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OVÍDIO A.

BAPTISTA DA SILVA
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

DA SENTENÇA LIMINAR
À NULIDADE DA SENTENÇA
N5 0740

EDITORA
FORENSE
Rio de Janeiro
2001
SOBREVIVÊNCIA DA QUERELA NULLITATIS*
1. Seria ocioso dizer que a comunis opinio entre os juristas, tanto brasileiros
quanto estrangeiros, inclina-se no sentido de negar a existência, nos sistemas
jurídicos contemporâneos, de alguma ação declaratória ou constitutiva, diver-
sa da ação rescisória, para o sistema brasileiro, ou da cassação para os sistemas
europeus, com que se possa atacar uma sentença já transita em julgado.
Como proclama a doutrina universal, não há nulidade que sobreviva à
sentença, ou, como igualmente se diz, as nulidades, porventura existentes no
processo, convertem-se em motivos de recorribilidade, de modo que a forma-
ção da coisa julgada teria a virtude de limpar completamente a sentença dos
eventuais defeitos que houvessem maculado a relação processual. Como disse
Liebman ("Istituti di diritto comune nelprocesso civile brasileiro" inProblemi
delProcesso Civile, 1962, p. 511), por influência do Direito francês - nunca é de-
mais recordar -, todas as nulidades devem ser arguidas com o recurso, ou en-
tão com a ação rescisória que, em muitos casos, nada mais é do que uma
sobrevivência da querela nullitatis medieval.
2. As razões históricas para a conversão dos motivos de nulidade em
motivos para os recursos são amplamente conhecidas da doutrina.
A interessante trajetória seguida pelos dois institutos, a appellatio e os re-
médios propostos contra a nulidade da sentença, mostra que o direito toma-
no, tendo por inexistente a sentença nula, julgava desnecessária uma ação
destinada a declarar-lhe a nulidade, precisamente porque de inexistência e não
de nulidade se tratava. Eis a razão pela qual os dois institutos seguiram inicial-
mente um percurso orientado para uma nítida separação entre eles, forman-
do-se, no direito medieval, distintos os dois institutos, a apelação contra as

1'ublicaclo na Rtv. Fomise, vol. 333.


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sentenças válidas; e a querela nullitatis contra as sentenças nulas, para depois


convergirem, fundindo-se num só instrumento, pela absorção da actio nullitatis essa era consequenza, naturale e automática, dei fatto che Ia sentenza fosse giu-
pelo recurso de apelação. ridicamente inesistente" (L'appello civik in diritto romano, 1966, ps. 94-95).
Inicialmente a appellatio conservou a característica de remédio contra Os motivos pelos quais a apelação podia limitar-se a impugnar os even-
uma sentença válida, como em direito romano (A. O. Chioppa, Ejcerehe tuais erros de julgamento, através dos quais a sentença contivesse uma injusti-
sull'appello nel diritto intermédio, 1970, p. 21), reservada à querela nullitatis, desco- ça contra o direito do litigante (contra ius litigatoris), pressupondo-se, porém,
nhecida do direito romano, a função de remédio contra as sentenças nulas, as sua validade formal, decorriam do fato de ser, como ficou dito, dispensável o
quais, como se disse, dispensavam, no direito romano, uma ação autónoma de recurso quando o caso fosse de invalidade da sentença, causada por algum
declaração de nulidade (Luigi Raggi, Studi sulle impugna^oni civili nel processo ro- erro formal (contra ius constitutionis).
