queremos continuar a fazer
isto ou não. Eu, como cidadão, quero. É das poucas coisas em que tenho
muito orgulho, porque há valores que não se deveriam negociar.”

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76
O problema não
é só nosso:
procuram-se
soluções para
o envelhecimento
da função pública
Portugal é o país da OCDE em que mais cresceu a
percentagem de funcionários públicos com 55 anos ou mais,
comparando 2015 com 2020. Itália tem a maior percentagem
de funcionários nesta faixa etária

Patrícia Carvalho

O
envelhecimento dos trabalhadores da função pública está
longe de ser um problema exclusivo de Portugal e o último
relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE), Government at a Glance 2021 (Panorama da
Administração Pública 2021), é um bom retrato disso. Com o diagnóstico
feito, o que faltam são soluções eficazes.

77
Em que estado está a administração pública?

Num relatório muito marcado pela situação da pandemia, os dados


indicam que há uma enorme disparidade entre os membros da OCDE
em relação ao envelhecimento dos seus trabalhadores da administração
pública. Por isso, a realidade de cada país não pode ser conhecida se
se olhar, por exemplo, para a média da percentagem de trabalhadores
com 55 anos ou mais presentes na administração central em 2015 e
2020. É que os dados indicam uma alteração muito pequena - com um
crescimento de 25% para 26% desta percentagem -, mas esta pequena
oscilação “esconde enormes discrepâncias”, como se refere no próprio
documento. E Portugal é um bom exemplo disso.
O país aparece como o 4.º com uma maior percentagem de
trabalhadores naquela faixa etária e como aquele em que houve um
salto maior destes funcionários, quando se compara 2015 com 2020.
Há sete anos, os trabalhadores da função pública com 55 anos ou mais
representavam 19,55% dos funcionários, em 2020 essa percentagem
saltou para 36,48%. Em 2020, Portugal era apenas ultrapassado, neste
marcador, pela Itália (48,48% dos funcionários públicos com 55 anos ou
mais), Espanha (46,61%) e Grécia (36,61%). A média da OCDE era 26,08%.
No outro extremo, Portugal também aparece com dados preocupantes,
com uma quebra acentuada dos trabalhadores da função pública na faixa
etária entre os 18 e os 34 anos — eram 12,55% em 2015 e apenas 7,52% em
2020. A média da OCDE neste caso, em 2020, era 19,02% de trabalhadores
jovens na função pública, com Israel a apresentar a percentagem mais
elevada nesta área: 32,84% dos seus trabalhadores tinham estas idades.
O relatório realça que os países com uma força laboral no sector público
mais envelhecida podem beneficiar com um serviço mais experiente, mas
podem também “enfrentar desafios relacionados com a renovação do
quadro de funcionários e na construção da próxima geração de funcionários
públicos”. Portugal está a braços com este problema em praticamente todos
os sectores da função pública, com os casos dos professores e dos médicos a
serem o rosto mais visível de uma questão transversal.

78
Mas não é o único. Uma classe docente envelhecida, e a consequente
falta de professores no sistema, é um problema comum a vários países
europeus e já há quem comece a desenhar tentativas para ultrapassar
o problema. Em Espanha, por exemplo, permitiu-se que entrem na
carreira professores que ainda não têm o mestrado que os habilitava
para a docência - e que era exigido até há cerca de um ano. E Portugal
já admitiu querer formar diplomados noutras áreas para se tornarem
professores. No Reino Unido é a saída anunciada de um elevado
número de médicos de família, por causa de reforma, que faz soar os
alarmes - tal qual como em Portugal. E se, no passado, a falta de outros
profissionais na área da saúde, como os enfermeiros (não por questões
de envelhecimento) foi parcialmente colmatado com a contratação
de profissionais estrangeiros, incluindo muitos portugueses, o Brexit
dificulta, hoje, o recurso a esta medida.
O relatório da OCDE deixa algumas recomendações para tentar
ultrapassar problemas relacionados com uma função pública
envelhecida, realçando que o ideal é ter equipas com várias gerações.
Criar programas de mentoria — valorizando a experiência dos mais
velhos e motivando, em simultâneo quem chega de novo — é uma
das recomendações deixadas, a par com uma maior capacidade de
atractividade no recrutamento de profissionais por parte do Estado. E
isto passa, e muito, por tornar as carreiras mais atractivas (recomenda-se,
por exemplo, que seja possível cobrir os salários oferecidos no privado) e
também por haver uma capacidade de recrutamento mais proactiva, que
seja capaz de identificar e motivar os potenciais interessados, em vez de
aguardar que eles se apresentem a algum concurso.

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79
Em que estado está a administração pública?

Vestir a
camisola
da função
pública
Em todos os departamentos do Estado, quer na
administração local, quer central, há funcionários
que sobressaem pela sua dedicação e exemplo. Elogiados
por todos, o que os move? O PÚBLICO foi falar com alguns.
Encontrou paixão pela profissão e espírito de missão
de serviço público
Reportagem Ana Fernandes, Carolina Pescada,
Joana Gonçalves e Joana Bourgard

80
“Já não há muita gente a
falar esta língua que eu falo”
Jaime Forte, Jardim Botânico de Coimbra

Q
uando olha em volta, a cada passo que dá, Jaime Forte
apresenta-nos todos os seres que nos rodeiam. Conhece-os
intimamente ou não os chamasse pelo seu nome em latim,
dando assim conta do seu género e o epíteto específico. É
uma relação com as plantas de longa data, tinha 12 anos quando a
paixão de uma vida germinou.
“Terminei a quarta classe numa sexta-feira e na segunda-feira
apresentei-me no Botânico para trabalhar. Estávamos a 15 de Julho de
1963 e fui para as estufas”, conta Jaime Forte, hoje já reformado. Esta
“seiva” de jardineiro corria na família — o avô e o pai também metiam
as mãos na terra do jardim da Universidade de Coimbra e Jaime estava
ansioso: “Ia entusiasmado, a miséria era muita, o meu pai tinha quatro
filhos”. Ia ganhar o seu primeiro salário: dez escudos por dia.
Entrou na secção de sementes e plantas do herbário do Departamento
de Botânica, onde começou a correr toda a região Centro, a pedido dos
professores, para fazer colheita de plantas e a prepará-las para as aulas,
exames e frequências. Hoje, não há espécie que por ali cresça que não
identifique imediatamente.
Um conhecimento elogiado pelos professores de Coimbra,
impressionados pelo seu rápido olho na identificação das espécies. Um
saber feito de quilómetros no campo, de aprendizagem com os colegas
colectores, de uma análise atenta de tudo o que já estava catalogado na
secção do herbário.
“Fui sabendo os nomes, as famílias, os géneros. Comecei a apaixonar-
me pelas plantas”, conta.

81
Em que estado está a administração pública?

Terminei a quarta classe numa sexta-feira


e na segunda-feira apresentei-me
no Botânico para trabalhar. Estávamos
a 15 de Julho de 1963 e fui para as estufas
Jaime Forte

82
Foi uma vida a correr campos, dunas e serras a fazer colheitas. Nas
suas mãos trazia instrumentos para ajudar milhares de estudantes a
trilhar os caminhos da botânica, assim como material para enriquecer o
herbário da Universidade.
Tanto destas colheitas como dos viveiros, vários jardineiros garantiam
que Coimbra tivesse um rico Index seminum, um catálogo anual com a
listagem de todas as sementes ali existentes. O objectivo? Responder aos
pedidos que chegavam de instituições do mundo inteiro e para quem
eram enviados pequenas embalagens com as promessas das plantas à
guarda da Universidade.
Nesse departamento estavam cinco pessoas na década de 60. Hoje não
resta ninguém. Foram-se reformando até que “fechou a loja”, lamenta.
“Ainda hoje pergunto a mim próprio como é que antigamente tinha de se
apanhar plantas para as aulas e hoje não se apanha nada. Como é que o
ensino hoje se faz?”, questiona.
“Não se remodelou, não se colocou ninguém a aprender os nomes das
plantas, das famílias. Sinto uma certa mágoa porque vi acabar uma secção
que tinha muita importância na Biologia,” lamenta.
Não esconde a tristeza. Por algumas vezes teve oportunidades de sair,
para ganhar mais. Mas foi ficando pelo gosto que as plantas lhe davam. Até
que esbarrou na carreira. Com apenas a quarta classe, já não conseguia
progredir mais. Com os anos que levava na função pública, maximizados
pelo tempo passado no Ultramar, aos 47 anos pode-se reformar.
Mas se saiu do Botânico, a botânica não saiu dele. “Criei uma empresa
de jardinagem e ainda hoje a minha vida é lidar com as plantas”. Ficar
parado é que não, além de que a reforma era magra — “não daria para
viver como vivo”.
“Eu gosto de fazer jardins e já corri ceca e meca a fazê-los”, conta, por
entre os canteiros que plantou no jardim da Quinta das Lágrimas. Custa-
lhe voltar ao Jardim Botânico, sabe que já não encontra a azáfama de
jardineiros de outros tempos, lamenta não se ter passado o testemunho.

83
Em que estado está a administração pública?

Folheia com saudade e carinho um velho catálogo do Index Seminum


que ainda tem no carro. Vai citando os nomes das suas velhas conhecidas,
ali listadas em latim. “Já não há muita gente a falar esta língua que eu
falo”, remata, com orgulho.

“O meu lema não era


partidário, não era
político, era Sintra!”
José Cardim Ribeiro, Câmara Municipal de Sintra

S
intra. Nas palavras de José Cardim Ribeiro transborda o amor a
esta terra, à sua paisagem, à sua história, ao seu património, às
suas tradições. Foi a ela que dedicou a vida, por quem se bateu
para que fosse protegida, tanto como paisagem natural como
cultural, duas realidades indissociáveis, faz questão de sublinhar.
Era ainda um jovem historiador, com pouco mais de 20 anos e
breves experiências a dar aulas numa escola e a trabalhar no Museu
Nacional de Arqueologia, na Academia das Ciências e no Museu
da Marinha, quando é desafiado, em 1977, para ser consultor da
Câmara Municipal de Sintra na área do património arqueológico,
artístico e etnográfico. “Aceitei imediatamente o convite embora
economicamente fosse inferior ao Museu da Marinha”.
Embora nascido em Lisboa, morava em Colares e a região já lhe corria
no sangue. Face à riqueza que reconhecia no terreno, decidiu ir além
do desafio inicial e propôs a criação dos serviços culturais municipais.
“Fiz a proposta dividindo-a em várias áreas: bibliotecas, arquivos,
museus e dei uma importância especial à parte do património histórico.

84
Talvez os percursos da função pública
sejam longos demais. O mundo muda
e era bom que as pessoas também
pudessem mudar mais cedo
José Cardim Ribeiro

85
Em que estado está a administração pública?

Porque faltava uma coisa essencial que era tentar conhecer e fazer o
levantamento exaustivo do património monumental de Sintra a todos os
níveis. Era uma tarefa hercúlea.”
Com o apoio do historiador de arte Vítor Serrão, ambos com 25,
26 anos, levaram a empreitada para a frente e criaram uns serviços
culturais de referência, com dezenas de projectos em desenvolvimento.
“Porque fomos levados a sério e isso é algo que eu hoje estranho
um pouco, mas na época existiam, digamos, os ‘homens bons’ de
Sintra: sintrenses ou radicados em Sintra há muitos anos que amavam
profundamente Sintra e que nos ajudaram e se reviram nas nossas
posições e nas nossas preocupações”.
Não esconde o orgulho da obra, que não esgota aqui, antes pelo
contrário, está também na génese do Parque Natural Sintra-Cascais mas,
sobretudo, na classificação desta paisagem cultural como Património
da Humanidade, em 1995, que “foi o coroar das nossas diligências
patrimoniais”. O que o movia? A protecção da riqueza que tanto a
natureza como a história ali deixaram e que via ameaçada pelo abandono
ou avanço das urbanizações. “Lutámos muito para que houvesse uma
mudança de mentalidades”.
“O meu lema não era partidário, não era político, era Sintra. A minha
lealdade durante esses anos todos foi para o seu património”, faz
questão de sublinhar.
Muitos mais exemplos haveria, como o Centro Cultural Olga Cadaval
ou a — extraordinária — descoberta do Santuário Romano do Alto da
Vigia, mas a sua obra é também indissociável do Museu Arqueológico
de São Miguel de Odrinhas, a que dedicou os seus últimos anos na
Função Pública. “Um museu que teve um grande papel para sensibilizar
as populações rurais relativamente ao património romano e que se
transformou num grande museu moderno nesta área”, descreve.
Queria ter feito mais, como um Museu das Tradições. E não cala
as críticas à gestão do Património Mundial. Lamenta que não haja

86
uma gestão conjunta das três áreas incluídas na classificação: a
zona inscrita, que corresponde ao centro histórico e aos principais
monumentos da serra, a zona-tampão que vai até ao mar e que inclui
o resto da serra toda e a zona de transição, que inclui uma vasta zona
rural a norte da serra. “Isso nunca aconteceu, está remetido para as
sensibilidades das várias câmaras”.
Lamenta ainda a tremenda turistificação de Sintra, uma consequência
da classificação da UNESCO, admite. Reformado desde 2019, critica ainda
a crescente politização dos cargos da administração e deixa um conselho:
“Talvez os percursos da função pública sejam longos demais. O mundo
muda e era bom que as pessoas também pudessem mudar mais cedo. Há
uma altura que é preciso transmitir aos mais novos e nós devemos afastar-
nos e tentar não interferir”.

“Eu tentava sempre que a


pessoa saísse do balcão com
uma luz ao fundo do túnel”
Maria da Luz Delgado, Ministério da Justiça

A
energia de Maria de Luz é tão electrizante quanto o seu
entusiasmo. Chegou muito jovem ao Ministério da Justiça, 3 de
Outubro de 1978, lembra-se bem. Apenas com o secundário,
seguiu as pisadas da irmã e arriscou o estágio, não remunerado,
mas onde persistiu até ser integrada. Pelo caminho adquiriu “muitos
conhecimentos”. Um foco que a guiou toda a vida, formação atrás de
formação, até chegar ao topo da carreira de oficial de justiça.

87
Em que estado está a administração pública?

Por onde passou reestruturou serviços, galvanizou equipas e nunca se


acomodou. Aspirou sempre a mais. “Sou uma pessoa de desafios, temos
de sair da nossa zona de conforto”, avisa logo.
Um desses desafios foi quebrar o ciclo de um mundo de homens.
Como escriturária judicial e depois de estar em Mértola e sete anos no
Palácio da Justiça, em Lisboa, decide concorrer a escrivã-adjunta e é
colocada numa secção onde ninguém queria trabalhar dada a difícil
personalidade de quem a chefiava. “Estamos a falar em 1982, 83. Ele
era pouco receptivo às mulheres no tribunal. Achava que aquilo era
um trabalho para homens. Fui colocada naquela vaga, a que ninguém
concorria, tinha 23 anos. Foi muito complicado mas eu pensei: ‘Vou e
sei que vai ser difícil, mas eu vou aprender”. E aprendi muito. Ele era
um visionário e fazia as coisas muito à frente”.
Três anos depois, surgiu a oportunidade de ir para Macau. Novamente
lhe disseram que a prioridade seria dada a homens. Mas a sua persistência
vingou e por lá ficou 14 anos.
Nesse meio tempo veio a Portugal e fez formação para escrivã.
Regressada a Macau, foi chamada para o segundo juízo do Tribunal Judicial,
onde revolucionou a forma como estavam organizadas as equipas e os
processos: “Nas férias, fui lá e mudei os processos da secção todos. Quando
chegaram, disse que se não funcionasse voltaria a mudar tudo sozinha, mas
funcionou e foi espectacular. Deixei lá um bocadinho meu”.
Tentou deixar esta marca em todo o lado. Mas sobretudo ajudar.
Tanto os colegas como o cidadão. Porque, reforça, é esse o espírito
que sempre a guiou: “Nós trabalhamos para o cidadão, é por isso que
somos funcionários públicos”. Dá o exemplo do Tribunal de Família de
Cascais, onde esteve quando regressou a Portugal. Um dia esteve até à
1h da madrugada a atender um utente: “Estive a ouvi-lo, apesar de ter
imenso trabalho para fazer, mas eu pensei ‘este senhor é importante’.
Eu tentava sempre que a pessoa saísse do balcão com uma luz ao
fundo do túnel”.

88
A função pública que eu encontrei
trabalhava muito por amor à camisola.
Depois, em 1983, 84, tivemos um aumento
substancial e entrou muita gente
e dava gozo trabalhar nos tribunais
Maria da Luz Delgado

89
Em que estado está a administração pública?

Nova formação, novo degrau. Já como secretária de Justiça, passa a


gerir o Tribunal de Mértola. Com a reorganização judiciária volta para
Lisboa, para o Palácio da Justiça, e mais tarde para o Juízo de Instrução
Criminal e Juízo Local Criminal. Durante a pandemia, o desafio era
tranquilizar, transmitir confiança e segurança. “Andavam todos nervosos
mas a justiça não podia parar”. Foi uma batalha ganha e elogiada.
Conseguiu ainda, nesse período, fazer o curso de administradora, tendo
sido convidada para a comarca de Lisboa.
Hoje é formadora, transmite o seu testemunho em vários locais do país.
Encontrámo-la em Setúbal, onde um dia inteiro de formação não lhe tira
uma pitada de energia. A reforma está ao virar da esquina. Teve uma vida
cheia de que se orgulha mas olha para o passado e para a situação actual
e sente diferenças que a preocupam. “A função pública que eu encontrei,
quando entrei, trabalhava muito por amor à camisola. Não tínhamos um
salário assim tão bom mas depois, em 1983, 84, tivemos um aumento
substancial e entrou muita gente e dava gozo trabalhar nos tribunais”.
Mas hoje, embora muitos mantenham o amor à camisola, assegura, “há
um certo cansaço, há um envelhecimento da classe, a média de idades é
de 50 para cima. É necessário sangue novo”.
E tal como enfrentou um mundo de homens, também discorda que
a Justiça se tenha transformado num mundo de mulheres. “Tem que
haver um maior equilíbrio em termos de género, é muito importante. As
equipas são mais produtivas e é melhor em termos de ambiente”.

