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Transtornos mentais:

uma visão da sociedade sobre os portadores que comentem infrações

Mental disorders:
society's view of those who commit infractions

Desordenes mentales:
la opinión de la sociedad sobre quienes cometen infracciones

Camila Honorato Pereira1

Júlia Inês Damasceno Moura2

Kemelly Cristina Da Silva3

Túlio Louchard Picinini Teixeira4

Resumo

O presente estudo é fruto de uma revisão de literatura que tem como objeto de estudo a forma
como a sociedade e os profissionais psicólogos tratam as pessoas com sofrimentos mentais,
especialmente aqueles que cometem atos infracionais ou criminais. Para tal foi necessário
entender as raízes do preconceito da sociedade para com as pessoas com sofrimento mental e
como estas concepções afetaram e afetam o sofrimento mental desses sujeitos. Neste percurso
vale destacar também as reflexões sobre quais são as punições para os loucos infratores e
como estes poderiam ser tratados em função da chamada reforma psiquiátrica.

Palavras-chave: Saúde mental, Estigma; Preconceito; Louco infrator; Exclusão social

Abstract

The present study is the result of a literature review that has as its object of study the way in
which society and professional psychologists treat subjects with mental suffering, especially
those who commit infractions or criminal acts. For this, it was necessary to understand the
roots of society's prejudice towards people with mental suffering and how these conceptions
affected and still affect the mental suffering of these subjects. In this journey, it is also worth

1
Aluna concluinte do curso de graduação em Psicologia. Centro Universitário UNA
2
Aluna concluinte do curso de graduação em Psicologia. Centro Universitário UNA
3
Aluna concluinte do curso de graduação em Psicologia. Centro Universitário UNA
4
Professor orientador do TCC do curso de graduação em Psicologia. Centro universitário UNA
highlighting the reflections on what are the punishments for insane offenders and how they
could be treated in terms of the so-called psychiatric reform.

Keywords: Mental health, Stigma; Preconception; Mad offender; Social exclusion

Resumen

El presente estudio es el resultado de una revisión bibliográfica que tiene como objeto de
estudio la forma en que la sociedad y los profesionales de la psicología tratan a los sujetos
con sufrimiento psíquico, especialmente a aquellos que cometen infracciones o actos
delictivos. Para eso, fue necesario comprender las raíces del prejuicio de la sociedad hacia las
personas con sufrimiento psíquico y cómo esas concepciones afectaron y aún afectan el
sufrimiento mental de estos sujetos. En este recorrido, también vale la pena destacar las
reflexiones sobre cuáles son los castigos para los infractores dementes y cómo podrían ser
tratados en términos de la llamada reforma psiquiátrica.

Palabras clave: Salud mental, Estigma; Preconcepción; Delincuente loco; Exclusións.

Introdução

O termo estigma deriva-se do grego antigo “steizen”, que designa a marca que era

gravada no corpo de escravos e criminosos, ou seja, era destinada aos cidadãos que eram

membros da sociedade com um “menor valor”. (Xavier, Klut, Neto, Ponte & Melo, 2014)

A definição mais utilizada na Psicologia para o termo preconceito foi dada por Allport

(1954), que o define como atitudes e ou ações negativas em relação a um sujeito, ações essas

baseadas nas próprias crenças. Ao enfatizar sobre os preconceitos atribuídos aos sujeitos

portadores de doença mental é possível falar sobre as crenças negativas como a

periculosidade e incurabilidade, demonstrando que mesmo com o conhecimento de como

surgem as doenças mentais, as pessoas costumam elencar estereótipos de que os doentes

mentais são perigosos ou agressivos, resultando na persistência das relações de

distanciamento e exclusão, o que promove grandes implicações nas atuais políticas públicas.