mano, 1961, p. 11). O princípio da inexistência da sentença e o princípio de sua apelabilida-
Calamandrei, em obra clássica a respeito do tema referente aos meios de conviveram no direito romano, sem a menor necessidade de proceder-se à
extraordinários de impugnação à sentença, confirma essa verdade, de resto fusão de ambos, considerando Orestano mais sábio o sistema romano do que
amplamente conhecida c aceita pela doutrina, ao dÍ2er: "El conceito de nuli- a tentativa de fusão realizada pelo direito moderno: "Essendo già stati coesis-
dad de Ia sentencia en el derecho romano era un concepto jurídico: esto és, Ia tenti per secoli, i due principi si perpetuano entrambi nel diritto postclassico e
sentencia nula erajurídicamente inexistente' (La casadón dvil, trad. de 1945, vol. l, giustinianeo, senza che sorga Ia necessita di una loro fusione. Essi transporta-
tomo I, p. 47). no cosi sin nel diritto giustiniano i caratteri delia loro diversa origine e funzio-
ne storica: il principio delia inesistenza, di poggiare soltanto sulla violazione
Entretanto, pondera Calamandrei, esta inexistência jurídica encontrava-se
dei pressupposti formali; 1'appello, di mantenere il carattere originário di mez-
em oposição à existência material e sensível, no mundo exterior, de um provi-
mento judicial com toda a aparência de uma sentença juridicamente válida. zo di impugnativa necessário soltanto contro una sentenza formalmente vali-
Criava-se, então, a necessidade de estabelecer um meio adequado de declarar da. Nessun inconveniente poteva sorgere dal mantenere in vita questa
que a sentença materialmente existente não existia no plano jurídico. duplicità, perche i due principi, essendo venuti storicamente e concettualmen-
te a completarsi e integrarsi a vicenda, erano pienamente sufficienti a tutelare
Surge, a partir daí, no entanto, a necessidade de separarem-se os eventuais
ogni caso in cui una sentenza meritasse censura, sia dal lato formale che dal
vícios formais de que se pudesse ressentir o processo, em razão do não cumpri-
lato sostanziale. La tradizione giuridica romana pur nelk fase ultima dei suo
mento de alguma formalidade ou ofensa a algum princípio de nature2a procedi-
sviluppo in tal modo non abdico mai ai principio che una sentenza inficiata nei
mental (errores in procedendo), ou das possíveis injustiças que o magistrado
suoi pressupposti formali fosse giuridicamente inesistente; in questo forse as-
pudesse cometer, não obstante a perfeita regularidade formal ao procedimento (er-
sai piú saggia e lógica delia dottrina moderna che arriva ad attribuire Ia pienez-
rores in iudicando). Para o direito romano, especialmente no período republicano,
za degli effetti legali ad una sentenza nulla, quando non sia stata regolarmente
a possível injustiça da sentença não tinha qualquer influência sobre sua validade
(Calamandrei, ob. cit., p. 62). impugnata " (Orestano, ob. cit., ps. 136-137).
4. O direito medieval, no entanto, antes de consumar-se o princípio de-
3. A apelação nasce, portanto, no direito romano, como remédio contra
pois vitorioso no direito moderno, segundo o qual os motivos de nulidade da
uma sentença válida, posto que a sentença nulla era nenhuma e, em tais condi-
sentença ficam absorvidos pelos recursos, concebeu a actio nullitatis como
ções, não necessitava de qualquer impugnação do prejudicado, que poderia
meio autónomo de impugnação contra a sentença nula, de modo que a apela-
simplesmente ignorá-la. Diz a respeito Ricardo Orestano: "Essi - refere-se o
ção ficasse reservada para o controle, por autoridade superior, da injustiça da
autor ao remédio usado 'in mancanza di una sentenza válida'— "infatti si ren-
sentença (errores in iudicanáo), atribuindo-se à querela nullitatis a função de repa-
devano utili ed operanti soltanto quando ci si trovava in presenza di una sen-
rar os vícios formais que pudessem tornar nula a sentença.
tenza che esistesse materialmente come pronuncia, ma che per una qualche
ragione fosse considerata dall'ordinamento come giuridicamente inesistente 5. A partir do direito comum medieval, porém, que concebera os dois
c, per cio stesso, incapace di produrre qualsíasi effetto. Tale inefficacia non instrumentos, seguindo a tendência que se manifestara no direito romano, de
aveva, propriamente, bisogmo alcuno di essere constatata e dichiarata, perche reservar os recursos para o reexame de uma sentença válida, a evolução dos
institutos tomou sentido inverso. No direito moderno, como já vimos, passou
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a vigorar o princípio de que os motivos de nulidade convertem-se em motivos daga Calamandrei, será apenas este o caso de sentenças cuja nulidade sobrevi-
para a impugnação recursal. Como disse Calamandrei (La Casación Civil, tomo ve a todos os recursos? Sua resposta é decididamente negativa.
