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1-\ MISSÃO DO JURISTA NA ELABORAÇÃO DAS LEIS

FILIPPO V ASSALLI
Pro f. na Faculdade de Direito da
Universidade de Roma

SUMÁRIO: A formação das fontes do direito. A desordem legis-


lativa. Técnica jurídica. As iniciativas do Poder Executivo
para o aperfeiçoamento do trabalho legislativo na Itália, In-
glaterra, França e outros países. Métodos de trabalho. A
lei, o direito e os juristas. Conclusão.

* O assunto, tal como foi enunciado, corresponde a uma situação


que caracteriza um determinado momento da História, a situação de
países nos quais as leis não são da alçada dos juristas, mas onde, jus-
tamente por causa disso, os legisladores se vêem obrigados a invocar a
ajuda dos mesmos, pelo menos no tocante à redação formal das leis.
Existe, aí, um estranho fenômeno que reponta nas mais diferentes
épocas da história: as recriminações sôbre o Estado de Direito têm,
de ordinário, a sua origem na desordem em que se encontram as fontes
do direito, a incerteza das leis, a sua multiplicidade, a sua falta de
clareza, as suas contradições, a insuficiência de pontos de referência,
a sua confusão, muito mais do que no próprio valor das leis, na sua
capacidade de harmonizar-se com as necessidades, os gostos, o bem-estar
e o progresso dos indivíduos que são obrigados a respeitá-las.
Daí, duas interpretações: a primeira, otimista, segundo a qual as
leis se afastam raramente das exigências experimentadas pelos homens
num dado momento de sua história; a segunda, muito mais pessimista,
segundo a qual os homens bem sabem que não podem contar com boas
leis, contentando-se, destarte, com leis pelo menos conhecidas e segu-
ras, e se limitando a encontrar um compromisso, para os casos con-
eretos, entre os seus interêsses particulares e a lei.

* NOTA DA RED.: Relatório Geral apresentado pelo Professor Filippo Vassaiii,


.0eão na Faculdade de Direito da Universidade de Roma.
(In «Actes du Congres lntemational de Droit Privé" tenu à Rome en juillet 19"0
-Deuxieme Volume de la Série - L'Unificarion du Droit - Rome - Editions "lT!1i_
droit" - Via Panisperna, 28 (Villa Aldobrandini) - 1951) . Tradução de Guilherme
Augusto dos Anjos.
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Fazendo-se abstração das pesquisas efetuadas pelos sábios de pri-


meira plana, homens políticos, economistas e sociólogos, as queixas que
se elevam contra o Estado de Direito visam antes ao estado das fontes
dêsse direito - quer essas fontes sejam representadas pelas leis ema-
nadas dos poderes públicos, quer pela autoridade dos juízes e dos au-
tores chamados, durante um dado período, a regulamentar a vida de
certas comunidades humanas - em suma, critica-se a formação das
fontes do direito mais do que o conteúdo dessas últimas. Quais são,
então, os remédios de que se pode cogitar? É preciso reorganizar, es-
clarecer, simplificar, modernizar, cortar o supérfluo, numa palavra, é
preciso estabelecer códigos - pouco importa êsses códigos provenham
de príncipes, autores ou senados - é preciso, para aquêles que acha-
rem demasiado solene essa palavra código, redigir consolidation bills;
testi unici e outras compilações semelhantes.
A tal respeito o papel dos juristas sempre foi preeminente: sendo
a tarefa de caráter técnico, quando a iniciativa não partia de técnicos,
era dêsses últimos, mesmo assim, que se invocava a ajuda.
A grande tarefa de codificar incessantemente compete, no mundo
inteiro, aos juristas.
Não convém insistirmos numa consideração tão evidente: os ju-
ristas jamais cessaram de desenvolver uma atividade que ninguém se-
quer cogitava de contestar quando fôsse preciso colocar nos estaleiros
um código de direito civil ou de direito penal, de comércio ou de pro-
cesso, desde as compilações de Justiniano até às codificações mais
exatas dos Estados modernos. Bons ou maus, os códigos, mesmo quando
encarados sob o ponto de vista puramente técnico, são obras de juris-
tas, e somente êstes é que merecem um elogio ou uma censura.
Mas a questão não consiste nisso. O nosso tema diz respeito a ma-
térias que, em geral, não pertencem ao domínio dos códigos: trata-se,
na espécie, da produção das leis especiais dos Estados modernos.
É nesse domínio que se vêem surgir as mais graves falhas técni-
cas e é nesse domínio que se requer o máximo de perfeição técnica.
A importância do problema está em pé de igualdade com a pro-
liferação enorme de uma tal produção, tanto mais que as leis assim
formadas abrangem matérias de tôda sorte e se superpõem, para o fu-
turo, a bastantes normas jurídicas, emanadas de outras fontes, às quais
se reservava até aqui a regulamentação tradicional de relações funda-
mentais, que presidem à vida civilizada.
Vozes cada vez mais numerosas se elevam, desde o comêço do sé-
culo, contra a técnica insuficiente ou defeituosa da legislação. O côro
dos protestos não fêz senão se avolumar nos países ciosos de sua tra-
dição jurídica. Podemos citar muitos trabalhos assinados por nomes
ilustres.
Na França, Capitant: Comment on fait les lois aujourd'hui; 1
Planiol: Les lois ignorées; 2 Saleilles, Larnaude, Levy Ulmann; 3 na
1 Révue polir. et parlem .. 10 juin 1917, p. 305.
1 Révue critique. 1911. p. 157.
3 Lamaude, L'évolution actuelle du régime répresentaúf, Union interparIamentalrt.
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Alemanha, Wendt, Zitelmann, Hedemann; oi assim como as freqüentes


