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Autonomia da vontade, autonomia privada

e autodeterminação
Notas sobre a evolução de um conceito na Modernidade
e na Pós-modernidade

Otavio Luiz Rodrigues Junior

Sumário
1. Das considerações introdutórias: origens
da autonomia. 2. A aliança-contrato e o pensa-
mento canônico. 3. O desenvolvimento do Ra-
cionalismo e do Liberalismo: autonomia da
vontade. 4. Autonomia da vontade e autono-
mia privada. 5. Autonomia privada da vonta-
de e autodeterminação.

1. Das considerações introdutórias:


origens da autonomia
A expressão autonomia, que se encontra
em dicionários da língua portuguesa a par-
tir de 1836, resulta, em termos etimológicos,
da conjunção de duas palavras gregas, au-
tós e nomói. De autós tem-se a idéia de si mes-
mo, representando uma qualidade ou con-
dição inerente e peculiar a um ser. E nomói
corresponderia a norma ou regra. A junção
do antepositivo grego autós com a palavra
nomói gerou autonomia, que ingressou no
Otavio Luiz Rodrigues Junior é Doutoran- vernáculo, provavelmente, por influência da
do em Direito Civil – Faculdade de Direito da palavra francesa autonomie (HOUAISS; VI-
Universidade de São Paulo. Graduado e Mes- LLAR, 2001, p. 351).
tre em Direito (magna cum laude) – Faculdade Tanto em dicionários como na expres-
de Direito da Universidade Federal do Ceará. são vulgar, autonomia perpassa os signifi-
Professor de Pós-Graduação em Direito da cados de independência, liberdade, auto-
Universidade Estadual do Ceará. Diretor-Exe- regulamentação de condutas, autogoverno.
cutivo da Fundação Escola Superior de Advo- Em tempos modernos – e também pós-mo-
cacia do Ceará – FESAC. Advogado da União
dernos –, esses sentidos são geralmente as-
junto à Consultoria Jurídica do Ministério da
Justiça. Membro da Asociación Iberoamericana de sociados a aspectos óptimos, em contrapo-
Derecho Romano – Oviedo, Espanha. Coordena- sição a regimes nos quais o exercício desse
dor da Comissão de Análise Legislativa da Es- “autogoverno de si” (expressão bem pleo-
cola Nacional de Advocacia. nástica, reconheça-se) encontra óbices, em-
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baraços e contradições num certo ideal de melhantes sentimentos a seus adversários.
poder extrínseco absoluto, seja este encar- Hoje, os mélios, amanhã, os próprios ateni-
nado por uma divindade ou por um Leviatã, enses seriam vítimas da crueldade de seus
para se referir à figura do Estado, homena- algozes eventuais. A que respondem os con-
geando a famosa metáfora de Thomas quistadores num tom irretorquível: “Dos
Hobbes. deuses nos supomos e dos homens sabemos
Essa tensão era nítida desde os tempos que, por uma imposição de sua própria na-
da Antigüidade Clássica. De fato, Antígo- tureza, sempre que podem eles mandam. Em
na, em seu dramático diálogo com o Rei de nosso caso, portanto, não impusemos esta
Tebas, grita aos recônditos espaços que há lei nem fomos os primeiros a aplicar tais
uma lei natural acima das leis positivas e preceitos; encontramo-la vigente e ela vigo-
que o direito de enterrar seus mortos é uma rará para sempre depois de nós; pomo-la
prerrogativa humana que nem o mais pode- em prática, então, convencidos de que vós e
roso dos tiranos poderia suprimir os outros, se detentores da mesma força nos-
(VASCONCELOS, 1986, p. 56; SÓFLOCLES, sa, agiríeis da mesma forma” (TUCÍDIDES,
1997, p. 40). Na Guerra do Peloponeso, o 1987, p. 282-285; VASCONCELOS, 2001, p.
exilado Tucídides escreve uma das mais 33-34).
belas páginas do humanismo, reproduzin- Desnecessário dizer que os atenienses
do as embaixadas dos atenienses junto aos voltaram à ilha de Melos e excidaram todos
humildes colonos mélios, que recusavam os homens, levando mulheres e crianças
aliança aos áticos contra os espartanos.1 como escravos.
Depois de exortados pelos súditos de Essa tensão entre liberdade e opressão,
Atenas, sob argumentos repletos de retóri- direito e força, encontra-se presente por toda
ca, mas que não escondiam o puro e sim- a Antigüidade Levantina e Clássica. Os gre-
ples uso da força como mecanismo de per- gos, por sua genial posição no pensamento
suasão, os mélios respondem-lhes de modo do Ocidente, produziram diversos libelos
tocante: “Vemos que viestes para serdes vós em favor daquilo que se hoje costuma cha-
mesmos os juízes do que devemos dizer, e o mar de humanismo, embora, por variegadas
resultado do debate é evidente: se vencer- oportunidades, suas práticas desmentissem
mos na discussão por ser justa a nossa cau- seus filósofos (VASCONCELOS, 1998, p.
sa, e então recusarmos a ceder, será guerra 101-102).
para nós; se nos deixarmos convencer, será Importa, no entanto, afirmar que a auto-
servidão”. nomia, ainda nebulosamente colocada no
Os áticos refutam que a justiça só preva- plano do autogoverno, da autodetermina-
lece quando entre os homens há compatí- ção ou da liberdade de conduzir-se a si próprio
veis interesses, completando com a arrogân- – numa construção pleonástica –, permeou
cia dos que se acham suportados pelo estí- as épocas em que refulgiu o humanismo e a
mulo das armas: “Ser-vos-ia vantajoso sub- valorização do que é próprio dos homens.
meter-vos antes de terdes sofrido os mais No Egito, os homens não passavam de
terríveis males, e nós ganharíamos por não instrumentos exclusivos à existência de um
termos de vos destruir”. Os mélios, posto só homem, feito deus – Faraó. Em um fenô-
que fracos, são resolutos e negam-se a aqui- meno singular, milhares de indivíduos –
escer a tais propostas. muita vez de modo surpreendentemente
Em seu derradeiro esforço, os ilhotas voluntário – renunciavam a qualquer espe-
mélios fazem o pungente apelo à misericór- rança de uma vida digna em favor da acu-
dia e à alteridade, lembrando aos atenien- mulação, em um único espécime, de todas
ses que, se estes os destruíssem, aqueles per- as glórias e de todos os louvores. Os sofis-
deriam o direito de, no futuro, invocar se- tas, na Grécia, representam, com suas idéi-