Foucault (1972), em sua obra “A história da loucura”, expõe que a estigmatização e

o preconceito contra o louco infrator prevaleceu ao longo dos tempos e levou à uma exclusão

social desses sujeitos, fazendo-os viverem à margem da sociedade dita normal. Bader (2002)
afirma que o processo de naturalização da exclusão social, representada pela aceitação do

próprio excluído e da sociedade, gera uma atmosfera social de conformismo, compreendendo

a condição de exclusão como fatalidade. "Exclusão, eis aí numa só palavra a tendência

central da assistência psiquiátrica brasileira, desde os seus primórdios até os dias de hoje"

(Resende, 1994, p. 37).

Considera-se que a sociedade está, muitas vezes, consciente do que pode ser feito

tanto no aspecto médico, psicológico e social, porém se conduz pelo cenário de preconceitos,

estigmas e atitudes negativas contra os sujeitos portadores de doença mental. Para Cavalcante

(2020, p. 30):

Vê-se que a Luta Antimanicomial representa muito mais do que o fechamento dos
Manicômios ou a mudança no tipo de tratamento do modelo hospitalocêntrico para o
modelo comunitário. [...] O pensamento antimanicomial pede a mudança na postura
social e cultural em relação à noção de loucura ou do que é considerado anormal ou
desviante em nossa sociedade, clama por transformações nas relações da sociedade para
com a loucura.

Em vias práticas, as mudanças para o pensamento antimanicomial foram difíceis e

demoradas. Um bom exemplo é o da implementação da Lei nº 10.126/2001, responsável pela

nova política de saúde mental, um marco importante para a discussão e proteção dos direitos

dos usuários dos equipamentos dessa rede, debruçando-se no cuidado de “pessoas com

sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e

outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde.” (Brasil, 2001, p.3)

É então no contexto ora apresentado que se insere a problemática do presente estudo.

Esta revisão da literatura tem como objetivo identificar e conhecer como os profissionais da

saúde mental encaram tais sujeitos institucionalizados e como definem suas intervenções.
Os pesquisadores consideram ser relevante para a Psicologia, como para toda a

sociedade, o ato de conhecer e refletir sobre os estereótipos e as crenças circundantes nos

meios sociais, com o intuito de analisar como essas representações repercutem na aceitação

da reforma psiquiátrica e na forma de aderir ao novo modelo de assistência psiquiátrica,

considerando inclusive o atendimento extra-hospitalar.

No decorrer do presente trabalho serão citadas diversas terminologias ao se referir as

pessoas com sofrimento mental, isto se dá em razão dos diversos autores utilizados para a

contribuição do trabalho, de forma que seja autêntico as terminologias dadas nas épocas

apresentadas.

Formas de preconceito e o medo contra os “sujeitos com doença mental”: um ponto de

vista social e histórico

As reflexões sobre a questão da saúde mental levantam muitas questões: Por que o

sujeito portador de doença mental é visto com medo e aversão por muitos? Por que as pessoas

portadoras de transtornos mentais são excluídas do meio social e do mercado de trabalho?

O preconceito contra os portadores de doenças mentais está presente na sociedade

desde as mais remotas épocas, em suas variadas formas de representação, se modificando ao

longo do tempo e em meio às culturas. Talvez este preconceito seja fruto do medo do

desconhecido e/ou de uma soma de crenças que se originam da falta de conhecimento e

compreensão. (Cetolin, 2011)

Na Idade Média, os leprosos foram excluídos da sociedade, designados a espaços

físicos, sociais e ideológicos que logo foram ocupados pelos considerados loucos. Somente

após o avanço da ciência alienista e da criação de hospitais psiquiátricos é que nasceu o

interesse em estudar os doentes mentais. Estes saberes médicos eram direcionados para o
retorno da sanidade mental do louco, em uma perspectiva de controle, de limpar a sociedade

daquilo que se distanciava do “comum”. (Cetolin, 2011)

Segundo Foucault (2008), o homem moderno não se comunica mais com o louco,

pois há uma separação entre o mundo da razão e o da doença mental. Os ditos normais

encaminham os loucos para os médicos e são esses os responsáveis por manterem relações

com os loucos. Por outro lado, o homem da loucura se comunica com o outro por uma razão

totalmente abstrata: a ordem, o impedimento físico e moral e a exigência de conformidade.