I, p. 204), a apelação acabou aproximando-se tanto da querela nullitatis a ponto Referindo-se ao mencionado dispositivo do Código italiano, que não
de tornar-se função do recurso igualmente o exame dos vícios que pudessem concede aos recursos a virtude sanatória do vício de nulidade da sentença não
tornar nula a sentença.
subscrita pelo juiz, mostra Calamandrei que o caso não é o único desta classe:
Temos portanto, a questão. Teria o direito moderno alcançado plena- "Ma in realtà non si tratta di un solo caso, anche se l'art. 161 non parla che di
mente seu objetivo, ao excluir os meios extraordinários de ataque às sentenças uno: giurisprudenza e dottrina sono d'accordo nel ritenere che possono pre-
nulas, de tal modo que a utilização de todos os recursos previstos pelo ordena- sentarsi nella pratica una serie di casi, che Ia legge non menziona, e dei quali
mento jurídico passasse a ter a virtude de sanar definitivamente a sentença, non è possibile fissare in anticipo una compiuta elencazione, nei quali Ia sen-
qualquer que possa ser a gravidade do vício de que ela porventura se ressinta? tenza è inidonea materialmente, si direbbe cpi&ú fisicamente, a passare in giudi-
Ninguém menos que Calamandrei, que soma à sua condição de um dos cato (Ia sentetiza non scritta, Ia sentença senza dispositivo, Ia sentenza di
maiores, senão o maior, processualista italiano de nosso século, a autoridade contenuto incerto o impossibile, e cosi via), e di fronte alia qualle il decorso
que lhe cabe de ter escrito sua obra mais importante precisamente sobre um dei termine per esperimentare i mezzi di impugnazione non puo avere
tema intimamente ligado às questões que nos ocupam, julga que não. E o faz 1'effetto di sanare Ia nullità e di precludere 1'esercizio delia ordinária azione di-
mostrando afinal que a suposta onipotência do legislador não pode furtar-se chiarativa delia nullità insanabile " (" Sopprawivenza delia querela di nullità
às leis da lógica e da razão, a ponto de transformar em válidas sentenças abso- nel processo civile italiano", Rivista di dirittoprocessuale, 1951, p. 114).
lutamente nulas, por graves defeitos de forma:
A conclusão é de uma lógica irrepreensível, pois a virtude sanatória dos
recursos não poderia, por exemplo, tornar uma sentença contendo dispositivo
"La verdad es que ninguna legislación, siquiera Ias dominadas impossível ou incerto, isenta de uma tal nulidade.
por el principio germânico de Ia validez formal de Ia sentencia, ni Nestes casos, como disse Calamandrei, o emprego de uma ação ordiná-
tampoco Ias modernamente inspiradas en Ia aceleración dei término ria declaratória da nulidade será indispensável e o sistema jurídico que a excluir
de Ias litis y en alcanzar con Ia mayor rapidez Ia certeza sobre el fallo, cometerá pecado mortal contra a razão e a lógica jurídica. Por outro lado - é
pueden sustraerse a Ias leyes de Ia razón y de Ia lógica; y en obediência uma consequência necessária da natureza dessas nulidades -, a utilização da
a estas, debe Ia ciência admitir, aunque sea en Ia medida más restringi- ação autónoma declaratória (ou desconstitutiva) da nulidade, não estará sujei-
da posible, que aun después ele Ia preclusión de los médios de impug- ta a nenhum prazo preclusivo. Em tais casos, podendo a nulidade ser arguida
nación, subsistan sentencias afectadas por Ia nulidad insanable" no recurso, caso não o seja, a omissão não impedirá o exercício da ação de nu-
(Vicios de Ia sentencia y médios de gravamen, nos Estúdios sobre elpro- lidade, em qualquer tempo ("nullità insanabili che possono esser fatte valere in
ceso civil, trad. de 1961, Buenos Aires, p. 463). via di appello.. .ma che, ove non siano fatte valere per questa via, possono es-
ser fatte valere in ogni tempo mediante ordinária azione di nullità ", p. 119).
