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Evolucionismo cultural

No final do século XIX, a Antropologia começou a se estabelecer como disciplina


científica a partir de contribuições do pensamento evolucionista de Herbert Spencer e
das teorias biológicas da evolução, especialmente a seleção natural de Charles Darwin.
Inspirados na ideia da gradual evolução das espécies, pensadores e estudiosos do ser
humanos elaboraram um paradigma que hoje chamamos de evolucionismo
cultural ou antropologia evolucionista, segundo o qual os diferentes grupos humanos se
desenvolvem a partir de estágios mais primitivos até alcançar etapas mais avançadas de
um processo evolutivo universal. O principal eixo da epistemologia desse paradigma era
o método comparativo, ou seja, o cotejo das diversas manifestações culturais de
diferentes povos com o objetivo de encontrar semelhanças de desenvolvimento cultural.
O livro Evolucionismo Cultural: Textos de Morgan, Tylor e Frazer, organizado pelo
antropólogo Celso Castro, nos traz um panorama do pensamento evolucionista da
antropologia de fins do século XIX e início do XX. Castro apresenta uma sucinta
biografia de cada um dos três principais expoentes dessa corrente, Lewis Henry Morgan
(1818-1881), Edward B. Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941). Uma pequena
amostra da obra dos autores, traduzida por Maria Lúcia de Oliveira, coloca o leitor
contemporâneo em contato com um pensamento que foi decisivo para estabelecer as
bases da antropologia moderna, ao mesmo tempo em que evidencia as limitações que a
visão eurocêntrica dos autores imprimiu em suas teorias e epistemologias.
Lewis Henry Morgan

Morgan
Morgan era um norte-americano nascido em 1818 que na juventude fazia parte de uma
associação de dedicada a estudos clássicos. Ele era fascinada pela cultura iroquesa,
mesmo sem saber quase nada sobre ela, e rebatizou o grupo como Grande Ordem dos
Iroqueses. Mas em 1844 ele conheceu iroqueses de verdade e se interessou tanto em
aprender com eles sobre sua cultura que se especializou no tema.
Segundo Celso Castro, esse encontro de Morgan com alguns chefes iroqueses pode ser
considerado o nascimento da antropologia norte-americana. Seus estudos sobre a cultura
iroquesa eram vistos por ele mesmo como uma forma de incitar a simpatia dos norte-
americanos anglo-saxões pelos nativos e assim ajudar estes a “evoluir” rumo à
civilização.
Ele desenvolveu uma extensa pesquisa sobre o parentesco em diversas culturas (o que
veio a colocar este tema numa posição especial dentro dos estudos antropológicos) e
sobre o comportamento animal, considerado por ele uma forma de compreender o
comportamento humano.
Em 1877 publicou seu mais célebre livro, Ancient Society (A Sociedade Antiga), no
qual estabeleceu um esquema evolutivo humano, com base no estudo de várias
sociedades ao longo da história. Esse esquema, utilizado depois por Marx e Engels para
reforçar a ideia do Materialismo Histórico e para fundamentar a teoria do
desenvolvimento dos modos de produção, baseia-se na ideia de que toda a humanidade
está fadada a passar pelos mesmíssimos estágios evolutivos, saindo da selvageria,
passando pela barbárie e chegando à civilização (seu ápice). A tabela abaixo é adaptada
do primeiro capítulo de A Sociedade Antiga e mostra todos os estágios teorizados por
Morgan.

Período Fase Características

Selvageria Período Da infância da raça


inicial humana até o começo
Status do próximo período
inferior

Período Da aquisição de uma


intermediário dieta de subsistência
Status à base de peixes e de
intermediário um conhecimento do
uso do fogo até etc.

Período final Da invenção do arco-


Status e-flecha até etc.
superior

Barbárie Período Da invenção da arte


inicial da cerâmica até etc.
Status
inferior

Período Da domesticação de
intermediário animais no
Status hemisfério oriental e,
intermediário no ocidental, do
cultivo irrigado de
milho e plantas, com
o uso de tijolos de
adobe e pedras, até
etc.