Em suma, para Foucault, a linguagem da psiquiatria constitui um monólogo da razão sobre a

loucura.

Levando-se em conta o cenário aqui descrito, Mattos (2006) afirma que houve uma

transformação do conceito de loucura para o conceito de doença mental, o que abriu portas

para um novo objeto de estudo: a loucura. Surgiu então um primeiro conceito sobre o que

seria a loucura com Philippe Pinel, que relatava que o louco era o sujeito que vivia distante da

realidade, dominado por impulsos com condutas agressivas e ou irresponsáveis. Após

observações, Pinel desenvolveu a primeira classificação das doenças mentais: melancolias,

manias sem delírio, manias com delírio e demências. (Cetolin, 2011)

Com o incremento de estudos científicos e da tecnologia no campo de pesquisas da

psiquiatria moderna, surgiu o manual DSM – IV, que elucida as doenças mentais em suas

diversas categorias. Em tal documento a doença mental é vista como uma síndrome

comportamental ou psicológica associada ao sofrimento ou incapacitação. (APA, 1995).

Com o desenvolvimento dos estudos sobre os transtornos mentais, surgiram análises

dos modelos de medidas de segurança em relação aos sujeitos com transtornos mentais

acometedores de delitos. Manicômios judiciários são instituições destinadas aos sujeitos

portadores de doenças mentais infratores de delitos penais. Segundo Birman (1978), a

separação do sujeito portador de doença mental infrator do delinquente dócil surgiu devido à
ordem pública de segurança, contribuindo para a segurança social. Nesse sentido, Durkheim

(2007) assinala:

Com efeito, se o crime é uma doença, a pena é seu remédio e não pode ser concebida de
outro modo; assim, todas as discussões que ela suscita têm por objetivo saber o que ela
deve ser para cumprir o seu papel de remédio. Mas, se o crime nada tem de mórbido, a
pena não poderia ter por objeto curá-lo e sua verdadeira função deve ser buscada em
outra parte. (Durkheim, 2007, p.71)

Estabelecida a noção de caráter perigoso, que resultou no conceito de periculosidade,

o que implica distinção entre o sujeito “louco” e o sujeito “normal” e as consequentes

imputabilidade e inimputabilidade, surgiram as medidas de segurança no final do século XIX.

(Cetolin, 2011)

Foucault (2008) afirma que se tornou necessário que as justiças desempenhem um

procedimento aprofundado do delito cometido a fim de culminar a pena precisa em cada

cenário. Segundo Cetolin (2011), diversos estudos e teorias da psiquiatria se formam com

possíveis características biológicas do louco criminoso. Vale lembrar os estudos de Esquirol

e outros que pretendiam saber o nível de sanidade mental do sujeito.

No Brasil, o tratamento dos sujeitos portadores de doenças mentais se dava em

hospitais, instituições religiosas e de auxílio da sociedade, como por exemplo, curandeiros,

benzedores, entre outros. De acordo com Cetolin (2011), a psiquiatria começa a se

desenvolver no país a partir da criação dos cursos de medicina no século XIX, ancorados na

influência europeia de tratamento.

Embora na atualidade existam consideráveis estudos que embarcam e conceituam a

doença mental, os sujeitos portadores de doenças mentais ainda sofrem com o preconceito

que os cercam. Segundo os especialistas de saúde mental, este preconceito é chamado de

Psicofobia. Alves, Santos, Ferreira, Costa & Costa (2017) explicam que o termo psicofobia
significa medo ou exagero irracional da mente em relação ao sujeito portador de doença

mental. No Brasil, este medo não tem sido reconhecido no sentido clínico, mas é percebido

como preconceito ou discriminação contra pessoas com transtornos ou deficiências mentais.

