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ESCUTANDO O COEFICIENTE DE RESTITUIÇÃO E A ACELERAÇÃO

GRAVITACIONAL DE UMA BOLA

Carlos Eduardo Aguiar [carlos@if.ufrj.br]


Francisco Laudares [f_laudares@hotmail.com]

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro

O coeficiente de restituição de uma bola que está quicando sobre uma superfície
horizontal pode ser medido com surpreendente acurácia a partir do som produzido pelas
colisões da bola com a superfície [1-4]. O procedimento é simples: deixa-se a bola cair
verticalmente sobre a superfície, de forma que ela salte livremente durante algum tempo, e
grava-se o som gerado pelos impactos. A análise da gravação permite medir o intervalo de
tempo entre colisões sucessivas, e com isto calcular o coeficiente de restituição.
Para entender a relação entre o coeficiente de restituição ε e o tempo entre dois
impactos, observe que se ε é constante (independente da velocidade), e a resistência do ar é
pequena, a velocidade da bola logo após a n-ésima colisão com a superfície será dada por

vn = v0 ε n (1)

onde v0 é a velocidade com que a bola atinge a superfície pela primeira vez. O tempo de vôo
Tn entre as colisões n e n+1 é proporcional a vn,

2
Tn = v n , n = 1, 2 , 3 K (2)
g

onde g é a aceleração gravitacional. Combinando as Eqs. (1) e (2) obtemos

Tn = T0 ε n (3)

onde T0 ≡ 2v 0 g . Aplicando o logaritmo aos dois lados da Eq. 3 encontramos

log Tn = n log ε + log T0 (4)

ou seja, o gráfico de log Tn × n é uma linha reta cujo coeficiente angular é log ε , e cujo
coeficiente linear é logT0 . Assim, o coeficiente de restituição pode ser obtido ajustando-se
uma linha reta às medidas do tempo de vôo. Diferentes implementações deste procedimento
podem ser encontradas nas Refs. [1-4].
O objetivo desta nota é mostrar que o mesmo ajuste pode determinar uma outra
grandeza física de interesse: a aceleração gravitacional g. Nossa observação, aliás bastante
simples, é que se a bola for abandonada de uma altura conhecida h, então T0 = (8h / g )1 / 2 e

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8h
g= . (5)
T02

Portanto, assim como o coeficiente angular da Eq. (4) fixa o coeficiente de restituição, o
coeficiente linear (dado por T0) determina a aceleração da gravidade. Uma outra maneira de se
medir g com esse tipo de experimento pode ser encontrada na Ref. [4].
Para verificar como isso funciona na prática, nós deixamos cair uma bolinha do tipo
“perereca” sobre uma superfície lisa de pedra, e gravamos o som dos impactos. A gravação
foi feita com um microfone conectado à placa de som de um PC/Windows, usando o software
que acompanha o sistema operacional. A freqüência de amostragem foi de 22050 Hz, o que dá
uma resolução temporal de 45 µs. O arquivo de som foi armazenado no formato binário
WAV, e convertido para o formato de texto ASCII com auxílio do programa (shareware)
AWAVE AUDIO [5]. O sinal gravado está mostrado na Fig. 1, onde os pulsos correspondentes
aos impactos individuais são facilmente identificáveis. Utilizamos a resolução de 8 bits na
gravação do sinal, de modo que os dados correspondem a números inteiros entre 0 e 255. A
ausência de sinal corresponde ao valor 128.
200
sinal gravado

150

100

50
0 1 2 3 4
tempo (s)
Figura 1. O som de uma bolinha quicando em uma superfície horizontal. O nível sonoro zero
corresponde ao valor 128 no eixo vertical.

Nós obtivemos os intervalos de tempo Tn entre as colisões n e n+1 por inspeção direta
do arquivo ASCII contendo o sinal sonoro. Os resultados estão mostrados na Fig. 2 (em
escala logarítmica) como função de n. Usando o método de mínimos quadrados nós ajustamos
a Eq. (4) a esses pontos, e encontramos

ε = 0,9544 ± 0,0002 , (6a)

T0 = 0,804 ± 0,001 s . (6b)


A reta ajustada também está mostrada na Fig. 2.

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1.0
0.9
0.8
0.7

0.6

Tn (s)
0.5

0.4

0.3
0 2 4 6 8 10 12
n
Figura 2. Tempo de vôo Tn entre os impactos n e n+1. A linha reta representa o ajuste por
mínimos quadrados da Eq. (4) aos dados.