Período final Da invenção do


Status processo de fundir
superior minério de ferro, com
o uso de ferramentas
de ferro, até etc.

Civilizaçã Civilização Da invenção do


o alfabeto fonético,
com o uso da escrita,
até o tempo presente.

Adaptado de: CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo


cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 60.

Esses estágios são chamados por ele de períodos étnicos, e vê-se aqui que para ele as
diferenças culturais se dão diacronicamente e não sincronicamente. Uma “etnia”, para
Morgan, seria definida por seu estágio evolutivo e não por características próprias. O
conceito de cultura defendido pelo antropólogo norte-americano entende que ela se
forma pela acumulação de conhecimentos experimentais e se realiza plenamente quando
atinge o estágio da civilização. Nessa visão, os povos ditos “primitivos” são vistos como
arremedos, cuja cultura é entendida como algo irracional e não plenamente
desenvolvido.
Morgan se baseia na ideia de que toda a humanidade segue a mesma história,
determinada por uma natureza comum. Sua visão teleológica e idealista concebe que
todos os povos estão destinados a cumprir sua realização no atingimento da civilização.
Esta, obviamente, é idealizada com base na cultura ocidental eurocêntrica. Seu
etnocentrismo (e o de autores evolucionistas) o levou a pensar na própria cultura como
padrão para todas as outras. Dessa forma, Morgan compreende que há uma
uniformidade cultural que só se diferencia em termos de grau. Essa perspectiva será
revisada pela antropologia do século XX, que conceberá as culturas (no plural) como
dotadas de características únicas.
Ele analisa as diversas sociedades segundo o desenvolvimento de 4 variáveis: as
invenções e descobertas, a organização sócio-política, a organização familiar e a noção
de propriedade. O grau de complexidade de cada uma dessas variáveis é o que permite,
segundo Morgan, diagnosticar o estágio evolutivo de uma determinada sociedade. Mais
uma vez vemos o etnocentrismo por trás de seu pensamento, pois a importância dessas
variáveis (arbitrárias) só tem sentido para o ponto de vista de sua cultura.
Uma vez que os objetos de estudo dessa antropologia são os diferentes povos ao redor
do mundo, Morgan considerava importante preservá-los da influência e esfacelamento
provocados pelos “civilizados”, pois não bastava ter acesso à produção material desses
povos (objeto de estudo mais da Arqueologia), sendo necessário observar sua
linguagem, suas instituições, seus manifestações artísticas em sua forma “pura”. Assim,
se a antropologia contemporânea possui uma outra visão sobre as culturas (e não
sobre a cultura), e considera que as influências mútuas são inevitáveis e fazem parte da
vida intercultural humana, podemos considerar que os esforços por proteger os povos
“primitivos” são a herança de um germe que se formou já nos primórdios dessa
disciplina.
Edward Burnett Tylor