São vários os exemplos de transtornos mentais que são alvos de preconceitos: depressão,

bipolaridade, bulimia, anorexia, autismo, síndromes em geral, alcoolismo, dependência

química em geral, entre muitos outros. (Wentz, 2017)

As formas de punições jurídicas contra “doentes mentais” que cometeram infrações

penais

Desde o direito antigo, sempre existiram medidas de segurança destinadas aos

portadores de doenças mentais. Independente do século, essas doenças intrigavam a

sociedade. Durante a Idade Média, os atos cometidos pelos doentes mentais não eram

compreendidos pela sociedade, sendo vistos como manifestações demoníacas, sob a ótica do

intenso poder que as ideologias das Igrejas Católicas tinham naquela época. Nesse período,

os doentes mentais eram submetidos à diversos tipos de torturas, como por exemplo,

queimados em fogueiras da Inquisição para que pudessem pagar por seus “pecados”.

(Marafanti, Pinheiro, Ribeiro & Cordeiro, 2013)

No final da Idade Média e início do Renascimento, os doentes mentais passaram a ser

vistos como obstáculos para o crescimento da classe emergente (Burguesia), sendo na

maioria das vezes expulsos da cidade, encarcerados em prisões e ou manicômios com o

objetivo de isolá-los da sociedade. (Marafanti et al., 2013)

Em 1800, na Inglaterra, surgiu o primeiro manicômio judiciário, logo após a tentativa

de homicídio do Rei Jorge III por um indivíduo com notáveis sintomas de doença mental. A
Inglaterra foi o primeiro país a instituir o tratamento psiquiátrico para doentes mentais que

porventura tivessem cometido algum delito. (Marafanti et al., 2013)

A medida de segurança foi pela primeira vez sistematizada no Código Penal Suíço,

em 1983, elaborado por Karl Stoss, com o título de “Penas e Medidas de Segurança”.

Dispunha sobre a internação dos criminosos considerados reincidentes, em substituição da

pena, em um estabelecimento adequado, sendo que por lá permaneceriam entre dez e vinte

anos. A medida de segurança aparece também na Lei Portuguesa de 1896, no Código Penal

Norueguês em 1902, no Código Penal argentino em 1921 e em 1930, no código Penal

Italiano. O Código Penal Norueguês, de 1902, determinava em seu art. 39, que “[...]se um

tribunal considerasse o réu como perigoso para a segurança pública, em virtude de sua

irresponsabilidade total ou parcial, poderia ordenar sua internação em um asilo de alienados,

para estabelecimento de cura e assistência”. (Marafanti et al., 2013, p. 47)

Já no Brasil, antes da vinda da coroa Portuguesa, existia algumas ordenações

jurídicas, sendo as Ordenações Filipinas (1603 a 1830) a principal. O Direito Penal da época

era refletido no Livro V dessas ordenações, sendo a pena de morte a principal sentença:

Ordenações Filipinas – Livro V, Título CXXXV: “Quando os menores serão punidos por
os delitos, que fizerem. Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte annos,
commetter qualquer delicto, dar-se-lhe-ha a pena total, que lhe seria dada, se de vinte e
cinco annos passasse. E se fôr de idade de dezasete annos até vinte, ficará em arbítrio dos
Julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha. E em esse caso olhará o Julgador o
modo, com que o delicto foi commettido, e as circunstâncias delle, e a pessôa do menor;
e se o achar em tanta malicia, que lhe pareça que merece total pena, dar-lhe-ha, postoque
seja de morte natural. E parecendo-lhe que não a merece, poder-lha-ha diminuir, segundo
a qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delicto foi commettido. E quando o
delinquente fôr menor de dezasete annos cumpridos, postoque o delicto mereça morte
natural, em nenhum caso lhe será dada, mas ficará em arbítrio do Julgador dar-lhe outra
menor pena. E não sendo o delicto tal, em que caiba pena de morte natural, se guardará a
disposição do Direito Comum.” (Marafanti et al., 2013, p. 47)
A partir do Código do Império, em 1830, surgem, no Brasil, as medidas de caráter

preventivo e curativo. Tal dispositivo legal foi o primeiro Código brasileiro a mencionar a

questão do doente mental, chamado de ‘sujeito portador de doença mental” no texto legal ou

de “louco de todo o gênero”. Na peça, estabelecia-se que o mesmo deveria ser recolhido em

estabelecimento apropriado ou entregue para a sua respectiva família, como determinasse o

arbítrio do juiz. Determinava-se ainda que o doente mental não seria julgado criminoso, salvo

se em intervalo lúcido. Ao determinar o recolhimento em instituição apropriada, estabelecia-

se uma espécie de medida de segurança. (Marafanti et al., 2013)

