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A Arte do Cozimento

Coloquemos num grande caldeirão de ferro, contendo


bastante água pura de mina, um pouco de praticamente
tudo que é vegetal (todos orgânicos é claro): inhame,
cenoura, cará, repolho, salsa, vagem, aipo, mandioca, alho
poro, feijão, batata, cebola, alecrim, couve, quiabo,
brócolis, chuchu, abóbora, nabo, manjericão, beterraba,
alho, tomate, etc., etc., etc. Cada novo vegetal que vamos
introduzindo no caldeirão tem seu próprio aroma, sua
textura, sua cor e seu sabor. Por fim, um pouco de sal
(muito pouco) para funcionar como uma espécie de animador
e incentivador de todas essas qualidades.

O fogo põe-se a crepitar sob a base espessa do


caldeirão. Decorrido algum tempo, começa a haver certa
tremulação geral, um estado de excitação, um frenesi: a água borbulha e os
vegetais se inquietam.

Quanto mais aumenta a temperatura, mais a energia circula entre os


participantes do cozimento geral, e quando a energia circula os intercâmbios
tornam-se inevitáveis. Um pouco do sabor do alecrim penetra no inhame que se
torna, então, “alecrinizado”. Um pouco da cor do tomate impregna a mandioca que
fica, digamos, levemente “tomatizada”. Do inhame alecrinizado despregam-se
algumas partículas que acabam se encontrando com as da batata “arrepolhada”.
Assim, todas as texturas, cores e sabores originais acabam cedendo algo de si e
contribuem para a composição do caldo grosso que é a sopa que se anuncia.

Como no inicio pusemos muita água e mantivemos o fogo brando, há muito


tempo ainda pela frente até que tudo isso fique pronto (na verdade, é difícil
podermos determinar com precisão o momento dessa prontidão).

De qualquer modo, por precaução, mantenhamos uma grande chaleira de


reserva com água em aquecimento para que a agreguemos, de quando em quando, ao
caldo, caso ele se torne demasiadamente denso. É absolutamente necessário que
prolonguemos ao máximo o tempo de cozimento.

Atenção: esta sopa não está sendo feita para ser comida, embora não haja
nenhuma razão para não fazê-lo. Seguramente ela ficará saborosa, não há nada que
possa nos fazer suspeitar do contrário. O que se pretende é que o cozimento sirva
como uma espécie de instrumento para estimular nossas reflexões sobre a vida, o
amor e a morte.

Olhemos, então, com atenção para a sopa que está se fazendo. É bem possível
que o Universo no qual surgimos seja uma espécie de caldeirão borbulhante como
este à nossa frente e que cada um de nós seja como um dos vegetais dentro da
sopa. Já é bastante comum ouvirmos falar da concepção de que o Universo inteiro é
um único ser vivo e não que ele apenas contenha seres vivos, uns aqui, outros acolá
(os biólogos, os químicos e os físicos mais atrevidos de hoje em dia são muito
inclinados a pensar assim). Se o Universo for mesmo isso, o que é o conhecimento,
como ele acontece?

Eu sou, digamos, como um vegetal dentro da sopa geral. Estou imerso desde
sempre e participo junto com todos os outros dessa dança fervilhante. Isso vale
também para meus ancestrais e os ancestrais dos ancestrais, que podem ser
minúsculas moléculas orgânicas ou mesmo inorgânicas (aliás, é essa diferença que
os estudiosos do assunto andam pondo em questão).

Se eu sou, por exemplo, um inhame, “conhecer” é, como “alecrinizar-me”,


“tomatizar-me”, “cenourizar-me”. Deixar-me, enfim, impregnar pelos outros
aromas, cores e sabores.

Os mais resistentes dirão: mas, se é assim, eu deixo de ser inhame, que é o


que de fato “eu sou”? Os mais flexíveis responderão: nunca esqueça de que você
não foi sempre inhame, que antes de ser inhame você foi terra e, além disso, do
estado de terra para o estado inhame você “foi sendo” muita coisa.

Conhecer, é então, transformar-se. É alquimia pura. É doar cores, aromas e


texturas, mas também e ao mesmo tempo, recebê-los sem cessar. Conhecer é não
resistir, é perder sempre para ganhar sempre mais.

Nenhum conhecimento está fora de nós, ele só se consuma quando nos


impregnamos daquilo que recebemos da sopa dançante, e, no mesmo instante em
que o fazemos, já não somos mais os mesmos: morremos para imediatamente
renascer. Entretanto, para receber é preciso haver espaço. Por isso doamos.

Não há como manter-se fixo onde tudo fervilha e flui. Podemos tentar
permanecer, com todas as forças de que dispomos, numa única posição. Congelar o
ego, defender ardorosamente um único ponto de vista. Tentar manter o mesmo
aroma, a mesma cor e o mesmo sabor. Entretanto, quando fazemos isso nós
encruamos. É aquele inhame que não cozinha, fica duro.

Mas o fogo é brando e o tempo é vasto. Mesmo os mais petrificados irão


cozinhar inevitavelmente. Esse é o destino dos componentes do caldeirão: doar
tanto e receber tanto que todas as identidades se dissolverão, um dia, num único
caldo. Todas as coisas aparentemente separadas percebem-se, enfim, como a
mesma coisa: a grande Sopa.

Olhemos de novo para o caldeirão onde o cozimento segue o seu curso. Essa
transmutação incessante que borbulha diante de nós vai revelando algo que já
poderíamos ter suspeitado antes: conhecimento é, então, amor. Amor é a energia
que entrelaça e vincula todas as coisas. Que faz tudo permanecer dentro do
caldeirão, dançando e transmutando.
Para intercambiar cores, aromas e sabores é preciso estar aberto, receptivo,
disponível atento, flexível. É preciso sintonizar, concordar, conceder, confiar,
consentir. Desvestir para revestir. Decompor para recompor. Tudo isso são
atributos do amor.

Quem resistir encrua quem aceitar cozinha. Os encruados ficam estagnados


por tempo indeterminado, os bem cozidos integram-se na evolução da sopa. Ganham
um novo sabor. Um novo estado de consciência.

Taunay Daniel

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