Não deixa de ser notável o interesse demonstrado por Calamandrei pelo
A conclusão de Calamandrei é definitiva "La querela di nullità in reakà
tema, pois tendo escrito o ensaio por último mencionado em 1915, e produzi-
non è stata abolita: essa, grande creazione dei nostro diritto statutario, ha lascia-
do sua obra magna em 1920 (La Cassa^ione Civile), ambas sob o império do ve-
to nel sistema dei mezzi di impugnazione tracce durevole e profonde, che per-
lho Código italiano de 1865, a ele voltou num estudo datado de 1951, para mettono, riconoscendo e riaccostando gli elementi di questo istituto oggi
defender a mesma ideia, da sobrevivência da querela nullitatis no direito moder- dispersi in norme eterogenee e distinti, di ritrovare e di ricostruire Ia sua fisio-
no, agora sob a vigência do atual Código de Processo Civil italiano. nomia " (ps. 127-128).
É igualmente interessante que sua atenção tenha sido despertada por No que respeita especificamente à questão de saber se a querela nuUitatís
um dispositivo existente no Código italiano que, ao dispor sobre o princípio poderia ser utilizada por quem, devendo comparecer como litisconsorte ne-
da conversão dos motivos de nulidade em motivos recursais, abre uma exce- cessário, não comparecera ao processo, Calamandrei não toma posição defini-
ção para a sentença não assinada pelo juiz, prescrevendo que, neste caso, o tiva. Mas a doutrina italiana posterior vem se orientando no sentido de incluir
princípio não tem aplicação. A sentença seria então inexistente. Contudo, in- esta hipótese no campo da querela nullitatis.
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6. Entre nós, o ilustre processualista e magistrado, Adroaldo Fabrício,


em estudo publicado na RÍK Ajuris, versando precisamente sobre a eventual si ha quando Ia sentenza resa rispetto a un solo fra i piú non ha per sé alcun va-
existência da querela nullitatis, proposta pelo réu revel não citado, chega a con- lore, inutiliterdatur" (Saggididirittoprocessuale cívi/e, ed. de 1993, Giuffrè, 2° vol.,
clusão idêntica à do jurista italiano: "Subsiste em nosso direito, como último p. 436).
resquício da querela nullitatis insanabifís, a ação declaratória de nulidade, quer Em outra passagem do ensaio, diz Chiovenda: "Si piú sono soggetti
mediante embargos à execução, quer por procedimento autónomo, de com- alTeffetto giuridico, nel senso che questo deve prodursi necessariamente di
petência funcional do juízo do processo original. A sobrevivência, em nosso fronte a piú persone insieme, queste sono naturalmente litisconsorti necessari
direito, da querela nullitatis, em sua formação primitiva, restrita aos vícios da ci- nel relativo giudizio: perche in giudizi separati avremmo altrettante sentenze
tação inicial, corresponde a uma tradição histórica, cujo acerto, na moderna nessuna delle quali produce 1'effetto giuridico voluto, che tutte inutiliter dantur"1
conceituação da relação jurídico-processual, adquire flagrante atualidade. Na (p. 444).
evolução do direito luso-brasileiro, a querela nullitatis evoluiu até os contornos Ora, uma sentença inútil será aquela despida de qualquer efeito. Na verda-
atuais da ação rescisória, que limitou a antiga prescrição trintenária para o lap- de, equivalerá a uma sentença inexistente, quanto a sua eficácia, posto que intei-
so quinquenal de decadência. Todos os vícios processuais, inclusive os da sen- ramente inoperante frente ao terceiro não convocado para integrar a demanda
tença, uma vez transitada em julgado, passaram a ser relativos, e, desde que (e, segundo Chiovenda, totalmente ineficaz perante as próprias partes).