Código Criminal do Império do Brasil – Art. 10: “Também não se julgarão criminosos:
§1.º Os menores de quatorze annos. §2º Os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem
lucidos intervallos e nelles commetterem o crime”. Art. 12: “Os loucos que tiverem
commettido crimes serão recolhidos às casas para elles destinadas, ou entregues ás suas
famílias, como ao juiz parece mais conveniente”. (Marafanti et al., 2013, p. 47)

No art. 22, do Código Penal de 1940, Título III “Da Responsabilidade”, é possível

perceber que se passa a adotar um critério para o pressuposto da responsabilidade penal,

sendo ele de caráter biopsicológico:

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto
ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o
caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
(Marafanti et al., 2013, p. 48)

O Art. 78 do mesmo Código presume a periculosidade daqueles que, nos termos do

Art. 22, eram isentos de pena. O Art. 91 determinava que o agente isento de pena, nos termos

do Art. 22, fosse internado em manicômio judiciário. Também dividiu, no Art. 88, as medidas

de segurança em pessoais e patrimoniais, sendo as primeiras classificadas em detentivas

(internação em manicômio judiciário, casa de custódia e tratamento, colônia agrícola,


instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional) e não detentivas (liberdade

vigiada, proibição de frequentar determinados lugares, exílio local). (Marafanti et al., 2013)

Enfim, as medidas de segurança usuais podem ser divididas em contenção e limitação.

Na primeira, deve ser internado o autor não imputável de crime punível com prisão, uma vez

que a lei presume a sua periculosidade. No entanto, se o delito for acompanhado de pena

privativa de liberdade, ele poderá ser internado ou receber tratamento ambulatorial, a critério

do juiz, para aplicação da medida restritiva de segurança. (Marafanti et al., 2013)

Formas de (re) inserção social do “louco infrator”

A reabilitação é uma estratégia de inclusão social, pois a inclusão psicossocial do

sujeito portador de doença mental e infrator tem por objetivo fortalecer as relações sociais.

(Saraceno, 2001). Reabilitar é gerar autonomia e novas oportunidades na vida para o sujeito

portador de doença mental, ou seja, é a “[...] capacidade de um indivíduo gerar normas,

ordens para a sua vida, conforme as diversas situações que enfrente” (Kinoshita, 2001, p.57).

Dimenstein (2006) expõe desafios em viabilizar a (re)inserção social do sujeito

portador de doenças mentais que cometeram delitos, devido a uma dinâmica institucional

falha. Nesse cenário incluem-se as condições salariais e de trabalho, falta de capacitação e um

investimento insuficiente do Sistema Único de Saúde (SUS), além de sujeitos que optam por

permanecer em instituições hospitalizados (Venturini, Oliveira & Mattos, 2016).

É notório que os sujeitos portadores de doenças mentais, ao adentrarem em uma

instituição manicomial, iniciam um processo de perda de identidade, que traz a incapacidade

de enfrentar aspectos na sua vida diária além da instituição. A barreira que é criada entre o

sujeito portador de doença mental e o mundo exterior provoca mutilações no Eu e perda do

seu papel social e civil. Assim, ao retornar para a sociedade, resta ao sujeito apenas

insegurança e inacessibilidade.
Portanto, é considerável a falta de uma rede assistencial de acolhimento, seja

comunitário ou familiar para a (re)inserção do sujeito portador de doença mental na

sociedade. Essa assistência não deveria desconsiderar o sofrimento mental, mas pautar-se

pela construção do laço social do psicótico, ressignificando aquilo que foi rejeitado para o

sujeito e considerando os fenômenos que se apresentam como tentativas de criar vínculos

sociais. (Venturini, Oliveira & Mattos, 2016).