observações publicadas no Deutsche Juristen Zeitung.
Na Bélgica, Picard se queixava desde 1881 da "loi boiteuse, im-
parfaite, souvent maladroite, parfois, tristement plaisante; elle four-
mille d'antinomies, d'erreurs, de contradictions, de vices de rédactions
et de style".5 Quanto a Speyer, somente via transações informes, la-
cunas e incertezas, quando estudava a legislação do outro após-guerra
sôbre os aluguéis, legislação rebuscada, fragmentária, desconexa. 6
No que concerne à Grã-Bretanha, Boutmy e Dicey lançam acusa-
ções bastante graves contra as leis que, segundo êles, são por demais
sujeitas ao ímpeto do momento, não levando suficientemente em conta
nem princípios gerais, nem a própria Lógica. 7
Freqüentemente, nos Estados Unidos da América do Norte, o
American Bar Association Journal denuncia o cáos legislativo, implo-
rando um pouco de ordem e de clareza. 8
A maioria dos autores não hesita em atribuir aos regimes parla-
mentares essa decadência na arte de formular boas leis.
Nenhuma ofensa se faz à inteligência dos membros do Parlamento,
observa PoIlock, quando se deixa entrever que a maioria dêles está
longe de possuir a necessária capacidade para essa tarefa especial
de redigir leis. 9 Larnaude conclui, não sem amargura, que o regime
representativo é o primeiro responsável por essa desordem que todo
o mundo presencia no domínio legislativo, dessa incompetência desola-
dora e cheia de perigos.
Por piedade filial nós nos abstemos de citar documentos a res-
peito do que em nosso país ocorre, com mais forte razão durante êste
segundo após-guerra. Magistrados, funcionários, advogados ou sim-
ples cidadãos particulares, todos nós possuímos, a tal respeito, uma
experiência pessoal. A desordem e a incapacidade infestam a legisla-
ção tanto em matéria ordinária quanto em matéria constitucional.
Erros e confusões podem ser respigados tanto nas leis votadas quanto
nos relatórios que ilustram os projetos de leis apresentados.

1928; Levy-Ulmann, Rapport sur le projet relatif à l'acquisition et à la perde de la


nationalité, BulI. Soe. Ét. Lég., 1917; Discours sur le côde civil, Université de LíI!e, 17 mai
1904, Révue internato de l'enseignement, 1904. Bibliographie dans la monographie tres
documentée de M. Alexander Angelesco, La technique législative en matiere de codifica-
tion civile, Étude de droit eomparé, Paris, 1930.
4 Wendt, Rechtssatz und Dogma, Jhering's Jahrbüeher, 1890, p. 29; Zitelmann.
Die Kunst der Gesetzgebung, 1904; Hedemann, Ueber die Kunst gute Gesetze zu machm,
Festschrift Otto Gierke zum 70, ten Geburtstag, Weimar, 1911. p. 14.
5 Pieard, De la confection vicieuse des lois en Belgique, Pandeetes belges, VI (1881),
p. XLII.
6 Les réformes de l'État en Belgique, BruxelIes, 1927.
7 Boutmy, Essai d'une psychologie politique du peuple anglais au XIX eme. siede,
2me. 00., Paris, 1909, p. 249; Dieey, Leçons sur le rapport entre le droit et r oprnton
publique en Anglaterre, trad. Jeze, 1906, p. 375.
8 Urban A. Lavery, The language of law, Amerie. Bar Assoe. Journal, 1922,
p. 271; Henry J. Terry, ibid., 1924, p. 123.
9 Some defects of Common Law, p. 14, comentado por Angelesco, loco cito p. 60. 3.
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Uma conseqüência, entre outras: o fardo impôsto aos juízes, asso-