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as relativistas, humanistas e de um criticis- endido nos séculos XVIII e XIX –, a aproxi-
mo rudimentar, o que melhor se produziu mação entre autonomia e vontade por si só é
na civilização helênica como resistência à revolucionária, considerando aquelas dis-
supremacia do Absoluto (JAEGER, 1995, p. tantes centúrias, tão oprimidas pela idéia
347; VASCONCELOS, 1998, p. 89), tão re- de divindades autocráticas.
corrente nos escritos de Platão. Os sofistas
vão comprometer até mesmo a crença popu- 2. A aliança-contrato e o
lar nos deuses, fazendo-o por meio de sua pensamento canônico
retórica, demonstrando as contradições da
teogonia pagã (BURKET, 1993, p. 591). Michell Villey (1957) irá usar da expres-
Estão depositados no comovente clamor são “aliança-contrato” para descrever a as-
de Antígona ou nos diálogos de Górgias e sociação entre Deus – não as deidades pa-
nas lendas de Prometeu os gérmens de uma gãs, mas o Todo-Poderoso, o Senhor dos
visão de justiça, legitimidade e contratua- Exércitos – e os homens, na fundamentação
lismo (VASCONCELOS, 1998, p. 89), que, do Direito, suposto dentro do universo ain-
no período do Setecentos e do Oitocentos, da pouco distinguível das normas éticas,
vai florar nas mais veementes afirmações da morais e religiosas2. A aliança-contrato re-
liberdade no plano individual e no social. vela a tentativa perene do Pai Eterno em res-
Conforme Arnaldo Vasconcelos (1998, p. gatar o homem do estado pecaminoso, fir-
91): “...pode-se dizer com segurança que, na mando com este relações que se estabelecem
Grécia antiga, a doutrina do contrato soci- “mediante o dom da graça divina e em face
al, tal como a concebeu a primeira geração da condição de ser livre do homem”, como
de sofistas, era de fato democrática. Trata- se observa dos pactos com Adão (Gênesis,
se (...) da teoria da democracia laica, que en- 3), Noé (Gênesis, 9), Abrãao (Gênesis, 14 a
troniza valores humanos permanentes”. 17) e Moisés (Êxodo, 24) (VASCONCELOS,
Não há algo de mais eloqüente a tal res- 1986, p. 127-129; RODRIGUES JUNIOR,
peito que o diálogo entre Sócrates e Hípias, 2002, p. 34).
em que se percebe a lei como resultante de O Novo Testamento, que traz a revela-
um contrato: ção do Verbo Encarnado (São João, 1), tam-
“– Sócrates: Tem algum significa- bém consagra a idéia teocrático-contratual,
do para ti a expressão leis do Estado? com a Nova e Eterna Aliança, pelo derra-
– Hípias: Certamente. mamento do sangue do Cordeiro, o Filho de
– Sócrates: E que acreditas que elas Deus, o mediador da aliança nova: “Por sua
são? morte expiou os pecados cometidos no de-
– Hípias: Contratos ou pactos fei- correr da primeira aliança para que os elei-
tos pelos cidadãos, pelos quais eles tos recebessem a herança eterna que lhes foi
estabeleceram e promulgaram aquilo prometida” (Epístola aos Hebreus, 9, 15;
que se deve fazer e aquilo que se não RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 34).
deve fazer” (VASCONCELOS, 1998, Na Idade Média, exibe-se a primeira rup-
p. 93). tura com o realismo de Porfírio, Boécio e
Não se convocam os deuses para funda- Aristóteles, por força da original contribui-
mentar uma criação socialmente relevante. ção do nominalismo, que colocava, de modo
Os homens fazem as leis e sua vontade é o inédito, a concepção do indivíduo em detri-
elemento genético daquelas. Percebe-se o mento de conceitos genéricos, de pouca sig-
ingresso de um outro elemento, a emanação nificação existencial (RODRIGUES
do querer humano como expressão última JUNIOR, 2002, p. 35).
do autogoverno. Embora extremamente re- Guilherme de Ockham (1988, p. 49-50),
ducionista – o que não será assim compre- o Venerabilis Inceptor, inserido nas querelas

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de sua Ordem Jesuíta com o Papa João XII, é da que não confessadamente, por filósofos
saudado por Michel Villey (1957, p. 90) como protestantes como Grotius, Leyser e Pufen-
o precursor da idéia da força reitora da von- dorf (WIEACKER, 1993, p. 323), com seu con-
tade humana na constituição de vínculos sensualismo.
intersubjetivos, os quais nasciam exclusiva-
mente pelas emanações volitivas, fundadas 3. O desenvolvimento do racionalismo e
na lei do Evangelho (RODRIGUES JUNIOR, do liberalismo: autonomia da vontade
2002, p. 35).
Naqueles dramáticos momentos para a O desenvolvimento do sistema capitalis-
Cristandade, com a Igreja governada pelos ta exigiu novos paradigmas, prontamente
papas de Bolonha, numa alusão ao fato de alimentados por uma efusiva produção in-
que, por quase trezentos anos, os pontífices telectual que, sob o controle ainda católico
eram oriundos da Escola de Direito daque- no Renascimento, explode após a Reforma
la famosa universidade italiana, eviden- e ganha fortes aspectos de contestação da
ciou-se a formação de um pensamento fran- Igreja e, posteriormente, do Estado Absolu-
ciscano fortemente influenciado por Duns to (RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 27).
Scot (GILSON, 1998, p. 736) e Guilherme de O jurista inglês Henry Sumner Maine
Ockham, cujos vórtices estavam na idéia de conseguiu resumir tudo isso numa frase: “A
que o amor e a liberdade ocupariam posi- História do Direito consiste num progresso
ção de preeminência sobre o conhecimento que, partindo do status, conseguiu chegar
e a inteligência. ao contrato” 3.
Orientados pelo desprestígio que o San- Herbert Spencer (apud REALE, 1994, p.
to de Assis conferia às discussões teológi- 651) pronunciará que “o progresso da civi-
cas – o que era paradoxal numa época com lização assinalaria uma passagem gradati-
tantos movimentos heréticos na Europa, ci- va de um regime institucional (próprio das
tando-se por todos os cátaros no Langdoc e sociedades de base ou estrutura militar) para
Trancavel –, os franciscanos pregavam que um regime contratual (correspondente às
o exemplo de caridade superaria qualquer sociedades de cunho industrial). Haveria,
dúvida dos fiéis quanto à prevalência da assim, uma crescente contratualização da
doutrina católica. O amor e a liberdade seri- sociedade, segundo o ideal de um contratu-
am os lindes a guiar as condutas humanas. alismo in fieri”.
Por tais raciocínios, permitiu-se, ainda As origens, a ancestralidade, as faça-
que de modo rudimentar, inteligir que a von- nhas de seus antepassados em alguma ba-
tade livre conferiria um caráter individual talha européia na III Cruzada ou na Guerra
aos seres humanos. No plano sócio-políti- das Duas Rosas, as tradições de sangue,
co, tornou-se possível inferir que as emana- tudo deixava de ser importante naqueles
ções dos governantes – espirituais ou tem- anos intrépidos. Os vilões tornavam-se bur-
porais – poderiam ser confrontadas com a gueses. A força do dinheiro substituía o po-
idéia de caritas e até mesmo merecer obje- der das terras. Apenas em alguns setores do
ções dos súditos de São Pedro, conclusão Estado, como a Administração Pública, o
última levada a extremos por um Guilher- Poder Judiciário e o Exército, ainda impor-
me de Ockham (1988, p. 49-55), perseguido tava ser um filho d’algo (WEBER, 1982, p.
após o fracasso das tentativas de reconcili- 424; RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 38).
ação com o papa. O Liberalismo tentava conciliar a liber-
Embora tais pensadores nunca tenham dade formal e a segurança, conceitos que se
protestado e saído da comunhão plena com qualificavam como verdadeiros alicerces
a Igreja, suas idéias somente seriam retoma- das relações privadas. Se o status não mais
das após o Renascimento e a Reforma, ain- importava, o novo ídolo era o contrato. A