cobertos pela rés iudicata, somente são apreciáveis em ação rescisória, específi- Esta solução é perfeitamente adequada, no entanto, apenas para as ações
ca à desconstituição do julgado. Um deles, porém, restou indene à transfor- exclusivamente declaratórias e constitutivas que, por definição, prescindem de
mação da querela nullitatis em ação rescisória: a falta de citação inicial, que qualquer atividade, seja da parte, seja do juiz, tendente a interferir no mundo
permaneceu como nulidade ipso iure, com todo o vigor de sua conceituação empírico. Tanto a sentença declaratória, quanto a constitutiva, produzem seus
absoluta de tornar insubsistente a própria sentença transitada em julgado" efeitos exclusivamente no mundo normativo, seja simplesmente declarando a
(Rev. Ajuris, vol. 42, p. 24). existência ou a inexistência de uma determinada relação jurídica; seja constitu-
Em tal caso, prossegue o jurista, "a sentença existe, mas é nula, podendo indo, modificando ou extinguindo uma relação jurídica.
ser sua invalidade declarada mediante querela nullitatis, assim como pode ser São sentenças que se bastam a si mesmas; as correspondentes "execu-
rescindida segundo o art. 485, V, do CPC, ou ainda, neutralizada em sua exe- ções", se nos fosse lícito denominar execução o efeito declaratório produzido
cução pela via dos embargos do executado" (p. 29). pelas sentenças desta natureza, ou a transformação do mundo jurídico produ-
zido pelas sentenças constitutivas, caracterizam-se por estarem inclusas no ato
7. Voltando ao exame da doutrina, a partir da concepção de Chiovenda,
sentenciai. Contudo, havendo, nas sentenças dessas classes, além das eficácias
sobre a sentença que ele considerava inutiliter data, no caso de litisconsórcio
que as definem, outras eficácias menores, igualmente formadoras do ato sen-
necessário não íntegro, é possível compreender o sentido da evolução da dou-
tenciai, porém inconfundíveis com o efeito declaratório e constitutivo, seria
trina italiana a respeito dos casos em que a nulidade poderia tomar nula a sen-
tença. porventura inutiliter data a sentença, no que respeita a este eventual efeito que,
por hipótese, se produz no mundo material ?
Para investigar a questão da possível sobrevivência da querela nullitatis
A sentença, disse-o Chiovenda, emanada de processo sem formação re-
nos sistemas modernos, particularmente no sistema brasileiro, é necessário
gular de um litisconsórcio necessário, é inútil, ou inutilmente dada. Porém,
examinar uma questão independente, porém ligada ao problema, qual seja o
será juridicamente inútil e, ao mesmo tempo, incapaz de produzir efeitos práti-
conhecido tema relativo ao conceito de conteúdo e efeitos da sentença, de tanta
significação para a teoria geral do processo civil. cos, prejudiciais aos terceiros, particularmente ao colegitimado que deveria fi-
gurar como litisconsorte necessário? Certamente não!
Tentemos compreender o verdadeiro sentido dado por Chiovenda ao
que ele denominava sentença inutiliter data, nos casos de não integração regular 8. O ponto foi argutamente vislumbrado por Adroaldo Fabrício, no en-
de um litisconsórcio necessário. saio antes aludido, para mostrar que a frequente objeção levantada pelos pro-
Como é sabido, Chiovenda, tratando do litisconsórcio, ensinava: "Si può ccssualistas de que, sendo inútil a sentença, faltaria ao terceiro interesse
dirc chc rimpossibilità giuridica di pronunciare separatamente rispetto a piú, jurídico na declaração de sua ineficácia, origina-se de um equívoco evidente,
tjue poderá ser determinado pela confusão entre conteúdo exclusivamente
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declaratório ou constitutivo das sentenças e os eventuais efeitosfáticos que elas ao processo reivindicatório; de igual modo, a anulação do contrato que se faça
possam produzir, como emanações decorrentes igualmente de seus respectivos perante um dos sócios apenas, será dada em sentença inútil em face dos sócios
conteúdos, os quais supostamente não seriam jurídicos, por serem fáticos. "No não convocados como litisconsortes passivos; e o mesmo se dará com o ato
fundo - diz Fabrício - o problema é, ainda, da suposta indiferença" da sentença, sentenciai que condenar A e B ao pagamento, se B não figurara como réu na
relativamente à parte cuja citação não se fez validamente. Ocorre que, mesmo ação de cobrança. Eles poderão, nestas três hipóteses, permanecer indiferen-
imune aos efeitos jurídicos dela, podem ser inevitáveis os efeitos práticos sobre tes à sentença e a seus efeitos normativos- supostamente os únicos efeitos consi-
o crédito, o bom nome e a tranquilidade da pessoa em causa" (p. 27). derados autenticamente jurídicos.