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90
Capítulo 3
Público vs Privado

91
Em que estado está a administração pública?

Ser professor
no ensino público
ou no privado?
O que levou Maria
e Vítor a escolher
Maria Sanches Ribeiro é professora de Biologia e Geologia.
Exerce há 22 anos, mas nos primeiros 17 não saiu do 1.º
escalão de uma carreira de dez. Vítor Bastos, professor de
Geografia há tantos anos como Maria, procurou estabilidade
no ensino privado. É mais o que os une ou o que os separa?

92
Reportagem Daniela Carmo (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia)

M
aria Sanches escolheu ser professora no ensino público.
Esteve 17 anos a contrato, todos os anos um novo, sem saber
ao certo onde daria aulas, até entrar, por fim, num Quadro
de Zona. Nunca pensou desistir. É na escola pública que se
realiza, apesar da burocracia que, diz, lhe consome tanto tempo. E de,
segundo relata, ter de assumir também as tarefas de assistente social, de
psicóloga, de enfermeira. Tudo isso, para além das aulas.
Vítor Bastos também passou pelo ensino estatal, mas acabou por
escolher o privado. As tarefas extra-aulas que a colega de profissão
relata estão menos presentes no colégio onde trabalha. “Talvez seja
uma vantagem do ensino privado. Fazemos apenas o necessário, com
as direcções de turma por exemplo. Acho que a tendência, felizmente, é
para tornar esta carga burocrática menos pesada”, reflecte.
Passámos algumas horas com Maria Sanches Ribeiro, de 51 anos, da
Escola Secundária de Passos Manuel, em Lisboa, e com Vítor Bastos, de
50 anos, no Colégio Vasco da Gama, em Sintra. É muito diferente ser
professor do público e do privado?
O sofá vermelho e os bancos almofadados com motivos de banda
desenhada à direita não fazem adivinhar que entramos numa sala de
aula, muito menos as cadeiras — com rodinhas, mesa e suporte para a
mochila já incluídos — dispostas quase em fila única ao longo das janelas.
O grande espaço vazio no meio da sala do Colégio Vasco da Gama, em
Sintra, contrasta com a bancada composta por várias mesas ao centro
do laboratório de Biologia da Escola Secundária de Passos Manuel, em
Lisboa. Vítor Bastos e Maria Sanches Ribeiro são quem hoje comanda as
turmas de 9.º e 12.º anos, respectivamente.
De cabelo grisalho e com os óculos na ponta do nariz, Maria Sanches
Ribeiro, vai distribuindo as fichas de trabalho pelos alunos, que à entrada

93
Em que estado está a administração pública?

vestiram as longas batas brancas. Hoje é dia de actividade de grupo para


simular a transmissão de doenças infecciosas. Os alunos escutam com
atenção a docente, que aproveita a actividade para estabelecer uma
relação com o momento presente de pandemia de covid-19.
Com 22 anos de serviço, Maria Sanches continua à procura daquele
brilho no olhar de quem à sua frente mostra que aprendeu. Apesar das
cerca de 50 horas semanais que dedica ao trabalho — divididas entre
actividades lectivas, preparação de aulas, correcção de trabalhos e testes
ou burocracia —, que vão além das 35 horas lectivas determinadas, a
docente continua fascinada pelo processo de aprendizagem. “Acho que
ser educador é, provavelmente, a profissão mais importante do mundo.”
“Eu chamo-lhe curiosidade científica pela forma como o ser
humano aprende, perceber quando um aluno ou uma aluna aprendeu,
há aquele brilho nos olhos. Essa magia é uma coisa a que não consigo

94
deixar de ser sensível, gosto muito desses momentos de interacção
directa com os alunos”, diz-nos.
E os mais novos mostram-se deveras interessados pelo que na sala de
aula se passa. Maria Sanches Ribeiro chama os alunos, um a um, para que
respondam às questões sobre o que é a fenolftaleína — um indicador de
pH — e a solução de hidróxido de sódio — um composto químico.
As conclusões da experiência vão sendo apontadas no quadro branco
da sala de aula, e entre os risos dos alunos absorvidos pela aula, a
professora vai explicando a relação dos resultados com a vida real.

À procura de estabilidade
Maria Sanches Ribeiro dá aulas na Escola Secundária de Passos
Manuel, em Lisboa, há cerca de cinco anos. Não está nos quadros do
estabelecimento, mas sim colocada em Quadro de Zona Pedagógica, o
que lhe permite não se afastar da área de residência. Mas nem sempre foi
assim, já teve de percorrer distâncias maiores, mas nada como o cenário
de professor com a casa às costas a que muitos são obrigados.
Uma boa média à saída da faculdade permitiu-lhe, assim como ao
professor Vítor Bastos, conseguir colocações relativamente perto da zona
de residência. Evitar a dança entre cidades a que viam (e continuam a
ver) muitos colegas sujeitar-se foi, como dizem, um descanso. “Conheci
colegas que passaram 20 anos com a casa às costas e isso é de uma
violência enorme, inclusivamente com crianças pequenas. É uma
violência enorme”, lamenta Maria Sanches Ribeiro.
Durante os 17 anos em que esteve a trabalhar como professora
contratada, sempre no sistema público, a maior distância que teve
de percorrer foi entre Lisboa e Vila Franca de Xira. “Tive sempre a
possibilidade de trabalhar em escolas que estavam ao alcance da minha
residência. Ali nos anos iniciais gastei mais dinheiro em deslocações, é
verdade. Mas nada que se compare a muitos outros casos de professores
que conheci ao longo dos anos.”

95
Em que estado está a administração pública?

Os pais, que pagam para os filhos aqui


estudarem, claro que exigem mais
de nós. Mas isso também é bom
Vítor Bastos

96
Já Vítor Bastos procurou a estabilidade no ensino privado ao fim de
seis anos a mudar de escola. Mas passado algum tempo percebeu que
essa mudança também lhe fazia falta e, por isso, optou por concorrer a
horários reduzidos noutras escolas públicas, acumulando com o horário
no colégio, onde entrou há 17 anos.
“Uma coisa que me fez muita confusão quando vim para o colégio,
depois dos anos todos em que andei a saltitar entre escolas, foi sentir falta
de andar a saltitar de escola em escola.” O professor também nunca foi
obrigado a grandes deslocações — passou por outras duas escolas, mas
ambas no distrito de Lisboa.

Salários diferentes
Ambos na casa dos 50 anos e com mais ou menos o mesmo tempo de
serviço, Vítor Bastos e Maria Sanches Ribeiro estão no 4.º de uma carreira
de dez escalões. Contas feitas, no escalão a que pertencem o vencimento
mensal base é de 2006,25 euros brutos, no ensino público. A tendência
no privado é que o salário seja um pouco mais baixo em relação ao
público. No caso de Vítor Bastos a diferença não é grande: aufere um
rendimento bruto de 1991,50 euros.

Salários no público e no privado


INÍCIO DA CARREIRA FIM DA CARREIRA

1600 Euros 3500 Euros


1536,9€
1500 3400 3405€
Estatal
1400 3300 Estatal

1300 3200
1250€
1200 3100 3105€
Privado Privado
1100 3000
2017 2018 2020 2022 2017 2018 2020 2022

Professores do ensino público: quantos anos têm e quanto


ganham em cada escalão 97
Percentagem por escalão da carreira docente
Escalão
Em que estado está a administração pública?

Por mês cada um dos professores leva para casa cerca de 1400 euros,
dependendo dos descontos a que estão obrigados tendo em conta o
número de pessoas no agregado familiar.
Prestes a entrar no 5.º escalão da carreira está Maria Sanches
Ribeiro, se a escola tiver quotas suficientes para isso e se a própria tiver
aproveitamento
Salários no públicopara tal. Mas a professora tem uma certeza: “Jamais
e no privado
chegarei ao topo da carreira docente.”
INÍCIO DA CARREIRA FIM DA CARREIRA
Maria Sanches viu a carreira bloqueada
1600 Euros 3500 Euros
durante os 17 anos em que
trabalhou a contrato,1536,9€
período em que não subiu do primeiro escalão. “Fui
3405€
1500
sempre colocada durante todos3400
Estatal esses anos. Isto significa que não foi por
falta
1400 de vagas que não entrei para o quadro
3300 Estatal mais cedo na carreira. Foi
exactamente porque o acesso à carreira estava bloqueado e no primeiro
1300 3200
momento em que desbloquearam
1250€ o acesso à carreira, eu entrei para o
quadro
1200 de Zona Pedagógica, onde 3105€
3100me encontro actualmente, e subi do
Privado Privado
primeiro para o terceiro escalão”, aponta.
1100 3000
2017 2018 2020 2022 2017 2018 2020 2022

Professores do ensino público: quantos anos têm e quanto


ganham em cada escalão
Percentagem por escalão da carreira docente
Escalão Idade Duração do Média de anos Salário
% de docentes (média) escalão (a) cumpridos (b) bruto
1.º 0,4 45,4 4 15,7 1536,9
2.º 6 43,6 4 17,3 1730,16
3.º 16,3 45,4 4 20,5 1886,61
4.º* 25,6 49,9 4 25,2 2006,25
5.º 5,5 52,4 2 28,2 2162,7
6.º* 13,7 55 4 31 2254,72
7.º 5,2 56,2 4 32,7 2503,21
8.º 8,2 57,5 4 34,2 2751,69
9.º 3,3 59,6 4 36,6 3129,01
10.º 16 60,7 4 38,6 3405,09

* sujeito a quotas para progressão (a) Tempo de permanência obrigatório em cada escalão
(b) Número de anos em média que os professores que estão no escalão já cumpriram

98
Quando lhe perguntamos se sente que a compensação mensal que
leva para casa serve para fazer face ao número de horas que dispensa ao
trabalho, a resposta é curta: “Não”. Por ali, como em muitos sítios, não
se é apenas professor. A burocracia ocupa um espaço grande na gestão
de todo o tempo, algo que Maria Sanches Ribeiro acredita ser uma das
consequências da formação dos Agrupamentos de Escolas.

Tarefas de secretaria
“Muito do trabalho burocrático que era feito pelas secretarias das escolas
passou a ser feito pelos professores.” E dá vários exemplos: “Nós passamos
constantemente por vários tipos de funções. Se estamos a tratar do cheque
dentista dos nossos alunos, estamos a trabalhar ao nível da enfermagem.
Se estamos a tratar dos computadores para emprestar aos alunos, estamos
a trabalhar ao nível da assistência social. Se estamos a tentar perceber que

99
Em que estado está a administração pública?

problemas é que poderão ter de aprendizagem emocionais, estamos a


tratar ao nível da psicologia. Portanto, as nossas funções são muitas”.
Já para Vítor Bastos essas tarefas são mais aligeiradas, “talvez seja uma
vantagem do ensino privado”. “Fazemos apenas o necessário, com as
direcções de turma por exemplo. Acho que a tendência, felizmente, é
para tornar esta carga burocrática menos pesada”, reflecte.
Algum desse trabalho recai na justificação dos resultados escolares,
por exemplo. “Os pais, que pagam para os filhos aqui estudarem, claro
que exigem mais de nós. Mas isso também é bom. Às vezes questionam
o motivo de determinada nota do filho e aí tenho de fazer uma
argumentação, seja para o que for, sustentada”, explana.
Mas é também esse contacto e proximidade com os encarregados
de educação e alunos que fazem o docente sentir que está a cumprir a
missão e, aliás, um dos motivos pelos quais olha para o ensino particular
como um local onde quer continuar.
E também desempenha tarefas de psicólogo. Mesmo hoje, no fim da
aula de Geografia, algumas alunas entram na sala para lhe falarem de
alguns desentendimentos que estão a ter com uma outra colega. Primeiro
ouve, ouve durante algum tempo, para depois as aconselhar.

Os alunos pelo nome


Ainda antes de a aula começar há quem lhe venha dar os bons dias à porta
da sala e, em tom de brincadeira, atire um “é o meu professor preferido”.
Esta camaradagem é “uma das grandes vantagens do ensino privado”,
diz, que se reflecte no comportamento dos alunos.
“Nós conhecemos a maior parte dos alunos desde o pré-escolar, porque
eles estão aqui nos intervalos, circulam pelo colégio e nós conhecemos
as caras. Acabamos por falar com eles. Ora se eles já nos conhecem
desde o pré-escolar, já se relacionam connosco, acabam por olhar para o
professor como alguém bastante próximo. Não é só o professor, é alguém
que eles conhecem desde pequenos”, remata.

100
Durante a aula de Geografia de uma das turmas do 9.º ano, os mais
novos não se coíbem em chamar pelo “stôr”. “Quem me chamou?”,
pergunta e vários respondem “fui eu”. “Não posso perguntar isto”, ri-se.
Hoje é dia de fazerem a auto-avaliação, mas à moda do professor Vítor
Bastos. O desafio é, primeiro, responderem às perguntas que o docente
deixou na plataforma online para depois elaborarem um guião e, no fim,
gravarem um vídeo em que explicam a nota que pensam merecer.
“Gosto de tornar as aulas mais didácticas com a ajuda da tecnologia
também e criar formas em que eles trabalhem também a autonomia,
a auto-regulação”, explica. Esse ponto de vista é partilhado por Maria
Sanches Ribeiro, que procura desenvolver experiências educativas que
estimulem essas mesmas competências nos mais novos: os alunos do 12.º,
por exemplo, dão aulas aos alunos do 9.º ano, que, por sua vez, dão aulas
aos do 7.º ano.
Mas, apesar de partilharem ideias semelhantes sobre formas de ensinar,
não partilham do mesmo ponto de vista em relação ao ensino privado.
Maria Sanches nunca passou pelo ensino particular nem tenciona fazê-lo.

101
Em que estado está a administração pública?

“Foi uma opção minha porque eu não concebo uma educação que
deixa qualquer jovem ou qualquer criança de fora. Eu não concebo
uma selecção e nós estamos a falar da escolaridade obrigatória.
Portanto, para mim, uma escola que selecciona alunos é uma escola que
necessariamente está a deixar alunos de fora.”
Nem o facto de a carga horária e o peso da burocracia a demovem.
“É uma profissão que exige, de facto, amor, carinho, motivação para o que
se faz porque é uma profissão muito dura, muito exigente. Mas é também
uma profissão muito empolgante. Eu não sei se toda a gente, todos os dias,
se sente tão satisfeita com aquilo que faz como eu tendo a sentir-me agora.”
Já Vítor Bastos está no ensino privado por opção, procurava
estabilidade e conseguiu-a. Além disso, também gosta do sítio em que
está. “Sinto-me bem aqui, o espaço é óptimo, o ambiente com os colegas
é óptimo. Mas isto não quer dizer que de hoje para amanhã não haja um
problema qualquer e eu tenha de ir para o Estado. Neste momento não
estou a visualizar isso e não quero mudar.”

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102
Carreiras
indiferenciadas
no Estado afastam
Ciência, Tecnologia,
Engenharia ou
Matemática
Áreas tecnológicas estão a abrir vagas, mas o sector público
só parece ser atractivo à saída da escola. Os mais experientes
acabam por sair para o privado

Victor Ferreira

U
ma em cada cinco pessoas, entre os 20 e os 29 anos, que
concluem estudos superiores em Portugal forma-se nas áreas
de Ciências, Tecnologia, Engenharia ou Matemática (CTEM).
É um rácio praticamente em linha com a média europeia ainda
que ligeiramente acima. O problema é que a média da União Europeia
(UE), incluindo Portugal, é baixa. A digitalização e a transição climática
levam a abrir vagas que a UE não consegue preencher. O sector público
é o que mais sofre, porque embora seja atractivo para quem chega ao

103
Em que estado está a administração pública?

mercado de trabalho, perde atractividade por falta de perspectivas de


evolução tão rápida quanto no sector privado.
“Talvez pela estabilidade, talvez por dar salários mais altos no início
da carreira do que o privado, continua a haver muitos profissionais
a concorrerem ao sector público. Mas depois não há uma carreira de
engenharia e a progressão não se faz. Resultado: passado algum tempo, as
pessoas abandonam a função pública e mudam para o sector privado, ou
criam as suas próprias empresas”, descreve o bastonário da Ordem dos
Engenheiros Técnicos, Augusto Ferreira Guedes.
“Devia ser estruturada uma carreira profissional de engenharia, porque
hoje em dia são todos técnicos superiores e por isso não se faz uma
verdadeira diferenciação entre eles e um profissional das áreas sociais,
por exemplo. A inexistência dessa carreira em engenharia, que defina
qual é o percurso profissional, leva a esta situação: quem acaba o curso
e precisa de aprender mais alguma coisa, tenta a função pública, mas

104
depois quando já se tem alguma experiência percebe-se que a carreira
pública não é aliciante.”
Rogério Reis, matemático doutorado em ciência de computadores,
professor auxiliar na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP)
e investigador no Centro de Matemática da UP, trabalha com alunos que
estão a sair para o mercado de trabalho e com aqueles que acabam de
chegar ao ensino superior. Entre eles, a carreira pública surge como uma
opção? “Nem por isso.”
“Há muito tempo que não se abrem lugares nos quadros das
universidades. Os investigadores têm como perspectiva de vida a
precariedade”, descreve Reis.
A história recente mostra que o emprego em algumas áreas
CTEM cresceu mais do que a generalidade do emprego. O número
de trabalhadores especializados em Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC), por exemplo, cresceu 50,5% entre 2012 e 2021,
segundo o Eurostat. O que é oito vezes mais do que o crescimento de
6,3% do emprego total na UE nesse mesmo período.