Pensamos o trabalho com o psicótico na direção daquilo que não se efetuou para ele e
que ele mesmo se esforça para realizar. Por isso, não enfatizamos a eliminação dos
sintomas, o que não significa que recusamos o acesso à medicação para apaziguar o gozo
destrutivo, mortífero. O tratamento será pautado no estímulo à “historicização” dos
fenômenos ao considerarmos que são repletos de sentido, conforme preconiza uma
clínica que considere o sujeito. (Dunker & Kyrillos Neto, 2015, p. 93)

As Residências Terapêuticas (RTs) e os Acompanhantes Terapêuticos (ATs) são

fundamentais no processo de (re) inserção social. Os ATs exercem suas funções do lado de

fora dos manicômios, auxiliando os usuários em sua vida cotidiana, oferecendo apoio,

desenvolvendo o alívio dos sintomas do paciente, o suporte social e familiar, alternativas de

trabalho e buscando a não exclusão do portador de doença mental que cometeu delito.

(Venturini, Oliveira & Mattos, 2016).

É a partir desse cenário que se constrói uma nova realidade para os sujeitos

portadores de doenças mentais, um novo espaço na sociedade e para o tratamento de cada

sujeito. Ressalta-se a importância da escuta nos acompanhamentos, mantendo constância na

reinvenção da prática, a partir daquilo que o indivíduo apresenta (Palombini, 2007).

Posto isto, evidencia-se a ação do AT no que se propõe a reabilitação psicossocial

para diminuir os danos proporcionados pelo sofrimento mental, promover caminhos de

trabalho e evidenciar as potencialidades do indivíduo (Gruska & Dimenstein, 2015). Silva &

Silva (2006, p. 210) destacam que “[...] nos diferentes percursos pela cidade, muito mais do
que se orientar ou ambientar-se, trata-se de usar o próprio tecido urbano como espaço de

novas produções de sentido, fazendo com que as próprias intervenções desse espaço possam

adquirir uma função terapêutica”

Exemplo de tecnologia de reinserção social do louco infrator, o Programa de Atenção

Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) proporciona o acompanhamento integral ao louco

infrator junto com uma equipe multidisciplinar, durante todo o processo criminal. Essa

assistência é possível pela parceria entre o Judiciário, o Executivo e a comunidade,

viabilizando a rede pública de saúde e de assistência social de acordo com a Lei 10.216/2001.

Pode-se considerar que essa seria uma forma de garantir a acessibilidade dos direitos

constitucionais, bem como recuperar os laços sociais desses indivíduos (Venturini, Oliveira

& Mattos, 2016).

Outro sistema de (re)inserção social é o Programa de Atenção Integral ao Louco

Infrator (PAILI), que também se constitui pelos mesmos fundamentos do PAI-PJ. O PAILI é

responsável pelo cumprimento das normas de segurança do estado de Goiás, vinculado à

Secretaria de Saúde. Mudando o paradigma na execução de medidas de segurança e

estabelecendo que o louco infrator seja acolhido definitivamente pelos serviços de saúde

pública, o PAILI democratiza o Sistema Único de Saúde (SUS) e garante aos pacientes,

assistência dos médicos e equipes psicossociais das clínicas conveniadas ao (SUS). Tal

programa determina e exerce uma melhor prática terapêutica, pois a atuação dos profissionais

deve ser direcionada por todo um sistema de saúde mental, que inclui também os Centros de

Apoio Psicossocial (CAPS). (Venturini, Oliveira &Mattos, 2016)

O CAPS, por sua vez, oferece serviços de saúde, abertos e comunitários, com caráter

substitutivo ao hospital psiquiátrico. Lá ocorrem os atendimentos diários ao sujeito portador

de doença mental, incluindo aqueles com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e

outras substâncias, que se encontram em situações de crise ou em processos de reabilitação


psicossocial. No CAPS ocorrem atendimento com equipes multiprofissionais, que

empregam diferentes intervenções e estratégias de acolhimento, como psicoterapia,

seguimento clínico em psiquiatria, terapia ocupacional, reabilitação neuropsicológica,

oficinas terapêuticas, medicação assistida, atendimentos familiares e domiciliares, entre

outros. Tal assistência preocupa-se com o sujeito, sua singularidade, sua história, sua cultura

e sua vida cotidiana. As ações do CAPS podem evitar as internações em hospitais

psiquiátricos, acolhendo e atendendo as pessoas com transtornos mentais graves e

persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território,

promovendo a inserção social das pessoas com doenças mentais por meio de ações

intersetoriais que visam regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na

sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede básica. (Kantorski, Souza,