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vontade era a fonte dos direitos e o contrato, centos e o Novecentos construíram uma con-
sua forma excelsa de exteriorização. cepção de autonomia, o que veio a ser sub-
É nesse espaço que se qualifica a autono- vertido totalmente no século XX, como bem
mia da vontade. assertou Federico Castro Y Bravo (1985, p.
Buscava-se diferenciar um campo espe- 11).
cífico de realização da vontade, o espaço das Procedida a essa ressalva, cumpre iden-
relações intersubjetivas de cunho não-pú- tificar o surgimento próprio da expressão
blico. Resgatava-se o velho anexim romano autonomia da vontade nos tempos moder-
de Ulpiano (D. I, 1, §2o) – “Publicum ius est, nos.
quod ad statum rei Romanae spectat, priva- Há duas visões a respeito.
tum, quod ad singolorum utilitatem perti- Tradicionalmente, invoca-se Immanuel
net” (Direito Público é aquilo que se volta Kant (1997, p. 85) como o precursor da ex-
ao Estado ou à coisa romana, Direito Priva- pressão autonomia da vontade, a partir de
do é o que pertine à utilidade dos particula- sua Fundamentação da metafísica dos costumes.
res) (RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 41). O Filósofo de Köenigsberg irá assim defini-la:
Nessa ordem de idéias, estar-se-ia dis- “Autonomia da vontade é aquela
tinguindo aquele confuso espectro – acima sua propriedade graças à qual ela é
referido – em derredor da expressão autono- para si mesma a sua lei (independen-
mia, exilando no Direito Público tudo o que temente da natureza dos objectos do
respeitasse à organização dos governos e querer). O princípio da autonomia é
de seus institutos – eleições, leis, adminis- portanto: não escolher senão de modo
tração. A autodeterminação encontraria um a que as máximas da escolha estejam
campo específico no Direito Internacional incluídas simultaneamente, no querer
Público para justificar o direito dos povos mesmo, como lei universal. Que esta
de constituírem estados em face de suas pe- regra prática seja um imperativo, quer
culiaridades gentílicas. É assim que Luís S. dizer que a vontade de todo o ser raci-
Cabral de MONCADA (1988, p. 16) afirma onal esteja necessariamente ligada a
ser o modelo jurídico do Liberalismo assen- ela como condição, é coisa que não
tado na distinção absoluta entre Direito pode demonstrar-se pela simples aná-
Público e Direito Privado e na autonomia lise dos conceitos nela contidos, pois
da vontade na esfera econômica. se trata de uma proposição sintética;
A autonomia da vontade, por conseguin- teria que passar-se além do conheci-
te, passa a exercer uma importante função mento dos objectos e entrar numa crí-
no modelo jurídico ocidental moderno, des- tica do sujeito, isto é da razão prática
tacadamente nos séculos XVIII e XIX. pura; pois esta proposição sintética,
que ordena apodicticamente, tem que
4. Autonomia da vontade e poder reconhecer-se inteiramente a
autonomia privada priori.”
Marcel Waline (1945, p. 169-170) tam-
Nesse item, de modo mais específico, bém invoca a autoridade kantiana como su-
buscar-se-á a resposta ao problema: “como porte da autonomia da vontade.
definir autonomia da vontade e autonomia Anote-se, contudo, a posição de Véroni-
privada?” que Ranouil (1980, p. 55), fortemente lastre-
A título de preliminar epistêmica, é pre- ada, no sentido de que a expressão ingres-
ciso reconhecer que não há uma autonomia sou no direito interno a partir de contribui-
da vontade, mas, verdadeiramente, diversas ções dos internacionalistas no século XIX,
autonomias, conforme a visão de cada época ao estilo de Brocher e Weiss4. Nadia de Ara-
sobre referido conceito. Dir-se-ia que o Oito- ujo (2000, p. 50), ainda que de modo indire-

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to, também reconhece que os autores de Di- Antonio Junqueira de Azevedo (2002a,
reito Internacional, no Oitocentos, desenvol- p. 13) identifica o período em que se forjou
veram o conceito de autonomia da vontade, essa concepção de autonomia da vontade
fazendo-o a partir das posições de Charles com uma óptica insular da dignidade hu-
Dumoulin no século XVI5. mana, de caráter dualista, separando homem
Não há, entretanto, como discordar da e natureza em líveis distintos. E, prosseguin-
influência francesa na difusão desse con- do, vale-se de uma figura metafórica das
ceito, seja pela tradução mais famosa da mais elegantes: “O racionalismo iluminis-
Metafísica dos costumes, tendo como fonte a ta, que deu origem à concepção insular, cor-
versão gaulesa Fondements de la métaphysi- responde visualmente à figura do homem
que des moeurs, seja pelos autores de Direito europeu: o terno que veste deixa-lhe à mos-
Internacional. Outrossim, é indiscutível o tra somente a cabeça e as mãos (= razão +
sentido de autonomia da vontade no século ação, ou vontade); o resto do corpo é a par-
XIX, ainda persistente em boa parte da dou- te oculta do iceberg – a natureza física, cuja
trina civilista, tal como anota Antonio Jun- essência, no homem, aquela filosofia igno-
queira de Azevedo (1989, p. 14). ra”6.
Estar-se-ia diante da primeira concepção Percebe-se que essa visão da autonomia
da autonomia da vontade, de caráter subje- da vontade, denominada “francesa” por
tivo ou individualista. Antonio Junqueira de Azevedo (1986, p. 77),
Após os sucessos da Revolução em Fran- corresponde a uma certa noção de liberda-
ça e a prevalência do dístico da igualdade, de ou de possibilidade conferida a cada pes-
fraternidade e liberdade, nada mais natural soa para agir ou não agir, de um modo ou
que se desse uma hipérbole na posição hu- de outro. Seria “uma esfera de autodetermi-
mana na sociedade. A homens nascidos li- nação individual que pode, ou deve, ser
vres e iguais, indispensável reconhecer-lhes maior ou menor, segundo a maneira de ver
a liberdade de criar ou produzir direito. dos vários autores”.
A autonomia da vontade elevou-se à ca- Absolutamente emblemática sobre essa
tegoria de princípio do Direito e de fonte das autonomia da vontade à francesa, fortemen-
relações jurídicas. Essa concepção, como te contaminada por influxos jusnaturalis-
visto, é o resultado de um constante evoluir tas, é a interessante passagem do Marquês
do pensamento jusfilosófico, em que ocu- de São Vicente (apud RODRIGUES JUNIOR,
pam posições destacadas a doutrina da Igre- 2002, p. 40-41), abaixo transcrita:
ja, o Direito Natural e o individualismo de- “O direito ou liberdade de contra-
corrente das idéias liberais da Ilustração tar é de tal modo evidente que ninguém
(RIPERT, 2000, p. 52). jamais dirigiu-se a impugná-lo; seria
É assim que juristas como LAURENT para isso necessário pretender que o
(apud RANOUIL, 1980, p. 35) vão oferecer homem não pode dispor de sua inteli-
justificações filosóficas e positivas à auto- gência, vontade, faculdade ou propri-
nomia da vontade. As primeiras fundam-se edade.
na idéia de que “la liberté est l’essence des Não basta porém reconhecer este
contrats et la liberté de contracter est elle- direito como inconcusso, é demais
même un droit naturel de l’homme (73.) Les necessário saber respeitá-lo em toda a
formules utillisées sont très significatives: sua latitude e suas lógicas conseqü-
‘...l’homme ne vit pas uniquement de pain; le ências, senão o princípio, posto que
corps n’est que l’instrument de l’âme; (...) ‘La consagrado, será mais ou menos inu-
liberté de contracter a toujours été considérée tilizado com grave ofensa dos direi-
comme une dépendance du droit des gens, tos do homem; entraremos pois em re-
elle appartient à tour homme comme tel”. sumida análise do mesmo.