Continua a haver muitos profissionais


a concorrerem ao sector público. Mas
passado algum tempo, abandonam
Augusto Ferreira Guedes, bastonário
da Ordem dos Engenheiros Técnicos

105
Em que estado está a administração pública?

Alguns relatórios sugerem que o envelhecimento da Europa e a


transformação tecnológica vão manter a procura em alta em muitas áreas
CTEM. É preciso substituir os que se vão reformar e preencher as novas
vagas que irão surgir.
Há seis anos, o Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação
Profissional estimava que o emprego CTEM iria crescer uns 12,5% até
2025. O que seria muito acima do aumento de 3,8% para as restantes
profissões na UE.
Porém, o Eurostat mostra que, hoje em dia, já é difícil recrutar nessas
áreas. Em 2020, 44% das empresas portuguesas dizia ter dificuldades
em preencher as vagas abertas em TIC. O “elefante na sala” aqui é o
desequilíbrio de género. Apesar de a população feminina estar em
maioria nas universidades, nas áreas CTEM predominam os homens.
Bastaria incentivar, com sucesso, mais mulheres para essas áreas, de
modo a reduzir talvez estas dificuldades, que são em si mesmo uma má
notícia para o sector público.
Talvez uma metáfora resuma o problema. Se as áreas CTEM fossem
um lago e os profissionais fossem o peixe, então o sector público
seria um pescador com uma cana curta de mais para conseguir o
melhor peixe e em quantidade suficiente.​“No sector público há uns
quantos trabalhos interessantes, mas poucos”, avalia Rogério Reis.
Uma Autoridade Tributária, uma Segurança Social são exemplos de
entidades que podem ter alguns lugares atractivos, mas se os projectos
estagnam e o trabalho se tornar repetitivo, a motivação para ficar
também desaparece, explica este docente.
O problema da estruturação das carreiras também existe no privado.
Na banca, por exemplo, os acordos de empresas não prevêem carreiras
preparadas para as novas profissões tecnológicas, para nómadas
digitais, para a diferenciação salarial que permita pagar a um analista de
dados acabado de contratar o mesmo que um director de sucursal com
2o anos de casa.

106
A diferença faz-se a jusante: no privado, a administração tem margem
para decidir, ao passo que no sector público, essa flexibilidade não
existe. Muitas vezes, nem sequer há dinheiro. Ou lugares interessantes.
“Os profissionais muito bons estão ‘condenados’ a sair de Portugal.
Na investigação precisaríamos de acabar com a precariedade. As
universidades precisam de conseguir ficar com os melhores, corremos o
risco de 15% a 30% dos professores universitários nos próximos dez anos
se reformarem. São saberes que demoraram 20, 30 anos a construir e que
se perdem. Anuncia-se mais investimento nas universidades, mas este
mantém-se aos níveis de 2000”, argumenta Rogério Reis.
Fernando Matos, presidente da Associação Portuguesa de Ciência de
Dados, por seu lado, vê “muita coisa aliciante por fazer” nestas áreas, seja
no privado ou no público. “Há muito espaço para os profissionais destas
áreas poderem crescer, serem mais eficientes, mais produtivos, mais
eficazes e vejo muitas pessoas com essa preocupação também no sector
público”, afiança. Porém, “tem de existir diferenciação” de carreiras,
defende, até porque esse é o esforço que está a ser feito no privado e que
se deverá intensificar nos próximos anos.

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107
Em que estado está a administração pública?

Um quinto dos
trabalhadores
qualificados
escolhidos pelo
Estado desistiu
Depois de analisar o recrutamento centralizado feito
em 2019, o Governo quer simplificar o processo e torná-
lo mais rápido. O objectivo é lançar um novo concurso
transversal em 2023

Raquel Martins

E
m Junho de 2019, o Governo lançou um concurso para criar uma
bolsa de mil técnicos superiores com o objectivo de rejuvenescer
e dotar a Administração Pública de trabalhadores qualificados
na área jurídica, da estatística, da gestão ou do planeamento. O
resultado deste processo é um exemplo da dificuldade que o Estado tem
em atrair os jovens qualificados: um quinto dos 860 técnicos superiores
colocados nos serviços desistiu e acabaram por não assinar contrato, ao
passo que a idade média destes novos trabalhadores era de 35 anos.
Os dados solicitados à secretaria de Estado da Administração Pública
mostram que, dos 860 técnicos seleccionados através do recrutamento

108
centralizado, a maioria (682) celebrou contrato por tempo indeterminado
com os serviços e organismos onde foram colocados, mas 21% (178)
acabaram por desistir, deixando os lugares vagos.
Para a secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires, um
dos factores que levou a que um quinto das pessoas não tivesse celebrado
contrato tem a ver com o tempo que demorou entre a apresentação da
candidatura e a homologação.
“Sobre este processo, ainda estamos a interagir com as próprias
entidades empregadoras, para percebermos até que ponto as
necessidades foram cobertas com os candidatos”, sublinhou em
entrevista ao PÚBLICO, acrescentando que, neste concurso, os serviços
limitaram-se a indicar os lugares vagos e a receber os candidatos,
sem qualquer intervenção no processo de selecção que foi conduzido
centralmente pelo Instituto Nacional de Administração (competência
que, entretanto, passou para a Direcção-Geral da Administração e do
Emprego Público).

109
Em que estado está a administração pública?

Ciente das dificuldades e das lições retiradas de todo o processo,


o Governo já apresentou aos sindicatos uma proposta para alterar
o recrutamento centralizado. O objectivo, adianta Inês Ramires, é
simplificar procedimentos e envolver os serviços na selecção dos
candidatos.
Em cima da mesa está a criação de uma nova plataforma, que irá
substituir a Bolsa de Emprego Público, de modo a “desmaterializar a
aplicação dos métodos de avaliação”, que foi um dos problemas maiores
no último recrutamento centralizado, devido ao elevado número de
pessoas que fizeram a prova de conhecimentos e à logística que isso
implicou. Além disso, a entrevista final para avaliar a competência dos
candidatos para o lugar passará a ser feita pelo serviço.
Outro dos pontos que o Governo pretende alterar e que já mereceu
críticas dos sindicatos é a possibilidade de os serviços recorrerem à bolsa
de recrutamento para fazer face a necessidades transitórias.
Questionada sobre as implicações desta proposta ao nível da
precariedade, a secretária de Estado garante que o objectivo é
agilizar o preenchimento de necessidades temporárias e que cabe aos
trabalhadores aceitarem ou não os termos da contratação. “Ninguém
sairá da lista graduada se recusar um contrato a termo”, assegura.
Sem se comprometer com datas, Inês Ramires adianta que gostaria que
fosse possível lançar um novo recrutamento centralizado no próximo ano
e, daí em diante, abrir concursos transversais com alguma previsibilidade.
Olhando para os 682 técnicos superiores colocados, uma parte
significativa foi integrada no Instituto de Conservação da Natureza e
Florestas (68), no Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e
de Prospectiva da Administração Pública (51), na Agência Portuguesa do
Ambiente (33), no Instituto de Segurança Social (21), na Polícia Judiciária
(20) e na Administração Central do Sistema de Saúde (20).
Além destes, as colocações efectivas tiveram também lugar na
Fundação para a Ciência e Tecnologia; no Instituto Nacional de

110
Estatística; na Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; no
Centro de Competências de Apoio à Política Externa; no Instituto da
Habitação e da Reabilitação Urbana; na Agência para o Desenvolvimento e
Coesão; no IAPMEI; nas Comissões de Coordenação Regional do Alentejo
e de Lisboa e Vale do Tejo; na Direcção-Geral de Segurança Social; no
Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais; na Autoridade
Tributária; na Direcção-Geral da
Administração e do Emprego Público; no
No trabalho não Gabinete de Estratégia e Planeamento;
qualificado as na Secretaria-Geral da Presidência do
carreiras ainda Conselho de Ministros ou na Direcção-
Geral das Artes.
são atractivas Os profissionais colocados
porque o salário vinham das áreas de Direito, Gestão
é igual ou até e Administração, Ciência Política e
Relações Internacionais, Sociologia,
superior ao Psicologia e Economia.
privado. Quanto Quando lançou o recrutamento
centralizado de técnicos superiores,
mais qualificada um dos objectivos do Governo era
é a actividade, rejuvenescer a Administração Pública,
menos atractivo mas quando se olha para o perfil dos
trabalhadores colocados percebe-se
é o exercício de que esse objectivo não foi totalmente
funções públicas atingido.
Miguel Lucas Pires A idade média dos técnicos superiores
era de aproximadamente 35 anos (à data
de candidatura), abaixo da média de 47,7
anos do total da Administração Pública é
certo, mas ainda assim longe de se tratar
de recém-licenciados.

111
Em que estado está a administração pública?

Independentemente das razões que estão por detrás das desistências


no recrutamento centralizado, é unânime a falta de competitividade do
sector público na luta pelos melhores quadros.
A própria secretária de Estado reconhece que há uma certa “visão
caricatural do que é um funcionário público” que acaba por afastar os
jovens desta carreira.
Na opinião de Miguel Lucas Pires, professor da Universidade de
Aveiro, há outros factores que afastam os jovens do sector público,
nomeadamente as condições oferecidas.
“No trabalho não qualificado [assistente operacional e assistente técnico],
as carreiras ainda são atractivas porque as pessoas auferem um salário igual
ou até superior ao privado com a grande vantagem de ter a estabilidade
associada ao vínculo público. Quanto mais qualificada é a actividade
profissional, menos atractivo é o exercício de funções públicas”, sublinha.
João Bilhim, antigo presidente da Comissão de Recrutamento e
Selecção para a Administração Pública (Cresap), põe a tónica na
necessidade de alterar a gestão de recursos humanos no Estado, muito
centrada na legalidade e pouco na procura de talento.
“Os departamentos de recursos humanos das organizações públicas
necessitam de ser reinventados”, desafia.
“Os membros dos departamentos de recursos humanos ainda estão
sentados no alto da sua autoridade à espera de serem procurados pelos
candidatos; desconhecem a busca activa de talentos nos estabelecimentos
de ensino superior. Aliás, isso corria o risco de ser ilegal”, ironiza.

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112
Inês Ramirez
Em dois anos, 26
mil funcionários
públicos atingem
idade da reforma
Secretária de Estado da Administração Pública, revela que
o Governo vai “apresentar um cabaz de aumentos para a
função pública” para compensar inflação. Mas sublinha que
a estratégia é “pensar no médio e no longo prazo para atrair
e reter” trabalhadores.

Entrevista Raquel Martins (texto)

O
aumento dos salários da função pública no próximo ano
continua a ser uma incógnita e o tema só vai começar
a ser discutido com os sindicatos em Setembro. Sem se
comprometer com aumentos ao nível da inflação, a secretária
de Estado, Inês Ramires, diz que as actualizações anuais dos salários
terão de ser conjugadas com as medidas para reter os funcionários
públicos, que terão um “grande impacto orçamental”.​

113
Em que estado está a administração pública?

O número de funcionários públicos está no nível mais alto desde


2005. O aumento ocorreu sobretudo na educação e na saúde, mas
estas são também as áreas onde há falta de trabalhadores. Como é
que se resolve este paradoxo?
Analisámos o aumento de 15 mil trabalhadores na Administração Pública
(AP) [entre Março de 2021 e de 2022] e 98% entraram nas áreas da saúde,
educação, ciência e tecnologia e forças de segurança. Dentro da saúde e
da educação parece sempre pouco, mas ainda assim o Estado tem dado
resposta. Claro que tivemos este choque de stress da pandemia que
representou um acréscimo de funções do Estado e a que respondemos
com mais contratações.
O que verificamos com estes números é que, apesar de estarmos a
atingir os valores de 2011, o peso do emprego das administrações públicas
na população empregada é menor e o perfil [dos trabalhadores] mudou
muito. As funções do Estado estão a ser repensadas e, por outro lado,
temos trabalhadores a atingir a idade da reforma. Em 2022, a estimativa é
que quase 11 mil possam sair e, em 2023, são quase 15 mil.

As 26 mil pessoas que podem reformar-se em 2022 e 2023 são de


que áreas e onde será preciso reforçar trabalhadores?
Dentro dos 11 mil trabalhadores que vão atingir a idade da reforma em
2022, 2800 são das carreiras gerais e os restantes das carreiras especiais.
Em 2023, as carreiras gerais ultrapassam os 4100 trabalhadores.
A nossa ideia é reforçar o planeamento para percebermos [onde será
preciso reforçar dos recursos humanos]. Cada sector vai ter de fazer
esse esforço de antecipação das necessidades, atendendo às saídas e às
necessidades que se mantêm. Na educação já existe esse planeamento.

Estas saídas têm em conta a redução da idade da reforma em 2023


Já têm em conta essa alteração.

114
No recrutamento centralizado de técnicos superiores, lançado em
2019, 21% das pessoas colocadas nos serviços acabaram por desistir.
Porquê?
Daquilo que podemos aferir neste momento, um dos factores foi o tempo
que demorou desde a candidatura até à homologação. Estamos a interagir
com as entidades empregadoras para percebermos até que ponto as
necessidades foram cobertas com os candidatos. Como os serviços não
tiveram intervenção, e é isso que estamos a tentar alterar, limitaram-se a
receber os candidatos.

Apresentaram aos sindicatos um conjunto de alterações ao


processo de recrutamento centralizado. O que vai mudar?
Estamos a trabalhar numa nova plataforma que irá substituir a Bolsa
de Emprego Público e que permitirá desmaterializar a aplicação dos

115
Em que estado está a administração pública?

métodos de avaliação, que era um dos problemas maiores. No último


recrutamento centralizado tivemos 15 mil candidatos elegíveis, o que
representava uma logística enorme na realização das provas.
Outra alteração é serem os serviços a fazer a entrevista de avaliação de
competências para o preenchimento do perfil.
Outro objectivo é que o Estado faça um levantamento anual de
quais são as necessidades, para termos mais previsibilidade para
a administração e para os próprios candidatos, que sabem que
periodicamente é aberta esta reserva.

O Governo vai permitir que os serviços usem a reserva de


trabalhadores para contratar a termo e os sindicatos alertam que
isso fomenta a precariedade. Em que situações os serviços podem
recorrer à bolsa para contratar a prazo?
Estas reservas centralizadas são abertas para contratação por tempo
indeterminado e isso não vai mudar. Mas o que verificámos, em
experiências durante a pandemia na área da educação, é que permitir
a utilização das reservas quando o Estado tem uma necessidade
temporária abrevia os tempos. Claro que depende da disponibilidade dos
trabalhadores aceitarem ou não os termos dessa contratação, ninguém
sairá da lista graduada se recusar um contrato a termo.
Não estamos a incentivar que as contratações passem a ser a
termo, porque as necessidades temporárias têm regras especiais
para contratação; nem a tentar reconfigurar o que são necessidades
temporárias. Estamos a tentar que a máquina do Estado fique aliviada
de procedimentos.

O actual concurso centralizado demorou quase dois anos. Qual o


impacto das alterações na redução destes prazos?
Demorou 18 meses, desde a abertura até à homologação. Não lhe consigo
dar a estimativa final, queremos encurtar bastante.

116
Quando é que abrirão um novo concurso centralizado?
Estamos a preparar-nos para ter, articulados com o Ministério das
Finanças, alguma coisa no próximo ano.

Uma das prioridades do programa do Governo é captar e fixar


talentos. Parece que a função pública vive um momento de falta
de credibilidade junto dos jovens.
Certo. E estamos, precisamente, a fazer uma aposta nos estágios para
atrair as pessoas no início da sua carreira para um primeiro contacto
com a AP e com as funções do Estado. Estes estágios dão uma majoração
em futuros concursos e esta previsibilidade que estamos a tentar no
recrutamento é para que estas pessoas possam depois entrar para a
administração.

A nossa ideia é reforçar o


planeamento para percebermos
[onde será preciso reforçar dos
recursos humanos]. Cada sector
vai ter de fazer esse esforço
de antecipação das necessidades

117
Em que estado está a administração pública?

Outra esfera é a retenção de talento. Para isso, e a perspectiva é da


legislatura, vamos apostar na capacitação dos trabalhadores que já estão
na AP, tendo já dado um primeiro sinal com a valorização do grau de
doutoramento dentro da carreira geral de técnico superior, e temos pela
frente um trabalho árduo de repensar como é que entre a revisão da
Tabela Remuneratória Única (TRU) e do Sistema Integrado de Avaliação
de Desempenho da Administração Pública (SIADAP) conseguimos levar
os trabalhadores a perceberem que podem ter no Estado uma carreira
com perspectivas de progressão. É este o desafio e a dificuldade. Não
conseguimos avançar só com uma revisão da TRU, vamos ter de repensar
qual deve ser o intervalo entre as carreiras gerais, o que depois tem
impacto nas carreiras especiais de graus de complexidade idênticos, e
ver como é que fazemos a avaliação de desempenho produzir efeitos na
motivação do trabalhador.