berbados com casos provocados unicamente pela redação obscura da
fórmula legislativa. Não há instância alguma, inclusive a Suprema
Côrte, que não tenha, todos os dias, de levantar a sua pedra de Sísifo,
que consiste em dar um sentido e uma ordem a matérias regulamen-
tadas com precipitação, tais como, ainda há pouco tempo, os delitos con-
tra o racionamento e as questões de aluguéis, de mais recente data.
Daí, essa recrudescência do espírito litigioso, planta daninha, tão ar-
raigada ao nosso caráter e aos nossos costumes; daí, pelo mesmo mo-
tivo, o desrespeito crescente para com as leis.
Uma outra conseqüência: o mal-estar e a incerteza que reinam nos
órgãos administrativos, de onde decorre, por sua vez, a elefantíase da
burocracia.
Dos meios mais diversos e quase por tôda parte, solicitam-se re-
médios que, de preferência, são procurados sôbre o plano técnico da
elaboração legislativa. É, aliás, nesse sentido que grande número de
países vêm se empenhando.
Tais experiências são interessantes: visam tôdas a investigar
mais minuciosamente o aspecto técnico da produção legislativa.
A coisa é mais do que natural: a elaboração de leis se tornou um
verdadeiro serviço público, talvez o mais importante dos serviços pú-
blicos, em todo caso o mais escrupuloso que o Estado exerce em bene-
fício do cidadão; acrescentemos que o Estado, não sendo mais sufi-
ciente para tal tarefa, vai pedir socorro a outros órgãos, também ze-
losos quando se trata de derramar leis sôbre os seus administrados.
Como estamos longe dos tempos dos quais se podia dizer: «l"oLç
ollya ÀÉyOlJlJL oÀ(YWlJ Xal lJÓ!!WlJ Em:l XQEía» ! 10
Tal serviço público tomou um vulto que o faz avantajar-se a t0-
dos os demais nos Estados modernos. Verifica-se isto na própria Grã-
Bretanha, onde, até à guerra jamais terminada, que deixou a sua
marca em nosso século, ainda se gozava do privilégio de viver sob a
égide da divisa romana: moribus, aequitate, juris peritorum auctori-
!ate.
Doravante exigirá, tal serviço público, uma regra unicamente téc-
nica, isto é, um trabalho de organização.
Alguns conceberam a idéia de criar um Ministério da legislação.
Eis aí, porém, uma idéia apta a florescer principalmente num regime
totalitário que, já se vê, tende a concentrar no próprio poder executivo
a faculdade de fazer as leis.
Ora se trata de conciliar com os poderes dos Parlamentos o má-
ximo de perfeição na confecção das leis. Trata-se, por outro lado, de
obter o mesmo aperfeiçoamento naquela parte, não omissível, da ati-
vidade normativa exercida pelos governos, graças ao seu poder de fa-
zer emanar regulamentos e de promulgar leis por delegação do poder
legislativo.

10 Plutarco.
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Para solucionar tal problema, ou melhor para imaginar a solução


menos improvável, é preciso definir exatamente os têrmos da questão.
As leis de que falamos não são aquelas que, consagradas por uma
longínqua tradição, acabaram por confundir-se com o nosso mudo
de existência de homens civilizados, por edificar o nosso espírito, de
que elas constituem, doravante, os alicerces, isto é, o casamento, os
laços de parentesco, o deve e o haver, a propriedade, o usufruto, o tes-
tamento, a hipoteca, a penalidade, o processo, o juiz, a prova. Quere-
mos falar de outras leis; de leis que são promulgadas sOmente para o
dia de hoje; que obedecem ao capricho do momento; que se acumulam;
em suma, a moeda divisionária das leis, mesmo se - inconscientemente
ou não - chegam, por vêzes, a abalar os alicerces a que aludimos.
Queremos falar de leis que tentam traduzir em realidade os deveres
que se arrogam, cada vez mais, os poderes públicos a nosso respeito:
cuidado pela nossa saúde, precauções para nossa velhice, cultura de
nossos campos, preocupação por nossas economias, racionamento de
nossa alimentação, regulamentação de nosws movimentos - sôbre as
rotas terrestres ou aéreas - possibilidade de possuir um teto, por
preço razoável, apesar das exigências dos proprietários; orientação de
nossos pendores de generosidade para certas formas de solidariedade
humana; solicitude para nossa educação e nossa instrução; salvaguar-
da contra nós mesmos e contra os outros; transferência, para outras
pessoas, de nossos bens supérfluos; vigilância, enfim, para que a maio-
ria de nossos bens, isto é, o fruto de nosso labor, se encaminhem para
caixas que os poderes públicos fiscalizam ou administram diretamente.
Eis, em grande parte, a legislação que desejamos considerar, le-
gislação de nossos dias, pois que, na hora atual, tudo ou quase tudo é
da alçada da administração pública. Outrora, o ato da administração
se opunha à lei como entidade assaz distinta, não somente sob o ponto
de vista teórico, mas também sôbre o próprio terreno da realidade po-
lítica. Nos dias atuais, se nos inclinarmos a discernir a essência das
coisas, não distinguiremos na lei senão um ato administrativo, um
meio para traduzir em realidade uma função da administração pú-
blica.
Tais leis, em suas bases, são resoluções enunciadas sob uma forma
muito mais geral do que aquela de que se revestem os atos adminis-
trativos individuais.
É preciso levar tais fatos em consideração, quando se pretende
atacar o problema proposto. Tais medidas legais fazem brotar, no ter-
reno dos programas elaborados pelos partidos, manifestos eleitorais,
compromissos sancionados pelos governos sob a pressão das circuns-
tâncias do momento. Florescem nos comitês de direção, nos grupos
parlamentares, nos gabinetes de ministros, nas diretorias gerais. Me-
tamorfoseiam-se em projetos de lei, emanados da iniciativa parlamen-
tar, enunciados num estilo que deixa muito a desejar quando a inicia-
tiva não parte de homens de lei particularmente qualificados. Quando
se trata de projetos de lei, que emanam da iniciativa governamental -
assim sucede na maioria dos casos - "<t elaboração técnica é, em ge-
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"Tal, mais minuciosa, mas os inconvenientes não tardam a surgir quan-