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O contrato não é uma invenção ou dera universalmente como o fundamento da
criação da lei, sim uma expressão da autonomia volitiva: o art.1.134 do Código
natureza e razão humana, é uma con- Civil dos Franceses de 18047, reproduzido
venção ou mútuo acordo, pela qual em termos simétricos no art. 702 do Código
duas ou mais pessoas se obrigam para Civil Português de 1867; art.1.091 do Códi-
com uma outra, ou mais de uma, a go Civil Espanhol de 1889; art.1.933 do Es-
prestar, fazer ou não fazer alguma boço de Código Civil de Teixeira de Freitas8
coisa. É um ato natural e voluntário (1983).
constituído pela inteligência e arbítrio Ao indicar que as convenções legalmen-
do homem, é o exercício da faculdade te formadas têm força de lei para aqueles
que ele tem de dispor dos diversos que as fizeram, os legisladores do Oitocen-
meios que possui de desenvolver o seu tos geravam uma contradictio in terminis, per-
ser e preencher os fins de sua nature- ceptível pela simples leitura dessa passa-
za, de sua existência intelectual, mo- gem de Laurent (apud RANOUIL, 1980, p.
ral e física. 35), quando este cuida dos fundamentos po-
O contrato não é mais do que um sitivos da autonomia da vontade: “La se-
expediente, uma forma que o homem conde explication de la souveraineté de la
emprega para dispor do que é seu, dos volonté est très précise: l’autonomie des par-
seus direitos privados, segundo sua ties contractantes est reconnue en droit in-
vontade e condições do seu gosto, se- terne par l’article 1134 du Code civil dont
gundo suas necessidades e interesses; l’article 1387 n’est qu’une application parti-
é o meio de estipular suas relações re- culière. Ces dispositions autorisent les parti-
cíprocas; é em suma a constituição es- es à jouir ‘de la plus entière liberté tant qu’elles
pontânea, livremente modificada, que ne font que régler leurs intérêts privés”.
cria ou transporta seus direitos ou Henri de Page (1948, p. 15, t. 2), autor do
obrigações particulares, de que pode século XX, mas profundamente influencia-
dispor como lhe aprouver. do pela visão francesa do Novecentos, tam-
Inibir ou empecer direta ou indire- bém incorre na mesma contradição ao con-
tamente esta faculdade, o livre direito ceituar a autonomia da vontade como “o
de contratar, é não só menosprezar poder reconhecido às vontades particula-
essa liberdade, mas atacar simultane- res de regularem, elas próprias, todas as
amente o direito que o homem tem de condições e modalidades de seus vínculos,
dispor de seus meios e recursos, como de decidir, por si só, a matéria e a extensão
de sua propriedade. Uma das primei- de suas convenções”.
ras garantias, sem a qual não há ple- Daí a procedência da crítica de Antonio
nitude de propriedade, é a da livre Junqueira de Azevedo (1989, p. 15), ao pon-
disposição dela; ora, proibir ou res- tuar que “... é evidente, cai por terra a idéia
tringir a liberdade de contratar é evi- da autonomia como poder de fato; tratar-se-
dentemente proibir ou restringir o li- ia, na verdade, de ‘poder jurídico’, isto é,
vre uso e disposição da propriedade”. autorização dada previamente pelo ordena-
É paradoxal, como bem anota Antonio mento, para que o indivíduo, respeitadas as
Junqueira de Azevedo (1989, p. 15), mas a regras legais, dê causa, por meio do negócio
concepção francesa traz em seu interior o jurídico, a efeitos jurídicos”.
gérmen de sua própria destruição. A vonta- Por sua enorme simetria a tais observa-
de individual estaria sendo autorizada pelo ções, merece ser transcrita essa passagem
ordenamento jurídico. Tanto assim o é que de Marcel Waline (1945, p. 169):
os códigos do Oitocentos apresentam uma “L’article 1134 du Code civil pose
fórmula-padrão para definir o que se consi- bien le principe célèbre: ‘Les conven-

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tions légalement formées tiennent lieu ções com os princípios tradicionais dos con-
de lois à ceux qui les ont faites’, mais tratos (AZEVEDO, A. J., 1998, p. 115), ao es-
il ne le justifie ni ne l’explique; et ce tilo de certos súditos da República France-
laconisme du Code a incité les juris- sa que colaboraram com os nazistas sob o
tes à tenter à sa place cette explication governo em Vichy do general Henri-Phili-
et cette justification. On sait qu’ils ont ppe Petáin. De fonte da liberdade contratual –
imaginé alors la doctrine de e indiretamente da liberdade de contratar –
l’autonomie de la volonté. , passou a autonomia a sofrer toda sorte de
A vrai dire, c’est plutôt d’ailleurs deblaterações doutrinárias, quase sempre
un constatation ou une systématisati- seguidas de brados a que se lhes fossem
on de la règle de l’article 1134 qu’un impostos limites e contenções 9.
essai d’explication rationnelle. Un ad- Emílio Betti (1969, p. 107, t.1), nesse con-
versaire de cette théorie, M. Gounot, a texto, adequadamente proclama que a auto-
pu écrire que les auteurs classiques, nomia sob a égide da vontade põe a perder
pressés de justifier leur théorie sur a correta visão de negócio jurídico, o qual
l’autonomie de la volonté, ne pourrai- “não consagra a faculdade de ‘querer’ no
ent finalement répondre que ceci: ‘Le vácuo, como apraz afirmar a certo indivi-
contrat oblige... parce que le contrat dualismo, que ainda não foi extirpado da
oblige...’ (...). hodierna dogmática”.
Cette doctrine n’est cependant pas Eis que o século XX tem início em 1914,
inexplicable. On peut tout au moins sob as crateras de Verdun e do Somme, ferti-
rechercher, à défaut de justification lizado pelo sangue de toda uma geração de
rationnelle, les raisons qui ont déter- jovens, muitos deles advindos das melho-
miné son élaboration et son succès à res famílias da aristocracia européia, como
l’époque du Code civil, et celles qui que saídos de um poema de Alfred Lord
déterminent son déclin actuel.” Tennyson, ao estilo da famosa balada A car-
Para concluir que a autonomia da von- ga da brigada ligeira (RODRIGUES JUNIOR,
tade poderia ser enquadrada em duas pro- 2002, p. 79).
posições essenciais: toda obrigação, por ser Dá-se, com o pós-guerra, o advento de
sancionada pelo Direito, deve ser livremen- um tempo novo para um brave new world,
te consentida; mas, ao inverso, toda obriga- nas palavras de Aldous Huxley (2001, p.
ção, desde o instante em que é livremente 178). Fascismo, comunismo, nazismo, inter-
consentida, deve ser sancionada pelo Direi- venção estatal na Macroeconomia e na Mi-
to. As quais seriam sintetizadas em uma só croeconomia, quebra dos paradigmas e das
fórmula: “le libre consentement est la con- certezas do Oitocentos.
dition nécessaire et suffisante pour qu’un Assim, tais fatores externos tornariam a
engagement soi sanctionné par le Droit” Economia e seus institutos passíveis de sub-
(WALINE, 1945, p. 170). mersão às chamadas crises sistêmicas, nas
Percebe-se que a autonomia, qualificada palavras de John Maynard Keynes (1992, p.
apenas como um produto da vontade, reve- 235). Sua influência no Direito é assertoada
lou-se uma derivação reducionista do indi- por Orlando Gomes e Antunes Varela (1977,
vidualismo, esquecendo o substrato humanis- p. 23), escrevendo numa época em que ain-
ta que lhe deveria permear e, de modo ine- da imperava com grande fausto o Estado
quívoco, abrindo o flanco para as críticas intervencionista:
mais severas por sua posição tributária aos “Nesse quadro, o substrato econô-
desígnios da lei. mico, político e ético do Direito Civil
Durante todo o século XX, a autonomia desintegra-se, arrastando na queda as
da vontade estigmatizou-se por suas liga- estruturas formais que o envolviam.