Contudo, indaga-se, a penhora que o credor fizer sobre os bens do con-
A hipótese figurada pelo jurista é corretíssima e, além disso, frequente
denado B, que não fora demandado, seria também inútil porque emanada de
na experiência forense. Quantas sentenças declaratórias ou constitutivas não
sentença cujo efeito condenatório era inútil ? A resposta terá de reconhecer
contêm outras eficácias de menor peso, de natureza executiva ou mandamen-
que os atos executivos serão juridicamente eficazes, até serem desconstituídos
tal, idóneas para a produção de efeitos graves, e até às vezes desastrosos con-
pela procedência dos embargos de devedor que B promover contra o credor,
tra o terceiro? com base no art. 741,1, do Código de Processo Civil.
Pense-se no caso da sentença de procedência numa ação de usucapião, Aliás, a disposição deste artigo é de grande relevo para a compreensão
promovida apenas por um dos dois compossuidores titulares de posseiro indi- do tema que nos ocupa. Tal como o fez o Código italiano, quando dispôs so-
viso, regularmente registrada no álbum imobiliário. Qualquer que seja a natureza bre a insanabilidade do vício da sentença não subscrita, proclama a norma de
da sentença de procedência da ação de usucapião, considerem-na declaratória nosso Código que a ausência de citação causa nulidade que sobrevive à sen-
ou constitutiva, ninguém negará que, além dessas eficácias preponderantes, ela tença e à coisa julgada. Poder-se-ia dizer, como o diziam os juristas medievais,
conterá um visível efeito mandamental, produtor de resultados imodificáveis, que a sentença contaminada com um vício de tal gravidade não terá sequer
porque protegidos pela coisa julgada e que se traduzem no efeito do registro condições de produzir coisa julgada. Nem contra o terceiro e nem mesmo
do imóvel usucapiendo, em nome do autor da ação. contra aquele que figurara irregularmente na demanda. Neste caso, os embar-
Porventura, poder-se-ia dizer que tal sentença seria inutilmente dada gos de devedor, fundados no art. 741,1, do CPC teriam sentido e função pró-
(inutiliter data), contra o terceiro que deveria ter figurado como litisconsorte prios da querela nullitatis.
necessário, e que, tendo-se mantido estranho à demanda, verá sua posse trans- 9. Adroaldo Fabrício faz alusão a uma ação autónoma, de natureza de-
formada em propriedade de outrem ? claratória e ordinária, de que poderia o réu lançar mão para alegar a nulidade
Poder-se-ia afirmar que a declaração contida na sentença, atestando a do processo por ausência de citação inicial, ou quando a citação fosse nula (p.
propriedade exclusiva do imóvel relativamente ao autor da ação, seria inútil, 28). Vimos que a mesma referência a uma ação ordinária fora feita por Cala-
porque ineficaz perante o compossuidor estranho à demanda. A eficácia do ma ndrei (supra, n. 5).
registro, no entanto, não o atingiria? Parece evidente que sim. Mesmo que a Mas é o próprio mestre italiano que mostra a sobrevivência da querela
declaração de domínio seja inútil perante o terceiro legitimado como litiscon- Hullitatis medieval, que muitas vezes se disfarça no direito moderno, usando
sorte necessário, ninguém dirá que o ato jurídico de atribuição da propriedade outros nomes para sobreviver, sem que o princípio da conversão dos motivos
ao autor seja igualmente ineficaz perante o possuidor excluído da ação. cie nulidade em motivos recursais seja atacado diretamente.
