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ANO 11 / NÚMERO 132 R$ 14,90

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TRINCHEIRA DEMOCRÁTICA? PETROBRAS NA CONTRAMÃO NA 1ª DIVISÃO MARFINENSE
A CIA CONTRA O BRASIL E A GEOPOLÍTICA A MISÉRIA DO
DONALD TRUMP MUNDIAL DO PETRÓLEO FUTEBOL AFRICANO
POR MICHAEL J. GLENNON POR JOSÉ LUÍS FIORI POR DAVID GARCIA

LE MONDE
BRASIL
diplomatique
A INTERNET
TRANSFORMA A POLÍTICA

ELEICOES DEBATE PASSEATA

AGITACAO ABAIXO GREVE


ASSINADO
2 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

PERIGO E HIPOCRISIA NO COMBATE ÀS FAKE NEWS

O
capricho
do
príncipe
POR SERGE HALIMI*

© Vitor Flynn
epois de ter sido confortavel- à disseminação de notícias falsas por para “impedir a difusão artificial e que reservar uma parafernália jurídi-

D mente eleito à presidência da


República com a aprovação da
quase totalidade da mídia fran-
cesa, Emmanuel Macron exige que sua
maioria parlamentar elabore para ele
regimes autoritários. Há mais de um
ano a imprensa norte-americana se
esforça para demonstrar, sem elemen-
tos comprobatórios, que o presidente
dos Estados Unidos deve sua eleição às
maciça de fatos que constituam falsas
informações”. No entanto, ressalta
ainda o Conselho de Estado, estes “são
delicados de serem qualificados juri-
dicamente, ainda mais quando o juiz
ca apenas para os períodos eleitorais?
Para não sair das últimas décadas,
quase todas as guerras – do Golfo, do
Kosovo, do Iraque, da Líbia – viram
proliferar as mentiras e manipulações
uma lei contra a difusão de “informa- fake news fabricadas por Vladimir Pu- escolhido deve deliberar em prazos de informação. Não por causa de Mos-
ções falsas” em período eleitoral. Tal- tin; Macron parece tomado pelo mes- muito curtos”. Enfim, o dispositivo cou, do Facebook ou das redes sociais,
vez ele já esteja preparando sua próxi- mo tipo de obsessão, a ponto de espe- imaginado por Macron reforça o “de- mas porque os mestres da democracia
ma campanha. rar conjurá-la por um dispositivo tão ver de cooperação” com as autorida- e do jornalismo foram seus autores: os
O texto, que deve ser votado em inútil quanto perigoso. des públicas de fornecedores de aces- maiores jornais ocidentais, o New York
breve, expõe por um lado a cegueira Inútil: consultado sobre o assunto, so à internet e hosts, já que estende a Times encabeçando a lista, a Casa
dos governos diante das contestações o Conselho de Estado lembrou em 3 de qualquer “falsa informação” uma Branca, as grandes capitais europeias.
que enfrentam e, ao mesmo tempo, maio passado que “o direito francês já obrigação que originalmente visava Sem esquecer o governo ucraniano no
sua disposição para imaginar novos contém diversos dispositivos visando prevenir... “a apologia dos crimes con- mês passado, que anunciou a falsa
dispositivos coercitivos para remediar lutar contra a difusão de falsas infor- tra a humanidade, a incitação ao ódio, morte de um jornalista russo. Se um
essa questão. É preciso, com efeito, fa- mações”, em particular a lei de 29 de assim como a pornografia infantil”. juiz tivesse um dia de pôr as mãos nos
zer vista grossa para ainda acreditar julho de 1881 sobre a liberdade de im- O controle da mídia por bilionários criminosos que propagaram todas es-
que a vitória dos candidatos, dos parti- prensa, que permite reprimir a difu- amigos do presidente da República, a sas notícias falsas, pelo menos o ende-
dos ou das causas “antissistema” (Do- são de notícias falsas, propósitos difa- intoxicação publicitária e o sufoca- reço deles seria conhecido...
nald Trump, o Brexit, o plebiscito cata- matórios, injuriosos ou provocadores. mento financeiro dos canais de televi-
lão, o Movimento Cinco Estrelas) se Perigoso: a proposta parlamentar pe- são públicos não são, por sua vez, o ob- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
deveria, mesmo que perifericamente, diria a um juiz que agisse em 48 horas jeto de uma proposta de lei. E mais, por Diplomatique.

A Revolta da Vacina Lições de ética Literatura: ontem,


O historiador Nicolau Sevcenko elucida os
principais fatores que levaram à Revolta
Em 1924, por ocasião do ducentésimo
aniversário de nascimento de Immanuel
hoje, amanhã
da Vacina, durante a campanha de Kant, foram trazidas à luz as O que é literatura? Quantos sentidos
`

vacinação contra a varíola notas tomadas por seus cabem nessa palavra? O conceito de
j
ocorrida em 1904, o “último alunos durante suas literatura mudou através dos séculos?
motim urbano clássico do Rio aulas. No século XX, Passando pelos mais variados tipos
v

de Janeiro” e trata dos custos houve um crescente de textos, de Homero ao rap paulista,
`j
sociais da “ditadura sanitária” reconhecimento da de novelas de cavalaria à crônica de
de Oswaldo Cruz. importância desses jornal, do soneto ao haicai, Marisa
jv

manuscritos para a Lajolo se volta também à era digital,


`v
reconstrução e a dos hipertextos e da computação
compreensão do gráfica, para responder a estas
`jv

desenvolvimento do questões.
h
pensamento moral
de Kant. Produzir conteúdo
Compartilhar conhecimento.
Desde 1987.
www.editoraunesp.com.br
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

Os sentimentos comandam
POR SILVIO CACCIA BAVA

© Claudius
xplorando medo e descontenta- pressão de suas necessidades, sua ma- trução de novos valores. A população, pelos corações e mentes de cidadãos e

E mento, as elites criam uma agen-


da cujo centro da discussão é a
violência, a corrupção e o crime.
Essa agenda tem um duplo sentido. Ela
cria uma percepção de que estamos to-
nifestação coletiva enquanto cidadãos
e cidadãs. Já dizia Étienne de La Boétie,
em 1548, que essa situação só perdura
enquanto a população se curvar e se
submeter à servidão voluntária.1
indignada e mobilizada, expulsou a
empresa multinacional que passara a
gerir o sistema público de fornecimen-
to de água e retomou a água como um
bem público.
cidadãs. É a disputa para formar no-
vas maiorias.
Ainda não conseguiram formar, de
fato, uma maioria, mas há uma parce-
la significativa de nossa população
dos ameaçados, é intimidatória, disse- A servidão voluntária pode ser Com essa vitória, a coragem au- que aderiu a essa visão de uma socie-
mina o medo. E tem uma função estra- compreendida como um ato de sub- mentou em todo o continente, e a po- dade conflagrada, violenta, sem res-
tégica, de definir os temas do debate missão, um reconhecimento da supe- pulação percebeu que pode romper peito à ordem, dominada por milícias
público. Não se fala de enfrentar a desi- rioridade do outro, a quem se deve obe- com a servidão voluntária, que pode e traficantes, em que o crime e a cor-
gualdade, reduzir os juros bancários, diência. A servidão voluntária é uma vencer em seus pleitos. E foi o que rupção imperam. E que precisa ser go-
cobrar impostos dos ricos. Se fala da construção simbólica que destitui todo aconteceu em numerosos países do vernada por mão forte. Abdicam de
luta da polícia contra os bandidos. cidadão e cidadã de sua humanidade, continente na primeira década do sé- sua soberania como cidadãos em no-
O mundo é desenhado como uma de seus direitos, de sua autonomia. culo XXI. Os movimentos sociais cres- me de uma suposta paz a ser conquis-
luta entre mocinhos e bandidos, com A disputa por um novo lugar na so- ceram e eleições levaram aos governos tada pelas armas. Aceitam a execução
grande apoio da indústria cultural que ciedade, por uma vida digna, pelo res- representantes dos interesses popula- sumária de jovens pobres e pretos nas
cultua os super-heróis e a luta entre o peito e pela justiça é um ato coletivo de res, governos que passaram a defender periferias das grandes cidades. Acei-
bem e o mal. É um processo de infanti- ruptura com a servidão voluntária. É uma nova agenda: o enfrentamento tam abrir mão de direitos em nome da
lização da sociedade que simplifica os uma ruptura com os valores dominan- das desigualdades e da pobreza, a so- segurança. E demonizam seus oposi-
dilemas da vida, oculta as questões so- tes que se dá no embate, no conflito, berania, a participação e o respeito aos tores. Acusam, por exemplo, aqueles
ciais e desloca os temas de discussão assumindo riscos e enfrentando os direitos humanos. “A esperança ven- que defendem os direitos humanos de
para o que não importa. Um dos efeitos poderes instituídos. É a afirmação de ceu o medo”, dizia o PT quando Lula se defenderem os criminosos.
dessa estratégia é demonizar os imi- uma nova identidade, fundada em no- elegeu em 2002. Neste cenário, não há esperança,
grantes, criminalizar os pobres, intimi- vos valores, em uma nova concepção A partir dessas vitórias e como não há futuro. Há apenas a administra-
dar e reprimir os movimentos sociais, de viver em sociedade. A coragem de uma forma de enfrentá-las, as elites ção violenta do presente, que se prolon-
agredir religiões distintas, como a um- romper é celebrada em todas as épo- promoveram uma inversão da agenda ga indefinidamente. Para criarmos uma
banda e o candomblé, e, ultimamente, cas da história – um sentimento que se – na qual o medo e a submissão são nova esperança, um país onde se res-
atacar o Partido dos Trabalhadores e sobrepõe ao do medo que leva à servi- centrais – para a reconstrução da ser- peitem os direitos humanos e a riqueza
Lula. Quem detém o poder da comuni- dão. É assim que se dão as grandes vidão voluntária. A estratégia se deu gerada seja mais bem distribuída, te-
cação constrói a narrativa e identifica transformações, quando as maiorias por meio da utilização da mídia e da mos de ter a coragem de confrontar essa
quem são os mocinhos e os bandidos. recusam o lugar que lhes é atribuído atuação militante de um crescente narrativa conservadora e contrapor a
A população se sente acuada, e os pelas elites e tornam-se protagonistas número de organizações financiadas ela um novo projeto de sociedade, na
pobres em particular são continua- de sua história. por grandes empresas nacionais e in- qual a solidariedade e a cooperação se-
mente ameaçados pelo braço violento A “guerra da água”, uma mobiliza- ternacionais que abraçaram o ideário jam suas marcas de identidade.
do Estado, pelas polícias, que se utili- ção cidadã ocorrida em 2000, em Co- neoliberal e a defesa dos interesses
zam prodigamente de sua licença para chabamba, na Bolívia, contra a gestão destas em detrimento do interesse das
1 Étienne de La Boétie, Discurso da servidão volun-
matar. É sob o domínio do terror que se privatizada da água em sua cidade, é maiorias. Em termos gramscianos, é a tária (1548), publicado no Brasil pela editora LGE,
bloqueia a agenda das maiorias, a ex- um dos melhores exemplos da cons- disputa pela hegemonia na sociedade, 2009.
4 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

COMPRAM-SE LIKES, VENDEM-SE DADOS PESSOAIS

Quem dá mais na campanha


eleitoral na internet?
A reforma política favoreceu campanhas mais ricas e o modelo de negócios do Vale do Silício,
além de se esquecer de proteger a diversidade de candidaturas e pautas
POR JOANA VARON E BRUNA SANTOS*

e maneira inédita no Brasil, as Então o que vai mudar nas intera- Se ainda há quem imagine que a re-