Jo se passa às emendas, precipitadamente aprovadas, freqüentemente
mal coordenadas com o texto original. Uma elaboração técnica precede
também a redação de medidas que emanam do Govêrno a título de re-
gulamentos ou de leis promulgadas em virtude de uma delegação do
poder legislativo.
Para dizer a verdade, os maus resultados obtidos - vimo-Ios em
todos os países - não são imputados, em geral, à ausência do elemento
técnico, e sim ao trabalho defeituoso realizado por êsse elemento téc-
nico e à atmosfera de inconsistência que o cerca.
Comecemos por identificar os técnicos no domínio que nos inte-
ressa, são os homens que possuem, ou se pensa que possuem, a arte de
enunciar corretamente uma disposição legislativa ou um conjunto de
disposições legislativas. Fala-se, com efeito, de técnica legislativa para
indicar a maneira de enunciar por um texto legislativo as regras con-
cernentes a uma dada matéria, em suma - segundo a expressão de
um autor que pôs particularmente em evidência a importância e os
métodos dessa arte - a técnica legislativa é o instrumento que per-
mite a organização, a elaboração do direito.
Em nosso país, não existe cátedra consagrada à técnica da legis-
lação ou, de modo mais geral, à técnica jurídica; não cuidamos, aliás,
de preconizar a criação dessa cátedra, porque é difícil segmentar uma
arte em fórmulas, transformando-a em matéria de ensino.
O mesmo sucede à arte de formular uma lei: 11 o técnico deverá,
principalmente, conhecer as leis já em vigor, uma vez que a lei nova
é chamada para participar dessa trama já complexa; deverá possuir
um conhecimento seguro dos princípios fundamentais sôbre os quais re-
pousa o direito; deverá possuir, igualmente, os princípios técnicos em
uso na legislação do país, começando pela língua, isto é, o vocabulário
e a gramática sob todos os seus aspectos morfológicos e sintáticos, para
chegar aos instrumentos e aos expedientes que permitem tornar ope-
rante a vontade; na medida do possível deverá inteirar-se a respeito
das legislações estrangeiras sôbre o mesmo assunto, assim como a res-
peito de estudos realizados tanto no interior do país como no estran-
geiro, sôbre os problemas a que a lei pretende trazer uma solução; de-
verá, enfim, possuir um certo conhecimento da matéria específica
que constitui o objeto da norma legal: segurança social, transportes,
instrução, agricultura, marinha, saúde, obras públicas, comércio e fi-
nanças públicas. Mesmo um perito na arte de redigir, inteiramente
afeito ao manejo dos meios de expressão, pode achar-se embaraçado
quando se trata de formular um preceito, se não possuir a fundo os
elementos próprios da matéria em aprêço, isto é, os têrmos precisos da
questão visada pelo legislador, ao mesmo tempo que <> objetivo pre-
tendido por êsse último.

11 "Charté, brieveté, force, dignité, telles sont les qualités nécessaires au style de la
législation": assim se expressa no volume Études législatives. J. N. (J. de Navarro), Pa-
ris. Artbur Bertrand. 1836. p. 154. volume em cuja redação. segundo a literatura fraD-
assa da época. teria tomado parte o rei Luís-Felipe.
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A técnica legislativa, certamente, só se refere à forma, mas quan-


do se trata de uma lei, a forma e o fundo representam dois aspectos
da mesma atividade, e não seria possível a independência de uma em
relação à outra. 12
Ora, é preciso dizer que, em princípio, tais exigências se fazem
sentir por tôda a parte e que, pOr tôda a parte, se pretende satisfa-
zê-Ias.
Na Itália, muitas pessoas são chamadas para preparar os proje-
tos de lei. Ora essa tarefa é exercida por burocratas pertencentes a
uma determinada repartição, e muitas vêzes êsses últimos possuem
reminiscências em matéria de direito, porque, em nosso país, a maio-
ria dos funcionários sai da Faculdade de Direito ou, mais recentemente,
até da Faculdade de Economia e Comércio. Ora é exercida por divi-
sões legais que foram aos poucos criadas em muitos Ministérios com
a colaboração de magistrados ou de conselheiros de Estado. Mas, às
vêzes, o aspecto jurídico sobreleva o da técnica legislativa, de modo
bastante visível; isto se dá quando a medida desejada exerce uma in-
terferência sôbre a legislação geral do Estado - e quais são os casos
em que, porventura, deixa de existir essa interferência? - e, então,
as atenções se dirigem para o Departamento L€gislativo instalado no
Ministério da Justiça. É um departamento cujas nobres tradições re-
montam à primeira guerra mundial e que soube apelar para o saber,
a perspicácia e a prudência de magistrados fora do comum; ninguém
se esquece, por exemplo, de Gaetano Azzariti que dirigiu êsse depar-
tamento durante um longo período de fecunda atividade legislativa.
Enfim, os projetos de lei têm sido preparados, às vêzes, pessoalmente
pelos Ministros da Justiça e, como tais Ministros por felicidade eram
insignes jurisconsultos, houve textos redigidos pessoalmente por Vit-
torio Scialoja e Alfredo Rocco, ao passo que outros foram confiados a
parlamentares do porte de Emanuele Giaturco.
Quanto ao trabalho legislativo das Assembléias, resta apenas har-
monizar, do melhor modo possível, a iniciativa e as prerrogativas par-
lamentares - que se manteriam intactas - com uma integração eficaz
do elemento técnico. Quando há - ou quando houve - uma segunda
Câmara que, conforme o seu sistema de recrutamento, atrai um número
considerável de competentes em matéria de direito, sente-se menos a
necessidade de buscar êsses últimos fora do Parlamento. Pelo con-
trário, quando a Assembléia única ou, melhor, as duas Assembléias
são oriundas do sufrágio universal, é mais premente a necessidade de
encontrar técnicos e, em geral, procura-se satisfazer essa ne~essidade
graças à formação de conselhos legislativos. 13
Os técnicos, certamente, não tomariam o lugar dos políticos e o
poder do Parlamento não deve sofrer, com isso, a menor interferência;
mas uma boa preparação de textos e uma colaboração técnica mesmo