Como se vê, a doutrina chiovendiana da sentença inutiliter data separa o Mostrando que aquele dispositivo isolado, constante do art. 161 do Có-
mundo normativo - que, por hipótese, compreenderia todo o jurídico - do dí^o italiano, longe de representar "soltanto una supérflua pietra tombale pos-
mundo fático, para concluir que a sentença proferida em processo a que não es- iii sulla querela di nullità già da tempo onoratamente sepolta", na verdade, "è
tejam presentes todos os litisconsortes necessários, é dada inutilmente, porque IMI indiretto riconoscimento delia insopprimibile vitalità che essa conserva
seus efeitos declaratórios, constitutivos ou condenatórios, não os alcançam. liidora, anche se nel processo moderno si trova ridotta a dover vivere sotto
É claro que, propondo alguém ação reivindicatória contra apenas um nome non suo" (Soprawivenqt, cit., p. 112).
dos condóminos, a declaração que a sentença produzir, reconhecendo a pro- Como as construções dos juristas, dissera-o igualmente Calamandtd,
priedade do bem ao autor, é declaração inútil perante o condómino estranho |uulcm muito, mas não poderão jamais ultrapassar os limites da razão e da lo-
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gica, a querela nullitatis, expulsa do universo conceituai pelos juristas modernos, alios. Igualmente o direito francês tem no instituto datierceopposition um remé-
infiltra-se disfarçadamente na experiência judiciária, vestindo-se com outras dio análogo à opposizione ordinária di terço do direito italiano, como este mais
roupagens, mas exercendo, rigorosamente, a mesma função de ataque às sen- amplo do que os nossos embargos de terceiro, posto que neles o terceiro não se li-
tenças nulas.
mita, em sentença mandamental, a afastar o ato executivo de sua esfera jurídi-
Um exemplo de disfarce da querela nullitatis ocorreu em julgamento do ca, mas, ao contrário — à semelhança de nossa ação rescisória proposta pelos
Superior Tribunal de Justiça, relativo a uma ação de mandado de segurança em terceiros legitimados —, volta-se contra o processo de conhecimento, forma-
que o impetrante buscava impedir a execução de um mandado de despejo, ale- dor da sentença, para decretar-lhe a nulidade.
gando nulidade do processo, por falta de citação. Disse o Tribunal: "Não tinha Toda a construção jurídica formada em torno datierceopposition reproduz
o impetrante sequer ação rescisória, posto que não se cuida de sentença de as mesmas indagações e manifesta as mesmas dificuldades que tornam difícil a
mérilo, pelo que restou ao mesmo a via constitucional do mandado de segu- determinação de uma fronteira segura para a opposizione di terço ordinária e que,
rança, na qual deduziu a sua querela nullitatis insanabilis, de forma adequada". basicamente, decorre da suposição de que as sentenças sejam sempre declara-
10. O direito italiano dispõe de outra via para o exercício da querela nulli- tórias e constitutivas apenas e, como tais, proferidas inutiliter, sendo, em conse-
tatis, que é a opposi^ione ordinária di ter%p do art. 404 do C.P.C, desse país, que quência, incapazes de causar prejuízos aos terceiros.