D eleições gerais de 2018 serão


marcadas como as primeiras
em que se permite o impulsio-
namento pago de conteúdo eleitoral
na internet. Essa mudança, alinhada a
ções on-line para as eleições de 2018?
Ainda que o financiamento de campa-
nha por pessoa jurídica tenha sido
proibido, o dinheiro vai continuar a ter
papel central na propaganda eleitoral,
de poderia ser vista como um lugar de
debate livre, onde todos os partidos te-
riam o mesmo poder de divulgação e o
que valesse fosse a opinião dos eleito-
res para repercutir os debates, essa
novas limitações de duração do horá- inclusive na internet – o dinheiro e as utopia cai por terra com a permissão
rio eleitoral na TV e no rádio, coloca a possibilidades de usos tecnológicos de impulsionamento de conteúdos co-
rede como um dos principais campos que ele traz para os mais abastados, mo exceção à proibição de veiculação
de batalha para as táticas de marke- inclusive no que diz respeito à mani- de propaganda eleitoral paga.
ting eleitoral de 2018. pulação da opinião pública, ou pelo Essa previsão não só viabiliza que
É fato que nas eleições de 2014 já se menos do que é compartilhado nos candidatos, partidos e coligações pa-
sentiu fortemente o peso das redes. De chats e redes sociais, por meio de men- guem para que suas páginas, perfis e
acordo com dados do Facebook, com sagens customizadas de acordo com o posts sejam mostrados para um maior
674,4 milhões de interações em três perfil do eleitor. número de pessoas, mas também au-
meses e meio de campanha, numa As mudanças sobre publicidade toriza que determinado conteúdo seja
média de 5,96 milhões por dia, nunca em rádio e TV na Lei da Reforma Polí- exibido apenas para um público espe-
uma eleição havia sido tão comentada tica (Lei n. 13.488, sancionada em ou- cífico. As campanhas passam a poder
naquela rede social. O recorde anterior tubro de 2017) já tendem a beneficiar moldar o discurso político de seus
era da Índia, com média de 3,28 mi- partidos que estão há tempos no po- candidatos de acordo com o público a
lhões de interações por dia. No Twitter, DB, a PVR tinha a J&F, controladora da der, principalmente porque o tempo quem direcionam sua publicidade.
39,85 milhões de mensagens foram JBS, em sua lista de clientes. Investiga- no horário eleitoral foi limitado pela Quem tiver mais dinheiro poderá não
publicadas durante a campanha. Por da pela Operação Lava Jato, a JBS foi cláusula de barreira, que restringe o só impulsionar mais conteúdo e al-
meio do uso de bots, acirrou-se ao ex- acusada de pagar propina para vários tempo de propaganda gratuita ao de- cançar maior público, como também
tremo a polarização do discurso entre políticos, incluindo Aécio Neves. To- sempenho dos partidos nas urnas das ter acesso a mais bases de dados para
as hashtags #Aecio45PeloBrasil e #Dil- dos declararam que a empresa foi eleições passadas. segmentar seu público-alvo e moldar
maMudaMais, trazendo as eleições contratada para serviços de “monito- O período de propaganda eleitoral seu conteúdo.
brasileiras várias vezes aos trending ramento de tendência em redes so- no rádio e na TV também foi reduzido, O escândalo em torno da empresa
topics mundiais. ciais”. Essas práticas foram denuncia- passando de 45 para 35 dias dos 52 Cambridge Analytica sobre possível
De acordo com pesquisadores do das sem muito êxito pela campanha dias do período de campanha previs- manipulação da opinião pública utili-
Labic, da Universidade Federal do Es- da ex-presidenta Dilma Rousseff e to para o primeiro turno, que começa zando-se de dados de eleitores duran-
pírito Santo, bots usando as hashtags monitoradas pela Secretaria de Co- em 16 de agosto. Já no segundo turno, te as eleições norte-americanas e o re-
#SouAecio e #Voto45 no Facebook e municação Social da Presidência, que o tempo de propaganda eleitoral nos ferendo do Brexit no Reino Unido
no Twitter durante o debate na Record reportou o uso de bots pelo PSDB mes- dois veículos ficou restrito a quinze deixaram evidentes os efeitos negati-
foram responsáveis por triplicar as mo depois da campanha eleitoral, já dias, dos vinte dias em que é permiti- vos desse tipo de prática para o debate
menções ao candidato. Analisando no contexto do impeachment. do pedir votos. Como não existem res- democrático. A propaganda eleitoral
uma rede de perfis, provavelmente De acordo com a pesquisa Robôs, trições de tempo de propaganda elei- impulsionada terá sempre um alvo
falsos, que replicavam essas menções, Redes Sociais e Política no Brasil, pu- toral na internet dentro do período de predeterminado, estabelecido com
os pesquisadores apontaram que a blicada pela Dapp-FGV, que analisou campanha, o tempo de campanha na base nas informações que essas plata-
maioria deles estava conectada ao pu- casos de interferência no debate políti- rede passa a ser maior do que nesses formas recolhem sobre nós diaria-
blicitário Eduardo Trevisan, CEO da co, bots foram utilizados tanto para outros veículos. mente em nossas interações on-line.
empresa Facemedia. De acordo com aumentar o número de seguidores co- Isso, somado ao aumento do nú- Essa coleta de dados para a forma-
dados da Câmara dos Deputados, du- mo para atacar a oposição e promover mero de acessos à rede, torna as pla- ção de perfis e a venda de espaço para
rante aquele pleito a empresa recebeu hashtags ou debates artificiais, crian- taformas on-line meios de divulga- propaganda direcionada é a base do
um total de cerca de R$ 1,203 milhão, do e replicando mensagens e até mes- ção de propaganda política cada vez modelo de negócio dessas platafor-
somando valores recebidos do Comitê mo disseminando desinformação ou mais promissores. Se tomarmos ape- mas. Não é a toa que alguns ativistas
Nacional do PSDB para a campanha links maliciosos que roubavam dados nas as redes sociais e os chats mais consideraram esses dispositivos da re-
presidencial e das campanhas de Re- pessoais para a criação de novos perfis utilizados, hoje cerca de metade da forma política como “a lei do Face-
nan Filho (PMDB) para o governo de falsos. Ainda que não houvesse ne- população brasileira está conectada book”,1 pois, sem dúvida, a empresa
Alagoas, Vital Rêgo Filho (PMDB), nhuma regulação sobre o uso de bots ao Facebook. Com 130 milhões de que detém controle sobre as duas
candidato ao governo da Paraíba, ou perfis falsos, tudo isso aconteceu contas ativas, o país é o terceiro no maiores redes sociais no país, Face-
© Daniel Kondo

Laura Carneiro (PMDB-RJ) e da em- em um contexto em que o Tribunal Su- ranking de usuários da plataforma, book e Instagram, além do WhatsApp,
presa PVR Propaganda e Marketing perior Eleitoral proibia expressamente que também é dona do WhatsApp, deverá lucrar bastante com nossa de-
Ltda, de Paulo Vasconcelos, consultor a realização de propaganda eleitoral utilizado por cerca de 120 milhões de mocracia. Ainda assim, não são só os
da campanha do Aécio. Além do PS- paga na internet. brasileiros. posts patrocinados das redes sociais
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 5