A bola foi largada de uma altura h = 79,4 ± 0,1 cm acima da superfície de pedra.
Substituindo os valores de h e T0 na Eq. (5) obtemos para a aceleração gravitacional

g = 982 ± 3 cm/s2.
Para comparação, o valor de g do Rio de Janeiro é 978,8 cm/s2.
O método descrito acima só é aplicável se ε for constante na faixa de velocidades
relevante para o experimento. Que esta condição é satisfeita pode ser visto na Fig. 3, onde o
coeficiente de restituição para um impacto com velocidade vn, ε = vn+1 vn = Tn+1 Tn , é
mostrado como função de Tn (lembre que vn ∝ Tn, veja a Eq. (2)). Os coeficientes de
restituição dos impactos individuais são todos muitos próximos do valor obtido com o ajuste
global por mínimos quadrados (dado na Eq. (6a) e indicado pela linha tracejada na Fig. 3).
1.00
coeficiente de restituição

0.98

0.96

0.94

0.92

0.90
0.4 0.5 0.6 0.7 0.8 0.9
tempo de vôo (s)
Figura 3. O coeficiente de restituição ε = v n+1 v n como função do tempo de vôo Tn. A linha
tracejada indica o valor dado na Eq. (6a).

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Um caso em que o coeficiente de restituição depende da velocidade é apresentado na
Fig. 4, onde mostramos os tempos de vôo de uma bola que cai de h = 27,5 ± 0,1 cm sobre
uma superfície de madeira. O valor de ε em cada colisão está mostrado na Fig. 5, e podemos
notar claramente que o coeficiente de restituição depende do tempo de vôo (ou seja, da
velocidade de impacto). Supondo uma relação linear entre ε e T, como sugerido pela Fig. 5,

ε = ε 0 (1 + αT ) , (7)

obtemos

n −1
Tn = T0 ε 0n ∏ (1 + αTi ) . (8)
i =0

0.7
0.6
0.5
0.4

0.3
Tn (s)

0.2

0.1
0 4 8 12 16
n
Figura 4. Tempo de vôo Tn entre os impactos n e n+1. A linha representa o ajuste da Eq. (8)
aos dados.

1.00
coeficiente de restituição

0.98

0.96

0.94

0.92

0.90
0.2 0.3 0.4 0.5
tempo de vôo (s)
Figura 5. O coeficiente de restituição ε = v n+1 v n como função do tempo de vôo Tn, para os
dados da Fig. 4. A linha tracejada representa a Eq. (7), com os parâmetros dados na Eq. (9).

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O ajuste por mínimos quadrados da Eq. (8) aos dados mostrados na Fig. 4 resultam em

ε0 = 0,921 ± 0,001 (9a)

α = 0,078 ± 0,003 s-1 (9b)

T0 = 0,4752 ± 0,0005 s (9c)

As curvas correspondentes a estes parâmetros também estão mostradas nas Figs. 4 e 5. Com
os valores de h e T0 encontramos

g = 974 ± 5 cm/s2 ,
novamente um resultado bem razoável. Foi essencial ter levado em conta a variação do
coeficiente de restituição com a velocidade – se considerarmos que ε é constante, obteremos g
= 935 ± 10 cm/s2.
Em resumo, vimos que a aceleração gravitacional pode ser facilmente medida em
experimentos concebidos para “ouvir” o coeficiente de restituição. A obtenção de g é
particularmente simples se o coeficiente de restituição for independente da velocidade, mas
casos mais complicados também podem ser tratados.

REFERÊNCIAS

[1] A.D. Bernstein, Listening to the coefficient of restitution, American Journal of Physics 45,
41 (1977)
[2] P.A. Smith, C. D. Spencer, and D.E. Jones, Microcomputer listens to the coefficiente of
restitution, American Journal of Physics 49, 136 (1981)
[3] I. Stensgaard and E. Lægsgaard, Listening to the coefficient of restitution – revisited,
American Journal of Physics 69, 301 (2001)
[4] M.A. Cavalcante, E. Silva, R. Prado, e R. Haag, O estudo de colisões através do som,
Revista Brasileira de Ensino de Física 24, 150 (2002)
[5] AWAVE AUDIO (conversor de formatos de áudio), FMJ-Software, http:\\www.fmjsoft.com

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