120 Revista de Informação Legislativa


(...) Aquele direito privado que fizera os, que o exerceriam nos limites e em razão
do contrato o instrumento por exce- dessa última e de seus valores; d) a autono-
lência da vida econômica e a expres- mia privada tida como um poder outorgado
são insubstituível da autonomia pri- pelo Estado aos indivíduos.
vada, e, da propriedade, um direito Hans Kelsen (1995, p. 285) di-lo com
natural do homem sobre o qual se maior precisão: “Na medida em que a or-
apoiaria a vida econômica da socie- dem jurídica institui o negócio jurídico como
dade e dele próprio, não mais existe fato produtor de Direito, confere aos indiví-
onde já se implantou a nova econo- duos que lhe estão subordinados o poder
mia coordenada e dirigida pelo Esta- de regular as suas relações mútuas, dentro
do. Ele se fragmenta e cede terreno ao dos quadros das normas gerais criadas por
Direito Econômico. (...) O Direito Eco- via legislativa ou consuetudinária, através
nômico compreende as normas relati- de normas criadas pela via jurídico-negoci-
vas às relações econômicas, estejam al”.
no corpo do Código Civil, do Código Em seguida, o autor de Viena procura
Comercial ou em leis especiais, sejam resolver a flagrante contradição de homens
de direito privado ou público, integrem livres criando sanções de base normativa
este ou aquele ramo da árvore jurídi- para eventual aplicação a outros homens:
ca”. “A sanção estatuída na norma jurídica ge-
Todos esses movimentos deram ensejo a ral constitui, como dever principal, o dever
que surgisse uma nova visão da autonomia de omitir uma conduta contrária ao negó-
da vontade, tão própria que repudiará o ter- cio jurídico e, portanto, de não provocar pre-
mo vontade e colocará em evidência a partí- juízo que por ela é causado; e, como dever
cula privada. sucedâneo, o de indenizar o prejuízo cau-
Dir-se-á, agora, apenas, autonomia priva- sado pelo não-cumprimento do dever prin-
da. É a visão italiana, que guarda sonância cipal” (KELSEN, 1995, p. 287).
com “seu significado etimológico de dar De modo bem nítido, Hans Kelsen (1995,
normas para si mesmo” (AZEVEDO, A. J., p. 288) sustenta que o princípio da autono-
1986, p. 78). mia privada exprime-se na seguinte fórmu-
Com maiores ou menores discrepâncias la: uma norma criada contratualmente po-
entre suas orientações, podem ser alistados derá instituir direitos e obrigações só e ex-
nas hostes da autonomia privada os nomes clusivamente para as partes que a forma-
de Salvatore Romano, Luigi Ferri, Cariota- ram (ressalvados casos excepcionais, como
Ferrara, Santi Romano e Hans Kelsen. Sua os contratos a cargo ou em favor de terceiro,
linha dogmática tem recebido a denomina- previamente admitidos por lei).
ção de objetivista ou prescritiva, essa últi- Já Luigi Ferri (1959, p. 4-5) enaltece que:
ma que se evita o uso para não confundir “Tutto questo spiega l’imprecisione e il pro-
com status peculiar de Emílio Betti miscuo uso delle espressioni ‘autonomia
(AZEVEDO, A. J. 2002b, p. 9). privata’, ‘autonomia della volontá’, ‘libertà
Os pontos de aproximação entre esses contrattuale’, ecc., che ho ora rilevato; ma
autores estariam nos seguintes aspectos: a) spiega soprattutto la nessuna utilità costrut-
a supremacia do interesse público e da or- tiva del concetto di autonomia privata così
dem pública sobre o interesse particular e a configurato. (...) Ed infatti non vi sarebbe
esfera privada; b) a colocação do negócio attività umana volontaria che non possa
jurídico como espécie normativa, de caráter essere fatta rientrare in una tal concezione
subalterno, mas com caráter normativo; c) a dell’autonomia privata (ad esclusione
autonomia privada revelando um poder dell’attività attribuile allo Stato ed agli enti
normativo conferido pela lei aos indivídu- pubblici in generali)”.

Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 121


Adiante, ao cuidar do caráter da auto- Francesco Messineo (1952, p. 17), comen-
nomia privada, o mesmo autor reconhecer- tando as inovações do Código Civil italiano
lhe-á a função normativa, louvando-se em de 1942, enaltece a introdução de princípi-
Hans Kelsen, embora se escude no uso do os capazes de conter e limitar a autonomia
adjetivo social, com alguma freqüência, para privada. Raymundo M. Salvat (1950, p. 19)
qualificar sua visão de autonomia privata. noticia os abalos ao princípio da chamada
Para Luigi Ferri (1959, p. 255), a autonomia autonomia de la voluntad, entretanto, reconhe-
privada estaria situada no âmbito de cria- ce que as mudanças sociais e econômicas
ção das normas jurídicas pelo particular, exigiam a revisão dos antigos postulados.
sempre atribuído pelo ordenamento. Tais ressalvas não servem, contudo, a
Salvatore Romano (1957, p. 15) critica a preservar teoreticamente a visão italiana da
posição puramente normativista da autono- chamada autonomia privata, o que se afirma
mia privata: “Non à possibile, in altri termi- em consideração a diversos aspectos, os
ni, prescindere dal sistema nel quale quais, uma vez desenvolvidos, conduzem a
l’elemento normativo è, a sua volta, inqua- uma visão social da autonomia privada da von-
drato. A parte le distinzioni prospettate tra tade – aqui se recuperando os três elementos
varie specie di autonomie, ci sembrano da expressão.
senz’altro inaccettabillii i sistemi fondati es- Apenas a título de exemplo, capaz de
clusivamente sulle norme; per essere più demonstrar os exageros da visão normativa
esattti i sistemi che risolvono l’autonomia da autonomia privada, tem-se o art. 421, do
in norme coisì come rsolvono l’intiero odi- novo Código Civil: “A liberdade contratual
namento giuridico in norme...”. será exercida nos limites e em razão da fun-
Embora reconheça ser um erro “reduzir ção social do contrato ”.
tudo à norma”, Salvatore Romano (1957, p. A par da erronia em substituir liberdade
16) não apresenta soluções originais para o de contratar por liberdade contratual, o dispo-
problema, limitando-se a invocar uma certa sitivo sujeita a autonomia privada da von-
idéia de institucionalismo. tade – corolário dessas liberdades – não so-
Esse caráter institucional da autonomia mente aos limites, mas, exacerbadamente,
privada é também defendido por Luis Díez- ad libitum da interpretação que venha a ser
Picazo e Antonio Gullón (1995, p. 372), ao conferida à função social do contrato. Essa crí-
certo que para os autores espanhóis aquela tica, manifestada por Antonio Junqueira de
se reveste do caráter de princípio geral do Azevedo, revela quão perniciosos podem ser
Direito, “porque es una de las ideas funda- os efeitos de uma óptica normativista-obje-
mentales que inspira toda la organización tiva em derredor à noção de autonomia pri-
de nuestro Derecho privado”. A tanto, não vada. O condicionamento de seu exercício
se deve vinculá-la aos postulados liberais, in concrectu às razões da função social opera
da autonomia da vontade, como um poder um giro radical: dos abusos do individua-
de criação particular, muito menos confun- lismo passa-se à opressão do estatalismo.
di-la com a prerrogativa de criação de re- Por influência das observações de Anto-
gras jurídicas in concretu, como querem os nio Junqueira de Azevedo e de Álvaro Villa-
objetivistas. ça Azevedo (2002, p. 37), o Deputado Ricar-
O império da autonomia privada na cen- do Fiúza, relator do novo Código Civil na
túria que findou é inegável. Sob a escusa de Câmara Federal, apresentou o projeto de lei
afastar a superada visão de autonomia da n o 6.960/2002, em que, entre outras modifi-
vontade, permeada de insustentável indivi- cações, propõe seja dada a seguinte reda-
dualismo, recorreu-se ao intervencionismo ção ao art. 421: “A liberdade contratual será
legal e judicial do Estado como forma de coi- exercida nos limites da função social do
bir os abusos da liberdade pelos particulares. contrato”.