do Facebook que a lei abarca como reforma restringiu o impulsionamento do pelo Tactical Tech Collective. Du- O cenário pede medidas que refor-
modalidades de propaganda paga per- pago de propaganda eleitoral a candi- rante a conversa, ele mencionou que, cem o respeito à privacidade e a liber-
mitida. Ela considera também como datos, partidos e coligações, como fis- de 1994 a 2008, tinha uma empresa de dade de escolha dos eleitores e confi-
forma de impulsionamento a prioriza- calizar o impulsionamento de propa- marketing político denominada Repú- ram mais transparência às campanhas
ção paga de conteúdos em mecanis- ganda eleitoral feito por terceiros? Fica blica, que teve como clientes campa- políticas. É imprescindível a aprovação
mos de busca, ou seja, no Google. a critério também das plataformas nhas de José Sarney, Roseana Sarney, do PL n. 53/2018, que trata de uma Lei
Em suma, o que aconteceu foi que identificar essa prática? Geraldo Alckmin e Eduardo Paes, e Geral de Proteção de Dados Pessoais,
qualquer investimento possível em É bastante contraditório pensar que naquela época os atores-chave pa- com regras mais firmes a respeito de
propagandas eleitorais na internet das que o TSE criou um conselho focado ra uma campanha política eram ape- consentimento e finalidade do uso dos
eleições brasileiras ficou limitado aos nas fake news,3 com o objetivo de evi- nas agências publicitárias, jornalistas dados dos cidadãos e punições para
serviços e modelos de negócios das tar interferências internacionais nas e consultores de marketing político. eventuais vazamentos de dados, com-
grandes empresas de tecnologia do eleições brasileiras, mas que ao mes- Depois contou que passou para o mer- partilhamentos indevidos e utilização
Vale do Silício. Tentando de maneira mo tempo abre tanto espaço para que cado publicitário com foco na classe C, sem consentimento ou com desvio de
leviana evitar o uso de bots que infla- plataformas estrangeiras tenham po- consumidores emergentes num perío- finalidade não informado ao titular.
cionam as curtidas e o alcance de pos- der decisório em temas eleitorais. O do de crescimento econômico, e que Outro ponto importante seria a
tagens, a lei também proíbe qualquer mesmo se dá no que diz respeito à ma- foi por esse enfoque que executivos da adoção de mais transparência com re-
outra tática de impulsionamento que neira como essas redes lidam com cri- Cambridge Analytica entraram em lação às estratégias de campanha polí-
não seja disponibilizada por essas pla- mes de racismo, discursos homofóbi- contato propondo uma parceria. Para tica on-line e às tecnologias emprega-
taformas. É como se o legislador desse cos e misóginos. Segundo relatório Torreta, a inovação que a Cambridge das para além do que fixa a legislação
um aval à lógica do algoritmo dessas sobre violência de gênero por meio de Analytica trazia era o uso de dados so- eleitoral. Partidos, coligações e candi-
empresas e ao processo de construção tecnologias produzido por um grupo bre comportamento para microtarge- datos deveriam publicar uma lista de
de “filtros-bolha” dessas plataformas, de organizações e coletivos brasileiros ting político, o que, segundo ele, possi- conteúdos impulsionados por rede so-
ainda que eles favoreçam a radicaliza- para a relatora especial da ONU de vio- bilita “entregar a mensagem correta, cial, a quantia utilizada, bem como in-
ção da polarização política cega, afas- lência contra mulher,4 essas platafor- com a linguagem correta”, algo que o formações sobre as empresas contra-
tando eleitores do contato com posi- mas têm feito um trabalho insuficien- animou a fechar a parceria. Quando tadas para a elaboração do conteúdo
ções ideológicas diferentes das suas e te diante de denúncias de discurso de perguntamos sobre seus clientes para veiculado. As empresas deveriam ser
trivializando o debate político. Privile- ódio e outros ataques, muitas vezes fo- as próximas eleições, ele disse que ti- transparentes sobre priorizações em-
giou-se uma lógica totalmente oposta cados em candidatas que têm pautas nha três contratos em andamento e butidas na lógica do algoritmo que
à do horário eleitoral gratuito na TV e representativas de minorias e popula- ressaltou que as eleições de 2018 serão afetem o conteúdo eleitoral.
no rádio, durante o qual todos os elei- ções vulneráveis. marcadas por marketing político seg- Também se deve fomentar o desen-
tores são expostos a todos os partidos, Indo além dessas plataformas, há mentado e pelo uso do WhatsApp co- volvimento de tecnologias utilizadas
ainda que em tempos díspares. de se lembrar que existe toda uma in- mo plataforma de marketing. para transparência, assim como in-
Além de prejudicar o contato com a dústria dos chamados data brokers e O que fica evidente é que, indepen- centivar eleitores a utilizar ferramen-
diversidade de discursos e privilegiar das agências de marketing político dentemente do escândalo de uso abu- tas que possibilitem monitorar tanto a
as campanhas mais ricas, essa medida operando por trás dessa lógica de con- sivo de dados pessoais pela Cambridge publicidade direcionada como a ma-
deixa no ar uma questão: mesmo quem teúdos impulsionados. Mark Turnbull, Analytica, todo o mercado dos data nipulação de algoritmos e o uso de
paga não tem como fiscalizar o funcio- diretor da divisão política da Cam- brokers e de marketing digital também bots, como é o caso das extensões ma-
namento do algoritmo da rede social bridge Analytica, chegou a mencionar, ficou aquecido com essa mudança de peadas pelo artigo “Podemos vigiar os
em que está investindo. Ou seja, em úl- em reportagem de jornalismo investi- cenário legislativo eleitoral. vigilantes”,5 que trata de projetos com
tima instância, nossa lei eleitoral, ao gativo do canal britânico Channel 4, Para a mesma pesquisa, entrevis- o Who Targets Me e Facebook Trac-
autorizar posts patrocinados, acabou que o Brasil fazia parte do seu merca- tamos alguns representantes de em- king Exposed.
dando bastante poder a empresas es- do. Posteriormente se soube que, dos presas que declaram trabalhar de al- Por fim, especialmente no contexto
trangeiras de ética questionável para 87 milhões de pessoas que tiveram guma forma em campanhas eleitorais eleitoral e em respeito aos princípios
priorizar o discurso político no país. seus dados do Facebook acessados pe- nos meios digitais, seja monitorando democráticos, a liberdade de expres-
Basta ver a reação do Facebook ao la Cambridge Analytica, 443 mil usuá- redes sociais para subsidiar equipes são e o direito de escolha do candidato
caso da Cambridge Analytica para fi- rios tinham nacionalidade brasileira. de comunicação para desenvolver devem ser preservados. Portanto, de-
car com pé atrás. Em comunicado à Em março de 2018, o Ministério Pú- propaganda direcionada, seja fazendo ve-se assegurar o direito de eleitores
imprensa, Mark Zuckerberg, CEO do blico do Brasil (MPDFT) iniciou uma parte de toda concepção de marketing ou candidatos se manifestarem a res-
Facebook, afirmou que a empresa sa- investigação para averiguar se a Cam- político de uma campanha. Nas en- peito de determinado candidato, par-
bia havia mais de um ano antes da bridge Analytica fez uso dos dados trevistas destacou-se como oportuni- tido ou coligação sem sofrer ameaças
eleição de Trump que a Cambridge pessoais de milhões de brasileiros dis- dade de negócio o fato de a propagan- ou represálias, respeitando os limites
Analytica tivera acesso a uma enorme poníveis no Facebook. O documento da digital ser mais barata do que impostos por previsões legais que
quantidade de dados de consumidores de abertura do inquérito também comerciais na TV ou na mídia impres- proíbem expressões racistas ou outras
dos serviços da plataforma por meio aponta para o fato de que a empresa sa e ressaltou-se que as limitações de formas de preconceito.
de um aplicativo de teste, algo que a começou a operar no Brasil em 2017, tempo na TV impulsionam partidos
rede inclusive incentiva para aumen- em parceria com a consultoria Ponte, menores para investir mais em cam- *Joana Varon é pesquisadora e diretora exe-
tar as interações. Em meados de abril, do publicitário André Torreta, sob a panhas digitais, especialmente em es- cutiva da Coding Rights; Bruna Santos é
a Secretaria Nacional de Defesa do denominação CA Ponte. No mesmo tratégias que incluem o uso do What- pesquisadora e líder de advocacy da Coding
Consumidor exigiu que o Facebook in- mês, a parceria foi desfeita, mas a em- sApp. Sem qualquer ou muito pouca Rights.
formasse em detalhes o número de presa continua a operar como consul- consideração sobre a privacidade dos
brasileiros, como seus dados foram tora de marketing político, agora sob o eleitores, a maioria das empresas tam-
utilizados e quem teve acesso.2 Ainda nome Ponte Estratégica. bém apontou que a diversidade de in-
que o prazo para informações fosse de Torreta esteve em 22 de maio em formações gerada na internet repre- 1 Conceição Lemes, “Ativistas detonam a Lei do Fa-
dez dias, nenhum detalhe a mais foi audiência pública na Câmara dos De- senta um ponto de partida excelente cebook: Vocês vão trabalhar de graça para Zucker-
berg lucrar e eleger os candidatos ricos”, Viomun-
divulgado até o momento. putados e deixou bastante clara, e sem para seus negócios, ressaltando que do, 9 out. 2017.
Diante de cenários assim, cabe per- nenhum constrangimento, a utiliza- informações coletadas legalmente 2 Jonas Valente, “Governo do Brasil pede explicação
guntar: quais são as regras de transpa- ção de bases de dados diversas e méto- por meio de redes sociais, quando ao Facebook sobre vazamento de dados”, Agência
Brasil, 18 abr. 2018.
rência e accountability sobre os impul- dos como o Big Ocean para microtar- cruzadas com informações de bases 3 Helena Martins, “Conselho do TSE discute preven-
sionamentos? Como essas empresas geting de anúncios. Também tivemos a de dados como do IBGE ou Serasa Ex- ção de notícias falsas na campanha eleitoral”,
estrangeiras vão responder à lei brasi- oportunidade de entrevistá-lo pela perian, até pouco tempo parceira do Agência Brasil, 15 jan. 2018.
4 Ver em: <https://goo.gl/Bj3uzh>.
leira com a rapidez que exige a lei elei- Coding Rights para o projeto Personal Facebook, já são o bastante para o de- 5 Disponível em: <https://antivigilancia.org/pt/2018/05/
toral em casos de irregularidade? Se a Data and Political Influence, conduzi- senvolvimento de suas estratégias. podemos-vigiar-os-vigilantes/>.
6 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

76% DOS BRASILEIROS USAM O APLICATIVO DE MENSAGENS

WhatsApp e as
possibilidades
de fortalecimento
da democracia
Sabemos que a corrida eleitoral vai ser acirrada. Não tanto
pelos candidatos fortes que temos, mas muito mais pelas
disputas narrativas empreendidas por seus eleitores e os
inúmeros veículos de comunicação. A arena certamente será
o WhatsApp, que vem se tornando também importante
substituto de veículos tradicionais de comunicação
POR GILBERTO VIEIRA*

© Daniel Kondo
S
eria possível definir os rumos de vam aos grupos de chat com os já clás- Alberto Melucci foi um sociólogo com sindicatos e lideranças personifi-
um país apenas com um app? sicos dizeres “fonte segura” de autores italiano que nos anos 1980 questionou cadas. O movimento ainda foi prota-
Influenciar resultados eleito- que não poderiam ser revelados. Mi- a forma como os movimentos sociais gonizado pela geração pré-digital, o
rais, difamar políticos, recriar a nistério da Saúde, Fiocruz e redes de eram entendidos, quase sempre de for- que complexifica as análises centra-
realidade difundindo notícias, “falsas” médicos e jornalistas começaram a se ma homogênea, com objetivos claros e das na juventude conectada. Chama-
ou “verdadeiras”, ao atingir grupos es- mobilizar para acalmar a população e estruturas organizadas. Ele sugeriu en- ram “a revolta do pavê”. Reportagem
pecíficos e peças-chave em estratégias frear o movimento de desinformação. tão a formação de uma “rede de movi- da BBC Brasil traz detalhes importan-
de (des)informação? Quando quase mentos”: uma tessitura de grupos que tes sobre como a ferramenta foi utili-
80% dos brasileiros usam o WhatsApp, partilham uma cultura ou uma identi- zada na articulação da greve.1
não é surpresa a importância e o poder dade coletiva. Era como se os movi- Se por um lado acompanhamos o
político da ferramenta no país. No caso da greve, mentos sociais estivessem mudando surgimento de novos modelos de ação
O aplicativo, tão presente na vida não era possível suas formas organizacionais e adqui- coletiva nos grupos de WhatsApp, por
cotidiana de jovens ou idosos, mora- saber a fonte exata rindo autonomia em relação aos siste- outro esse é o novo espaço para a pro-
dores de favelas ou de bairros de luxo, mas políticos, criando subsistemas es- liferação incontrolável de notícias fal-
já é um dos principais recursos da no-
das mensagens, que pecíficos que se tornavam pontos de sas, como vimos. Esse contraponto
va era de consumo de notícias e infor- podiam ser em convergência de diferentes formas de pode ser fundamental para entender
mações. Utilizado para propagar notí- texto, áudio, comportamento. Possivelmente a mis- como vimos construindo nossas refe-
cias falsas sobre políticos e doenças vídeo ou foto são dessa rede de movimentos era fa- rências políticas enquanto sociedade.
desconhecidas, organizar motins e zer a sociedade ouvir suas mensagens, O caso emblemático das tentativas de
greves nacionais, é também espaço se- apresentar suas reivindicações sem difamação, via WhatsApp, da verea-
guro de acolhimento de grupos vulne- institucionalizar-se, ocupando um es- dora Marielle Franco depois de seu
ráveis, de geração cidadã de dados e de Nos dois anos seguintes, o mundo paço até então inexistente entre a so- brutal assassinato é uma imagem níti-
luta por direitos. Como um dos produ- conheceu as fake news – uma espécie ciedade civil e o Estado. da desse paradoxo. As notícias difun-
tos mais valiosos do Facebook se tor- de onda que vem transformando nossa Se dermos um salto histórico, a didas nos grupos de zap apontavam
nou recurso e ameaça para grupos tão ideia de internet e elevando a altíssi- greve de maio organizada pelos cami- para julgamentos morais, políticos,
distintos no Brasil? mas potências o valor da credibilidade nhoneiros brasileiros no WhatsApp estéticos. A disputa ideológica em que
Os primeiros indícios do poder do das informações que lemos e repassa- pode fazer parte dessa rede de movi- se colocaram personagens “pró” e
WhatsApp na proliferação de notícias mos (ler mais na pág. 8). Diversos ato- mentos elaborada por Melucci trinta “contra” os movimentos de direitos
em escala nacional começaram ainda res estão envolvidos nesse drama, co- anos atrás. A comunicação desta vez é humanos é uma das ameaças que o
em 2015, quando do surto de zika vírus mo é comum nos acontecimentos mais difusa. No caso da greve, não era uso da ferramenta ainda pode trazer
e sua relação com a epidemia de micro- históricos. Para mim, interessa aqui possível saber a fonte exata das men- para comunidades afetadas pelo ódio
cefalia no país. Em um ano foram re- saber como o WhatsApp tem se torna- sagens, que podiam ser em texto, áu- e pela intolerância.
gistrados quase 2 mil casos em catorze do a ferramenta central de proliferação dio, vídeo ou foto. Os líderes eram Já sabemos que a corrida eleitoral
estados, o que gerou alarme na popula- de notícias e, paralelamente, de forma- muitos e isso dificultou as negociações vai ser acirrada. Não tanto pelos can-
ção e uma onda de notícias que chega- ção de novas configurações coletivas. com um governo acostumado a trocar didatos fortes que temos, mas muito
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7