pode ser utilizada, dentre outras hipóteses, pelo colegitimado que, devendo fi- Henri Roland põe a descoberto o equívoco, ao mostrar que as sentenças
gunir como litisconsorte necessário, permanecera fora do processo (A. Proto mesmo sendo exclusivamente declaratórias e constitutivas, como ele diz (Cho-
Pisaiii, Opposi^ione ordinária diter^p, 1965, Caps. I e II; Costantino, Contributo alio sejugée et tierce opposition, Paris, 1958, n° 84), podem produzir determinados efei-
stHilio dei litisconsorcio necessário, 1979, p. 490). tos erga omnes, ainda sendo limitado às partes o efeito declaratório: "Mais dire
l ímbora, como ensina Gallupi, a oppositçione ordinária di terço tenha nasci- qu'un jugemente rendu inter alios n'interdit pás à un tiers de renouveler une
do no direito comum medieval, tendo sido mencionada com esse nome, pela semblable prétention, ne veut pás dire que lê jugement soit sans effet vis-à-vis
primeira vez, em 1612, no Tratactus de Appellationibus de Scaccia, concebida de lui. Que lê tiers puisse agir ne signifie pás qu'il ne soit touché par Ia decisi-
pani dar proteção aos terceiros atingidos pela sentença proferida inter altos, on. Bien au contraire. Et d'ailleurs, nulle part ne se trouve inscrite dans
sem menção especial aos colegitimados, litisconsortes necessários não convo- 1'ancien Droit Ia règle selon laquelle lê jugement, étant donné Ia relativité de Ia
cados para a lide (Enrico Gallupi, Teoria delia opposi^ione di terço, 1895, n° 14), é chose jugée, est sans existence et sans effet vis-à-vis dês tiers étrangers au dé-
ccri(> que, em linguagem contemporânea, não se poderá equiparar a opposi^ione bat. Lês formules dês auteurs sont révélatrices, à 1'inverse, de Ia valeur dês ju-
di kr^p do direito italiano a nossos embargos opostos por terceiros contra atos gement erga omnes au moins sous en certains angle" (ob. cit, n. 15).
ilegais cometidos durante e em razão do processo executório. Na doutrina brasileira, é conhecido o magistério de Pontes de Miranda,
Como mostra Cario Furno (Disegno sistemático delle opposi^ione nelprocesso proclamando a distinção ontológica entre sentenças válidas (rescindíveis) e
executivo, l942, n° 40), a "ilegítima invasão da esfera jurídica do terceiro" pode sentenças nulas, a serem atacadas por ação de nulidade (Tratado daAção Rescisó-
ter nascido tanto no processo executivo quanto no anterior processo de co- ria, 5a ed., ps. 30 e 31).
nhecimento de que aquele se originara e, neste caso, os embargos de terceiro Em nossa jurisprudência, inúmeros são os exemplos de reconhecimen-
de nosso direito não teriam cabimento: "Ocorre nondimeno che Ia illegitima to da querela nullitatis, como foi o caso do acórdão que teve como relator o hoje
invasione delia sfera giuridica dei terzo sia direitamente prodotta delTattività Min. Sydney Sanches, então Desembargador do Tribunal de Justiça de São Pau-
esecutiva: che se, invece, essa preesista in quanto prodotta delia sentença che lo, onde ficou reconhecida a persistência da querela nullitatis em nosso direito
ha servito ad aprire il processo esecutivo, allora il terzo non è piú legitimato contemporâneo (RJTJ-SP (Lex), 72-75). Tanto o STJ quanto o STF vêm pro-
ad agire in opposizione ex art. 619, ma pua esserlo esclusivamente ex art. clamando a persistência da querela nullitatis no direito brasileiro, como se vê do
404" (p. 231). acórdão da lavra do Min. Moreira Alves, proferido no RE n° 96.374 (publica-
donaRT/jVoI. 110, p. 210).
Aliás, nos sistemas europeus a que se filia o direito brasileiro, não é ape- O STJ, por sua vez, proclamou, em acórdão de que foi relator o Min.
nas o italiano a contar com um instrumento processual de proteção dos tercei-
Dias Trindade: "Perdura a querela nullitatis insanabilis, solucionável em via ordi-
ros, eventualmente alcançados pelos efeitos das sentenças pronunciadas inter
nária, quando constatada a inexistência de citação do fiador para a execução,
92 Ovídio A. Baptista da Silva

de inumação da penhora sobre bem seu e da designação de datas para a arre-


r
matação " (Rev. do STJ, vol. 32, p. 449).
Torna-se, portanto, evidente que a querela nullitatis, como de resto outros
tantos institutos do direito medieval, como as ações cautelares, ressurgem no
direito contemporâneo, a demonstrar que as pretensiosas ambições do Ilumi-
nismo racionalista dos séculos anteriores, em suas tentativas de reduzir o direi-
to à pura lei escrita, como se o legislador do processo fosse onipotente,
encontram afinal seu ocaso, ao encerrar-se o século XX.

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