122 Revista de Informação Legislativa


Na justificativa, o Senhor Deputado Ri- vontade e autonomia privada, uma solução
cardo Fiúza aduziu que: “A alteração pro- que permeasse seu caráter pré-jurídico
posta, atendendo a sugestão dos professo- (MIRANDA, 1989, p. 63) e social.
res Álvaro Villaça Azevedo e Antônio Jun- Na análise dessa terceira concepção, uti-
queira Azevedo, objetiva inicialmente subs- lizar-se-á a fórmula autonomia privada da
tituir a expressão ‘liberdade de contratar’ vontade, de molde a recuperar os três termos
por ‘liberdade contratual’. Liberdade de da expressão.
contratar a pessoa tem, desde que capaz de O negócio jurídico, manifestação por ex-
realizar o contrato. Já a liberdade contratu- celência da autonomia privada da vontade,
al é a de poder livremente discutir as cláusu- pode ser invocado para demonstrar que, sob
las do contrato. Também procedeu-se à su- uma visão estrutural – não funcional ou
pressão da expressão ‘em razão’. A liberda- genética –, pode ser dito apenas existente,
de contratual está limitada pela função soci- abstraindo-se considerações acerca de sua
al do contrato, mas não é a sua razão de ser”. validez ou invalidez. Sob tal consideração,
Observe-se que o surgimento da auto- ter-se-ia um negócio jurídico válido ou in-
nomia da vontade como um princípio jurí- válido – nesse caso, nulo ou anulável – sem
dico e filosófico foi a resposta que a Civili- qualquer violência lógico-formal. Sua exis-
zação Ocidental soube dar a anseios secu- tência estaria assegurada, o problema seria
lares por igualdade e liberdade. Sua afirma- colocado quando do ingresso no plano da
ção encontra grande justificativa nos con- validade (AZEVEDO, A. J., 2002b, p. 11-13).
flitos entre o Antigo e o Novo Regime, o Ab- Nesse caso, estar-se-ia afastando a idéia
solutismo e a Revolução; os contrastes entre de voluntarismo e de normativismo como
os calções e as perucas empoadas dos ho- inerentes ao negócio jurídico, o que, reco-
mens do Setecentos e as calças e as roupas nheça-se, é a derivação lógica das duas con-
escuras dos representantes do Oitocentos. cepções sobre autonomia privada da vonta-
O século XIX, com a igualdade formal, a de até aqui estudadas.
liberdade que se realizava apenas nos di- Encontra-se espaço, portanto, para uma
plomas constitucionais e a fraternidade re- nova concepção – dita social – de autono-
tórica, foi confrontado com as exigências de mia privada da vontade.
um século XX pulsante e incontrolável, con- Emílio Betti (1969, p. 89) e Antonio Jun-
testador e céptico, descrente na capacidade queira de Azevedo (1989, p. 17) referem-se
humana de resolver seus problemas indivi- ao famoso caso de Alvise Cá da Mosto (um
dualmente. navegador vêneto que realizava, no século
A autonomia da vontade teve em Frie- XV, negócios com tribos africanas) e às nar-
drich Von Schiller (2001, p. 8) um de seus rativas de Heródoto sobre práticas comer-
grandes poetas, expondo, por meio do aris- ciais dos cartagineses com povos bárbaros.
tocrata rebelde Karl von Moor, a insurgên- Em ambas situações fica relevante a presci-
cia contra os costumes de um passado ain- ência da juridicidade desses atos, indepen-
da presente. E Aldous Huxley (2001, p. 178), dentemente de disposições normativas an-
com o Senhor Selvagem, investido na per- tecedentes ou de alguma noção prévia de
feição de um admirável mundo novo, no estado10.
qual as vontades eram suplantadas desde Clóvis Beviláqua (1977, p. 154), em 1895,
os embriões e controladas por drogas líci- já percutia tais idéias, falando em “funcção
tas, representou a denúncia de um século social do contracto” e pronunciando que:
XX ainda encantado com a autonomia pri- “Por meio do contracto, o habitante do ex-
vada em sua concepção estatalista. tremo da Asia ou da Australia e o que vive
Impunha-se, como superação dessas sob o céo americano, onde brilha a luz bran-
concepções unilaterais de autonomia da ca da estrella polar, ou onde resplandece a

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constellação do cruzeiro, reconhecem a con- Francisco Cavalcanti Pontes de Miran-
gruencia de seus interesses, associam-se, da (2000, p. 81) também compreende a auto-
ainda que momentanemanete, e, sem que nomia da vontade como algo que pode ser
jamais se vejam, entram numa cooperação, realizado num ambiente pré-jurídico e, a
para o fim de satisfazerem as proprias ne- partir do qual, pode ingressar ou não ingres-
cessidades. Embóra não se conheçam, se- sar no Direito. Embora a considere auto-re-
não como armazens de onde se expedem e gramento da vontade, o autor percebe muito
para onde se dirigem mercadorias, a confi- bem que “a vida social tece-se com interes-
ança se estabelece entre ambos, longa e pro- ses, em relações inter-humanas, que neces-
funda, facilitando as transacções, centupli- sariamente ultrapassam e ficam aquém da
cando as energias”11. esfera jurídica, isto é, da zona colorida em
Na literatura moderna, encontram-se que a) os fatos se fazem jurídicos; b) as rela-
outros exemplos bem pertinentes. O primei- ções nascidas independentemente do direi-
ro é do náufrago Robinson Crusoé, isolado to se tornam jurídicas e, c) relações jurídi-
em uma ilha no Atlântico. Na solitude, Ro- cas, nascidas, portanto, no direito, se esta-
binson Crusoé padece por não possuir uma belecem”.
referência ao outro – a alteridade –, que se Prosseguindo: “Vive-se em ambiente de
revelaria na linguagem e no diálogo, expres- contínua iniciativa particular, privada, ou
sões de sua racionalidade. Seu isolamento em movimentos grupais, de multidão ou de
não permitia falar-se na existência do social massa. Os sistemas jurídicos apenas põem
e do jurídico. Somente com a chegada de Sex- no seu mundo, dito mundo jurídico, parte
ta-feira, o indígena, é que se transforma a dessa atividade humana. Ainda assim, não
realidade daquela personagem. a prendem de todo; e deixam campo de ação,
Sêneca, Aristóteles e Santo Tomás de em que a relevância jurídica não implique
Aquino revelam esse caráter de sociabilida- disciplinação rígida da vida em comum.”
de de tudo quanto é humano em dísticos ou (MIRANDA, 2000, p. 81). Chegando, por
expressões como zoon politikon, animal socia- derradeiro, a conclusões similares às de An-
lis e homo est naturaliter politicus, id est, socia- tonio Junqueira de Azevedo e Emílio Betti:
lis (“O homem é, por natureza, político, isto “Desde as tribos mais primitivas,
é, social”) (ARENDT, 2001, p. 32). assim foi e é; e não se poderia negar a
A partir desse reconhecimento, é possí- existência de relevância jurídica das
vel admitir a autonomia privada em termos trocas entre homens do século XV ou
bem próximos ao que Emílio Betti (1974, p. XVI e os silvícolas, com a prática de se
1559) propõe em seu verbete no Novissimo colocar em lugar certo o objeto ofereci-
digesto italiano, tendo em conta as exigênci- do e de se ir buscar o outro objeto, so-
as da moderna sociedade, destituída do sim- mente porque não há (diz-se) organi-
ples caráter de suporte das relações patri- zação política. Ora, todo contacto,
moniais ou obrigacionais: “La ragione sali- amigável ou pacífico, ou guerreiro,
ente del riconoscimento dell’autonomia pri- entre pessoas de sistemas jurídicos
vata è da ravvisare in ciò: Che la funzione diferentes, é político; se há negócios
ordinatrice del diritto nell’ambito di una entre elas, fazem-se jurídicos. Não ha-
moderna società organizzata non può limi- via, certo, ordem jurídica que regulasse
tarsi al còmpito, per sè statico, di proteggere o negócio; mas havia duas ordens jurí-
l’attuale distribuzione dei beni, ma deve dicas em contacto, regendo cada uma o
assumere il perenne rinnovamento, agevo- dever e a obrigação do que a ela estava
lando la circolazione dei beni e la coopera- submetido” (MIRANDA, 2000, p. 82).
zione fra consociati secondo i bisogni via Tal perspectiva, dita social, não impede
via emergenti.” 12 a formulação de limitações à autonomia pri-