A par dessas alterações para fazer ao longo da legislatura, o


Governo apresentou uma proposta aos sindicatos para valorizar
em 52 euros a entrada na carreira técnica superior e em cerca
de 48 euros na carreira de assistente técnico, enquanto os
doutorados podem ter uma progressão de 400 euros. Mas se
o Salário Mínimo Nacional (SMN) aumentar para 750 euros no
próximo ano, um assistente técnico ficará a ganhar apenas mais
sete euros do que um assistente operacional. Em 2023, vão voltar
a mexer na TRU?
Esta proposta para mitigar a diferença entre carreiras de grau de
complexidade diferente é uma medida para 2022. A aferição, que ainda
não está feita, de qual deve ser a progressão do SMN no próximo ano vai
influenciar os cálculos que vamos fazer de como enfrentar, no próximo
ano, essa compressão.

118
Quando é que a valorização dos níveis de entrada entra em vigor?
Em 2022?
Não lhe posso dizer a si o que não disse aos sindicatos. Vamos fazer contas
e na próxima reunião, dia 29, diremos.

A discussão destas propostas vai prolongar-se até Setembro e


coincidir com o Orçamento do Estado para 2023?
Não é nossa intenção prolongar para Setembro. Para Setembro, estamos a
trabalhar noutras propostas que tenham impacto mais à frente.

Estas alterações que propõem terão impacto na contagem dos


pontos? Os trabalhadores que virem as suas posições salariais
alteradas perdem os pontos acumulados com a avaliação?
Estamos a considerar e também ouvimos os sindicatos sobre isso. Se,
nuns casos, a [progressão] é de 50 euros; noutros, como no caso dos

119
Em que estado está a administração pública?

técnicos superiores com doutoramento, podem ser duas posições


remuneratórias e há diferenças entre o que impacta ou não em termos
de avaliação de desempenho.

Quantos trabalhadores serão abrangidos?


Vamos dar esse dado aos sindicatos em conjunto com os impactos da medida.

Em relação aos aumentos salariais de 2023, o Governo tem dito que


é preciso avaliar a natureza da inflação e o ministro da Economia
disse recentemente que quanto mais a guerra se prolongar mais
estrutural esse indicador se torna. É expectável que os salários da
função pública tenham aumentos de 4% ou 5% em 2023?
A negociação de qualquer actualização salarial terá início a partir de
Setembro e tentaremos ter em consideração todos os factores que
nacional e internacionalmente vão afectar esta negociação.

Imaginemos que concluem que não há margem para acompanhar a


inflação que se verificar no final do ano, como é que vão compensar
os trabalhadores da função pública pela perda de poder de
compra? Que outras medidas poderão avançar?
Conjunturalmente, pensaremos quais serão as melhores medidas para
enfrentar uma inflação maior e como é que conseguimos apresentar um
cabaz de aumentos para a função pública, mas o Governo está altamente
investido em pensar no médio e no longo prazo, no sentido em que
esta reformulação para atrair e reter [trabalhadores] vai ter um grande
impacto orçamental. Nós achamos que a aposta nas reformas estruturais
tem um maior impacto em termos de reter as pessoas e de aposta no
emprego público, do que as medidas conjunturais.

O que está a dizer é que será preciso combinar medidas como as que
foram apresentadas aos sindicatos com a actualização geral anual?

120
Exactamente. Se vai haver uma alteração estrutural na retenção de
pessoas dentro da AP, isso vai ter um impacto orçamental que tem de ser
conjugado com o que vamos conseguir fazer em termos conjunturais para
dar resposta à situação actual.

Os sindicatos vão aceitar o facto de não haver aumentos iguais à


inflação? Está preparada para enfrentar uma vaga de contestação?
Não estou a dizer que não vão acontecer os aumentos. Os recursos são
limitados, vamos ter sempre de ponderar se faz mais sentido, num certo
momento, dar resposta a uma situação conjuntural ou equilibrar mais as
coisas e ir a ambos os lados.

Temos pela frente um trabalho árduo de


repensar como é que entre a revisão da
Tabela Remuneratória Única e do Sistema
Integrado de Avaliação de Desempenho
da Administração Pública conseguimos
levar os trabalhadores a perceberem
que podem ter no Estado uma carreira
com perspectivas de progressão. É este o
desafio e a dificuldade

121
Em que estado está a administração pública?

O Governo também quer rever o SIADAP. As quotas para as notas


mais altas vão manter-se? Admitem alargar os limites?
Não temos uma cultura muito atreita à diferenciação de desempenho,
as próprias chefias não têm essa cultura. Não podemos não ter
diferenciação de desempenho, ainda que perceba que nalguns casos
impor que apenas “xis” por cento atinge uma certa classificação dá a
sensação de que, independentemente do esforço, os trabalhadores vão
sempre esbarrar nas quotas.

A discussão mais profunda da TRU, das carreiras e do SIADAP vai


iniciar-se quando?
Não lhe queria dar um prazo. A partir da próxima negociação salarial
anual veremos o planeamento que conseguimos fazer sobre estes temas
mais estruturantes e com impactos maiores.

Um dos problemas do Estado é a dificuldade em mobilizar os


recursos para onde são necessários. Algumas experiências, como
o incentivo à fixação de trabalhadores no interior, não têm tido
sucesso. O que falhou?
O Governo tentou criar condições para que esse programa tivesse
êxito. Tivemos os 300 trabalhadores a manifestar vontade de utilizar
o programa e, ao termos só 10 que concretizaram, temos de pensar o
que aconteceu aos restantes. Aqui convergem vários factores: a pessoa
pode ter mudado de opinião, pode não ter conseguido ir para o local que
pretendia, o serviço de origem pode não ter dado acordo.

Os sindicatos dizem que o apoio de 4,47 euros por dia é ridículo.


O incentivo era um cabaz, não tinha só este suplemento. Temos
de estudar por que é que as condições não foram suficientemente
atraentes.

122
Em relação à semana de quatro dias, o sector público já teve esta
experiência. Mobilizou muitos trabalhadores?
A informação da Direcção-Geral da Administração e do Emprego
Público era que não havia praticamente trabalhadores neste regime.
Agora vamos ter de estudar como é que regimes que conferem direitos
a trabalhadores podem ser ajustados às especificidades do Estado. Uma
coisa é uma empresa decidir que passa à semana de quatro dias com ou
sem supressão de horas e outra é a responsabilidade que o Estado tem de
responder a um conjunto de sectores que trabalham 24 sobre 24 horas ou
que têm especificidades próprias, como a educação.

Essa cautela é porque a semana de quatro dias implicaria admitir


mais trabalhadores?
Mesmo que fosse prestar o mesmo número de horas semanais em
menos dias, a rotatividade com que temos de assegurar muitos serviços
obriga a estudar o impacto para perceber como é que o Estado consegue
dar resposta.

Ver mais aqui

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123
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 4
Planeamento

124
“Somos um Estado
com uma grande
miopia estratégica”

125
Em que estado está a administração pública?

As promessas de “reforma de Estado” atravessam governos


— sob diferentes estratégias — ora para emagrecer, ora
para fortalecer os serviços do Estado. Há temas que se
arrastam há décadas. Mais do que diagnósticos é preciso
vontade política e mudar o ónus da discussão para a lógica
do cidadão utilizador e não no prestador de serviços,
apontam ex-governantes

Liliana Borges

V
ista por alguns como “um chavão”, a promessa de “reformar
o Estado” atravessa governos de direita e de esquerda e tem
assumido a forma de comissões, programas de reestruturação
da Administração Central e “guiões”. Consoante a cor
partidária, uma reforma pode passar pelo emagrecimento ou pelo
aumento do tamanho do Estado. Ao longo das últimas décadas, os
exemplos de sucesso e falhanço são transversais aos partidos do poder
e revelam as resistências que existem no caminho de optimização dos
serviços públicos do Estado.
Nas palavras do primeiro-ministro, uma reforma “não é uma folha
de PowerPoint”. A frase de António Costa, proferida em 2017, sintetiza
os complexos processos de reformas, frequentemente arrastados.
O primeiro exercício passa por definir o que é “reformar o Estado”.
Em conversa com o PÚBLICO, o economista e ex-governante António
Bagão Félix recorda que já no Governo de Francisco Sá Carneiro
(entre 3 de Janeiro e 4 de Dezembro de 1980) se falava em reformar o
Estado, desconcentrando o poder do aparelho e descentralizando a
posição política. Também a ex-ministra da Presidência e Modernização

126
Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, lembra que “no final
dos anos 80” as correntes neoliberais então dominantes e o início das
privatizações — que coincidiram com o Governo de Aníbal Cavaco Silva e
com “a ideia de emagrecer o Estado — trouxeram os estudos e promessas
de reforma para a agenda política. Tantas que o ex-ministro das Finanças
fala numa “overdose de diagnósticos”.
“Cheguei a integrar um grupo de trabalho coordenado pela ex-
secretária de Estado da Modernização Administrativa Isabel Corte-Real
sobre a reforma administrativa do Estado em 1993. Já lá estavam as linhas
todas. Trinta anos depois é um bocadinho desanimador que muitas não
tenham saído do papel”, diz.
De lá para cá, as estratégias foram-se adaptando, consoante as
ideologias que alternaram no poder. “Quando essa ideia vem de partidos
mais à direita, normalmente a ideia é reduzir o papel do Estado. Muitas
vezes não é dito, mas durante o Governo de Passos Coelho o que estava
por trás era a ideia de reduzir o número de funcionários públicos”,
descodifica Leitão Marques. “Há muito a ideia de que a reforma do Estado
é menos funcionários”, insiste a socialista.
De facto, em 2013, Paulo Portas, então vice-primeiro-ministro de
Pedro Passos Coelho, apresentava o seu guião para a Reforma do Estado
— que ficaria para a memória pelo enorme tamanho do corpo do texto
e espaçamento entre parágrafos — e afirmava que “reformar o Estado, é
continuar a privatizar”.
Mas a esquerda tem outra visão. “Muitas vezes ouvi os mesmos
partidos que advogavam essas reduções no Estado dizer que tínhamos
funcionários a menos nos hospitais e que as consultas estavam atrasadas,
o que é contraditório”, argumenta Maria Manuel Leitão Marques.
“Quando dizemos que temos de crescer o número de funcionários não
falamos de todos os serviços públicos. Podemos, ao mesmo tempo,
extinguir serviços e criar outros. Essa é a ideia de adaptar o Estado às
circunstâncias”, acrescenta a ex-governante.

127
Em que estado está a administração pública?

João Bilhim, coordenador do Programa de Reestruturação da


Administração Central do Estado (PRACE) que vigorou no primeiro
Governo de José Sócrates, diz que as necessidades de recursos humanos
do Estado nos próximos cinco a 10 anos dependem “do tipo de Estado
que queremos”. “Do que vi dos governos recentes do PS, Portugal vai
precisar de muito, mesmo muito mais efectivos”, considera.
O antigo presidente da Cresap considera que nos últimos anos, a
“pressão exercida” pelos partidos à esquerda do PS fez com que os
socialistas “confundam escola pública com política pública de educação
e estabelecimentos públicos de saúde com serviço nacional de saúde”.
Se assim continuar, diz, “o limite para o aumento dos efectivos será
apenas o das ‘contas certas’ se transformarem em contas erradas”. Mas
não tem de ser assim, defende. “Basta voltar ao PRACE e a alguns dos
seus princípios”, diz.

Maria Manuel Leitão Marques

128
“A produção e distribuição de bens e serviços públicos por organismos
públicos apenas deve ocorrer quando estes não possam ser produzidos e
distribuídos tão bem e de forma mais barata pela sociedade civil através
da sua enorme panóplia de configurações organizacionais. É preciso
voltar a discutir as funções do Estado e que tipo de Estado queremos e
podemos ter. Os anos recentes só trouxeram névoa sobre este debate
pejado de ciladas de pequena política”, considera.
“O Estado não tem de remar mais, tem de pilotar melhor”, atira Bagão
Félix. “O que é que isso significa? Que, em abstracto, tem de ter menos
serviços, mas os que tem têm de funcionar melhor, ter mais autoridade,
mais competências técnicas e ser mais escrutinados”, defende.
Para Bagão Félix, o primeiro passo é definir que “não é a sociedade
que se deve moldar às conveniências do Estado, mas é o Estado que se
deve moldar às necessidades da sociedade” e por isso para uma reforma
ser bem-sucedida “é preciso mudar o ónus da discussão”. “Quando
falamos de reformas na Educação falamos de professores, não falamos

O Estado não tem de remar mais, tem de


pilotar melhor. O que é que isso significa?
Que, em abstracto, tem de ter menos
serviços, mas os que tem têm de funcionar
melhor e ser mais escrutinados
Bagão Félix

129
Em que estado está a administração pública?

João Bilhim

de alunos. E quando falamos de reformas na Saúde falamos mais de


médicos do que de doentes”, analisa.
Além disso, se por um lado há uma “força corporativa dentro do
Estado” que “inquina” as reformas, por outro “a discussão é sempre à
base da ideologia, o que a transforma numa discussão estéril”. “É o caso
da discussão em torno da reforma na Saúde. É uma discussão maniqueísta
que diz que esta solução é boa e a outra é má”. Mas dá mais exemplos.
“Quando há um caso, os políticos dizem que confiam na Justiça, mas
depois todos se queixam da justiça. É um queixar anti-reforma. Não se
mexe no que é necessário: a tramitação e a celeridade”, lamenta. “Somos
um Estado com uma grande miopia estratégica”, diz, recuperando o
exemplo da discussão em torno da construção do “novo” aeroporto de
Lisboa. “Já nos anos 70 se discutia isso”, vinca.
O economista destaca ainda que muitas vezes o conceito de reforma
do Estado é confundido com “pacotes de medidas”. Maria Manuel
Leitão Marques concorda e ressalva que uma reforma exige “mudanças

130
disruptivas” como a que deu origem ao Cartão do Cidadão. “Foi preciso
fazer alterações em várias infra-estruturas essenciais do Estado: nos
registos, nas Finanças, na Segurança Social, no registo dos utentes do
Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, nota, distinguindo estas alterações de
mudanças “mais incrementais” como a redução do papel.
Quer Leitão Marques, quer Bagão Félix concordam com a
importância de apostar na desconcentração e descentralização de
serviços do Estado e de competências. Para Leitão Marques, a “mãe”
do Simplex — o programa destinado a agilizar o funcionamento da
máquina do Estado e a travar a burocracia do funcionamento da
Administração Pública —, a melhor abordagem de reforma de um
Estado “é simplificar e tornar os serviços mais eficientes”. Para que
a reforma tenha sucesso “não deve ser uma abordagem holística”,
defende Leitão Marques. Ou seja, tem de haver “uma abordagem
incremental e contínua”.

Muitas vezes ouvi os mesmos partidos


que advogavam essas reduções
no Estado dizer que tínhamos
funcionários a menos nos hospitais
e que as consultas estavam atrasadas
Maria Manuela Leitão Marques

131
Em que estado está a administração pública?

As resistências e o impacto das crises económicas


Maria Manuel Leitão Marques recorda as resistências que teve de enfrentar
para criar Lojas do Cidadão. “Os serviços não gostam de estar concentrados
num edifício ou de não ter um cartão próprio. Muitas repartições das
Finanças, por exemplo, recusaram mudar-se. Queriam estar na sua
‘quintinha’. Um director da Autoridade Tributária chegou a dizer-me
que na ‘província’ não se justificava ter uma Loja do Cidadão. Discordei.
Todos os cidadãos pagam impostos e merecem um serviço de qualidade e
comodidade, naturalmente ajustado à dimensão de cada território”, conta.
Por outro lado, acrescenta a ex-ministra, os processos devem “ser
geridos pelo centro do Governo, incluindo o primeiro-ministro” e devem
“prestar contas e ser avaliados”. “É preciso ir até ao fim e verificar
se estão a correr bem e os resultados correspondem aos objectivos
definidos”, sublinha. Para isso, é “preciso pôr prazos” e objectivos
concretos, como aconteceu com o Simplex.
Além disso, conclui, um dos segredos do sucesso é envolver
os funcionários dos serviços e não apenas os directores. “Muitas
vezes resolvi problemas a falar com funcionários para perceber os
constrangimentos técnicos. Ninguém gosta de mudar. É preciso mobilizar
e entusiasmar muita gente. E para isso devem incluir-se os envolvidos nos
processos para aliviar resistências”, diz.
Para Maria Manuel Leitão Marques, “muitas destas reformas são um
problema de determinação, vontade política e persistência, não de
investimento”. Por outras palavras, embora as crises económicas constituam
entraves às políticas públicas não devem “servir de pretexto paralisar todas
as políticas públicas e reformas que possa haver”. com Raquel Martins

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132
O futuro que já mora
por aqui precisa
de um Estado
mais qualificado
O futuro da administração pública terá de passar
por melhores qualificações, pela renovação de quadros,
pela captação de novos talentos e tal só será possível
com vencimentos mais altos e mais possibilidades
de progressão, entre outras condições. O estado
da arte visto por três especialistas

Clara Viana

A
s partes do futuro que já se encontram em cima da mesa e as
outras que surgirão, por certo difíceis neste mundo cada vez
mais complexo e incerto, exigem “um Estado forte na sua
capacidade de antecipação e de planeamento estratégico” e
tal só será possível se a administração pública contar com “recursos
humanos qualificados”.
O diagnóstico é do director do novo Centro de Competências de
Planeamento, de Políticas e de Prospectiva da Administração Pública,
Paulo Areosa Feio, que funciona na dependência da Presidência