mais pelas disputas narrativas em- parência algorítmica, trabalho colabo- formativo intenso, que começou com desafios de um cotidiano de desigual-
preendidas por seus eleitores e os inú- rativo entre sociedade civil, empresas e o autorreconhecimento político: por dades em termos de acesso a serviços
meros veículos de comunicação. A governo e fim dos incentivos financei- que eu penso como penso e ajo como públicos. A ideia é produzir uma nova
arena certamente será o WhatsApp, ros para produtores de desinformação. ajo? Quais referências políticas me base de dados e construir diagnósti-
que vem se tornando também impor- constituíram? Então, o que é verdade? cos mais fidedignos do que os indica-
tante substituto de veículos tradicio- *** Faz sentido discutir pós-verdades dores utilizados como oficiais. Quem
nais de comunicação. quando o jornalismo forjou desde os sabe as soluções também possam ser
Em julho de 2016, o estudo The Hoje estou coordenador do data_ primórdios a ideia de detentor absoluto mais legítimas, baseadas em evidên-
WhatsApp Nation (“A nação WhatsA- labe, um laboratório formado por jo- dos fatos? O que é checagem de infor- cias fornecidas por quem vive os da-
pp”), realizado pelo Mobile Ecosystem vens oriundos de periferias que acre- mação? A partir daí vamos olhar para dos mais extremos no território.
Forum (MEF), divulgou que o Brasil é o ditam em novas narrativas produzidas as falácias, as mentiras, os falsos silo- O cocozap e o projeto de checagem
segundo país que mais usa a rede, fican- por meio de dados. A sede da organiza- gismos, as metonímias, as malandra- dos grupos do zap fazem parte do que
do atrás apenas da África do Sul. A pes- ção fica no Complexo de Favelas da gens retóricas. E, por fim, produzir temos entendido como “revolução pe-
quisa foi feita em nove grandes merca- Maré, que passa por intensa interven- conteúdos que relativizem as artima- riférica dos dados”, que desemboca no
dos e destacou que 76% dos usuários ção violenta do Estado, assim como vi- nhas hegemônicas dos políticos tradi- engajamento e na capacidade de inci-
mobile utilizam regularmente o app ve constante conflito entre grupos ci- cionais. Acreditamos atingir um es- dência dos moradores de favelas e peri-
de comunicação. Segundo o Digital vis armados. Presenciamos todos os pectro mais amplo de eleitores e ferias nas políticas locais. A ideia cen-
News Report de 2017, um estudo sobre dias violações de direitos básicos co- propagadores de desinformação. Eles tral do trabalho que estamos fazendo é
o consumo de notícias produzido em mo moradia, saúde, saneamento, se- são nossos pais, tias e primos, espalha- disputar a narrativa que se criou em
conjunto pelo Reuters Institute e pela gurança e a vida. No centro dos deba- dos pelos grupos de zap nas periferias torno dos dados: num extremo, vulne-
Universidade de Oxford em 36 países, tes e projetos do data_labe está a dessas duas metrópoles que seguem rabiliza os usuários de plataformas di-
46% dos brasileiros usam WhatsApp questão do imaginário construído so- tomando como referência os veículos gitais, redes sociais e aplicativos de to-
para encontrar notícias. bre as cidades, seus centros, periferias dominantes de comunicação. do tipo; e em outro, credibiliza quem
O WhatsApp como fonte de notícia e as pessoas que vivem nelas. Aos pou- quer que apresente dados para com-
faz parte do diagnóstico da crise de cos vamos entendendo que contar his- provar falácias ou mentiras na rede.
confiança que atinge o jornalismo e tórias e disputar o acesso e a produção Como jovens sujeitos periféricos,
suas causas – a fragmentação noticio- dos dados no Brasil é uma missão polí- O WhatsApp aprendemos a brigar o bom combate –
sa, o viés de confirmação, a polariza- tica, estética e cidadã. como fonte de sem cair em simplificações binárias –,
ção política e deficiências no fazer jor- Acredito que o data_labe seja um usando múltiplas formas de comuni-
nalístico. No final de 2017, a britânica exemplo desses novos movimentos so-
notícia faz parte do cação e sem perder os parâmetros éti-
Claire Wardle, diretora do First Draft ciais, organizados pela juventude com diagnóstico da cos – os dos direitos humanos, da luta
News, em parceria com o jornalista base em suas referências conceituais e crise de confiança pelo fim da desigualdade social, do
iraniano-canadense Hossein Dera- estéticas, que aproximam tecnologia e que atinge o jornalismo respeito à diferença e diversidade, pelo
kshan, publicou o relatório Informa- consciência de classe; empoderamen- fim do preconceito e pela democrati-
tion Disorder – Toward an Interdisci- to racial e política partidária; direitos
e suas causas zação da comunicação. Naturalmente
plinary Framework for Research and humanos e empreendedorismo, hori- esses não serão parâmetros de todos
Policy Making (“Desordem da infor- zontalidade e modelo de negócios. Só os grupos que disputam o direito de
mação – Rumo a um quadro interdis- para constar, o WhatsApp é uma das Em outra ponta do espectro do uso significar. Os grupos no WhatsApp po-
ciplinar de pesquisa e formulação de ferramentas que mais utilizamos. do aplicativo, estamos desenvolvendo dem representar a arena onde essas
políticas”), encomendado pelo Con- Um dos projetos que vêm tomando um projeto de geração cidadã de da- disputas estão sendo travadas. O futu-
selho da Europa e que diagnosticou e nossa atenção é o rastreamento de dos por meio do WhatsApp – o coco- ro próximo dirá.
apresentou algumas causas para o fe- cem grupos de WhatsApp a fim de de- zap. As equipes do data_labe, da Casa
nômeno da produção e disseminação tectar desinformação durante a cam- Fluminense e da Redes da Maré traba- *Gilberto Vieira é mestre em Cultura e Terri-
de conteúdo digital enganador e frau- panha eleitoral. Em parceria com a Es- lham para construir um canal de de- torialidades e cofundador e diretor do data_
dulento. O relatório traz 34 recomen- cola de Jornalismo da Énois, para núncia, debate e proposição sobre sa- labe, um laboratório de dados, narrativas e
dações direcionadas a empresas de jovens de periferias de São Paulo, nós neamento básico, por meio de um tecnologia no Complexo da Maré.
tecnologia, governos, veículos de im- montamos um time de quinze jovens número do WhatsApp, sobre a coleta
prensa, sociedade civil e fontes de fi- que participam de grupos de zap di- de lixo e o esgotamento sanitário na
1 Amanda Rossi, “Como o WhatsApp mobilizou ca-
nanciamento. Os conselhos que mais versos. Durante o primeiro mês de Maré. Vamos receber fotos, vídeos e minhoneiros, driblou governo e pode impactar elei-
chamam atenção recomendam trans- projeto passamos por um processo narrativas, para localizar e ilustrar os ções”, BBC Brasil, 2 jun. 2018.

VENCEDOR DE 5 PRÊMIOS CÉSAR!

UM FILME DE
ALBERT DUPONTEL
BASEADO NO ROMANCE DE
PIERRE LEMAITRE

HOJE NOS CINEMAS


8 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

FAKE NEWS

Nova velha desinformação


O trabalho de manter à margem do debate público coisas como o totalitarismo e a intolerância trouxe,
junto ao peso da responsabilidade, um considerável poder a ser exercido pela grande imprensa
POR TIAGO C. SOARES*

m 1939, 20 mil simpatizantes do municador habilidoso, Long, que ti-

E nazismo se reuniram no Madi-


son Square Garden. O calendá-
rio marcava 20 de fevereiro, e o
prefeito de Nova York, Fiorello La
Guardia, mobilizou cerca de 1,7 mil
nha como um de seus principais
aliados o padre Coughlin, havia se tor-
nado, à época, o principal opositor de
Roosevelt na arena política, articulan-
do uma plataforma que reunia ele-
policiais para manter a ordem – no en- mentos radicais à direita e à esquerda.
torno do Garden, estima-se que cerca Huey Long foi assassinado em
de 10 mil manifestantes tenham se re- 1935, e a German-American Bund foi
unido para protestar contra os nazis- dissolvida em 1939, logo após o início
tas. O evento, organizado pela Ger- da Segunda Guerra Mundial. Mas o pé
man-American Bund, parou o centro atrás com o poder da comunicação de
da cidade. massa e seu potencial de mobilização
A German-American Bund era lide- radical levaram a uma reestruturação
rada por Fritz Kuhn, um ativista alinha- de todo o aparato de comunicação pú-
do ao projeto ideológico hitleriano. No blica. Para além da vitória nos campos
comício, realizado por ocasião do ani- de batalha, o combate ao nazifascismo
versário de 207 anos de George Washin- e ao totalitarismo da Segunda Guerra
gton, a German-American Bund pro- apontava para um horizonte meio de-
punha uma celebração do que sesperador: nada garantia que, mesmo
considerava como “verdadeiro ameri- com a derrota do Eixo, tensões totali-
canismo”. Sob coros de “Heil Hitler” e tárias latentes no campo das ideias
emoldurado por um gigantesco estan- não levassem ao florescimento do fas-
darte com a imagem de Washington, cismo em outros pedaços do mundo.
Fritz Kuhn discursou contra a “impren- Até onde, num universo em que o dis-
sa dominada pelos judeus” e os “sindi- curso da propaganda é tornado paisa-
catos comunistas”, atacou Roosevelt e o gem e a mídia de massa se capilariza
New Deal, e elaborou um rascunho do em escala inédita, seria possível, en-
que seria sua América ideal: branca, na- fim, organizar uma esfera de comuni-
tivista, anticomunista e antissemita. cação pública assentada sobre uma ra-
Fundada em 1933, a German-Ame- cionalidade liberal e democrática?
rican Bund chegou, em seu ápice, a so- A neutralização do imaginário cul-
mar cerca de 25 mil membros. Seus as- tural fascista e de seus códigos de so-
sociados contavam com campos de ciabilização serviu como incentivo à
treinamento e se dedicavam a ações de articulação de um novo aparato de
propaganda e demonstração pública, produção, organização e divulgação
com a edição de panfletos e brochuras. do pensamento. Dos pesquisadores da
Eles não estavam sozinhos. Em suas Escola de Frankfurt a oligarcas finan-
triangulações pela extrema direita, a ciadores de museus, uma ampla rede
organização mantinha uma relação de operadores – academia, governos,
bastante próxima com o Christian imprensa, mercado, artes – foi coloca-
Front, grupo fundado pelo padre Char- da em movimento, resultando no de-
les Coughlin, um dos mais populares são, ainda hoje, um documento a in- O flerte da direita dos Estados Uni- senho de políticas públicas, circuitos
ativistas políticos dos Estados Unidos formar grupos da extrema direita. dos com o fascismo e o imaginário pú- de intercâmbio intelectual e produtos
nos anos 1930. Fundador da Radio Lea- Além da German-American Bund e blico despertado nisso mobilizaram o culturais. Um novo ambiente multi-
gue of the Little Flower, Coughlin ti- do Christian Front, os Estados Unidos aparato de cultura do país. Em 1935, mídia de debate público foi moldado,
nha, às vésperas da década de 1940, do entreguerras tinham em atividade Sinclair Lewis, um dos mais populares com o objetivo de manter sob controle
uma audiência estimada de 3,5 mi- outro tanto de grupos de direita radi- autores do país, publicou um livro o despertar de energias subjetivas
lhões de ouvintes, mantidos numa die- cal, como a Silver Legion of America, os chamado It Can’t Happen Here (“Não igualmente novas.
ta regular de fascismo e antissemitis- Crusader White Shirts, o American Na- vai acontecer aqui”). A obra, uma sáti- Nesse rearranjo todo, as responsa-
mo. Coughlin foi um dos principais tional-Socialist Party, além, é claro, da ra sobre a ascensão do fascismo, narra bilidades outorgadas à imprensa ti-
responsáveis pela publicação e divul- Ku Klux Klan. E, apesar de hipóteses da a eleição de um radical populista para nham importância especial. Desde o
gação dos Protocolos dos Sábios do época associarem o fenômeno do tota- a presidência dos Estados Unidos, com século XIX, já cabia a ela, afinal, as tra-
Sião, uma falsificação sobre um com- litarismo europeu a traços culturais a transição do país ao totalitarismo, dicionais funções de registro, organi-
plô imaginário de capitalistas judeus essencialmente continentais (como numa espiral de caos. A publicação ti- zação e divulgação pública do conhe-
para controlar do mundo. Apesar de uma possível predisposição de ale- nha um alvo claro: articular, na esfera cimento carimbado pela ciência – era
© Allan Sieber