12 Cf. Zite1mann. Die Kunst der Gesetzbung, 1904. ps. 5. 14; Geny. La techniqu,
législative, Le livre du Centenaire, lI. 1904. p. 999. 1038.
13 Serão encontradas copiosas informações na obra mencionada de Angelesco, p. 82.
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na fase de exame e discussão, eis aí meios que podem facilitar a tarefa


das Assembléias legislativas e melhorar a redação definitiva das leis.
Um inglês, Courtenay Ilbert, observou, com clarividência, a êsse
respeito: "Há bastante diferença entre um govêrno constituído de téc-
nicos e um govêrno assistido por técnicos. Em matéria de legislação ...
buscar o apoio de técnicos, deixando-os, porém, nos seus respectivos
lugares, eis um método prudente e extremamente desejável. 14
1l:sse princípio está na base de muitas instituições bem estabele-
cidas, e com destaque, em muitos países.
Os inglêses, cujo trabalho parlamentar já era facilitado pelo sis-
tema das três leituras, possuem o Parlamentary Counsel of the Trea-
sure, organizado de modo permanente desde 1871, 15 que traz a sua co-
laboração à tarefa legislativa do Govêrno, isto é, à redação dos govern-
ment bílis. Graças às excelentes relações que o govêrno mantém com
os parlamentares, isto é, à possibilidade de recorrer às repartições pú-
blicas, às comissões e àquele Conselho especialmente organizado, a im-
portância crescente do poder executivo cada vez mais se impõe no do-
mínio da legislação. Acrescente-se que êsses técnicos prestam o seu
apoio mesmo durante os debates nas comissões, e quando se trata de
coordenar as emendas suscitadas pelas comissões.
1l:sse Conselho possui quadros adequados à amplitude de sua ta-
refa, podendo contar com homens versados no conhecimento da Sta-
tute Law, acima das clientelas de partido, notáveis por sua mentali-
dade ágil a par de sua firmeza de propósitos, dotados de tato diplo-
mático quando se trata de superar qualquer dificuldade. É uma feli-
cidade achar tais homens hábeis e de inteligência muitas vêzes bri-
lhante, em condições de atingir postos elevados tanto na profissão de
advogado como na magistratura, consagrando-se, porém, a tal serviço
público. "We are fortunate to find such men", declara Sir Cecil Tho-
mas Cart, numa carta que êle teve a amabilidade de enviar-me, dan-
do-me essas informações.
Mas ao lado dês se organismo, existe uma repartição encarregada
de prestar os consolídation bills - aquilo que na Itália chamamos de
testi unici - espécie de resenhas nas quais se reunem, periodicamen-
te, as disposições legais concernentes a uma determinada matéria, de-
pois de publicadas.
A França, a êsse respeito, desfruta de uma tradição que remonta
ao "Conselho de Justiça": desde o tempo de Colbert, êsse Conselho
prestava sua colaboração à redação das ordenações reais. Mais recen··
temente, o "Conselho de Estado" trouxe uma contribuição valiosa para
a elaboração do Código Civil. 16 A reforma de 1872 reduziu forte-
mente essa função, aliás antiga, em proveito da função administrativa
e judiciária, se bem que a cooperação do Conselho de Estado na re-