133
Em que estado está a administração pública?

As alterações climáticas obrigam a ter um Estado muito qualificado

do Conselho de Ministros. E que põe assim o dedo na ferida: “O


extraordinário investimento que o país fez nas últimas décadas na
qualificação dos seus recursos ainda não tem a devida tradução na
administração pública.”
O professor da Nova SBE e consultor António Alvarenga, especialista
em prospectiva, ressalva que existe ainda “gente muito qualificada no
Estado”, cuja “resiliência” admira atendendo às condições que lhes
são oferecidas, mas também ele realça que existem hoje “um conjunto
de incertezas e um conjunto de desafios que exigem um Estado muito
qualificado” no seu todo.
Em vez disso, o que temos por agora é uma administração pública
“envelhecida, em processo de empobrecimento reiterado, devido a mais

134
de 20 anos sem aumentos salariais, e que se encontra profundamente
desmotivada”, destaca o investigador do ISCTE César Madureira, que se tem
dedicado sobretudo às áreas da administração e políticas públicas. A isto
junta-se “a ausência de um diagnóstico profundo” sobre as necessidades e
competências existentes e as que serão necessárias: “Existe a percepção clara
que neste contexto não é possível melhorar a administração pública.”
Para Alvarenga, não é um “fatalismo que o Estado deixe de ser atractivo
para as novas gerações”. “Claro que tem de remunerar melhor, tem de
haver vagas, existir flexibilidade e possibilidade de promoção”. E existindo
essas condições pode “ser muito atractivo para o talento já que o Estado
tem um conjunto de funções com um impacto social enorme”.
Paulo Areosa Feio sublinha que que Portugal precisa de “uma
administração pública rejuvenescida, mais capacitada para apoiar o
desenvolvimento de funções estratégicas do Estado”. Frisa que “os
cenários futuros da administração pública vão resultar das escolhas

De acordo com o que sabemos, seria uma


loucura não nos prepararmos para a
transformação estrutural da sociedade.
Isso significa abranger áreas como a
saúde, segurança social, fiscalidade
António Alvarenga

135
Em que estado está a administração pública?

políticas do presente” e a este respeito considera que o Governo está a


dar “os primeiros passos” nesse sentido com a criação, por exemplo,
de novos centros de competências, como aquele que dirige e que é
conhecido como PlanAPP, “ou a anunciada valorização de qualificações”.
Mas admite que “não há como fugir à questão de que há muito a
fazer, por exemplo, na reconstituição da capacidade técnica do Estado,
em especial nas áreas do planeamento” ou na “capacidade de atrair e
sobretudo reter técnicos altamente qualificados e aptos para lidar com
problemas cada vez complexos.”
O “empobrecimento das administrações centrais, que se revelou
desastroso”, não é um problema exclusivamente português, embora por
cá tenha tido contornos mais gravosos com os cortes efectuado nos anos
da troika e a secundarização ou mesmo extinção dos departamentos com
competências nas áreas do pensamento estratégico e prospectiva.

Preparar o futuro
Mas, só por si, rejuvenescer e qualificar serão insuficientes se não existirem
objectivos e cenários de previsão que moldem as funções que o Estado
deve assumir face a um futuro que também se prevê de emergência e a um
presente que está já marcado por enormes mudanças. António Alvarenga
aponta alguns exemplos: as alterações climáticas, os desafios energéticos,
o envelhecimento da população, as várias transições (digital, energética,
demográfica) e as “grandes surpresas” dos últimos tempos, como a guerra
na Ucrânia ou o Brexit, que ameaçam abrir uma caixa de pandora.
É face a tudo isto que o pensamento estratégico e a chamada prospectiva
se tornam cada vez mais vitais, por se basearem na antecipação de cenários
e com base nisso permitirem que se tracem planos de acção.
“Há uma grande parte do futuro que já está inscrito. Por exemplo, o
envelhecimento da população. De acordo com o que sabemos hoje, seria
uma loucura não nos prepararmos para essa transformação estrutural da
nossa sociedade. E isso significa abranger áreas como a saúde, segurança

136
social ou fiscalidade, entre outras”, aponta Alvarenga.
A prospectiva pode até ser uma área de conhecimento desconhecida
de muitos, mas a necessidade de antecipar o futuro para agir começa
a estar na agenda das sociedades e com impactos esperados. É o que
aponta Paulo Areosa Feio: “Por ventura, como consequência das crises
que se desenvolveram nas primeiras décadas do século ou de catástrofes
naturais de efeitos devastadores, parece evidente que se expande
uma nova consciência social de que há riscos maiores que não podem
continuar a ser desconsiderados. E isso introduz uma pressão positiva,
no sentido de atribuirmos tempo e recursos ao que está para além da
resposta ao problema que despontou esta manhã.”
O director do PlanoAPP alerta, contudo, que “introduzir a perspectiva
do longo prazo nas decisões que hoje se tomam exige novas formas de
envolvimento da sociedade, novas formas de colaboração entre Estado e
sociedade”. É uma das missões do “seu” centro de competências.
Este dirigente salienta ainda que estes “tempos da incerteza, da
volatilidade e da complexidade exigem mais do que os tradicionais

Pela primeira vez, a idade média dos


funcionários de todos os ministérios
é superior a 50 anos e esta realidade
não está a ser valorizada
César Madureira

137
Em que estado está a administração pública?

modelos de previsão”, sendo necessária uma “articulação entre fontes de


conhecimento muito distintas”, o que impõe o desafio de se ser capaz “de
criar as instituições adequadas a navegar nos terrenos da complexidade.”

Empurrar com a barriga


Mas face ao que se sabe sobre o futuro, será que Portugal já se está a
preparar, por exemplo em áreas tão sensíveis como a saúde ou a educação?
“Estamos a empurrar com a barriga”, constata César Madureira, que
aponta de novo para a situação actual da administração pública.
Pela primeira vez, “a idade média dos funcionários de todos os ministérios
é superior a 50 anos” e esta realidade “não está a ser valorizada”, embora
possa “pôr em perigo o funcionamento do Estado social”
ó porque com o aumento da idade o desgaste tende a ser maior, mas
também porque se impede a transmissão de saber entre os que estão a
caminho da reforma e os que vierem a entrar de novo.
Alvarenga deixa outro alerta: se o Estado não for atractivo para novos
talentos, se não houver renovação de quadros, pode ir-se aguentando,
gerindo ou adiando problemas, como por exemplo o da falta de
professores por razões que já se antecipavam há anos, mas há limites
para esta forma de existência. Até porque uma das formas de as coisas
acabarem é esta mesmo: devagarinho.
E não. Este não é um cenário que integre essa “parte do futuro que é
sempre imprevisível por mais trabalho que se faça de antecipação”. Saber
que é assim constitui um dos princípios fundamentais da prospectiva,
esclarece o professor da Nova SBE.

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138
Melhores salários
e rápida progressão:
eles trabalham
na função pública
lá fora
Perseguiram um sector e empregos “com impacto positivo
na sociedade”. São portugueses funcionários públicos
noutros países europeus, o que às vezes os deixa a pensar.
“Se trabalhas em políticas públicas, há sempre um gozo
especial em trabalhar territórios que te digam alguma coisa.”

Reportagem Renata Monteiro

S
empre que corriqueiramente lhe perguntam o que faz,
José Pedro Reis responde que trabalha “para o mayor” de
Londres. Se a resposta provocar suficiente interesse, como
quase sempre provoca, o engenheiro civil do Porto procede a
explicar que trabalha na estratégia económica da Autoridade para a
Grande Londres, órgão descentralizado de governação regional. Está
principalmente focado no plano de recuperação económica da capital
inglesa, pós-pandemia.

139
Em que estado está a administração pública?

“Quando descrevo a minha profissão, quer em Portugal, quer no Reino


Unido, soa mais interessante a quem estou a responder do que dizer ‘sou
técnico superior de administração pública na CCDR-Norte’”, ri-se.
É um preconceito, admite. Uma “visão caricatural do que é um
funcionário público” que acaba por afastar os jovens, como já disse a
secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires.
“Mas a minha percepção é que, aqui, o termo civil service carrega um
prestígio maior do que dizer função pública em Portugal”, acredita.
José Pedro Reis emigrou em 2011, no início da grande vaga migratória
de jovens licenciados dos países do Sul da Europa. Não saiu empurrado
pela falta de oportunidades, “mas pela oportunidade de fazer um
doutoramento com uma bolsa da FCT em Cambridge”, uma das duas
universidades que compõem Oxbridge — aglutinação usada também para
criticar o elitismo dos organismos públicos ingleses.
O civil service, do Estado central, “é
conhecido por recrutar pessoas das
melhores universidades”. Estando
“numa estrutura regional num dos
governos mais centralistas da Europa”,
existem “muitas queixas” quanto à falta
de poderes públicos, até da autoridade
da capital, mas também ali as carreiras
são vistas “com bastante potencial”,
“com muita capacidade de influência”,
“muito dinâmicas”, enumera. “Há
muitas oportunidades para sentirmos
que somos valorizados e que temos
capacidade de ter impacto.”
José Reis, 35 anos, não saiu da
pequena consultora londrina onde
durante quase três anos aconselhou

140
câmaras e sub-regiões do Reino Unido em projectos de desenvolvimento
económico, descentralização e crescimento inclusivo para ganhar menos
no sector público inglês — pelo contrário.
No início de 2019, depois de explorar a academia e o sector privado,
encontrou online a vaga para a equipa que criou a primeira estratégia de
resiliência urbana de Londres, ao abrigo do projecto 100 Resilient Cities,
financiado pela Rockfeller Foundation. Lisboa, mais perto de casa do que
Londres, também estava no programa.
“Se trabalhas em políticas públicas, há sempre um gozo especial em
trabalhar em temas ou territórios que te digam alguma coisa”, diz. Apesar
disso, existem barreiras reais (e outras percebidas) que lhe esmorecem o
desejo de voltar.
“Existem as dificuldades de entrar na Administração Pública
portuguesa, a ideia de que é difícil inovar e a questão do salário. Depois,
grande parte do trabalho que faço seria um cargo de nomeação política
em Portugal”, avalia.

A minha percepção é que, aqui


[Londres], o termo civil service
carrega um prestígio maior do que
dizer função pública em Portugal
José Pedro Reis, principal policy officer

141
Em que estado está a administração pública?

Na entrevista de emprego para o primeiro contrato temporário,


que “sem surpresas” se transformou num vínculo permanente, esteve
presente a vice-mayor com quem trabalhou na publicação da estratégia,
mas José Reis sublinha “que existe uma separação óbvia entre os quadros
políticos e os quadros técnicos”, despegada de “ciclos políticos”.
“Os quadros políticos do gabinete do mayor dependem muito de nós
para fazerem o que querem fazer. Nós é que temos os recursos”, resume.
Já comparou o salário e as responsabilidades que tem com um
técnico superior de um escalão intermédio, em Portugal: “A diferença é
mais do dobro.”
Um licenciado que entre no primeiro cargo “poderá esperar ganhar 40
mil libras por ano (46.840 euros)” e o ordenando acompanha a progressão
de carreira dos mais habilitados: “Se calhar é uma diferença grande entre
Portugal e aqui: o salário cresce muito na administração pública.”
As vagas disponíveis para principal policy officer na GLA (um
funcionário responsável pela gestão de políticas), o cargo de José Pedro
Reis, anunciam um salário anual de 56 655 libras (66.567 euros).
“Estou satisfeito com o meu trabalho, o que não significa que vou ter
uma carreira para sempre na administração pública. Neste momento
estou a ver possibilidades de progredir, interna e externamente”, diz.
“A questão do salário, a dado momento, é secundária. A certa altura da
tua vida estás disposto a abdicar de uma parte do salário para fazeres
uma coisa de que gostes ou voltar para casa. Mas quando é para metade,
fica um bocado difícil.”

O Reino Unido como escolha óbvia


Se pensarmos em jovens portugueses com cursos superiores que
emigram para trabalhar no sector público, Ana Correia faz parte do
grupo mais óbvio.
Guiada por uma das agências de recrutamento internacional que caçam
os estudantes de enfermagem portugueses, a enfermeira de 26 anos caiu

142
“de pára-quedas no serviço de endoscopia” de um hospital do serviço
nacional de saúde inglês (NHS).
“Não aprendemos muito em Enfermagem sobre isso. O que estou a
fazer aqui em Portugal só os médicos é que fazem”, apresenta.
Uma vez que o protocolo com a agência lhe pagou “a viagem, o curso
e exame de inglês, alojamento durante três meses e o primeiro ano de
quotas na Ordem dos Enfermeiros de Inglaterra”, Ana Correia não teve de
“juntar muito dinheiro para ter uma vida estável, nos primeiros meses”.
“Era das coisas que mais me assustava enquanto emigrante: vir para um
país e ficar sem dinheiro.”
Começou em Setembro de 2019 a trabalhar como auxiliar de acção
médica, enquanto não recebia o pin de enfermeira. “A partir daí, tenho
saltado de trabalho para trabalho muito rápido”, conta. “A diferença de
Portugal e Inglaterra, em termos de progressão de carreira, é gigante.”

143
Em que estado está a administração pública?

Um ano depois de ter chegado ao hospital William Harvey, em Kent, já


durante a pandemia de covid-19, passou a coordenar um departamento
e uma equipa de enfermeiros — cargo que no NHS se chama “sister”
(irmã, em português). Em Novembro de 2021, surgiu uma vaga para uma
especialidade e Ana Correia voltou a ficar com o trabalho.
Agora, “é como se fosse estudante a tempo inteiro”. “Neste
momento, o meu hospital está a pagar-me a especialidade”, diz.
Recebe o ordenado para assistir uma vez por semana às aulas
online da faculdade em Liverpool e ir dois dias fazer endoscopias
supervisionadas pelo mentor. No resto das 37 horas que normalmente
trabalha, tem de estudar, participar em formações e completar os
treinos online obrigatórios.
Quando terminar o curso, em Setembro, será uma das primeiras
enfermeiras endoscopistas do hospital e passará para o nível 7 (tabelado
com um salário de entrada anual de 40 mil libras, cerca de 47 mil euros).
Mal entrou na licenciatura, que começou em Aveiro e terminou na
Escola Superior de Enfermagem do Porto, a gaiense já tinha um pé no

Se não me vejo a voltar agora é


porque aqui me dão as condições
que nunca na vida teria no meu país
Ana Correia, enfermeira num hospital
do serviço nacional de saúde inglês

144
Reino Unido — e sabia que tinha de lá pôr o outro antes das restrições
do “Brexit” entrarem em vigor.
Sabia que não queria fazer noites, queria ter os fins-de-semana livres e
trabalhar um horário banal, das 9h às 17h. Isto dá-lhe tempo e orçamento
para ir ao ginásio, ir visitar Londres ou deixar-se ficar pelos muitos
parques do condado a que informalmente chamam o jardim de Inglaterra.
No prédio gigantesco onde vive, num T1 partilhado com o namorado,
a 20 minutos de autocarro do hospital, conhece pelo menos 12 vizinhos
profissionais de saúde portugueses.
Considera as rendas caras, mas não acha “as compras no
supermercado” desajustadas, mesmo com o impacto auto-infligido
do abandono do mercado único da União Europeia e com as pressões
externas da guerra na Ucrânia. O aumento dos preços ainda não a forçou
a fazer “horas extras muito bem pagas”.
“Não vim para aqui com o intuito de ser rica. Queria equilíbrio de
vida e trabalho: por isso as minhas 37 horas estão bem”, ri-se, com um
encolher de ombros.
Os cuidados de saúde em Inglaterra “não são uniformes”, pelo que o
relato da “cultura de valorização” feito por Ana Correia não caracteriza
todos os contextos e experiências. Ainda assim, a enfermeira defende que
a necessidade urgente de enfermeiros bem preparados leva a condições
melhores do que os profissionais encontram em Portugal. “Se não me
vejo a voltar agora é porque aqui me dão as condições que nunca na vida
teria no meu país”, resume, em jeito de justificação.
Também por Inglaterra vê “pressões que existem pela falta de staff ”,
diz. “Às vezes nota-se que as chefias não estão a conseguir resolver os
problemas, o que não deveria transparecer”, comenta. Hesita antes de
dizer que vê racismo.
Num relatório lançado recentemente, o sindicato Royal College of
Nursing sugere que o racismo é “endémico” na área da saúde. Um
inquérito a quase dez mil enfermeiros concluiu que aqueles que são

145
Em que estado está a administração pública?

brancos ou de origem étnica mista têm duas vezes mais probabilidade


de receber uma promoção do que os colegas negros e asiáticos, desde o
início da carreira.
“Não senti tanto comigo, talvez por ser portuguesa, mas há doentes
que não querem ser tratados por pessoas de outras nacionalidades”,
diz Ana, antes de atirar: “Não há é muita maneira de serem só tratados
por ingleses [brancos]​.”

Um jardim-de-infância e uma casa na Finlândia


Na Finlândia, o terceiro Estado europeu com maior proporção de
funcionários públicos (24%, segundo os dados mais recentes do
Eurostat), Cristiana Levinthal, 31 anos, está a começar a segunda
semana de trabalho, enquanto se instala na casa que acaba de comprar
com o marido.
“Em Portugal, não teríamos conseguido sem um fiador”, diz. Estão a
ser dias agitados. Em Junho, ainda não há férias de Verão para as crianças
na creche pública da cidade de Vantaa que agora preenchem os dias
da psicóloga brasileira, com nacionalidade portuguesa. “Era o que eu
queria: fazer uma coisa muito simples e boa de se fazer todos os dias.”
Formou-se na “Lisboa maravilhosa” que não queria deixar. Trabalhou
como psicóloga educacional em dois colégios privados na capital, mas “os
salários baixos” empurraram o marido para um emprego em Helsínquia
e, um ano depois, Cristiana acompanhou-o, com uma candidatura a um
doutoramento em Educação na mala.
Entregue a tese, e com o contrato de seis meses da universidade de
Helsínquia a terminar (o equivalente a uma bolsa, mas com direito a
fundo de desemprego e outras regalias), começou a procurar trabalho.
“Tive um bocado de sorte. Mas sou uma pessoa que vai muito à procura.”
A cédula profissional de psicóloga está dependente de conseguir
passar no exame a finlandês, explica Cristiana, com uma expressão de
terror que não consegue disfarçar.