Tylor
Tylor nasceu em 1832 em Londres e nunca se cursou carreira acadêmica. Suas viagens
a Cuba e ao México resultaram em seus primeiros escritos sobre cultura, entre os quais
um livro no qual defendia a ideia colonialista de que os mexicanos não tinham
condições de governar a si próprios e necessitavam ser assimilados pelos Estados
Unidos. A Antropologia, na perspectiva desse autor, serviria como meio diplomático de
as metrópoles imperialistas atuarem mais eficazmente sobre os povos colonizados.
Ele é conhecido por ter apresentado o primeiro conceito antropológico de cultura, em
sua obra mais célebre, Cultura Primitiva (Primitive Culture), de 1871:
Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade.
Nesta definição, fica clara a noção, vista anteriormente em Morgan, de uma relação
íntima entre cultura e civilização. Para Tylor, a cultura humana ou civilização se
apresenta em vários estágios e não é entendida de forma plural e relativista, mas sob
uma perspectiva universalizante. Os povos do mundo são vistos neste viés como numa
escala, sendo alguns mais “cultos” ou “civilizados” do que outros.
Tylor deixa claro em sua obra que as leis que regem a sociedade devem ser as mesmas
que regem a natureza. A evolução da humanidade e da cultura seria então análoga à
evolução das espécies segundo os biólogos evolucionistas, como Charles Darwin,
defendiam na época. Sua proposta era estudar a evolução das instituições (religião, arte,
costumes etc.) enquanto variáveis isoladas e não como parte de um organismo social
dentro do qual elas têm um sentido (da mesma forma que um biólogo poderia estudar a
evolução do olho ou outra parte do corpo em diferentes espécies).
Esse método marcava toda a corrente evolucionista e seria criticado pelas gerações de
antropólogos posteriores, pois era baseado no simples preconceito de que os povos
agrupados em estágios evolutivos semelhantes são semelhantes entre si. No entanto,
essa constatação era feita somente através dos instrumentos coletados em museus e não
pela observação direta dos referidos povos. Além disso, Tylor apontava para a
importância das “sobrevivências” de estágios evolutivos anteriores como provas do
progresso da cultura.
Entretanto, apesar do forte etnocentrismo que perpassa toda a ideia central do
evolucionismo cultural, é interessante notar que as bases da perspectiva relativista e
antirracista já estavam sutilmente presentes nas obras desses autores, como vemos neste
trecho da obra de Tylor:
Para o presente propósito, parece tanto possível quanto desejável eliminar considerações
de variedades hereditárias, ou raças humanas, e tratar a humanidade como homogênea
em natureza, embora situada em diferentes graus de civilização. Os detalhes da pesquisa
provarão, parece-me, que estágios de cultura podem ser comparados sem se levar em
conta o quanto tribos que usam o mesmo implemento, seguem o mesmo costume ou
acreditam no mesmo mito podem diferir em sua configuração corporal e na cor de pele
e cabelo.
Diferente de Morgan, Tylor afirma que o pensamento primitivo é tão racional quanto o
do ser humano civilizado, embora reitere a posição de que aquele é mais ignorante do
que este. Ironicamente, essa constatação sobre o “pensamento selvagem” seria
reafirmada pelo estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, este já inserido numa corrente
que herdou o relativismo de Franz Boas, um dos mais importantes críticos do
evolucionismo cultural.
James George Frazer
Frazer
Nascido em Glasgow, Escócia, em 1857, Frazer sempre se interessou pelos estudos das
obras da antiguidade greco-romana, e seguiu uma longa carreira acadêmica nesse
campo. Na década e 1880, conheceu William Robertson Smith, que o convenceu a se
enveredar pela Antropologia. Aliando seus dois interesses, Frazer conceberia sua maior
e mais célebre obra, O Ramo de Ouro (The Golden Bough).
A primeira edição tinha 2 volumes 800 páginas, mas o livro foi crescendo a cada edição,
até atingir mais de 4.500 páginas em 13 volumes. Em 1922, Frazer lançou uma versão
resumida em um volume. Sua obra obteve grande sucesso entre o público, mas no final
de sua carreira os antropólogos já a consideravam anacrônica e mais literária do que
científica. Nessa época, o evolucionismo cultural já havia se esgotado.
A obra de Frazer é talvez a que deixa mais explícito o método comparativo
característico da antropologia evolucionista. O Ramo de Ouro, por exemplo, propõe
colocar lado a lado um imenso número de exemplos de mitos e ritos das mais diversas
culturas, com o objetivo de encontrar semelhanças que demonstrem a natureza comum a