14 Legislarive merhods and forros, Oxford, 1901.


15 Courtenay IIbert. The mechanics of the Law making. London. 190 1. p. .<,3;
Alten. Law in the making, Oxford. 1927. p. 275.
16 H. Berthélémy. Traité élém. de droir admin., 1926, p. 150.
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dação dos projetos de leis se tenha tornado cada vez mais rara e oca-
sional. Muitas pessoas exigiram que essa função fôsse restituída ao
Conselho de Estado e, para tal fim, não faltaram projetos de lei. 17
Na atualidade, a lei de 2 de novembro de 1945 e os decretos que foram
baixados posteriormente fixam do 'seguinte modo as atribuições do.
Conselho de Estado: 1) o Conselho de Estado deve tomar conhecimento
dos projetos de lei preparados pelos Ministros; 2) dá o seu parecer
sôbre êsses projetos, sugerindo as modificações da forma que julgar
necessárias; 3) prepara e redige os textos que lhe são solicitados; 4) o
parecer do Conselho de Estado é obrigatório para os decretos que apro.-
vam regulamentos de administração pública. Os projetos são exami-
nados quer pela Secção do Conselho de Estado, competente na matéria,
quer por essa Secção juntamente com outra Secção, quer por uma Co-
missão que reuna representantes de várias Secções, inclusive a do con-
tencioso; são levados em seguida perante o Conselho de Estado reunido
em assembléia geral. Uma Comissão permanente, integrada no Con-
selho de Estado, examina, além disso, os projetos de lei ou de decretos
nos casos excepcionais em que a urgência, indicada pelo Ministro com-
petente, é reconhecida pelo Presidente do Conselho de Ministros. Essa
Comissão permanente compreende representantes dos Ministros que
dela tomam parte com voto consultivo.
Enfim, o Conselho de Estado é encarregado de estudar os métodos
mais adequados para rever ou codificar os textos legislativos e os re-
gulamentos, de sorte que assegurem a uniformidade da legislação, bem
como a sua conformidade em relação aos princípios republicanos (De-
creto de 31 de julho de 1945, artigo 1.0, alínea 4) .
Essas medidas permaneceram em vigor, mesmo depois da Cons-
tituição de 1946.
Na Bélgica as iniciativas foram numerosas e mais constantes do
que alhures, no sentido de criar um órgão permanente de técnica legis-
lativa; tal era o Conselho legislativo criado de acôrdo com os decretos
reais de 3 de dezembro de 1911 e de 13 de maio de 1922.
Hoje, é da alçada de uma das duas Secções do Conselho de Estado
(Section législative) dar o seu parecer, facultativamente, sôbre os pro-
jetos de lei, submetidos à sua jurisdição pelo govêrno ou pelos presi-
dentes das Câmaras e, obrigatOriamente, sôbre todos os DeC1"etos de
execução (Arrêtés d'exécution) , salvos os casos de urgência.
O parecer do Conselho de Estado também foi previsto. pela Cons-·
tituição da República Turca sôbre os projetos de lei redigidos pelo go-
vêrno (art. 51). A Constituição da Finlândia prevê, por sua vez, que
sôbre os projetos de lei traçados pelo Co.nselho de Ministros se possa
pedir o parecer da Côrte Suprema ou da Côrte Administrativa Supre-
ma ou, também, de uma e de outra, conforme as matérias de que se
trate (art. 18).
Conselhos legislativos, recrutados ou organizados de forma dife-
rente, mas com funções e finalidades inteiramente análogas, se encon-

17 Angelesco. loco cit., p. l3 2.


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tram na Espanha, onde, desde 1843, existia uma Comissão geral da


codificação; na Polônia de antes da guerra, onde a lei de 3 de junho
de 1919 instituia uma Comissão de 44 membros a fim de redigir os
projetos de lei (a Comissão era dividida em duas Secções, das quais
uma destinada ao direito civil) ; na Rumânia de antes da guerra, onde
a Constituição de 1923 criara um Conselho legislativo. ~sse último
devia auxiliar na redação e na coordenação das leis, quer emanassem
do poder executivo, da iniciativa parlamentar, ou de regulamentos ge-
rais; devia obrigatõriamente ser consultado sôbre todos os projetos
de lei, exceto aquêles que fôssem referentes aos créditos orçamentários
(art. 76 da lei supra citada, art. 2.° da lei de 25 de fevereiro de 1925).
O Conselho era subdividido em secções, e o presidente de cada uma
dessas últimas podia exigir que o Ministro responsável por um deter.
minado projeto tomasse parte nos trabalhos ou fornecesse explicações
mais detalhadas (art. 73 da lei). As Comissões de legislação da Câ-
mara podiam solicitar o parecer do Conselho legislativo sôbre as emen-
das propostas (art. 74).
Igualmente, na Sérvia, um Conselho permanente de legislação fôra
\!riado desde 1919. Fazia parte de Secção de legislação do Ministério
da Justiça e tinha por obrigação redigir os projetos de lei propostos
não só pelo Ministro da Justiça, como também pelos demais Minis-
térios.
As regras adotadas em todos os casos acima citados, e em outros,
fornecem bastantes exemplos para que se ~ssa idealizar - pelo me-
nos em largos traços - os métodos que se devem preconizar a fim de
pôr em prática um instrumento de técnica legislativa, cuja necessi.
dade se torna cada vez mais premente. 18
Sua composição pode ser concebida sob diferentes formas, mas
deve possuir, forçosamente, um núcleo de caráter permanente. A con-
sulta prévia deve ser obrigatória; pode ser regulamentada de maneira
diversa, no caso de uma lei votada pelo Parlamento ou de uma norma
jurídica emanada do poder executivo; sõmente nesse último caso é que
o Conselho deveria proceder à redação do texto definitivo, porque no
primeiro caso isso poderia significar uma intromissão indébita na
competência dos órgãos legislativos ou constituintes.
. Em nosso país, parece-me fora de dúvida que é ao Conselho de
Estado que se deveria confiar de novo essa tarefa. A lei atualmente
em vigor, bem próxima de seu modêlo francês, compreende já em pri-
meiro lugar, entre as atribuições consultivas do Conselho de Estado, a
de "dar parecer sôbre os projetos de lei" (e sôbre assuntos de tôda
espécie) a pedido dos Ministros; em segundo lugar, a de "formular
os projetos de lei e os regulamentos que lhe são cometidos pelo go-