124 Revista de Informação Legislativa


vada. O século XX foi pródigo em tal inten- se de preceito destinado a integrar os con-
to, resgatando a velha cláusula rebus sic stan- tratos numa ordem social harmônica, visan-
tibus, sob a forma de teoria da imprevisão – do impedir tanto aqueles que prejudiquem
atualmente vista à luz dos deslocamentos a coletividade (por exemplo, contratos con-
patrimoniais e da alteração das circunstân- tra o consumidor) quanto os que prejudi-
cias (RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 1118- quem ilicitamente pessoas determinadas
1122). Há, ainda, a limitação das cláusulas (...)”, deste modo:
abusivas, a inserção automática de regras “A idéia de função social do con-
externas ao contrato ou a possibilidade de trato está claramente determinada
se realizar a execução específica da obriga- pela Constituição, ao fixar, como um
ção de contratar (PERLINGIERI, 1999, p. dos fundamentos da República, o va-
279). O art. 334 do Código Civil de Portugal lor social da livre iniciativa (art.1 o, in-
define que “é ilegítimo o exercício de um ciso IV); esta disposição impõe, ao ju-
direito, quando o titular exceda manifesta- rista, a proibição de ver o contrato
mente os limites impostos pela boa fé, pelos como um átomo, algo que somente in-
bons costumes ou pelo fim social ou econô- teressa às partes, desvinculado de
mico desse direito”. tudo o mais. O contrato, qualquer con-
Após a vigência da Lei n o 8.078, de 11 de trato, tem importância para toda a so-
setembro de 1990, criou-se um novo sistema ciedade e essa asserção, por força da
contratual no âmbito das relações de con- Constituição, faz parte, hoje, do orde-
sumo, fundado nos princípios da socializa- namento positivo brasileiro – de res-
ção da teoria contratual; da boa-fé; do in- to, o art. 170, caput, da Constituição
tervencionismo estatal na edição de leis li- da República, de novo, salienta o va-
mitadoras do poder de auto-regulamenta- lor geral, para a ordem econômica, da
ção de cláusulas contratuais e na determi- livre iniciativa.”
nação do conteúdo de alguns contratos em Observe-se, ainda, que a autonomia pri-
atividades essenciais, além de permitir ao vada preserva em seu conteúdo positivo a
Poder Judiciário controlar a economia con- possibilidade de se realizarem deslocamen-
tratual, pela coibição do cumprimento de tos patrimoniais mediante negócios jurídi-
cláusulas abusivas (RODRIGUES JUNIOR, cos e, em seu conteúdo negativo, uma cláu-
2002, p. 158-162). sula geral de que os bens particulares so-
Entrementes, o que a concepção social mente podem ser dispostos por sua vontade.
da autonomia privada possibilita é a inte- Quanto ao primeiro aspecto, o funda-
ração do Direito e, especificamente, do ne- mento desse poder negocial não se encon-
gócio jurídico, num ambiente pós-moderno, tra na vontade por ser vontade ou na lei por
com novos paradigmas, em que até a outro- ser lei, mas no caráter social e na utilidade
ra incontestável supremacia do Direito Pú- que esse caráter oferece aos homens que vi-
blico é passível de revisão, ainda que em vem gregariamente (BEVILÁQUA, 1977, p.
ordenamentos mais estáveis como o italia- 155). No que se refere ao segundo, de natu-
no.13 reza negativa, a proteção ao patrimônio é
Ressalte-se, por indispensável, que a regra de índole magna – ninguém será pri-
concepção social é inconfundível com a vado da liberdade ou de seus bens sem o
pura e simples incidência do conceito jurí- devido processo legal, art.5o, inciso LIV,
dico de “função social”. Constituição de 1988 –, da qual se pode ex-
Antônio Junqueira de Azevedo (1998, p. trair a proteção à autonomia privada como
116) anota ainda que o princípio da função uma prerrogativa fundamental.
social “difere do da ordem pública, tanto Um negócio jurídico dispositivo qual-
quanto a sociedade difere do Estado; trata- quer permite seja fixada a natureza proces-

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sual da obrigação, pela incidência da cláu- Joaquim de Sousa Ribeiro (1999, p. 20-
sula do due process of law, e, nesse sentido, a21) propõe uma distinção ontológica entre
realização mesma da autonomia privada da autonomia privada e autodeterminação, o que,
vontade como um valor constitucionalmen- por certo, permitirá sejam solucionados com
te protegido. A socialidade, também, dá con- maior segurança alguns dos complexos pro-
teúdo fundamental e serve de alicerce prin- blemas que a pós-modernidade tem apre-
cipiológico à atividade econômica (valores sentado ao homem.
sociais do trabalho e a livre iniciativa), sus- De fato, a autonomia privada, de que a li-
tentando a relevância da concepção do cará- berdade contratual é um componente e a
ter social da autonomia privada da vontade. mais relevante expressão, constitui-se em um
“processo de ordenação que faculta a livre
5. Autonomia privada da vontade e constituição e modelação de relações jurídi-
autodeterminação cas pelos sujeitos que nela participam. É,
em termos etimológicos, uma normação
Por fim, cumpre fazer uma derradeira pelo próprio que vai ficar obrigado à obser-
incursão terminológica em torno das expres- vância dos efeitos vinculativos da regra por
sões autonomia e autodeterminação. si criada (RIBEIRO, 1999, p. 20).”
O princípio da autodeterminação foi ob- A autodeterminação, a seu modo, seria um
jeto de expressa adesão constitucional no poder juridicamente reconhecido e social-
art.4 o, inciso III, que o reconhece como um mente útil, de caráter ontológico, baseado
dos primados da República Federativa Bra- numa abertura do homem para o mundo e
sileira em suas relações exteriores. Seu con- suas experiências e solicitações sensíveis ou
teúdo é fornecido pelo Direito Constitucio- não. O plano da autodeterminação estaria
nal e pelo Direito Internacional Público, con- no poder de cada indivíduo gerir livremente a
sistindo, em linhas bem gerais, na prerroga- sua esfera de interesses, orientando a sua vida de
tiva de cada povo constituir-se em estado acordo com as suas preferências (RIBEIRO, 1999,
soberano, produzindo regras próprias so- p. 22).
bre seus súditos e sobre a organização in- Tais concepções estão muito próximas
terna de suas instituições políticas, com o às que José Joaquim Gomes Canotilho (1998,
respeito das demais pessoas jurídicas inter- p. 1283), esforçado em John Elster e Saint
nacionais. Holmes, denomina autovinculação, princípio
Autodeterminar-se politicamente é fazê- pelo qual os indivíduos e as sociedades, por
lo “através da criação de instituições políti- meio de uma constituição, adstringem-se “a
cas assentes na decisão e participação dos fim de resolver os problemas resultantes da
cidadãos no governo dos mesmos (self-go- racionalidade imperfeita e dos desvios das
vernment)”, o que se dá mediante uma re- suas vontades”.
presentação territorial, um procedimento A autovinculação, que se expressa de um
justo de seleção dos representantes e uma modo positivo ou negativo, daria margem
deliberação majoritária daqueles, limitada ao autogoverno dos indivíduos, mediante a
pelo reconhecimento de direitos e liberda- pré-seleção de condutas pelas regras cons-
des cívicos (CANOTILHO, 1999, p. 218). titucionais, seja mediante restrições ou exi-
Ocorre, porém, que no interesse mais gências, que resultariam em um comporta-
peculiar ao Direito Privado, a palavra auto- mento óptimo dos homens, fundado na dig-
determinação vem ganhando contornos di- nidade da pessoa humana, voltado à extin-
versos, prefigurando-se como uma catego- ção das espécies discriminatórias (por et-
ria jurídica mais ampla que a autonomia nia, sexo ou opção ideológica) ou à educação
privada da vontade, mas assimétrica com para condutas justas e úteis (CANOTILHO,
aquela idéia de ordem publicística. 1998, p. 1284).