desmentidos e provados como falsos mães a doutrinas de ordem e força, por pública, os medos suscitados pelos a imprensa, por exemplo, a responsá-
inúmeras vezes ao longo do século XX, exemplo), o receio de pulsões fascistas planos presidenciais de Huey Long, vel pela documentação dos aconteci-
os protocolos se tornaram uma espécie contaminando o tecido social norte-a- um ex-governador e senador democra- mentos do mundo, e o caminho pelo
de pedra de toque do antissemitismo e mericano era um medo muito real. ta eleito pelo estado da Louisiana. Co- qual as descobertas e conclusões en-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9

contradas nos laboratórios se torna- da entrega da presidência a um ho- de imprensa. A possibilidade de ofere- te oferecem grande consistência quan-
vam acessíveis ao público. Mais que mem de negócios tornado celebridade cer (e escrever) uma coluna em um to ao seu vínculo com o universo do
isso, era nos jornais também que os televisiva. E a imprensa, com seu po- jornal ou de convidar alguém a uma conhecimento ou com os limites da
projetos de pensamento e os campos der de representação e organização da poltrona de debate televisivo dá aos democracia liberal. Memes defenden-
da disputa política apareciam repre- realidade, estava em frangalhos. operadores da imprensa um papel de do a teoria da Terra plana ou pensatas
sentados. Da Revolução Francesa aos Ao longo do processo eleitoral que validação institucional que, no fim do pregando a esterilização forçada de
sindicatos ingleses, passando pelos opôs Donald Trump a Hillary Clinton, dia, é vivenciado como poder real. É a imigrantes podem ter alcance e rele-
manifestos e cartas públicas, a apre- teve curso uma aparentemente inédi- capacidade de acelerar ou demolir vância quanto ao tamanho de suas
sentação e o encaminhamento de de- ta intensificação na produção e circu- agendas públicas, de alavancar ou mi- métricas, embora não caibam em ne-
mandas e grupos tinham, na impren- lação de desinformação. O fato em si nar candidaturas – de registrar ou in- nhuma discussão democrática razoá-
sa, um poderoso centro de gravidade. não era exatamente novidade – notí- visibilizar o que servirá à organização vel. Uma nova corrida do ouro da de-
No pós-guerra, esse trabalho pas- cias falsas e propaganda descolada da do presente. Um poder que, a história sinformação é colocada em curso:
sou a ser acompanhado de um novo realidade gravitam disputas demo- nos recorda, não é exatamente imune tornado informação descontextuali-
esforço. Além de registrar e organizar cráticas desde sempre. Mas o proces- à cooptação por interesses econômi- zada, o conhecimento, desmembrado
o conhecimento, e de posicionar e vo- so encontrado nas eleições presiden- cos e políticos. e espalhado por redes não lineares,
calizar os projetos em disputa na so- ciais norte-americanas tinha alguns torna-se insumo para a produção de
ciedade, a imprensa corporativa tinha aspectos novos. Conforme a corrida ruído. Uma inundação informacional
agora a obrigação de agir como uma pelos eleitores ganhava tração, o volu- que, liberada de qualquer validação
espécie de filtro civilizatório. O conhe- me de notícias falsas que circulavam A crítica à concentração científica e política, desorganiza e es-
cimento validado e oferecido ao públi- na web se espalhava a ponto de emba- e ao abuso do poder garça o debate público, levando, no li-
co ainda tinha de ser aferido como ralhar todo o sistema de notícias. Es- mite, a rachaduras nos portões que
“verdadeiro” pela ciência, claro. Mas, ses conteúdos, criados e circulados
institucional dos meios mantinham os bárbaros para fora.
além disso, uma nova camada de aná- por plataformas on-line descoladas de comunicação de massa
lise era colocada em funcionamento: a do sistema da imprensa tradicional, é um traço definidor ***
aferição de até onde ideias, discursos e ganharam alcance exponencial con- do ideal encapsulado
atores mobilizados em torno da infor- forme seus links eram semeados pelo Em 2018, às vésperas das eleições
mação poderiam servir a uma erosão ecossistema das redes sociais. Os efei-
na internet presidenciais no Brasil, o caos norte-a-
da democracia. Na prática, isso signifi- tos desse novo maquinário de notícias mericano ganha contornos de profe-
cava um compromisso de que grupos falsas (ou fake news) no liberal am- cia. Enquanto redes pulverizadas por
racistas, mesmo que se mantivessem biente de comunicação norte-ameri- A crítica à concentração e ao abuso Facebook e WhatsApp se transfor-
ativos, não fossem normalizados com cano, no meio de um processo de dis- do poder institucional dos meios de mam em um moto-contínuo de desin-
colunas de apologistas ao racismo nos puta presidencial, tornaram-se um comunicação de massa (e da imprensa formação, a imprensa tradicional, nu-
grandes jornais, por exemplo. dos principais eixos da análise e da corporativa em especial) é um traço ma revisão unilateral das definições
É verdade que esse pacto não foi cobertura política entre 2015 e 2016. A definidor do ideal encapsulado na in- da ciência e da filosofia política, decide
imune a tensões e rupturas – o papel antiga expressão se transformou no ternet. O projeto de um novo sistema apresentar como “centro” o espectro
instrumental da grande imprensa bra- jargão mais quente da temporada: da do conhecimento e de uma nova lógi- político que vai da centro-direita à
sileira em processos de ruptura demo- denúncia de operações de desinfor- ca de imprensa, baseados em redes borda da direita radical. A desconfian-
crática nos últimos sessenta anos é um mação on-line a boatos e questiona- horizontais, colaborativas e auto-or- ça em relação à imprensa corporativa
bom exemplo. Mas existia, enfim, uma mentos sobre a legitimidade institu- ganizáveis, foi por muito tempo um (causada, entre outras coisas, por re-
intenção e uma tentativa de compro- cional da imprensa, o termo fake news dos traços mobilizadores essenciais da correntes abusos em eleições passa-
misso institucional: a estabilização adquiriu múltiplos usos para múlti- cibercultura. A viabilização desse das) ajuda a viabilizar, na figura de
das fronteiras do aceitável no ringue plos grupos. ideal, porém, parece ter gerado algu- Bolsonaro, a primeira candidatura
da democracia liberal. A investigação dos responsáveis mas ondas de choque. Ao transferir- presidencial abertamente fascista
pelo embaralhamento do sistema da mos para o grid da internet as tarefas após a redemocratização. Em meio a
*** imprensa dos Estados Unidos não fi- de organização, registro e validação isso tudo, o Tribunal Superior Eleitoral
cou imune à própria desestabilização do presente, a própria lógica do conhe- acena com a possibilidade de anula-
Em 10 de dezembro de 2016, o pre- que procurava desvendar. Para parte cimento é também forçada a uma ção das eleições em caso de fake news
sidente eleito dos Estados Unidos, Do- considerável da opinião pública norte- transformação. Tornado informação, o – embora o entendimento do termo es-
nald Trump, soltou um tuíte. O comu- -americana, a máquina de desinfor- conhecimento é desmembrado, des- teja ainda aberto a definições.
nicado tinha certa urgência: “Informes mação acionada durante as eleições é colado de seu arcabouço institucional A desorganização informacional
da @CNN de que eu estarei trabalhan- uma ação dos serviços russos de inteli- e lançado a um constante processa- acionada pela arquitetura das redes
do no O Aprendiz durante minha pre- gência, que teriam colocado em práti- mento e reconfiguração. Na arquitetu- tem como contraponto um sistema de
sidência, mesmo que em meio perío- ca plataformas on-line deliberada- ra da internet, dados são apenas dados organização da informação igual-
do, são ridículos e não verdadeiros mente mentirosas para intoxicar, a – derivativos financeiros, memes de mente em crise – o repetido hábito da
– FAKE NEWS!”. partir do Facebook, a esfera pública gatos e despachos da Associated Press grande imprensa de sacar a carta da
A declaração de Trump era uma es- dos Estados Unidos. Essa hipótese, são pedaços de código compartilhan- “mediação distanciada” para vender
pécie de controle de danos: pouco an- que recebeu o nome de Russiagate, é do uma mesma infraestrutura tecno- ações discutíveis (como as manobras
tes de sua posse, no início de 2017, boa- rechaçada, por sua vez, por outros se- lógica e informacional. em favor de grupos políticos ou a im-
tos sugeriam que o novo presidente tores da opinião pública local, que No acomodamento das responsa- posição de interesses econômicos)
estaria animado com a possibilidade consideram o noticiário sobre uma in- bilidades e poderes desse novo mun- parece cobrar, enfim, o preço de sua
de, nas horas vagas da Casa Branca, tervenção russa, ele mesmo, uma ação do, plataformas como o Facebook, al- relação com o público. Enquanto isso,
continuar tocando seu reality show de fake news orquestrada por velhos tamente capilarizadas e com recursos os Protocolos dos Sábios do Sião con-
empreendedor. Em circunstâncias operadores da política e da imprensa. virtualmente infinitos, impõem-se co- tinuam circulando pela internet. E o
normais, a hipótese de um presidente Uma espiral de retroalimentação e de mo os modernos centros de organiza- livro de Sinclair Lewis, passados oi-
em exercício dividir seu tempo entre o colapso do mercado de opinião que, ao ção e validação do debate público. tenta anos, voltou a aparecer nas listas
comando da nação e a apresentação fim, se espraia a ponto de engolir o Suas métricas de engajamento, numa de mais vendidos.
de um programa de TV seria coisa de próprio termo que a busca definir. entropia, naturalizam-se como os no-
charges, daquelas com políticos de O trabalho de manter à margem do vos indicadores de consistência e rele- *Tiago C. Soares, pesquisador e jornalista, é
terno e cartola sentados em cima do debate público coisas como o totalita- vância, índices de interesse e status doutorando em História pela USP. É associa-
Capitólio com sacos ilustrados com ci- rismo e a intolerância trouxe, junto ao (afinal, assuntos e perfis muito citados do ao Laboratório de Estudos Avançados em
frões. Mas o fato era que os Estados peso da responsabilidade, um consi- são elevados, nessa lógica, a certa emi- Jornalismo (Labjor/Unicamp) e à Cátedra
Unidos estavam mesmo às vésperas derável poder a ser exercido pela gran- nência), mas que não necessariamen- Unesco em Comunicação Aberta.
10 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

QUANDO OS DEMOCRATAS RECORREM AO ESTADO PROFUNDO

Sob os bons cuidados da CIA...