18 o congresso anual da Société suisse des Juristes, que se realizou em Montreux,


em 1950, aprovou por unanimidade uma resolução, que afirma (§ 2.°) a urgência "de
encarregar um órgão de examinar no decurso de sua elaboração todos os textos reguía-
mentares, qualquer que seja a sua denominação, tanto sob o ponto de vista de sua con-
formidade à constituição e à lei, como sob o de sua redação.
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vêrno" (art. 14). De acôrdo com a mesma lei, o parecer do Conselho


de Estado é obrigatório em tôdas as propostas de regulamentos que o
decreto real n.o 466, de 14 de novembro de 1901 (art. 1.0, n.O 7) sujei-
tou à aprovação do Conselho de Ministros (isto é, os regulamentos ge-
rais de administração pública e todos os demais regulamentos que as-
segurem a execução das leis): tal parecer é exigido para tôdas as
coordenações de leis ou regulamentos em códigos restritos, a menos
que uma lei haja estabelecido de forma diversa (art. 16, n.o 1 e n.o 3).
Previu-se que os Ministros estariam presentes às assembléias gerais e
às assembléias de Secções; previu-se, igualmente, que os Ministros po-
deriam delegar comissários em condições de dar informações parti-
culares sôbre os assuntos a tratar ou de tornar conhecidas as opiniões
do Ministro "sôbre as novas leis os novos regulamentos que o Conselho
havia sido encarregado de redigir" (art. 21).
Bastaria tornar obrigatória a consulta do Conselho de Estado sô-
bre tôdas as medidas legislativas, emanadas do govêrno, que escapam
hoje a essa condição; dever-se-ia, por outro lado, organizar um con-
trôle técnico dêsse mesmo Conselho sôbre as proposições de lei subme-
tidas ao voto do Parlamento, como sucede já, de modo excepcional, às
disposições legislativas concernentes à organização ou às funções do
Conselho de Estado e do Tribunal de Contas (Decreto-lei n.O 273, de
9 de fevereiro de 1939).
A composição do Conselho de Estado garantiu, por si mesma, o
bom funcionamento dessa. atividade. Uma tarefa assim acrescida e
envolvendo tais responsabilidades obrigaria, sem dúvida, a ampliar os
quadros do Conselho, mesmo no que concerne ao sistema de recruta-
mento; além de peritos em matéria administrativa seria preciso apelar,
de preferência, para elementos oriundos da magistratura, da profissão
de advogado, do ensino universitário. Uma coisa, porém, é certa: num
país que possui uma instituição de tradições tão elevadas e de capa-
cidade a tôda prova, não seria possível imaginar-se a criação de um
Conselho legislativo fora do Conselho de Estado.
Não há muita coisa a dizer sôbre o método de trabalho que é pre-
ciso seguir para redigir os textos legislativos ou submetê-los à revisão.
Quanto ao essencial, é necessário recorrer à capacidade, à intuição e
ao preparo de homens; é quase impossível fixar regras rígidas. O tra-
balho coletivo tem as suas vantagens, sobretudo se as comissões e os
comitês não são demasiado numerosos e se reunem competências bas-
tante variadas. O trabalho individual apresenta, também, as suas van-
tagens; ninguém ignora que projetos dignos da mais alta estima, mesmo
no que diz respeito aos códigos, foram elaborados pessoalmente por
jurisconsultos: Huber para o código civil da Confederação Helvética,
Beviláqua para o do Brasil, Klein para a organização judiciária da
Áustria, Chiovenda para o primeiro livro de um código de processo
civil. Os dois métodos poderiam ser seguidos alternadamente segundo
as fases de elaboração: o trabalho em comum amplia o número de com-
petências e as possibilidades de acompanhar cada problema sob todos
os seus aspectos; o trabalho individual facilita o jurisconsulto, quando
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se trata de esboçar um esquema preliminar, e, enfim, quando se trata


de dar uma forma coerente ao texto definitivo.
De maneira análoga, é muitas vêzes útil solicitar sôbre os projetos
as observações de entidades particularmente qualificadas. É o que se
fêz, em ?,eral, paz:a os códigos; durante as últimas codificações, em
nosso paIS, os proJetos em curso de elaboração foram largamente di-
fundidos, de sorte que os Tribunais de Justiça, as Faculdades de Di-
reito e a Ordem dos Advogados dêles tivessem conhecimento para opi-
nar. Mesmo em se tratando de leis especiais, tal consulta pode ser
extremamente útil, e, por isso, é costume estendê-la às associações livres
de juristas, nos países onde existem, como, no passado, o Juristentag
alemão, e atualmente a American Bar Association, o American LO/W
lnstitute, a Société des Juristes Suisses, a Société d' études législatives
e, finalmente, o nosso Istituto di .c;tudi legislativi.