146
Um bom domínio da língua
era também obrigatório
para a maior parte das vagas
que encontrou no site da
câmara de Vantaa, onde vive,
mas uma rápida chamada
telefónica para o município
deu-lhe uma pista para uma
vaga por anunciar. “Ser [uma
função no sector] público
já me dava uma confiança
maior. Ouço falar bem”, diz.
A directora do jardim-de-
infância com muitas famílias
multiculturais, “que tem o
inglês como língua principal”,
gostou de a conhecer. “Não
me negou por não ter a
formação específica de
educadora de infância, o
Em Portugal, não que é muito comum dos
teríamos conseguido finlandeses”, comenta.
sem um fiador Numa entrevista anterior,
numa creche privada,
Cristiana Levinthal, disseram-lhe que caso
psicóloga na Finlândia fosse aceite seria com
um corte salarial, por não
ter a formação específica.
“Ela foi mais flexível e
valorizou muito a minha
formação”, diz.

147
Em que estado está a administração pública?

O ordenado, 2650 euros por mês, é mais baixo do que os salários


médios no governo central (3670 euros) e no sector privado (3345 euros),
para trabalhadores entre os 30 e os 34 anos, mostram os dados da
instituição nacional de estatística da Finlândia.
Também é mais baixo do que um doutorado pode esperar ganhar no país,
segundo a mesma entidade, mas Cristiana está a gostar do trabalho “com
impacto positivo” a 15 minutos a pé de casa e considera-o uma boa alternativa
enquanto não pode pensar em exercer na área em que se especializou.
“A directora do jardim-de-infância disse que quando tivesse a cédula poderia
recomendar-me para uma vaga dentro do próprio município”, comenta.
Ficou surpreendida por descobrir que não teria intervalos nas 7h30 de
trabalho, que terminam às 16h. “Mas percebi que prefiro almoçar dentro
do horário e sair mais cedo.”
Por agora, é uma de seis adultos focados na aprendizagem através
da brincadeira e cooperação de 40 crianças, dos três aos cinco anos.
Depois de um mês de contrato a termo, um acordo feito para poder ter
férias não pagas durante o mais sossegado mês de Julho — uma “questão
de saúde mental” pós-doutoramento — deverá começar o contrato com a
duração de um ano lectivo. “Hei-de experimentar levar os meninos para
a floresta com -15ºC”, ri-se.

Ver mais aqui

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148
Uma ideia
reconhecida lá fora
que é utilizada por
dois milhões de
portugueses
Chave móvel digital é um dos instrumentos que veio
ajudar a desburocratizar a relação dos cidadãos com
o Estado. Há ferramentas implementadas pelos governos
portugueses que geram interesse em outros países.

149
Em que estado está a administração pública?

Camilo Soldado

H
á uma certa ideia de complexidade quando o assunto
é preencher documentação relativa a impostos, obter
certidões, resolver problemas com a Segurança Social. Com a
digitalização de muitos dos balcões, vários desses processos
ficaram mais ágeis e há uma ferramenta que veio simplificar o primeiro
passo na relação com todos esses serviços: a Chave Móvel Digital (CMD)
começou por ser uma forma simples de autenticação em vários sites
públicos e privados. Passou também a ser possível assinar documentos
digitais com a mesma validade de uma assinatura à mão.
A CMD torna “claramente” a máquina do Estado “mais célere e
mais leve”, diz Alexandra Leitão, ex-ministra da Modernização do
Estado e da Administração Pública, que assumiu a pasta entre 2019
e 2022. De acordo com o portal de dados abertos da administração
pública, desde Julho de 2014 até Fevereiro de 2022, há registo de
3,8 milhões de activações da CDM. A Agência para a Modernização
Administrativa (AMA) refere ao PÚBLICO que, neste momento, há
“mais de dois milhões de CDM activas”. A segurança do sistema foi
reconhecida pela União Europeia “como um meio de identificação
electrónica com o nível de segurança ‘elevado’”, ( juntamente com
sistemas de 18 outros países, nem todos com o mesmo nível de
segurança), refere a AMA.
Mas o percurso não é sempre linear, sublinha a ex-ministra da
Presidência e da Modernização Administrativa entre 2015 e 2019, Maria
Manuel Leitão Marques. O chip que está no Cartão de Cidadão permite
“fazer tudo o que a CMD faz: assinar e autenticar”. Mas a sua utilização
“era tudo menos amigável”, diz. “Era preciso ter o leitor, era preciso
instalar o programa no computador, havia muitos constrangimentos”,
explica a actual eurodeputada. “Também temos que saber lidar com o
fracasso e perceber porque não resultou”.

150
Para apontar outra medida paradigmática que gerou atenção, a ex-
ministra regressa a 2005, quando foi lançada a iniciativa Empresa
na Hora. Leitão Marques, que viria a ser secretária de Estado da
Modernização Administrativa entre 2007 e 2011, refere que há um dado
que permite aferir o impacto desta medida, explica: antes, para se criar
uma empresa, era preciso uma jornada de várias dezenas de dias para se
criar uma; com a criação da plataforma, passou a ser possível fazê-lo em
“menos de uma hora”.
Para o interior da administração pública, uma redução destas oferece
um bom exemplo; para o exterior, permite que haja mais pessoas a
criar a sua empresa “sem medo” e que haja maior rapidez na criação de
empregos. Leitão Marques dá exemplo do Uruguai, que partiu do modelo
português para “implementar algo semelhante”.
Mais recentemente, em Março, outra ferramenta desenvolvida numa
das vagas do Simplex, a aplicação ID.gov, gerou interesse de outros
países europeus, conta Alexandra Leitão, sobre o instrumento que
permite armazenar e partilhar vários documentos emitidos pelo Estado
português no smartphone. Já no final do seu mandato, participou num
encontro de ministros da Administração Pública, em Estrasburgo, para
partilhar novas medidas. “Nós apresentámos o ID.gov e eles [outros
países] ficaram muito interessados”, recorda, dando o exemplo do
governo irlandês. A AMA contabiliza mais de um milhão de instalações
da aplicação id.gov em dispositivos móveis.
Apesar de registar os avanços tecnológicos, a agora deputada
socialista ressalva que, havendo ainda “muita falta de literacia digital”,
o atendimento presencial vai ser “muito necessário durante algumas
gerações”, sob pena de “criarmos uma nova forma de exclusão social,
que é a exclusão digital”.

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151
Em que estado está a administração pública?

O Estado 4.0
fica com quase
75% do PRR para
a digitalização
Portugal é um dos dez países mais bem avaliados no
Governo Electrónico, mas pode melhorar na justiça e
no apoio às famílias. Governo quer os 25 serviços mais
requisitados num único portal.

Victor Ferreira

O
Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) reserva quase 15%
dos 16,6 mil milhões de euros para a digitalização e, dentro
deste pilar, a maior parte (73,58%) irá para a transição digital na
administração pública.
A transição digital tem 2461 milhões no PRR. É a fatia mais pequena de
entre os três pilares (Resiliência, Clima e Digitalização), dividindo-se em
1800 milhões para a administração pública e cerca de 650 milhões para
ajudar na transição digital das empresas.
Em 2018, Portugal ainda era um dos dez melhores no chamado
Governo Electrónico. Os dados do Eurostat mostram, no entanto, que
há espaço para melhorar, sobretudo no que se refere à relação entre a
administração pública e as famílias. Se é preciso fortalecer um Estado

152
4.0, mais digital, de acesso universal e eficaz, então o PRR será uma
importante fonte de investimento até 2026.
Um dos investimentos visa agrupar os 25 serviços públicos mais
procurados no “portal único renovado”, no “centro único de contacto” e
na “rede de atendimento presencial”. A entidade gestora é a Agência para
a Modernização Administrativa (AMA). Essa transição da administração
pública é um “desafio imenso”, destacava a Comissão Nacional de
Acompanhamento do PRR, no seu primeiro relatório.
Mas nem tudo é uma questão de tecnologia. A Direcção-Geral
do Emprego e Administração Pública irá gerir três programas: um
contrato de cerca de 37 milhões de euros para 1500 estágios para
técnicos superiores; e a promoção do teletrabalho e a instalação de 23
espaços de coworking.

153
Em que estado está a administração pública?

Também o Instituto Nacional de Administração gere 34 milhões de


euros para um programa de formação em competências digitais para
trabalhadores e dirigentes públicos.
No total, há 100 milhões para formar pessoas. Outra parte do financiamento
será para rever “modelos de trabalho, que devem ser digitalizados” e fomentar
uma “mudança de cultura” e “o foco nos objectivos”.
Estes objectivos, entre outros, são “mais transparência”, uma “gestão
simplificada das finanças públicas”, “menos carga administrativa e
burocrática das empresas”, a “simplificação do licenciamento”, “tribunais
administrativos e fiscais mais eficientes” e “um atendimento dos cidadãos
e do acesso simplificado aos serviços públicos”.
A maior fatia dos 1800 milhões destinados à administração pública vai
para projectos “de eficiência”. Estão prometidos 579 milhões de euros, de
entre os quais avultam 188 milhões para a reformulação do atendimento
dos serviços públicos e consulares.

154
Depois, estão prometidos 267 milhões de euros para melhorar a justiça
económica e o ambiente de negócios. Será para desenvolver múltiplas
plataformas digitais, do cartão do cidadão aos processos de insolvência
e recuperação, e até mesmo para apoiar investigação criminal e forense.
Quem conhece os tribunais portugueses sabe que até o sistema de vídeo
ou de som nos julgamentos pode ser um problema. No PRR ficou a
promessa de “apetrechamento tecnológico” e de videoconferência para
tribunais, conservatórias e outros serviços da Justiça.
Há ainda 200 milhões para a transição digital na Segurança Social e
mais 43 milhões para a Autoridade Tributária.
“Notamos que 73,58% dos montantes do PRR afectos à área de
Transição Digital são destinados a investimentos a realizar por instituições
da Administração Pública na dependência directa dos Ministérios
Coordenadores [e] 4,07% destinam-se a formação de recursos humanos”,
sumarizava o primeiro relatório daquele órgão quando ainda era
presidido por António Costa Silva, agora ministro da Economia e do Mar.
Portugal tem melhor desempenho digital no apoio às empresas, ao
ensino e à busca de emprego, e tem mais margem de progressão no
acesso digital à justiça e no apoio às famílias. É isso que dizia o estudo
eGovernment Benchmark 2021, preparado para a Comissão Europeia.
Se é certo que há serviços públicos integralmente online, apenas 49%
dos portugueses contactaram serviços públicos na Internet em 2021,
diz por seu lado o Eurostat. Isto coloca o país no último terço da tabela,
liderada Islândia (85%), Suécia (80%) e Estónia (76%).
Essa percentagem é ainda mais baixa (34%) quando se refere à
proporção de portugueses que preenchem e entregam formulários
completos nos serviços públicos através da Internet.

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155
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 5
Corrupção

156
Processos por
crimes de corrupção
em máximos
desde 2011
Em 2021, a PJ recebeu 705 processos e as restantes polícias
mais 100. Combate à corrupção é dificultado pela falta
de estatísticas consolidadas sobre processos levados a
julgamento, condenações e até tipos de crimes.

Maria Lopes

A Polícia Judiciária (PJ) recebeu no ano passado o maior número


de processos por corrupção pelo menos desde 2011. Foram 705 a dar
entrada naquela polícia através da Unidade Nacional de Combate à
Corrupção (UNCC), o que representou um aumento de 40% em relação
a 2020, quando tinham sido registados 502. E a que se soma outro
recorde: em 2021, as restantes autoridades policiais registaram 100
crimes de corrupção, que comparam com os 62 do ano anterior.
Os dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Ministério da Justiça mostram
que no ano passado se inverteu a tendência de redução dos processos
registados na PJ que se mantinha desde 2018. Esse tinha sido o ano com
um número recorde de 688.

157
Em que estado está a administração pública?

Fonte da PJ admitiu ao PÚBLICO que a explicação poderá estar, em


parte, nos milhares de contratos de fornecimento de material para
combate à pandemia que todos os níveis da administração estatal tiveram
que fazer em 2020 e continuar no ano passado.
Dada a urgência para a obtenção dos equipamentos – desde máscaras
a oxigénio, material de limpeza e instalação de centros de testagem e
de vacinação –, houve um recurso persistente ao ajuste directo, por
exemplo, o que em muitas situações motiva conflitos e queixas nas
autoridades policiais. Não há, no entanto, dados oficiais sobre a matéria
factual desses processos, mas não deixa de ser significativo que, num
ano em que o país esteve, em parte, em confinamento, tantos cidadãos
se tenham queixado às autoridades.
Nestes 705 processos entrados na UNCC em 2021, contam-se os criados
de novo mas também os regressados à investigação (por terem sido
reabertos devido a novas informações) e os desaverbados (processos que
originaram uma investigação autónoma, registados por outros órgãos que
não a PJ, normalmente o Ministério Público).
Ao todo, desde 2011, entraram na PJ 4455 processos, com uma
tendência anual crescente desde 2013 até um pico em 2018 e depois uma
redução. No entanto, nas restantes polícias o fluxo tem sido flutuante,
desde os 52 crimes registados em 2012 aos 84 de 2017.

Estatísticas não coincidem


Embora não haja ainda outras estatísticas sobre 2021 relativas à
corrupção (são apenas divulgadas em Outubro), as mais recentes
disponibilizadas pela Direcção-geral da Política de Justiça (DGPJ)
indicam que o número de processos-crime levados a julgamento e
encerrados tem vindo a reduzir-se — devido à pandemia, em 2020
foram apenas 12. Os números da DGPJ não coincidem, porém, com
os divulgados pelo Conselho de Prevenção da Corrupção. Os dados
relativos a 2020 indicam 102 decisões judiciais com prova.

158
Uma das opções legislativas para
o combate à corrupção tem sido aumentar
as penas. São medidas de testosterona.
Do que vale haver penas pesadas
se as pessoas não são condenadas?
José Tavares

159
Em que estado está a administração pública?

A falta de estatísticas concretas é precisamente um dos lamentos de


Susana Coroado, presidente da associação Transparência e Integridade –
Transparência Internacional Portugal. “Ironicamente, uma das medidas
do Governo na estratégia nacional de combate à corrupção é melhorar
as estatísticas da Justiça e fazer estudos. Como é que se desenha uma
estratégia sem dados fiáveis?”, questiona.
E esses rankings internacionais e avaliações regulares de entidades
como o GRECO — Grupo de Estados Contra a Corrupção têm ajudado a
aumentar o combate ao fenómeno? “Os países aderem a essas entidades
e têm que cumprir obrigações que, na verdade são uma forma de fazer
pressão para os Estados agirem. Têm sido o único motivo para [Portugal]
aumentar os instrumentos de combate à corrupção”, considera Susana
Coroado. Mas critica: “Porém, o que temos reparado nos últimos tempos
é que o Governo manipula a informação que dá nessas avaliações, como
aconteceu nos dois últimos relatórios sobre o Estado de direito.”
Embora a corrupção esteja tradicionalmente associada ao sector público,
o desenvolvimento económico de diversos sectores levou a que o fenómeno
também tenha expressão no privado. No entanto, na administração
pública as áreas mais vulneráveis têm vindo a mudar. “Uma vez que já
não é comum o pequeno suborno na polícia, nas finanças, na saúde — já
avançamos bastante nesse campo, o que é muito positivo —, penso que
agora as áreas mais vulneráveis são as que envolvem grandes contratos com
o Estado: obras públicas, contratação pública de grandes valores”, aponta.

Nem penas nem mais leis


Uma das opções legislativas para o combate à corrupção tem sido aumentar
as penas, mas nem Susana Coroado nem o presidente do Conselho de
Prevenção da Corrupção, José Tavares, subscrevem tal estratégia. “São
apenas medidas de testosterona. Do que vale haver penas pesadas se
as pessoas não são condenadas? Eu preferia, por exemplo, medidas de
recuperação de activos para que o dinheiro voltasse para o Estado.”

160
O também presidente do Tribunal de Contas – o crivo de muitas
autorizações de alta despesa pública — considera que mais leis “só
criam dificuldades na sua interpretação e aplicação”. “As que regulam
e disciplinam o fenómeno da corrupção e infracções conexas são
suficientes. O importante é que as instituições de investigação e de
julgamento, mas também as de prevenção, façam o seu trabalho da
melhor forma e com a maior celeridade possível.”
Um dos exemplos apontados como ilustrativo dos atrasos na Justiça
nesta área é a Operação Marquês, no âmbito da qual o Ministério Público
imputou 31 crimes ao antigo primeiro-ministro José Sócrates (de um total
de 189 crimes distribuídos por 28 arguidos), sendo que este acabará por
ser levado a tribunal apenas por seis depois de Ivo Rosa ter feito cair os
três crimes de corrupção.
Questionado sobre se o aumento sucessivo de processos de crimes
de corrupção representa um crescimento do fenómeno ou apenas da
sensibilidade da sociedade para o tema, José Tavares acredita que “o grau
de percepção da corrupção é superior à que realmente existe”. E que a
educação é a base da prevenção do fenómeno — porque “a educação, a
ciência, a cultura e a ética são as bases do desenvolvimento”. O conselho
recomendou, em 2008, que todas as instituições públicas criassem planos
de prevenção de riscos de corrupção e todos os meses fazia uma visita
inspectiva a uma entidade de maior relevância financeira que abrangeram
mais de nove mil dirigentes e técnicos do sector público, recorda o
presidente. “Temos a noção de que se não houvesse acompanhamento,
os planos teriam morrido.”
Susana Coroado preferia uma aposta na prevenção com instrumentos
como “os impedimentos de conflitos de interesses dentro das instituições
— no Governo e AR e depois, em cascata, na administração pública — com
sanções, aumento das medidas de transparência como a regulamentação
do lobbying, mais dados sobre os escritórios de advogados que fazem as
propostas de lei, e sobre contratação pública”, elenca.