A esquerda norte-americana encontra aliados inesperados em sua luta contra Donald Trump: os serviços de inteligência.
Em guerra aberta contra o atual presidente, a quem acusam de conluio com a Rússia, estes não hesitam em se apresentar
como a última trincheira da democracia. É preciso, contudo, ser acometido de amnésia para aceitar tal discurso...
POR MICHAEL J. GLENNON*

© Vitor Flynn

C
om a eleição de Donald Trump de Segurança (NSA) são salvaguardas de então, o único remédio constitucio- em 1875 para conduzir as investiga-
para a Casa Branca, os norte-a- contra os potenciais desvios de Trump. nal para possíveis delitos do Executivo ções sobre o escândalo do Whiskey
mericanos poderiam se sentir A burocracia não fazia parte do – o procedimento de impeachment, Ring, um caso de apropriação indevi-
menos propensos a cantar os projeto dos Pais Fundadores. Quando que permite ao Legislativo destituir da de fundos públicos envolvendo pro-
louvores de seu sistema político. Não Thomas Jefferson foi eleito presidente um membro do governo – revelou-se dutores de uísque, funcionários do Te-
foi o caso. O discurso sobre a excepcio- em 1801, o Poder Executivo era limita- pouco adequado para punir crimes e souro e líderes políticos. O mais
nalidade dos Estados Unidos simples- do a 132 funcionários e o gabinete do delitos menores cometidos por amigos recente se chama Robert Mueller e,
mente mudou de forma: agora algu- presidente tinha apenas um membro e aliados do presidente. desde maio de 2017, está interessado
mas pessoas gostam de repetir que os – seu secretário pessoal. Da mesma em um hipotético conluio entre a
mecanismos de controle dos poderes forma, antes dele, George Washington “ESTAMOS AQUI DESDE 1908” equipe de campanha de Trump e o go-
previstos na Constituição (o sistema e seus colegas não previram o surgi- Para preencher essa lacuna, foi en- verno russo. Seria possível mencionar
de “pesos e contrapesos”, ou checks mento das formações políticas, e o contrada uma solução no final do sé- também William Cook, encarregado
and balances), juntamente com a po- Partido Democrata-Republicano só culo XIX: os “procuradores especiais” de um caso de corrupção no serviço
derosa burocracia da segurança na- surgiu em 1792, ou seja, quatro anos ou “independentes”, que substituíram postal em 1881; Francis Heney, que em
cional, oferecem uma resistência úni- após a ratificação da Constituição. Na o Departamento de Justiça quando 1905 tentou esclarecer um escândalo
ca à ameaça do autoritarismo. Para ordem política que aos poucos foi se suspeitas de conflito de interesses de suborno na alocação de concessões
eles, a Agência Central de Inteligência impondo, os membros do Congresso mancharam uma investigação sobre de petróleo; ou ainda Archibald Cox.
(CIA), o Departamento Federal de In- tinham interesse no sucesso de um um dos braços do poder. O primeiro Nomeado em maio de 1973 no contex-
vestigações (FBI) e a Agência Nacional candidato de seu próprio campo. Des- deles, John B. Henderson, foi nomeado to do Watergate, um caso de espiona-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11

gem política envolvendo a Casa Bran- inimigo nem sempre é meu amigo. É milhares de correspondências inter- ocasião da investigação do programa
ca, ele foi demitido em outubro pelo preciso ignorar a história recente dos nacionais que tinham como destina- de detenção e interrogatório da CIA, o
presidente Richard Nixon. De fato, os Estados Unidos para considerar os tário ou remetente cidadãos dos Esta- maior já realizado sobre esse assunto?
promotores “independentes” conti- serviços de inteligência como baluar- dos Unidos. Introduzido em 1952, esse O alentado relatório de 6 mil páginas,
nuam a ser uma solução insatisfatória: tes das liberdades civis e políticas. programa durou mais de vinte anos. divulgado em 2014 pelo Comitê de In-
sua nomeação depende da boa vonta- Mergulhar no relatório da comissão Nenhuma das subcomissões de con- teligência da Câmara dos Represen-
de do Departamento de Justiça e ne- Church, nome dado em homenagem a trole estabelecidas pelo Congresso ti- tantes, afirma que a CIA mentiu siste-
nhuma salvaguarda constitucional um senador democrata de Idaho, aju- nha ouvido falar dele. No início dos maticamente para o Congresso e para
impede sua demissão. da a refrescar a memória. anos 1970, os diretores da CIA e do FBI a Casa Branca sobre a gravidade e a efi-
De resto, a independência admi- Publicado em 1976,2 esse relatório mentiram para o presidente Nixon, di- cácia das “técnicas de interrogatório
nistrativa é uma faca de dois gumes. detalha uma série de maquinações es- zendo-lhe que o programa havia sido aprimoradas” infligidas aos detidos.4
Necessária no caso de procuradores condidas. Não se trata de malfeitos interrompido. Mas o documento não discute a legali-
especiais, também é muito apreciada ocasionais cometidos por caubóis so- Como parte do projeto Shamrock, dade dessas técnicas nem defende ne-
por burocratas da segurança nacional litários, mas de operações meticulo- lançado logo após a Segunda Guerra nhuma reforma projetada para evitar
que, há alguns anos, não param de exi- samente pensadas, elaboradas por es- Mundial, a NSA coletou ilegalmente a reincidência. Além disso, uma nota
gir mais autonomia. Anteriormente, ses chefes de serviços de inteligência milhões de telegramas internacio- de rodapé discreta afirma que a co-
quando uma decisão presidencial lhes que agora inspiram tanta confiança a nais recebidos ou enviados por cida- missão não teve acesso a 9.400 docu-
desagradava, eles expressavam sua algumas pessoas. Durante décadas, dãos norte-americanos. Tratou-se mentos que considerava relevantes
oposição de maneira passiva, redo- esses serviços, nas palavras do cien- então, de acordo com a comissão para suas investigações. Ela, no entan-
brando a lentidão administrativa, por tista político Loch Johnson, “têm em- Church, “do maior programa de in- to, solicitou a consulta deles em três
exemplo. De agora em diante, eles ex- pregado suas artimanhas contra as terceptação de comunicações”. Estas cartas sucessivas ao presidente Barack
pressam abertamente sua oposição, pessoas que eles deveriam proteger”,3 não foram autorizadas por nenhuma Obama, que nunca respondeu. A co-
multiplicando reprimendas públicas e mostrando como agentes zelosos autoridade judicial e não se tem cer- missão reagiu abandonando seu pedi-
vazamentos para a imprensa. atuando em segredo podem gradual- teza de que um presidente lhe tenha do. E ela é o cão de guarda mais amea-
Quando dirigiu o FBI, James Comey mente reverter o equilíbrio entre li- dado sua aprovação ou mesmo que çador do Congresso...
não hesitou em revelar uma conversa berdade e segurança. tenha tido ciência disso. Nixon, aliás, É com isso que se parecem as agên-
em que o presidente Trump, segundo parecia ter apenas um conhecimento cias de segurança, agora elogiadas co-
ele, lhe teria pedido para abandonar as muito vago da própria NSA. Em 16 de mo baluartes da democracia. Como
investigações sobre seu conselheiro, maio de 1973, durante uma conversa ter certeza de que um dia, argumen-
Michael Flynn, acusado de mentir so- Se os cidadãos no Salão Oval, o advogado dele, preo- tando uma situação de “emergência”
bre suas ligações com a Rússia. Tendo confiam nas agências cupado, avisou-lhe que, ao autorizar para a segurança do Estado, elas não
passado pelo FBI e pela CIA, Philip Mu- de inteligência, é porque o plano Huston (realizado conjunta- vão retomar seus velhos hábitos? Os
dd justificou o esforço de seu ex-chefe. mente pela CIA, o FBI e a NSA contra serviços de inteligência não são desti-
“O pessoal do FBI subiu o tom”, alertou
se espera que elas ativistas da esquerda radical), ele ile- nados a controlar as decisões dos líde-
ele na CNN, em 3 de fevereiro de 2018, prestem contas aos galmente levava a NSA a mirar os ci- res eleitos. Pelo contrário. Assim,
“e é isso que eles lhe dirão, presidente: representantes dadãos norte-americanos. E Nixon quando Trump acusa o FBI de não ter
‘Se acha que pode nos fazer desistir do políticos eleitos respondeu: “O que é a NSA? Que tipo impedido a matança de Parkland, que
caso porque está tentando intimidar o de ação ela desenvolve?”. causou a morte de dezessete pessoas
diretor, é melhor pensar duas vezes. É certo que esses abusos remon- em uma escola na Flórida em feverei-
Você está aí há treze meses, estamos tam a várias décadas. Daí a ideia de ro, temos o direito de nos perguntar
aqui desde 1908 [ano em que o FBI foi Instaurado pelo FBI nas décadas de que eles não poderiam voltar a aconte- por que o próprio presidente não fez
fundado]. Se quiser jogar esse jogui- 1960 e 1970, o programa Cointelpro ti- cer, porque o controle judiciário e a vi- nada. Afinal, o FBI se reporta ao De-
nho, quem vai ganhar somos nós’.” Sa- nha como objetivo detectar grupos e gilância exercidos pelo Congresso te- partamento de Justiça e, portanto, tra-
mantha Power, embaixadora dos Esta- indivíduos “subversivos” – isto é, opo- riam se tornado mais rigorosos. Tal balha para ele. Como o próprio Comey
dos Unidos nas Nações Unidas durante sitores da Guerra do Vietnã, ativistas otimismo não é justificado. reconheceu, “como membros do Po-
a presidência de Barack Obama, consi- dos direitos civis... –, a fim de pôr fim der Executivo, estamos todos sob a au-
derou no Twitter (17 mar. 2018) que às suas atividades. Para isso, o FBI soli- UM CÃO DE GUARDA POUCO FEROZ toridade direta do presidente”. Quan-
“não seria uma boa ideia contrariar citou e obteve a colaboração da Recei- Embora existam exceções – em do ela intervém para substituir a
John Brennan”, justificando as decla- ta Federal. Ele se infiltrou em organi- maio de 2015, por exemplo, um tribu- arbitragem do eleitor, o alto serviço
rações hostis a Trump desse ex-diretor zações religiosas, universidades e em nal federal de apelação julgou ilegal público corrói a democracia que deve-
da CIA, de 2013 a 2017. De fato, como muitos meios de comunicação, e se de- um dos programas de escuta telefônica ria proteger.
esclarece Chuck Schumer, líder da mi- dicou a incitar a violência dentro de da NSA revelado por Edward Snowden
noria democrata no Senado, “as pes- grupos afro-americanos ou ainda a –, os tribunais rejeitam com frequência *Michael J. Glennon é professor da Fletcher
soas que trabalham em serviços de in- desacreditar seus líderes, sobretudo reclamações contra programas de se- School of Law and Diplomacy, da Universida-
teligência têm mil e uma maneiras de enviando centenas de cartas anôni- gurança nacional, por se declararem de Tufts, em Medford, Estados Unidos. Autor
se vingar”.1 mas, uma delas para Martin Luther incompetentes para tanto e sem ja- de National Security and Double Government
Tais declarações causam estupefa- King, com a intenção de empurrá-lo mais abordar profundamente a ques- [Segurança nacional e governo duplo], Ox-
ção. A Constituição, é verdade, prevê para o suicídio. Todas essas iniciativas tão. Khalid el-Masri pode testemunhar ford University Press, 2014.
mecanismos de contrapoder para im- violavam a lei. Nada indica que o pro- isso. Confundido com um suposto in-
pedir os eleitos de sair dos trilhos, mas grama tenha sido aprovado fora do FBI tegrante da Al-Qaeda, esse cidadão
os funcionários da segurança nacional e que até o vice-diretor do órgão igno- alemão foi preso pela CIA na Macedô-
1 The Rachel Maddow Show, MSNBC, 4 jan. 2017.
com certeza não fazem parte disso. rasse sua existência. nia em 2004. Transferido para o Afega- 2 “Intelligence Activities and the Rights of Americans”
Pelo contrário: se os cidadãos confiam Com a operação Chaos, um vasto nistão por meio dos “voos secretos” da [Atividades de inteligência e os direitos dos norte-a-
nas agências de inteligência, é porque plano de espionagem levado a cabo agência, ele foi preso e torturado du- mericanos], Comissão do Senado encarregada de
examinar as operações do governo, Livro II, 1976.
se espera que elas prestem contas aos entre 1967 e 1973, a CIA também teve rante vários meses. Uma vez libertado, Disponível em: <www.intelligence.senate.gov>.
representantes políticos eleitos. Uma como alvo o movimento pacifista. Ela ele entrou com uma ação legal nos Es- 3 Loch Johnson, Spy Watching: Intelligence Account-
vez quebrada essa conexão com o voto fez uma lista de cem organizações e tados Unidos, mas o tribunal rejeitou ability in the United States [Observação espiã:
responsabilidade das agências de inteligência nos
popular, a legitimidade constitucional 7.200 pessoas que pretendia monito- sua queixa. Motivo apresentado? Uma Estados Unidos], Oxford University Press, 2018.
das agências desaparece. rar, apesar de as atividades delas nos investigação poderia revelar segredos 4 “Study on CIA Detention and Interrogation Pro-
Muitos norte-americanos odeiam Estados Unidos serem perfeitamente de Estado. gram” (2014) [Estudo sobre o Programa de Deten-
ção e Interrogatório da CIA], Comissão do Senado
Trump. Mas, ao contrário do ditado legais. Além disso, graças à operação Será que a nova firmeza do Con- sobre Inteligência. Disponível em: <www.feinstein.
popular, na política o inimigo do meu Htlingual, ela abriu e leu dezenas de gresso realmente se manifestou por senate.gov>.
12 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