• • •
Nosso assunto estaria agora esgotado, se não sentíssimos que a
participação dos juristas na elaboração técnica da lei representa ape-
nas a superfície do problema. O núcleo não está aí.
É o Direito que é preciso reconduzir aos juristas.
tsses últimos perderam, desde muito, o contrôle do Direito, pro-
vàvelmente para ocasionar o maior prejuízo de todo o mundo.
Muitas vêzes não há mais correspondência entre o direito e a lei,
isto é, entre o direito e as ordens lançadas pelo poder público. A lei,
nesse último sentido mais restrito e mais apropriado, marcha por um
caminho que não é necessàriamente o do direito.
As leis modernas, principalmente depois da primeira guerra mun-
dial, são, as mais das vêzes, os instrumentos de uma intrusão ou de
uma invasão violentas realizadas pelos Estados num domínio até então
regulado pela vontade dos interessados ou por normas que visavam
apenas a traduzir em realidade um princípio de justiça. É dêsse prin-
cípio que o jurista era o fiel depositário, a êle consagrando as suas
pesquisas sutis. Hoje, pelo contrário, as regras visam de preferência
a realizar as finalidades governamentais ou do Estado, se bem que o
jurista se veja substituído cada vez mais pelo funcionário ou pelo
homem político, entendendo-se por esta última palavra o porta-voz
qualificado de um interêsse de partido ou de uma orientação de go-
vêrno. As leis assumem, assim, um caráter bem estranho à ética, um
caráter contingente, utilitário, transitório, que faz lembrar o que o
direito civil distinguia, em outros períodos da História, sob os nomes
de banhos, editos, pragmáticas, citações. Tanto num caso como no
outro, são ordens, mas ao passo que as primeiras são marcadas com
o cunho do contingente e do limitado, as outras trazem o sinal indelével
da universalidade e da perpetuidade; umas aliam a razão ao constran-
gimento, as outras não possuem, talvez, do seu lado, senão o constran-
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gimento. "I s enim demum legis lator jurisve conditur dicitur qui sic
et prudentia floret et potestate viget". 19
Uma antiga imagem parece surgir ante os nossos olhos, tal como
a contemplavam os jurisconsultos do primeiro Risorgimento e tal como
Irnerius, se é que lhe podemos atribuir as QuaesUones de juris subti-
litatibus, a coloca no Templo da Justiça, no alto da colina mais lumi-
nosa de Roma; nas paredes de cristal, no interior do Templo, resplan-
descem, em letras de ouro, as palavras inscritas nos livros da lei "vi-
treo pariete, cui litteris aureis inscríptus est totus librorum legalium
textus". No meio está sentada a Deusa com a sua balança levantada,
assistida pela Razão e pela Eqüidade rodeadas por seis figuras alegó-
ricas. Os textos em letras de ouro são os textos de J ustiniano e uni-
camente êsses.
- Por quê, então, estão em vigor outras leis?
- Essas leis cuja observância vos é imposta, não são leis verda-
deiras - responde o jurisconsulto - "hujusmodJi suas, ut ipsi dicunt,
leges", "quae frívola nomine legum censentes"; são simples editos, pro-
clamados por soberanos bárbaros, que se estiolarão à medida que se
extinguir essa dominação perecível. 20
Tudo está perempto, com efeito, pensa o autor como todos os
grandes espíritos de sua época, com a exceção de um só direito, impe-
recível, o direito romano.
Em nossos dias, somos pouco propensos a sonhar. Entretanto, nós
todos, aqui reunidos, formados na tradição de Roma ou mais recente-
mente na tradição notável da common law, sentimos unânimemente
com Cícero que "lex est ratio summa", 21 com Tertuliano que "legem
ratio comendat". 22
Ora, a razão, isto é, o pensamento aplicado aos assuntos de inte-
rêsse humano, conta com os juristas entre os seus melhores fiéis.
Foi direta ou indiretamente do seu pensamento, que trazia a sua
interpretatio às leis da autoridade, que nasceram o direito romano, o
direito comum do continente europeu, o direito francês, o common 1O/W
dos inglêses. Os juristas foram, não redatores, mas conditores juris
durante cada uma dessas épocas e em cada um dêsses países; o povo
os chama .. fons et tuba jurís"; mesmo quando tomam parte nas vicis-
situdes políticas de seu tempo, permanecem sempre "mestres em Razão
e Justiça".
O problema da hora presente consiste em reconduzir, na medida
do possível, o jurista às leis. Outra não é, senão, em sua essência, a
aspiração dos homens em devolver as leis ao direito.

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19 Irnerius. Quaestianes de juris subtilitatibus (éd. Hermann Fitting. Berlin. 18H).


1. § 11.
20 Quaestianes cit., Exordium §§ 2. 3; IV. §§ 4. 9.
21 De legibus, L 6, 18.
22 De carona, 4 e 7.

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