161
Em que estado está a administração pública?

Ambos discordam que a chegada do Plano de Recuperação e Resiliência


e do novo quadro financeiro plurianual — que trará cerca de metade
do dinheiro que o país pediu à troika — possa abrir uma nova caixa de
Pandora, como aconteceu nos anos 80 e 90 com os fundos europeus.
“Os dois programas têm todos os instrumentos necessários para que
o dinheiro seja efectivamente aplicado nos fins a que se destina. Há
um quadro legal e instituições de acompanhamento e controlo para o
assegurar — e na parte que toca ao Tribunal de Contas é o que faremos”,
promete José Tavares.
A presidente da Transparência realça que já se sabe que a maior
percentagem do dinheiro vai para o sector público e, por isso, o problema
aqui foi “o que não se fez em antecipação: as prioridades foram pouco
discutidas, assim como a forma de escolher os destinatários e os
projectos, e podem já ter sido capturadas por alguns interesses”. Ainda
que haja “muitos mecanismos e comissões de monitorização”, o receio
de Susana Coroado é que “se atrapalhem uns aos outros e não tenham os
meios humanos e técnicos para um controlo eficaz”.

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162
Nível salarial
dos políticos e
corrupção: “Não
podemos ligar estas
duas questões”
Presidente da República e primeiro-ministro ganham cerca
de três vezes o salário médio nacional, o que os coloca num
patamar inferior à maioria dos países da União Europeia

163
Em que estado está a administração pública?

Maria Lopes

À
velha pergunta sobre se os políticos portugueses ganham
muito ou pouco a resposta continua a não ser consensual,
mas tanto o presidente do Conselho de Prevenção da
Corrupção como a presidente da associação Transparência
e Integridade afastam uma relação directa entre o nível dos salários e o
fenómeno da corrupção.
“Não podemos ligar essas duas questões. A corrupção e as infracções
conexas prendem-se com valores e princípios fundamentais, como a ética
em sociedade, e não com salários”, defende José Tavares. “É por isso que
tem sentido que haja mecanismos de defesa da sociedade como são os
instrumentos de controlo e prevenção.”
“Essa é uma pergunta a que a ciência política tenta responder há anos
sem o conseguir”, avisa Susana Coroado. “Ainda que os baixos salários
possam, de alguma forma, estimular e abrir a porta a que quem tem
alguma necessidade financeira se sinta tentada a aceitar um suborno ou
desviar dinheiros públicos, a verdade é que, se olharmos para os casos
de corrupção mais mediatizados nos últimos anos, não estamos a falar
de pessoas que ganham pouco. São pessoas de altos cargos do sector
financeiro ou de antigos monopólios estatais, por exemplo”, lembra a
presidente da associação Transparência e Integridade.
Ou seja, não se consegue desenhar um perfil económico-financeiro
típico do agente corrompido e do seu corruptor. “Não me parece que se
encontre uma relação directa entre os rendimentos e a corrupção.”
Quando comparados com o salário médio ou mesmo com o salário
mínimo, percebe-se que os níveis de vencimentos dos principais
políticos portugueses ficam abaixo da generalidade dos seus congéneres
europeus. De acordo com um estudo comparativo da IG, uma consultora
britânica de mercados financeiros, com valores relativos a 2018, entre 32

164
países da OCDE, António Costa era o 28.º no rácio entre o salário bruto
de primeiro-ministro (sem despesas de representação) e o salário médio
do país (que era de cerca de 1700 euros na altura): ganhava três vezes o
salário médio nacional.

Salário ilíquido com despesas de representação


Valores em euros

Salário mínimo
Parlamento Europeu
Eurodeputado 9166 (+ 4778 de subsídio)

Assembleia da República
Deputado 3668 705
Deputado em exclusividade 4054 (+ 386 de subsídio)
Vice-secretário da Mesa da AR 4247
Presidente de comissão 4247
Secretário da Mesa 4440
Presidente de grup. parlam. 4440
Membro do cons. admin. 4633
Vice-presidente da AR 4633
Presidente da AR 8339

Câmara municipal
(a tempo inteiro) Presidente Vereador
Lisboa e Porto 5272 3880
Mais de 40 mil eleitores 4793 3534
Entre 10 mil e 40 mil eleitores 4313 3180
Restantes 3834 2827

Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa 10.424

Governo português
António Costa (prim.-minist.) 7818 705
Ministro 6774
Secretário de Estado 6022
Subsecretário de Estado 5095

Governos de outros países


Pedro Sánchez (Espanha) 7211 1000
Boris Johnson (Reino Unido) 13.592 1936
Mario Draghi (Itália)* 7857 não se aplica
Xavier Bettel (Luxemburgo) 16.642 2313
Olaf Scholz (Alemanha) 29.500 1840

*Abdicou do salário Nota: salários dos políticos portugueses mantêm uma redução de 5% desde 2010

165
Em que estado está a administração pública?

Por curiosidade, o índice era encabeçado pelo mexicano Enrique Peña


Nieto, que ganhava quase onze vezes o salário médio do país. Mas, por
exemplo, em Espanha esse rácio era de 2,62; na Grécia de 3,28; na Irlanda
de 4,54; em França de 5,13; na Turquia de 5,79; e na Suíça o primeiro-
ministro ganhava oito vezes o salário médio.
Em termos gerais, os cinco políticos com os maiores salários eram o
então chefe de Governo australiano Malcolm Trunbull (428 mil euros
anuais), o suíço Alani Berset (391 mil), Donald Trump (324 mil), Angela
Merkel (300 mil) e a neozelandesa Jacinta Ardern (276 mil).
Nos chefes de Estado, a lista era encabeçada pela realeza: a rainha
Isabel II (87 milhões de euros anuais), o rei Filipe da Bélgica (11,7
milhões), a rainha Margarida II da Dinamarca (11 milhões), o imperador
japonês Akihito (2,5 milhões) e o rei Guilherme Alexandre dos Países
baixos (888 mil). No pólo oposto estava o Presidente checo Miloš Zeman
cujos então 9947 euros anuais eram metade do ordenado médio do país.
Abaixo dos cerca de 78 mil euros de Marcelo Rebelo de Sousa apareciam
os seus homólogos esloveno, estónio, húngaro, letão e polaco.
No Parlamento Europeu, o salário base bruto (9166,3 euros; 7146,11
líquidos) e o subsídio para despesas do gabinete (4778 euros) são iguais
para todos os eurodeputados — a única diferença poderá ser na taxação
final no país de origem dos parlamentares.
Em Portugal, os altos cargos políticos são os únicos que mantêm
um corte de 5% no seu vencimento desde 2010, e os salários (e as
despesas de representação que lhes estão indexadas) são actualizados
de acordo com o estabelecido para a função pública — ou seja, este ano
têm também um aumento de 0,9%. O mesmo corte esteve aplicado
aos membros dos gabinetes dos políticos (da administração central
até à local) mas foi eliminado progressivamente a partir de 2018 e
desapareceu no final de 2019.

166
Centeno entre quem ganha mais do que Marcelo
A hierarquia dos vencimentos dos políticos está estabelecida numa lei
de 1985, todos indexados ao do Presidente da República: o presidente do
Parlamento ganha 80% do Presidente da República, o primeiro-ministro
75%, os ministros 65%, os secretários de Estado 60%, os sub-secretários
de Estado 55%, os deputados 50%, os presidentes das câmaras de Lisboa e
Porto 55%, os dos municípios que têm mais de 40 mil eleitores 50%, entre
10 mil e 40 mil 45% e os restantes 40%; os vereadores a tempo inteiro
ganham 80% do presidente do seu município.
Há três anos, quando promulgou o novo Estatuto dos Magistrados
Judiciais que (por proposta do PS) permitiu aos juízes ganharem mais
que o primeiro-ministro e aumentou os juízes conselheiros de tribunais
superiores em 700 euros, Marcelo Rebelo de Sousa avisou para o
acentuar da “desigualdade de tratamento” e criticou a “multiplicação
de responsáveis públicos” com salário acima do chefe de Governo. Na
verdade, não faltam exemplos acima do seu salário: o governador do
Banco de Portugal, Mário Centeno, ganha 17.130 euros; na administração
da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, a
presidente recebe 11.557 euros, o vice 15.440 e o vogal (o ex-ministro da
Economia Manuel Caldeira Cabral) 10.691 euros.

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167
Em que estado está a administração pública?

Capítulo 6
Defesa

168
O imbróglio de umas
Forças Armadas
sem efectivos e com
poucos recursos
Serão as actuais sociedades receptivas aos valores da
hierarquia e disciplina que moldam os exércitos. Ou a falta de
vocações castrenses é a consequência deste novo tempo?

Nuno Ribeiro

É
uma política de Estado, e de soberania, que tem suscitado planos,
mudanças, contestações várias, com uma peculiar situação.
Falta de recursos humanos, salários baixos e várias formas de
contabilizar efectivos.
Em entrevista ao PÚBLICO, em Dezembro de 2019, a então recém-
empossada Directora do Instituto de Defesa Nacional (IDN) e hoje
ministra da pasta da Defesa, Helena Carreiras, fez um diagnóstico
certeiro sobre a situação das Forças Armadas. “Os jovens nas
Forças Armadas não devem ser mão-de-obra barata”, disse, com a
experiência de ter tido um papel relevante no Plano de Acção para a
Profissionalização apresentado em Abril daquele ano, cujo objectivo
era resolver a falta de vocações castrenses.

169
Em que estado está a administração pública?

Na análise poliédrica das insuficiências que fez, a então primeira


directora do IDN, e socióloga perita em temas militares, aliou questões
demográficas, que diminuem a base de recrutamento, a civilizacionais.
Admitiu um certo afastamento das sociedades contemporâneas das
Forças Armadas e não esqueceu as implicações do fim do serviço
militar obrigatório e da profissionalização, em Novembro de 2004,
sob o impulso das juventudes partidárias do PS e do PSD. Destacou
questões culturais das novas gerações que as afastaram das normas
da vida castrense e da cultura militar — disciplina e hierarquia — e a
inexistência nos currículos educativos de vinculação de valores como
Pátria, Soberania e Cidadania.
Mas também elevou a fasquia. A exigência de pessoal mais
qualificado, voluntário ou contratado, para determinadas tarefas que
não podem ser desempenhadas por soldados. Requerem técnicos,
como sargentos, e outros graus de especialidade. Ou seja, não serve
qualquer um, o que torna as opções de recrutamento mais limitativas e
cria um verdadeiro imbróglio.

Os números
Segundo os números facultados ao PÚBLICO pelo Ministério da
Defesa Nacional a 6 de Maio último, em 2021 o total de efectivos
das Forças Armadas nos três ramos era de 29.980, dos quais 11.153
contratados. No ano anterior, eram dez mil os contratados para um
total de 29.076. Já em 2019, para 29.346 efectivos, estavam em regime
de contratos 9739. E, em 2018, havia 10.511 contratados para um
total de 29.921. Só em 2017, o valor global de efectivos ultrapassou a
constância dos 29 mil — foram, então, 30.510 —, com os em regime de
contrato a serem 10.867.
No entanto, segundo os números da Associação de Oficiais das
Forças Armadas (AOFA), com base nos dados oficiais da Direcção-
Geral de Administração e Emprego Público, em 2021 os efectivos eram

170
Efectivos nas Forças Armadas
TOTAL GERAL 20.297 Total do quadro permanente Total em regime de contrato
14.386
5911
4935 283 776 8392
Activo Reserva Reserva fora Reforma
efectividade da efectividade

Total do quadro permanente Total em regime de contrato


OFICIAIS SARGENTOS PRAÇAS

492
308
66

3566 6095 4760 5111


2068 Activo 8225 2867
170
Reserva 113
291 efectividade 485
66
Reforma Reserva fora
da efectividade Reforma

Evolução
Evolução dos efectivos
dos efectivos Remuneração-base
Remuneração-base médiamédia mensal
mensal bruta:bruta:
globais das Forças Armadas
globais das Forças Armadas ForçasForças Armadas
Armadas em comparação
em comparação
e comparação
e comparação com as
com as com Forças de Segurança
com Forças de Segurança
Forças
Forças de Segurança
de Segurança Valores
Valores em euros
em euros

GNR — oficiais
GNR — oficiais 2555,32555,3
35.000 35.000
PSP — oficiais
PSP — oficiais 2205,62205,6
Forças Forças
ArmadasArmadas Polícia Judiciária
Polícia Judiciária 2115,9 2115,9
30.000 30.000 Serviço Serviço
de Estr. de Estr. e Fronteiras
e Fronteiras 2064,72064,7
GNR— sargentos
GNR— sargentos 1897,2 1897,2
25.616 25.616
Forças Armadas
Forças Armadas — oficiais
— oficiais 1860,6 1860,6
25.000 25.000 PSP — chefes
PSP — chefes 1827,6 1827,6
GNR GNR 22.30922.309 Média
Média da dapública
admin. admin. pública 1527,4 1527,4
Forças Armadas
Forças Armadas — sargentos
— sargentos 1440,9 1440,9
20.000 20.000 PSP — agentes
PSP — agentes 1398,9 1398,9
PSP PSP 20.70820.708 GNR — guardas
GNR — guardas 1498,9 1498,9
Guardas-prisionais
Guardas-prisionais 1074,3 1074,3
15.000 15.000
Polícia Municipal 1026,6 1026,6
Dez.Dez.
Dez. Dez. Dez.Dez.
Dez.Dez.
Dez. Mar.
Dez. Mar. Polícia Municipal
2011 1320111513 17 15 1917 19
22 22 Forças Armadas
Forças Armadas — praças — praças 823,9 823,9

171
Em que estado está a administração pública?

Estrutura etária das Forças Salários


25.616, menos 4364 dos que os indicados
Armadas Valores brutos em euros
No quadro permanente
pelo Ministério. O mesmo acontece nos
anos de 2020, 2019, 2018 e 2017. E, sublinha
Valor mais alto
Menos de
20 anos
536 António5654,73Mota, da AOFA, no primeiro
20-24 3607 trimestre do corrente ano já foram perdidos
25-29 2031 500 novos efectivos.
30-34 971
Há falta de um Anuário, que não é
35-39 876
publicado desde 2014, a discrepância dos
40-44 742 Tenente-general
números que leva a esta confusão do total
45-49 685
de efectivos tem uma razão de ser. “Há
50-54 1045 Valor mais baixo
três formas de contabilizar o número de
55-59 529 883,58
104
efectivos, a começar pelos que estão em
60-64
Soldado em
65-69 3 formação, o que implica que não recebem
regime de voluntariado
complemento de condição militar, mais os
que estão na reserva e podem ser chamados
Salários à efectividade, e os que estão prontos”,
Valores brutos em euros
explica, ao PÚBLICO, Lima Coelho, da
Valor mais alto Associação Nacional dos Sargentos. Nesta
5654,73 selecção, existe um critério economicista.
A evolução, anota a AOFA, foi de perda
de mil efectivos entre 2011 e 2019, e o
acréscimo em 2020 deveu-se ao facto de,
Tenente-general
em plena covid-19, o Governo ter dado
indicações para que fossem prorrogados
Valor mais baixo os contratos dos militares que, naquele
883,58 ano, os terminavam, para continuarem a
desempenhar as funções de apoio à luta
Soldado em
regime de voluntariado contra a pandemia.

172
Os salários
A questão remuneratória das Forças Armadas tem vários aspectos de
défice. A tabela salarial das praças “arranca” com 871,99 euros brutos,
sendo que 705 são a base de salário mínimo nacional e o restante de
suplemento da condição militar. Depois, um soldado aufere 883,58 euros,
o cabo 940,25 e tem o topo do seu vencimento em 1022,7 euros.
Estes valores são sempre inferiores aos agentes da PSP e das polícias
municipais, aos guardas da GNR, o que não torna a carreira competitiva.
O salário mínimo nacional nas praças é também inferior ao dos
bombeiros profissionais.
A taxa de retenção das praças sofre de uma regressão na carreira se
comparada com as forças de segurança ou das empresas de segurança,
que é o destino mais comum das praças depois do final dos contratos.
Fizeram a formação nas Forças Armadas e, depois, vão servir na polícia,
GNR e em serviços privados.