126 Revista de Informação Legislativa


Entretanto, prefere-se o termo autodeter- va ínsita à esfera de autodeterminação da
minação, por seu caráter mais específico e pessoa humana, encontrando-se no Brasil
seus vínculos com o Direito Privado, para a obra de Rachel Sztajn (2002, p. 180) como
qualificar o modo de regência humana de exemplo dessa linha argumentativa.
suas condutas num plano individual. Esse Nesse tocante, ao estilo das orientações
conceito também encontra lastro constituci- aqui sustentadas, seria incompatível com o
onal (art.1 o, inciso III), pois realiza a digni- texto constitucional e com o chamado direi-
dade da pessoa humana, sob a óptica do perso- to geral da personalidade a admissão, ainda
nalismo ético-social e adstrita ao reconheci- que sub conditione, do direito de morrer como
mento do valor absoluto da pessoa humana. expressão do âmbito de autodeterminação
Logo, a autodeterminação açambarcaria humana. É o que Jürgen Habermas (2002, p.
a autonomia privada da vontade, bem as- 9) chamaria de uma responsabilização soli-
sim as escolhas individuais quanto à ideo- dária pelo outro como um dos nossos, o que se
logia, ao partido político, à religião, à dita alcança numa comunidade moral que “se
opção sexual e ao direito de renunciar à pró- constitui exclusivamente pela idéia negati-
pria vida. va da abolição da discriminação e do sofri-
Os tempos pós-modernos exigem do ju- mento, assim como da inclusão dos margi-
rista uma posição a esse respeito. Conforme nalizados – e de cada marginalizado em
Erik Jayme (1999, p. 29), “dentre os valores particular –, em uma relação de deferência
básicos da pós-modernidade destaca-se o mútua. Essa comunidade projetada de modo
reconhecimento do pluralismo, da plurali- construtivo não é um coletivo que obriga
dade de estilos de vida e a negação de uma seus membros uniformizados à afirmação
pretensão universal à maneira própria de da índole própria de cada um. (...) Antes, a
ser (die Absage na universelle Ansprüche eige- ‘inclusão do outro’significa que as frontei-
ner Anschauungen). Isto pode ser dito de for- ras da comunidade estão abertas a todos –
ma mais radical: é a aceitação do não conci- também e justamente àqueles que são estra-
liável”. nhos um ao outro – e querem continuar sen-
Abre-se, por conseguinte, o necessário do estranhos”.
ambiente para a superação de uma visão
ultrapassada de idealismo, que contaminou
o pensamento jurídico em parte do século
XX, bem assim a colocação de um novo en- Notas
foque ao também incompatível racionalis- 1
Confira-se a interessante abordagem desse tex-
mo de matiz jusnatural. to, realizada de modo original por Arnaldo Vas-
O único campo em que será travada uma concelos (2001, p. 32), a quem se atribui a inspira-
ção dessa paráfrase.
luta de maior interesse diz com o chamado 2
Para uma visão sobre as diferentes espécies de
direito de morrer, porquanto, bem ou mal, as normas, vale conferir Hans Kelsen (1996, p. 27),
demais questões – de ordem ideológica, re- especialmente por reproduzir o pensamento final
ligiosa e de opção sexual – tendem a ser resol- do autor de Viena, após suas sucessivas mudan-
vidas pelo embate legislativo ou pelos in- ças quanto à norma hipotética e seu conteúdo.
3
“Com esta fórmula – conhecida simplesmente
fluxos jurisprudenciais, com uma forte ten- como ‘Lei de Maine’ – quer-se exprimir a idéia de
dência para a ampla autodeterminação, que, enquanto nas sociedades antigas as relações
posto que, n’alguns casos, ofensiva a valo- entre os homens – poder-se-ia dizer o seu modo de
res de índole teológica a que se deveria con- estar em sociedade – eram determinadas, em larga
ferir maior importância. medida, pela presença de cada qual a uma certa
comunidade ou categoria ou ordem ou grupo (por
Quanto ao problema do direito de morrer, exemplo a família) e pela posição ocupada no res-
há uma forte tendência no direito anglo-sa- pectivo seio, derivando daí, portanto, de modo
xão a que seja considerado uma prerrogati- mecânico e passivo, o seu status, ao invés, na socie-

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dade moderna, tendem a ser, cada vez mais, o fru- para ajudar os contratantes em caso de dúvida em
to de uma escolha livre dos próprios interessados, melhor compreender por eles mesmos o que estipu-
da sua iniciativa individual e da sua vontade autô- laram ou para completar as lacunas eventuais de
noma, que encontra precisamente no contrato o seu sua convenção” (BATIFOL, 1968, p. 13).
símbolo e o seu instrumento de actuação” (RO- 10
“A visão social do ‘jurídico’, como um dado
PPO, 1988, p. 26). de cultura, é comum a todos os membros do grupo
4
Antonio Junqueira de Azevedo (1989, p. 14) social. Aliás, mesmo nas sociedades em que há gran-
faz referência a essa posição da autora francesa. des desníveis culturais, como a brasileira, aqueles
5
É necessário, porém, compreender que o senti- colocados nas escalas mais baixas, nem por isso,
do de autonomia da vontade no Direito Internacio- deixam de perceber o caráter vinculante de certos
nal Privado assume contornos assaz peculiares, pois comportamentos. O exame de nossa realidade, sob
se relaciona, em grande medida, com a liberdade esse ângulo, é duplamente ilustrativo, porque, de
de escolha, no contrato internacional, do foro com- um lado, temos os analfabetos, cuja assinatura a
petente para executar e discutir os termos da aven- rogo representa a consagração, pelo ordenamento,
ça e as relações da vontade particular em face das de que também eles, apesar do analfabetismo, re-
leis de ordem pública. conhecem a juridicidade do ato que praticam, e, de
6
Segundo Clóvis Verissimo do Couto e Silva outro, temos, no mesmo território, os índios não
(1990, p. 7-11), os códigos civis tradicionalmente integrados, que, justamente por estarem em outra
cuidavam dos contratos com as impressões do sé- cultura, poderão não entender o caráter jurídico
culo XIX, época de estabilidade e de segurança, dos atos que os membros da sociedade brasileira
qualidades essas incompatíveis com o século XX e vêem como negócio jurídico. Ao ato negocial, prati-
suas profundas transformações. A título de exem- cado pelo índio não integrado, com qualquer pes-
plo, tem-se o repúdio à cláusula rebus sic stantibus soa estranha à comunidade indígena, o direito brasi-
pelo direito no Oitocentos, que encontra raízes no leiro nega validade” (AZEVEDO A. J., 1986, p. 7).
rigorismo normativo que se pôde manter apenas 11
O texto conforma a grafia original.
enquanto conservados estavam os pilares de seu 12
Percebe-se que, no direito italiano, ainda per-
tempo: moeda estável; instituições políticas reacio- siste a separação entre autonomia privata e autono-
nárias; controle da produção industrial e mercados mia della volontà, porquanto é comumente reserva-
consumidores cativos. da a última expressão para identificar o instituto
7
Redação original: “Les conventions légalement de Direito Internacional Privado, conforme o verbe-
formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faite”. te no Novíssimo digesto italiano (BETTI, 1974, p.
Em vernáculo: “As convenções legalmente forma- 1561).
das têm força de lei para aqueles que as fizeram”. 13
Atualmente, essa dicotomia absoluta deve
8
O Código Civil italiano de 1865 pronunciava ser confrontada com as notas de Michele Giorgianni
que: “Os contratos legalmente formados têm força (1998, p. 54-55) sobre o ressurgimento da influên-
de lei para aqueles que os fizeram.” (“I contratti cia do Direito Privado no final do século XX: “Deste
legalmente formati hanno forza di legge per coloro modo, podem ser colocadas sobre bases adequa-
che li hanno fatti.”). O Código Civil Português de das as relações entre Direito Privado e Direito Ad-
1867, no art. 702, estabelecia: “Os contratos, legal- ministrativo, reconhecendo-se uma evolução que
mente celebrados, devem ser pontualmente cum- aconteceu num e noutro campos. E, na verdade, o
pridos; nem podem ser revogados ou alterados se- recíproco desconhecimento entre as duas esferas –
não por mútuo consentimento dos contratantes, que perdurou mesmo quando o Direito Adminis-
salvo as exceções especificadas na lei”. O art. 1.953 trativo tomou emprestado do Direito Privado al-
do Esboço de Código Civil não discrepava da ori- guns instrumentos dogmáticos essenciais – era com-
entação reinante no mundo ocidental: “Os contra- patível somente numa época em que o Direito Ad-
tos válidos têm força de lei para as partes contra- ministrativo constituía quase que um capítulo do
tantes” (FREITAS, 1983, p. 364). O art. 1.091 do Direito Constitucional. A aproximação entre as
Código Civil Espanhol, aprovado por Real Decreto duas esferas já está madura (...) pela íntima evolu-
de 24 de julho de 1889, determina que: “Las obliga- ção que se está operando no próprio âmbito do
ciones que nacen de los contratos tienen fuerza de Direito Administrativo. Também aqui – seja conce-
ley entre las partes contratantes, y deben cumplirse dido ao privatista notá-lo com alguma satisfação –
al tenor de los mismos.” fala-se de crise ou até mesmo de ‘caos’ por causa
9
Qualquer perspectiva de intervenção do Esta- da penetração dos elementos privatistas. Na verda-
do na economia contratual era repudiada de modo de, já existe uma larga zona em que o Direito Admi-
veemente: “A lei não intervém no processo senão nistrativo se comporta exclusivamente como direito
para impor o respeito àquilo que foi livremente con- estatutário dos entes públicos, do qual deriva uma
vencionado. Ela oferece seus préstimos pelas dis- ampla comunhão de conceitos e princípios com a
posições chamadas interpretativas ou supletivas, correspondente disciplina dos entes privados”.

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