GOVERNOS E MERCADO

© Andrício de Souza
O investidor não vota
É um esboço cada vez mais bem-acabado. Um governo – progressista ou reacionário – toma uma decisão que desagrada
às preferências das finanças. Os mercados ameaçam, o poder político renuncia, a mídia aplaude. A crise italiana demonstrou
que o “círculo da razão” neoliberal se parece mais e mais com um nó apertado em torno do pescoço do eleitor
POR RENAUD LAMBERT E SYLVAIN LEDER*

s europeus acabam de redesco- ger, os italianos retornariam às urnas ocupariam posições opostas. De um se crescimento do consumo e do in-

O brir: um dos atores mais in-


fluentes de suas democracias se
preocupa pouco com as urnas.
Seu nome? “O investidor”.
Em maio de 2018, a Itália retomou
com mais força: “As consequências
para a economia da Itália poderiam ter
sido tão drásticas que isso se tornaria
um sinal possível aos eleitores para
não eleger populistas, de esquerda ou
lado, a consistência de um pudim; do
outro, a firmeza do aço. Perseguição
de dissidentes, prisões arbitrárias, irri-
tabilidade geopolítica, o chefe de Esta-
do turco apresenta uma resolução ra-
vestimento não vier acompanhado
de um crescimento similar da produ-
ção de bens e serviços no território.
Para os investidores do mercado de
moedas, a taxa básica de um banco
essa lição quando o presidente Sergio de direita”. Não foi necessário. Menos ra. Na ampla gama de movimentos de central permite sobretudo calcular os
Mattarella rejeitou a nomeação de de uma semana depois, a coalizão pro- tropa, o recuo estratégico não é sua lucros que podem obter de seus inves-
Paolo Savona para o cargo de ministro pôs um novo candidato ao cargo, apa- manobra preferida. Contudo, ele aca- timentos. Os especuladores, por sua
da Economia. Este último tinha o rentemente mais compatível com o ba de ser obrigado a uma humilhante vez, gostam da operação de se endivi-
apoio de ambos os partidos encarre- projeto europeu. O eurocético Savona retirada em relação às taxas de juros. dar em uma moeda para investir os
gados de formar um governo – a Liga foi relegado a um papel secundário do Da mesma forma que o ponteiro fundos emprestados em outra moeda
(extrema direita) e o Movimento Cin- ponto de vista dos investidores: o de de uma bússola aponta sempre para o com taxa de juros alta (o carry trade).
co Estrelas (“antissistema”) –, mas não ministro das Relações Exteriores da Norte, as taxas de juros praticadas Exemplo: no início de junho de 2018, o
ganhou o coração da União Europeia. União Europeia. pelo banco central de um país – cha- Federal Reserve (banco central norte-
“A designação do ministro da Econo- Os italianos evitaram o pior ou exa- madas de taxas básicas – são defini- -americano) praticou uma taxa básica
mia constitui uma mensagem imedia- geraram no tamanho da ameaça? Dito das pelo ambiente econômico. Des- de cerca de 2%, permitindo ao investi-
ta de confiança ou alarme para os ope- de outra forma: é possível competir na tas últimas deriva a maior parte das dor levantar US$ 1 milhão por um juro
radores econômicos e financeiros”, queda de braço contra os mercados fi- outras taxas de juros da economia, de US$ 20 mil ao ano. O tomador do
justificou o chefe de Estado em 27 de nanceiros e ganhar? É o que tentou re- notadamente aquelas que estabeleci- empréstimo poderia converter seus
maio. Ora, o investidor gosta da UE, centemente o presidente turco, Recep mentos privados propõem às pessoas verdinhos em liras turcas e lucrar com
pois ela o multiplica. Tayyip Erdogan, em uma pequena ba- físicas e às empresas. Quando o ban- um investimento a partir da taxa de
O nome de Savona fez pairar sobre talha cheia de aprendizados. co central baixa sua taxa básica, isso juros turca: 15%.1
a Itália a ameaça da ira dos mercados; facilita o acesso ao crédito e estimula Poderíamos nos questionar sobre o
Liga e Cinco Estrelas reativaram seu EXIGÊNCIAS CONTRADITÓRIAS tanto os investimentos empresariais interesse de recompensar os turistas
acordo de coalizão. Se não tivessem Em uma escala imaginária de de- como o consumo. Em resumo, aque- do mercado de câmbio. No contexto de
conseguido, afirmou o comissário eu- terminação política, o ex-presidente ce a economia. Mas pode igualmente uma economia financeirizada, a ope-
ropeu do orçamento, Günther Oettin- francês François Hollande e Erdogan conduzir a uma alta da inflação se es- ração é determinante porque o fluxo
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13

de dólares é uma das únicas formas de sua visita a Londres [em maio de 2018] A partir dos anos 1970, sob influên- quanto mais o spread aumenta, mais
equilibrar as contas de um país. E as para acalmá-los”.2 Erro. Ao falar na cia dos monetaristas, os Estados para- as taxas de juros praticadas no merca-
da Turquia sofrem de um desequilí- Bloomberg TV no dia 15 de maio, o ram de se financiar junto aos seus do primário, quando da emissão de
brio estrutural ligado às suas deman- presidente turco confirmou que as ta- bancos centrais (mecanismo acusado novos títulos da dívida, devem ser ele-
das energéticas: o petróleo e o gás que xas de juros elevadas constituíam, se- de aumentar a inflação) e reduziram a vadas, para que os investidores não
consome – importados – desequili- gundo ele, “a fonte dos problemas, não fiscalização, em particular sobre abandonem as novas obrigações em
bram sua balança comercial. Em ou- sua solução”, e que a vitória nas elei- grandes receitas. Obtêm, assim, a li- benefício das que circulam no merca-
tras palavras, Ancara depende das di- ções antecipadas de 24 de junho lhe quidez de que precisam junto aos in- do secundário.
visas trazidas pelos investidores. permitiria retomar o controle da polí- vestidores emitindo títulos do Tesou- Entre abril e maio de 2018, o spread
Como a maior parte dos países tica monetária do país. ro ou “obrigações” – em suma, títulos italiano (a diferença entre as taxas de
emergentes (África do Sul, Brasil, In- Até esse momento, a natureza re- da dívida do Estado. Estes são troca- juros exigidas pelos investidores para
donésia...), a Turquia se encontra, as- pressiva do regime de Erdogan não ha- dos de duas formas. No mercado pri- comprar títulos emitidos nos últimos
sim, confrontada por exigências con- via tirado sequer uma noite de sono mário, o Estado “transmite” suas obri- dez anos por Berlim e Roma) dobrou. A
traditórias: as dos investidores, pouco dos mercados financeiros, mas suas gações, que comportam um preço e Itália apresenta um endividamento
dispostos a transigir sobre a amplitude declarações no canal de TV marcaram uma taxa de juros. O preço correspon- importante, superior a 130% do PIB.
de seus lucros e seduzidos por taxas de um “ponto de virada”, de acordo com de ao montante emprestado e a taxa Como, não mais que os outros, o país
juros bombadas; as da economia pro- um consultor financeiro entrevistado de juros fixa a remuneração. Por 100 não está em condições de reembolsar
dutiva, que necessita de acesso sufi- pelo Financial Times: “Durante muito euros, uma taxa de juros de 3% ofere- os valores de tais somas, ele deve pro-
ciente a créditos baratos para não dis- tempo, os investidores imaginaram ce um lucro, chamado de “cupom”, de ceder com a “rolagem” da dívida: emi-
parar os custos de produção ou para que esse governo lhes era favorável” 3 euros por ano. tir regularmente novos títulos para
facilitar o consumo e o acesso à casa (24 maio). Alarmado pela pretensão de reembolsar os compradores preceden-
própria. Em outras palavras, uma taxa um dirigente político de se apropriar tes. O aumento do spread se revela, en-
de juros diretos reduzida, que limita os da ferramenta monetária – uma “deci- tão, suficientemente oneroso para con-
lucros dos especuladores. são arbitrária” –, Martin Wolf, o eco- A carótida que vencer as elites políticas de apaziguar
Nesse confronto, em geral, os in- nomista-chefe da revista da City, o os investidores os mercados o quanto antes.
vestidores contam com um aliado de convidou a “demonstrar [...] que ele identificaram em seus Em um editorial de 24 de maio, o
peso: o próprio banco central. Sua dita [poderia] pilotar a Turquia de maneira Financial Times se gabava da decisão
“independência” atualmente se impõe conveniente” (25 maio). “Convenien-
“parceiros” europeus do presidente turco de “abdicar”: “Er-
a diversos países sob o pretexto de ti- te”, ou seja, em harmonia com as pre- para passar o fio de suas dogan [...] acaba de aprender uma do-
rar a política monetária – a pilotagem ferências dos investidores. “Isso pode lâminas tem nome: lorosa lição que já ensinava o rei Knut,
do valor da moeda e das taxas de juros incomodar alguns, mas são aqueles spread o Grande, soberano da Inglaterra no
do país – das mãos dos dirigentes polí- que pilotam o Estado que prestam século XIX. Contam que ele se sentava
ticos que em processos eleitorais pro- contas aos cidadãos”, respondeu Erdo- diante da maré crescente para mostrar
metem com frequência satisfazer as gan na Bloomberg TV para justificar aos sicofantas que o rodeavam que ele
necessidades de seus eleitores facili- uma eventual limitação da indepen- São raros, porém, os investidores não reinava sobre o mar. Da mesma
tando o acesso ao crédito (taxas de ju- dência do banco central, blindada pe- que desejam conservar seus títulos até forma, Erdogan acaba de aprender que
ros baixas) ou girando a máquina de las necessidades dos eleitores. sua maturidade (entre dois e cinquen- a maré das finanças globalizadas não
emitir papel-moeda (alta da inflação). O presidente turco mal devolveu ta anos, de acordo com os títulos). A se submeterá a ele”.
Um “desvio demagógico” que os ideó- seu microfone aos técnicos da Bloom- troca antes da data de vencimento “Desde que ele não pretenda aca-
logos neoliberais (monetaristas) – po- berg e a guerra já havia eclodido. No acontece no mercado secundário. bar com o financiamento do Estado
liticamente vitoriosos a partir do fim mesmo dia, os investidores se retira- Quando uma obrigação de Estado é nos mercados”, deveríamos acrescen-
da década de 1970 – praticaram, sub- ram do mercado de Istambul, provo- muito procurada, o título valoriza: do tar. No momento, esse projeto não faz
metendo os bancos centrais indepen- cando uma queda livre da lira turca preço de emissão de 100 euros, passa a parte nem da Liga, nem do Movimento
dentes às suas próprias preferências: de mais de 20% em um mês. As im- valer 150, por exemplo. Cinco Estrelas, nem da direita nacio-
taxas de juros altas e, principalmente, portações tornaram-se mecanica- No caso contrário, o título se des- nalista turca, o que não significa que
a luta contra a inflação, que vem engo- mente mais custosas (pois eram ne- valoriza. O cupom em si não varia. os mercados sempre impuseram seus
lir o valor dos subsídios financeiros re- cessárias mais liras para obter a Corresponde, por outro lado, a uma termos: o presidente norte-americano
duzindo o valor da moeda. mesma quantidade de dólares), e o porcentagem variável do novo pre- Richard Nixon, por exemplo, resistiu a
custo de vida disparou. A partida dos ço: 3 euros representam 3% de 100 ele em 1971, quando decidiu suspen-
investidores também privou a Turquia euros; se o mesmo título baixa 60 der a convertibilidade do dólar em ou-
dos fundos estrangeiros de que neces- euros, o mesmo cupom de 3 euros ro. O que era possível naquele tempo
Quando o banco central sita para honrar seus compromissos passa a representar 5% do preço. permanece e outras forças políticas –
baixa sua taxa básica, junto ao resto do mundo, notadamen- Trata-se, pois, de uma variação da progressistas, por exemplo – poderiam
te suas dívidas públicas e privadas (as taxa de juros: se ela sobe, é porque o retomar essa ambição nesse campo.
isso facilita o acesso ao das empresas revelaram-se colossais). título está negligenciado. Mas libertar a democracia do poder
crédito e estimula tanto Algumas semanas antes do escrutínio dos investidores exigirá bancar um
os investimentos eleitoral, as nuvens se acumulam pe- JÁ ENSINAVA O REI KNUT, O GRANDE conflito de rara violência, cujas impli-
empresariais como rigosamente. O homem forte da direi- Para medir a atratividade das dife- cações devem ser medidas. Antes de se
ta nacionalista turca cede: renuncia à rentes obrigações, os investidores as preparar para ela.
o consumo ideia de impedir um primeiro aumen- comparam a todos os outros títulos si-
to da taxa de juros base de 13,5% a milares, julgados fortes, pois de baixo *Renaud Lambert é jornalista do Le Monde
16,5%, no dia 24 de maio, e depois a risco. No âmbito da dívida europeia, Diplomatique; Sylvain Leder, professor de
Há algum tempo, o presidente tur- 17,75%, em 7 de junho. os títulos dos outros países são com- Ciências Econômica e Social (SES), partici-
co deu a entender que, aos seus olhos, País-membro da zona do euro, a parados aos da Alemanha, considera- pou da coordenação do Manual de economia
a economia nacional deveria se adap- Itália se mostra menos submissa às do o país de maior solvência. Quanto crítica do Le Monde Diplomatique, de 2016.
tar às exigências da economia produti- flutuações do mercado de câmbio mais os juros dos títulos italianos cres-
va e também às do islã, que condena a que a Turquia. Contudo, não está li- cem, mais eles divergem das obriga-
1 Do qual convém, contudo, subtrair o nível da infla-
usura. Em outras palavras: reduzir a vre de solicitações financeiras. A ca- ções alemãs: entre as duas dívidas, a ção e o custo do câmbio.
taxa básica de juros. Compartilhando rótida que os investidores identifica- brecha, geralmente medida em pontos 2 Laura Pitek, Benedict Mander, Jonathan Wheatley
seu temor, o Financial Times reportou ram em seus “parceiros” europeus percentuais, aumenta. Em inglês, a e Roger Blitz, “Turkish lira leads broad sell-off in
emerging market currencies” [A lira turca lidera as
que “os investidores estrangeiros es- para passar o fio de suas lâminas tem brecha se chama... spread, e os investi- vendas no mercado emergente de moedas], Fi-
peravam que Erdogan aproveitasse nome: spread. dores falam inglês. Em outros termos, nancial Times, Londres, 15 maio 2018.
14 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