173
Em que estado está a administração pública?

Assim, segundo os cálculos de Ângelo Correia, antigo responsável


da Defesa do Conselho Estratégico Nacional do PSD de ex-ministro da
Administração Interna, faltam quatro mil praças nas tropas especiais
comandos e pára-quedistas. No entanto, o Governo, acentua, não
aumentou o número de praças mas, entretanto, fez concursos para mais
2500 agentes da PSP e outros 2500 da GNR.
Comparando, em valores brutos, os rendimentos mínimos, máximos
e a média nas Forças Armadas, têm a seguinte pirâmide: mais alto —
Tenente-General, 5654,73 euros; Mais baixo — soldado em regime de
voluntariado, 871,99; Média — 1544 euros.
“Pelos sinais que nos vão chegando, a questão das verbas está muito
limitada no que é fundamental, que é o factor humano”, lamenta Lima Coelho.
“A ministra disse que em 2023 vai haver alterações, pelo que a AOFA tem uma
reunião agendada para Setembro”, anuncia António Mota. “Seria bom haver
um quadro de praças no Exército e na Força Aérea, mas para tanto é preciso
aumentar vencimentos”, reflecte. Mais uma vez o Orçamento atravessa-se
nas expectativas. Quanto à audiência pedida pela associação de oficiais ao
Presidente da República, na sequência das preocupações manifestadas por
Marcelo Rebelo de Sousa no discurso do 25 de Abril, continua não agendada.

Problemas de conceitos
Aquando do chumbo pela Assembleia da República da primeira versão
do Orçamento do Estado para 2022, que ditou a queda do Governo e
a convocatória de eleições legislativas antecipadas, em declarações ao
PÚBLICO o ministro João Gomes Cravinho lamentou que tal incidência
tenha adiado a discussão do futuro Conceito Estratégico de Defesa
Nacional. O que Gomes Cravinho pretendia era um modelo mais
próximo do anglo-saxónico, no seguimento, aliás, da aprovação da nova
Lei de Organização de Bases das Forças Armadas (LOBOFA). Tinha,
inclusivamente, pensado uma estrutura dividida em dois sectores: um de
“sábios” e académicos; e outro de executivos.

174
No entanto, o Ministério da Administração Interna vai avançar com
o seu próprio conceito de segurança. “Misturar Segurança com Defesa
começa a criar sérias dificuldades na separação de fronteiras, o que cria
complicações na própria condição do que é ser militar”, observa Lima
Coelho. “Convém que haja um equilíbrio entre uma coisa e outra, e não é
isso que temos visto”, assegura o líder associativo dos sargentos. “Desde
a queda do muro de Berlim houve um desenvolvimento militar, mas a
partir dos atentados de 11 de Setembro houve um incremento das forças
de segurança, numa espécie de pêndulo que ainda não encontrou o seu
ponto de equilíbrio”, comenta.
“A Defesa não dá votos”, dizem os militares, contrapondo à
segurança interna. “As Forças Armadas chegaram a ser um elevador
social, mas não há sensibilidade financeira no Governo para a Defesa”,
garantem. E chegam a um extremo acusatório: “António Costa sempre
teve aversão à Defesa.”

175
Em que estado está a administração pública?

“O Governo prefere a segurança interna”, corrobora Ângelo Correia.


“Se este ano, em 2022, com a guerra e a crise da NATO não respondemos,
quando vamos responder?”, interroga-se.
“A ministra Helena Carreiras vai ter pela frente um grande desafio,
conhece o meio castrense, é competente, mas é a ministra das Forças
Armadas, terá peso político para ser ministra da Defesa?”, questiona Proença
Garcia. Dito de outra forma, haverá ligação das necessidades militares à
produção nacional, na Educação haverá aulas de identidade nacional.
“Temo que o conceito Estratégico Nacional de Segurança e
Defesa pensado por Gomes Cravinho seja secundarizado a favor da
Segurança”, continua o professor Associado do Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica e ex-conselheiro militar na NATO,
que, enquanto vice-coordenador de Defesa Nacional do CEN do PSD,
apoiou o ex-ministro socialista na LOBOFA.Que modelo?“Penso que
temos de agir em função das alterações profundas feitas na Bússola
Estratégica da União Europeia [com um plano ambicioso para reforçar
a política de Segurança e Defesa] e do que vai ser concluído no final

Temos de clarificar o que queremos


das Forças Armadas, esta é uma questão
que não pode ser tratada em abstracto
Marcos Perestrello, presidente da comissão
parlamentar de Defesa Nacional

176
deste mês na cimeira de Madrid com o conselho Estratégico da NATO”,
pondera o socialista Marcos Perestrello, presidente da comissão
parlamentar de Defesa Nacional.
“O novo Conselho Estratégico Nacional vai determinar a futura Lei de
Programação Militar (LPM), só então estará definido o que se pretende
das Forças Armadas na opção da política externa, só depois se vão
disponibilizar os recursos necessários”, refere. “É o que faz sentido neste
ambiente em que a Europa actualmente se movimenta”, insiste o ex-
secretário de Estado da Defesa Nacional.
O deputado do PS nega qualquer contradição entre Segurança —
interna — e Defesa — externa. Há sempre aspectos próprios, mas tudo é
segurança, não estão em conflito e ambas são necessárias até porque os
recursos vêm todos do mesmo sítio”, dos contribuintes”, assinala. “Assim,
temos de clarificar o que queremos das Forças Armadas, esta é uma
questão que não pode ser tratada em abstracto”, conclui.

177
Em que estado está a administração pública?

“Há que definir uma LPM que responda ao que queremos”, concorda
Proença Garcia. As prioridades estão definidas. “O grande desafio é
recrutar e reter, manter a carreira atractiva, não precisamos de mais
equipamento mas pôr a funcionar o que há, das fragatas aos navios
patrulha oceânicos feitos em Portugal, com transferência tecnológica para
as academias e empresas de forma a que o investimento seja produtivo
e não comprado através das agências da NATO”, prossegue. Executar a
LOBOFA e olhar para o mar são outras das prioridades.
As Forças Armadas dividem-se, modernamente, em dois sectores: as
tecnológicas e as menos tecnológicas, com uma diferente relação nos
seus componentes. Nas primeiras, existe um ratio de um oficial para três
sargentos e seis praças. Nas segundas, tal relação é de um oficial para
quatro sargentos e dez praças. “Dada a escassez de efectivos, o ratio
português é de um oficial para 1,3 sargentos e 1,67 praças”, assegura Ângelo
Correia. A opção do modelo tem de combinar as necessidades com os
compromissos, os meios com a sua escassez. É este o imbróglio da Defesa.

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178
Servir Portugal,
acima ou
apesar de
tudo? O que
leva os jovens a
seguir as Forças
Armadas
Se para uns o universo militar é ainda desconhecido,
é lá que outros encontram os valores que procuravam.
Com a noção de que são “poucos”, e que “a mesma
profissão noutro contexto possa até ser mais bem
remunerada”, há quem fique. E há quem saia.

179
Em que estado está a administração pública?

Reportagem Inês Silva (texto), Daniel Rocha,


Nuno Ferreira Santos e Nelson Garrido (fotografias)

N
unca pensei entrar para as Forças Armadas”, começa por dizer
Pedro Costa. A oportunidade surgiu numa fase em que não
estava “feliz” com o emprego que tinha numa fábrica na área
da tecnologia mecânica, e um panfleto conduziu-o até ao site de
recrutamento do Exército. “Depois de me informar, fiquei interessado e
quis mesmo dar o meu máximo para conseguir entrar.”
E conseguiu. Entrou no limite de idade — aos 24 anos — para a categoria
de praça. Fez duas missões no estrangeiro: uma no Afeganistão, em 2018,
outra na República Centro-Africana, em 2020. Agora, findo o contrato de
seis anos, e sem vontade de seguir carreira nas forças militarizadas, não
sente “saudades da instituição”. “Sinto é falta de voltar a esses teatros [de
operações], a esses sítios, porque me sentia útil e realizado.”

180
As “missões a nível internacional” são também “um sonho” para Mónica
André. “Quando terminar a Academia, gostava bastante de ir lá para fora
e poder dar o meu contributo”, refere a aluna do 3.º ano do mestrado
integrado em Ciências Militares da Academia Militar do Exército.
A cadete de 21 anos acredita que, apesar de Portugal não ter nenhum
conflito activo, a guerra que acontece na Ucrânia pode despertar nos
jovens a vontade de se alistarem. “Penso que aquilo a que [os jovens]
têm assistido na televisão seja um factor motivacional para ingressar nas
Forças Armadas e querer naturalmente servir o país, porque é esse o
nosso objectivo.”
O propósito de serviço público é chamativo, mas será que a carreira
militar continua a ser atractiva para os jovens?

Escolher a formação militar


Quando tomou a decisão do percurso que iria escolher no ensino
superior, David Castro não tinha “qualquer conhecimento das academias

181
Em que estado está a administração pública?

militares”. Na altura, acabou por ingressar na licenciatura de Direito, em


Coimbra. “Não me sentia terrivelmente mal no curso, mas percebi que
não era aquilo que eu queria para o meu futuro”, conta o agora aspirante,
no 5.º ano do mestrado integrado de Marinha, na Escola Naval.
Diogo Sequeira, de 23 anos, chegou à mesma conclusão. Após passar
um semestre no curso de Finanças, e só depois de terminar uma
licenciatura em Treino Desportivo, é que decidiu “ir para o Exército e,
mais especificamente, para os Comandos”.
A motivação de ambos — e de todos os jovens com que o PÚBLICO
conversou — foi o gosto pelo desafio, o fascínio pela aventura e a atracção
pela disciplina, rigor, camaradagem e lealdade. Acima de tudo, a vontade
de servir Portugal.
No caso de David Castro, houve um outro factor que pesou na decisão.
O jovem de 26 anos, natural de Almada, não queria que a “mudança de

Durante este tempo [seis anos] em que


eu vou estar em formação, não pago
propinas, tenho alojamento, não pago
alimentação, não pago literalmente nada
e até recebo uma ajuda de custo
Marina Cantarelli

182
escolha profissional ou académica viesse a acarretar ainda mais custos” para
os pais. “As academias [das Forças Armadas], ao serem isentas de propinas,
acabaram por também se tornar atractivas por esse motivo”, refere.
“Durante este tempo [seis anos] que eu vou estar em formação, não
pago propinas, tenho alojamento, não pago alimentação, não pago
literalmente nada e até recebo uma ajuda de custo”, concorda Marina
Cantarelli, que iniciou, este ano lectivo, o caminho para se tornar
engenheira aeronáutica, na Academia da Força Aérea. Com 18 anos e um
padrasto que é militar, Marina cresceu no Montijo, onde “há a Base Aérea
N.º 6”. “Sempre vi muitas aeronaves a passar e fascinava-me o facto de
aquelas coisas enormes estarem a voar”, conta.

183
Em que estado está a administração pública?

“Ninguém sabia o que era a Escola Naval”


Existem diferenças entre as instituições militares de ensino e as
universidades civis. “Provavelmente, as pessoas da faculdade chegam ao
fim do dia de aulas, vão para casa, vão estudar, fazer o jantar, estar com
a família, ir para o café com os amigos e aqui [na Escola Naval] há outro
tipo de actividades”, diz Margarida Moita. À vertente académica aliam-se
a parte física e, claro está, a componente militar.
A cadete de 20 anos encetou, em 2021, o seu percurso militar em
Administração Naval. O avô era fuzileiro e “sempre contou muitas
histórias da vida dele, desde que era praça até chegar a oficial”. “Acho que
foi isso que me deu motivação
e vontade de experimentar
esta vida”, afirma Margarida.
No momento de revelar
a decisão ao círculo mais
próximo, o que encontrou foi
desconhecimento. “Quando
eu efectivamente falei com os
meus amigos, ninguém sabia
o que é que era a Escola Naval
e o que é que eu ia fazer. Tive
de lhes explicar que ia tirar
um curso superior, mas numa
universidade militar, em que
obedecia a regras de forma
um bocadinho diferente do
que é estar na vida civil.”
Esperar-se-ia que o fosso
que separa os jovens do
mundo militar, cavado pela
falta de informação, seja

184
colmatado pelo Dia da Defesa Nacional (DDN), que, por definição, “visa
sensibilizar os jovens para a temática da defesa nacional e divulgar o
papel das Forças Armadas”, mas o ex-militar Pedro Costa, de 30 anos,
conta que, enquanto estava ainda no Exército, durante “dois ou três
meses” recebiam no quartel “cerca de 100 a 150 ‘miúdos’”, a propósito
do DDN, e o que notava era desinteresse. “Ficavam a olhar para nós, não
faziam perguntas, não faziam nada”, lamenta.
No estudo da Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional, Os Jovens
e as Forças Armadas, realizado em 2018, cerca de 80% dos inquiridos
referiram “ter gostado, ou gostado muito”, do Dia da Defesa Nacional.
No total, a edição desse ano contou com a presença de 102.919 jovens,
“dos quais resultaram 66.566 inquéritos, correspondendo a uma taxa de
cobertura de 64,7%”.
Para José Rocha, aluno do 4.º ano do curso de Piloto Aviador da
Academia da Força Aérea, o DDN não foi o ponto de viragem. Ainda
assim, permitiu “conhecer e orientar melhor, dentro dos ramos que
existem nas Forças Armadas, para a vertente da Força Aérea”. “Não tenho

Para o trabalho e
influência que temos no
país, ao nível de praças
ganhamos muito pouco
Pedro Costa, ex-militar

185
Em que estado está a administração pública?

uma imagem negativa nem olho para o Dia da Defesa Nacional como uma
obrigação que apenas tem que se cumprir”, afirma.
À luz dos recentes debates que concernem o futuro do serviço militar
em Portugal, incluindo o ressurgimento do serviço militar obrigatório
— já afastado pela ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras —, têm-
se discutido novas modalidades de envolvimento dos jovens com as
Forças Armadas. Margarida Moita, cadete da Escola Naval, crê que “todos
deveriam ter pelo menos uma semana em que tivessem noção do que é
a vida militar”, até porque, segundo a própria, “há valores que se têm
vindo a perder ao longo dos tempos”.

“Para o trabalho que temos, ganhamos muito pouco”


A falta de efectivos é uma preocupação para a qual o Estado tem sido
alertado. Segundo os dados do primeiro trimestre de 2022, da Direcção-
Geral da Administração e Emprego Público (DGAEP), o número de
militares voltou a descer para 25.616, em comparação com 26.063, em
Dezembro de 2021, e 26.150, em 2020.
Os dados fornecidos pelo Ministério da Defesa Nacional ao P3, que
reportam também a 31 de Dezembro de 2021, diferem da estatística da
DGAEP que, por ter o “propósito de divulgar informação estatística de
síntese sobre emprego público”, pode “estar a deixar de fora algumas
situações específicas das Forças Armadas” por causa da “classificação”
utilizada, indica a tutela. Segundo a Defesa, “as Forças Armadas
Portuguesas contam com 29.980 militares, em todas as formas (situações)
de prestação de serviço”. De acordo com números recolhidos nos últimos
cinco anos, de 2017 a 2020 verificou-se a mesma tendência decrescente,
mas até houve um aumento de 2020 para 2021, de 904 militares.
Estes números não surpreendem José Rocha, o futuro piloto aviador:
“Nós podemos ser poucos, podemos estar em acumulação de funções,
podemos estar a trabalhar mais do que o que deveríamos para aquele
turno ou para aquele momento, mas a missão acaba por ser sempre

186
cumprida. E é isso também que nos motiva a poder continuar de um dia
para o outro”, garante o jovem de 22 anos.
Porém, as conclusões do estudo Militares RV/RC: Características
e Percepções, do Ministério da Defesa Nacional, apontam para
níveis consideráveis de insatisfação dos militares em vários campos
— oportunidades de carreira, incentivos, condições de apoio. A
percentagem mais elevada de descontentamento recai sobre o salário,
sendo de, aproximadamente, 46% na Força Aérea, 60% na Marinha e
cerca de 66% no Exército.
“Para o trabalho e influência que temos no país, ao nível de praças
ganhamos muito pouco”, diz Pedro Costa. “Eu posso dizer que, por
mês, retirava 650 euros mais ou menos”, relata o ex-militar, realçando as
diferenças salariais das missões, em que a remuneração “chegava aos 3000
[euros] e qualquer coisa”, à qual acrescia um subsídio de “cerca de 2000”.
Um tema discutido no dia-a-dia do quartel e que motivava saídas
antecipadas. “Por acaso, mantive-me até ao fim, porque também

187
Em que estado está a administração pública?

compensou a nível financeiro com as missões, mas conhecia muita gente


que sabia que não ia ter essa oportunidade e saía.” Ainda assim, José
Rocha garante: “Não ingressei aqui [Academia da Força Aérea] de modo
algum pela remuneração. Isso é um benefício que vem por acréscimo.
Acredito que, se calhar, a mesma profissão noutro contexto possa até ser
mais bem remunerada.”

Sem arrependimentos
Com os olhos postos no futuro, David Castro, que defenderá em Setembro
a dissertação de mestrado no curso de Marinha, crê que o papel das Forças
Armadas “na salvaguarda” da soberania e valores de Portugal “não irá mudar”.
Há pouco mais de dois meses no curso de comandos, Diogo Sequeira,
de 23 anos, lembra que “o mundo é muito grande e há muita coisa para
fazer” e, por isso, “se calhar, hoje em dia, os jovens cada vez vão dar
menos valor ou menos atenção àquilo que são as Forças Armadas”.
“Depende das escolhas de cada um”, conclui.
“Acho que o Exército só vai acordar ou tentar melhorar os aspectos
negativos quando cair mesmo no fundo e para se reerguer vai ter de
mudar muita coisa. Falar nos incentivos e nos salários acho que já era um
bom começo”, defende, por seu turno, Pedro Costa.
Para Mónica, David, Marina, José, Diogo e Margarida, o que os
motivou a entrar nas Forças Armadas é o mesmo que os leva a ficar. Do
lado de fora e sem arrependimentos, Pedro reconhece: “Foi uma boa
experiência, mas já passou.”
Texto editado por Amanda Ribeiro

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188

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