toda a cultura humana.
Frazer ajudou a definir o lugar da Antropologia entre os ramos científicos. No
ensaio Escopo da Antropologia Social, ele localiza esta nova ciência como uma sub-
área da Sociologia, reconhecendo sua especificidade mas ainda subordinando-a a outra
área. Além disso, para validar a Antropologia como ciência, Frazer propunha que ela
servisse como meio de intervenção (os governantes deveriam usar esse saber para
incentivar o desenvolvimento da sociedade) e previsão (através dela poderíamos antever
o futuro da humanidade).
Porém, ainda mais séria é a proposição de que a dominação imperialista dos povos
“selvagens” pelas nações europeias é justificada pela suposta necessidade de
desenvolvimento da “cultura”. Partindo da noção da desigualdade natural entre os seres
humanos, Frazer enfatiza que a evolução dos povos mais “primitivos” deve se dar com a
atuação da liderança dos povos mais “civilizados”, entendidos por ele como dotados de
uma inequívoca superioridade intelectual. Essa seria a única forma de garantir a
predominância da “ordem” civilizada sobre o “caos” selvagem.
O antropólogo escocês deixa claro que o estudo dos povos “selvagens” é uma forma de
conhecermos o passado das nações “civilizadas”, já que, na perspectiva evolucionista,
cada povo pode ser encaixado em um dos estágios diacrônicos, e se uma sociedade
“civilizada” está no topo dessa evolução, é porque ela passou por todos os estágios
anteriores, inclusive o estágio “selvagem”. E se uma sociedade é “selvagem” é porque
ela não saiu da fase mais rudimentar dessa escala evolutiva.
Dessa forma, o interesse pelos povos mais “primitivos” advém do esforço por entender
nossa própria evolução (vale dizer, a evolução da cultura da qual faziam parte esses
intelectuais). Além disso, assim como Tylor, Frazer também trabalhava com a ideia de
“sobrevivências”. As crenças mais primitivas perderiam este status na evolução da
cultura e se manteriam apenas como crendices ou folclore, o que serviria para se
estabelecer um elo evolutivo entre os diferentes estágios.
É bom ressaltar a distinção que Frazer faz entre “selvagem” e “primitivo”. Para ele, este
termo só poderia ser aplicado a um estágio anterior à da formação da cultura e que já se
perdeu na história da humanidade. Os povos de cultura mais rudimentar que existem
hoje estariam, segundo Frazer, na “selvageria” e não na “primitividade”. Esse detalhe
pode ser considerado, à revelia do que pensava Frazer, uma base para se dissociar a
evolução biológica da realidade cultural humana, que não segue a mesma lógica da
seleção natural.
A evolução do Evolucionismo
Embora a antropologia evolucionista tomasse emprestada a noção de evolução
darwiniana para postular uma evolução cultural ou civilizatória, esta está mais atrelada à
noção de progresso presente no pensamento de Herbert Spencer. Enquanto Darwin
apresentava em seu A Origem da Espécies uma árvore genealógica que mostrava uma
diversidade de caminhos por que passa a evolução dos seres vivos, Spencer entendia o
progresso como uma escada unilateral.
Para os evolucionistas, a cultura era entendida como um fenômeno universal e singular.
Em seu paradigma, havia apenas uma “cultura humana”, que se manifestava em
diversos graus de desenvolvimento de acordo com o grupo social considerado. As
diferenças culturais, para esses teóricos, se devia a uma diferença de grau de evolução e
não a peculiaridades históricas de cada sociedade.
Mas o ideal presente no degrau mais alto da escada evolucionista era ocupado pelas
sociedades europeias e norte-americana, ou seja, as mesmas às quais pertenciam seus
pensadores, pois cada sociedade pensa na própria cultura como a mais exemplarmente
humana, e se qualquer outra cultura tivesse desenvolvido o Evolucionismo, teria
colocado a si mesma no estágio da civilização.
Franz Boas, antropólogo alemão radicado nos EUA, daria o pontapé inicial para
relativizar as culturas humanas (no plural) e compreender suas diferenças em termos de
histórias distintas e não de grau evolutivo. Já o método comparativo seria abandonado
com o desenvolvimento da observação participante, empreendida por Bronislaw
Malinowski.
A Antropologia se desenvolveria posteriormente com uma perspectiva relativista, vendo
as diversas culturas como formas diferentes de viver e ver o mundo, e passaria a servir
muito mais para veicular a voz dos povos “nativos” do que como instrumento de sua
dominação. Entretanto, podemos ver nas obras de Morgan, Tylor e Frazer algumas das
sementes que permitiriam esse desenvolvimento.

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