Farias, Santos & Couto, 2018)

O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP)

também é um meio de (re) inserção social e de referências para atuação profissional no

campo das políticas públicas. Seu objetivo geral é garantir que o compromisso social seja

ampliado, produzindo informações para que possam implementar inovações no meio social

visando maior reflexão e elaboração que valorizem as pessoas com sofrimento mental

enquanto sujeito de direito. Para isso é necessário criar um vínculo que é iniciado pelo

acolhimento e que reconheça os direitos dessas pessoas como um cidadão que deve ser

respeitado em suas necessidades e individualidades na medida em que expressam diferenças e

singularidades. (CPF, 2013)

Segundo estudos, a partir do CREPOP, o modo a se referir a essas pessoas do ponto

de vista psicológico passou a ser: Pessoas com Transtornos ou Sofrimento Psiquicos/ Mental.

(CPF, 2013)
Portanto, é de fundamental importância contar com diversos recursos que

desconstroem a imagem sujeito portador de sofrimento mental para garantir que, na prática

cotidiana, tais desconstruções possam ser ampliadas e institucionalizadas, de modo que o

objetivo das instituições de assistência sejam respeitar a história de cada um e assim, investir

sentido para aquilo que se apresenta ameaçador e que foi arrancado do sujeito. Nesta

perspectiva, o sujeito carente de atenção e cuidado pode alinhar o contexto de sua história

através de recordações, reconhecimentos e juntar fatos subjetivos que permitem um

conhecimento maior sobre si e sobre seu sentimento singular (Venturini, Oliveira &Mattos,

2016).

Considerações Finais

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou constatar como o imaginário

social do louco infrator está estigmatizado ao ponto de gerar a inadequação das pessoas com

sofrimento mental. Esse imaginário domina os familiares e a sociedade, que compreendem as

pessoas com sofrimento mental como incapaz, classificando-o de acordo com os preconceitos

existentes desde a Idade Média. Tal preconcepção faz com que a assistência ao chamado

louco infrator encontre ainda sustentação em estruturas de confinamento administrados pelo

Estado: os manicômios judiciários.

Com a promulgação da Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das

pessoas com sofrimento mental e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, todas

as práticas foram necessariamente criticadas na esperança de um triunfo. No entanto,

nenhuma realidade muda apenas por força de Lei, mas pode-se considerar que a caminhada

foi iniciada, pois algumas mudanças já foram conquistadas, outras ainda se fazem urgentes. A

anistia à todas as pessoas condenadas e o cumprindo de medidas de segurança adequadas são


mudanças que ainda esperadas, em prol de valores fundamentais como liberdade, igualdade e

dignidade em geral, importantes para os sujeitos portadores de doença mental.

Em uma breve análise sobre o contexto geral de relações e histórias concernentes aos

delitos e à loucura, ainda há questões quanto ao imaginário social e em especial ao direito

penal, tal como: por que ainda existem os manicômios e seus congêneres? A razão talvez

esteja na existência da intimidação ao se falar em “loucos criminosos”? Ou porque ainda

temos divisões de classes sociais, onde cabe ao pobre e psicótico a segregação? Enfim são

muitos os questionamentos que sugerem novas e mais aprofundadas pesquisas.

Se o aparato jurídico ainda precisa avançar, é certo que já existe jurisprudência que

embasa tal avanço, portanto, é primordial construir uma nova cultura capaz de

comunitariamente se responsabilizar pela garantia de direitos e condições para a justiça e

igualdade e não para um simétrico de deveres.

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