LUTAR POR AUTONOMIA SEM DEFENDER A INDEPENDÊNCIA

No Peru, os Wampis estão


determinados a proteger seu território
Enquanto as elites políticas peruanas afundam no escândalo de corrupção que acaba de destituir o presidente
conservador Pedro Kuczynski, as populações indígenas defendem sua autonomia por meio da ideia de um Estado
“plurinacional”, uma noção que já está inscrita nas constituições da Bolívia e do Equador
POR PAUL CODJIA E RAPHAËL COLLIAUX*, ENVIADOS ESPECIAIS

ão 8 horas da manhã quando ros. Eles cavam o leito dos rios e “la- vado uma ocupação antiga e contínua bre quase 1,3 milhão de hectares de

S nosso barco sai do porto de


Santa María de Nieva, capital
do departamento de Condor-
canqui, no norte do Peru. Leva cinco
horas para chegar a La Poza, uma pe-
vam” a terra com mercúrio para extrair
o metal precioso. O homem, wampis ou
awajún, não dirá mais nada. O assunto
o deixa desconfortável. Mais tarde, fi-
caremos sabendo que alguns morado-
desse espaço, os Wampis se fizeram
dotar de órgãos de governo e de um
arcabouço legal próprios. Com a força
dessas ferramentas, várias centenas
de líderes anunciaram, no final de
floresta tropical (ou seja, 1% da super-
fície do território peruano).
No horizonte, um enorme hotel de
concreto indica que estamos chegan-
do a La Poza. Nativos da maior parte
quena aldeia no coração das terras res da região são a favor da extração po- 2015, a criação da nação Wampis, exi- dos Andes e da costa do Pacífico, seus
wampis,1 onde vivem cerca de 10 mil luente de ouro, contra a opinião da gindo, sobretudo, uma gestão inde- habitantes vieram buscar fortuna com
pessoas – caçadores, pescadores, hor- Assembleia do Governo Territorial Au- pendente dos recursos naturais, par- a venda de todo tipo de produtos ma-
ticultores, mas agora também profes- tônomo da Nação Wampis (GTANW), ticularmente cobiçados pelo setor nufaturados. Para eles, a atividade re-
sores, enfermeiros etc. –, agrupadas cuja criação recente é motivada pela re- privado. Até o momento, seu esforço lacionada à extração de recursos natu-
em pequenas aldeias ou “comunida- jeição às atividades extrativas. A posi- permanece sem resposta, já que a le- rais, auríferos ou não, é uma bênção.
des”. Estamos no norte da Amazônia ção surpreende em um contexto conti- gislação peruana não reconhece enti- Tensões recentes com os vizinhos
peruana, nos departamentos do Ama- nental marcado por uma corrida por dades como “nações” ou “governos” wampis, no entanto, exigem cautela.
zonas e de Loreto. matérias-primas, com todas as tendên- indígenas. Para as administrações, Diplomata, o porta-voz dos morado-
O barco sobe lentamente o Rio San- cias políticas combinadas. existem apenas “comunidades” ame- res, Fernando Ramirez, procura nos
tiago, que corre a oeste da faixa verde- O governo autônomo (ler boxe) é ríndias, mas que dizem respeito so- esclarecer: “Aqui em La Poza, todo
jante dos Kampankis, o último relevo resultado de um longo processo que mente a subconjuntos territoriais e mundo é contra a mineração ilegal,
andino antes da vasta planície amazô- começou na década de 1990 e do qual demográficos limitados. É possível porque polui os rios”. No entanto, al-
nica. Em alguns lugares, pequenos participaram muitos antropólogos, mensurar os problemas legais e admi- guns cartazes ainda afirmam “Com-
montes de terra desfiguram as praias. juristas e geógrafos próximos dos in- nistrativos impostos ao Estado pelo pra e venda de ouro”, deixando pouca
© Alves

Um passageiro nos explica que são ves- dígenas. Depois de mapearem o terri- surgimento de uma nação de 10 mil dúvida sobre a natureza das atividades
tígios da atividade ilegal dos garimpei- tório e seus recursos, e terem compro- pessoas que reivindica autonomia so- econômicas ali praticadas.
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15

Um mototáxi nos leva à comunida- so e apenas em seu nome com as em- servar nosso meio ambiente”. Ele modelo de comunidade. De fato, essa
de wampis de Puerto Galilea. Uma rua presas constitui uma formidável acrescenta, como para dissipar qual- continua sendo a estrutura política
simples, chamada Calle de la Amistad ferramenta de divisão, contra a qual os quer suspeita: “Queremos contribuir básica na qual esse novo governo se
(“rua da amizade”), separa as duas al- Wampis pretendem lutar. para o desenvolvimento de nosso país, apoia. As assembleias comunais ele-
deias. Esse nome mal mascara as ten- É também uma questão de encon- mas por meio de um uso racional e gem os membros da Grande Assem-
sões entre os Wampis e aqueles que trar certa fluidez territorial que rompa sustentável dos recursos”. O governo bleia. A ideia não é tanto desfazer as
eles às vezes chamam, em um tom com a rigidez dos cadastros comunais autônomo, como aponta o pamuk ferramentas legais atuais, mas inte-
amargo, de “colonos”. Gerónimo Pet- e corresponda mais ao hábitat, tradi- (presidente) Wraiz Pérez, é um instru- grá-las em uma nova dinâmica políti-
sain, um dos arquitetos do governo au- cionalmente móvel e disperso, outro- mento que permite lembrar ao Estado ca e territorial.
tônomo, nos recebe em sua casa. Com ra privilegiado nessa parte da Amazô- que a nação Wampis existia antes da Em seguida, trata-se de utilizar as
40 anos, ele demonstra uma determi- nia – relação com o território que o República do Peru e obrigá-lo a aplicar mesmas ferramentas que o Estado pe-
nação tranquila, resultado de anos de próprio Juan Nuningo, atuuke (equi- os textos que ele mesmo ratificou. ruano, assumindo algumas de suas
militância na federação política dos valente de ministro) responsável pelo prerrogativas, de modo a dialogar com
Wampis. Ele nos convida para a reu- desenvolvimento político e adminis- QUAL É O REGIME DE PROPRIEDADE PRIVADA? ele e se impor como força democráti-
nião no dia seguinte, cujo tema ime- trativo interno, classifica como “inte- Em Lima, as coisas não são vistas ca. A Grande Assembleia elege assim o
diatamente nos mergulha nas notícias gral”: “Queremos recuperar a gestão dessa maneira. Alguns altos funcioná- pamuk, presidente do governo autôno-
do momento: que destino reservar aos do conjunto de nosso território, isto é, rios e deputados acusam o governo au- mo, que nomeia os membros de seu
“colonos” acusados de estarem envol- a floresta, os rios, o ar, o subsolo. O ter- tônomo de ameaçar a soberania do Es- “conselho de diretores”. Cada um des-
vidos na atividade mineradora ilegal? ritório é um todo e nossa cultura se tado, particularmente por causa da tes últimos administra uma área espe-
baseia em todos esses elementos”. En- estreita relação que os Wampis man- cífica, da educação à saúde, passando
LONGE DA VISÃO DOCE E ROMÂNTICA quanto fala, ele nos passa uma cabaça têm com os Shuar do Equador – uma pelo orçamento, meio ambiente,
O governo autônomo wampis sur- de masato, bebida de mandioca fer- relação de parentesco, à qual se jun- transportes ou comércio. Em suma,
giu à medida que as pressões ambien- mentada. Em meio à escuridão da noi- tam as trocas comerciais –, para não uma maneira de inventar uma interfa-
tais se tornavam mais fortes e o Esta- te que nos envolve, alguns vizinhos mencionar várias parcerias políticas e ce com o Estado central.
do, mais passivo. Durante o verão de curiosos escutam a discussão. Alguns logísticas entre federações indígenas. O esforço autonomista dos Wampis
2015, uma delegação de chefes wampis entram, cumprimentam o anfitrião e Nesse contexto, a autonomia wampis representaria outro caminho político?
viajou incansavelmente pelas comu- se sentam. A entrevista do ministro enfraqueceria sua soberania na re- Alguns dirão que ele não é de forma al-
nidades ao longo dos rios Santiago e wampis se transforma em uma con- gião, já marcada por uma longa histó- guma incompatível com o neolibera-
Morona. Ela procurou convencer seus versa bastante exaltada. Estamos lon- ria de conflitos fronteiriços – o Peru e o lismo circundante. Afinal, a Constitui-
membros a aderir ao projeto de gover- ge da visão doce e romântica criada Equador disputaram a fronteira por ção de 1993 colocou o Peru no caminho
no territorial autônomo e a se incorpo- pelo colonialismo do índio “natural- mais de um século, até 1993 –, e seria de uma economia desregulamentada,
rar ao território integral da nação mente” ecologista, que ignora os ins- apenas um primeiro passo para a rei- reconhecendo pela primeira vez a plu-
Wampis. O conceito de “território inte- trumentos e as questões políticas na- vindicação da independência. ralidade étnica do país e a obrigação
gral” vem de uma reflexão conduzida cionais e internacionais.4 Para a deputada Maria Elena Fo- do Estado de protegê-la (artigo 2.19).
em meados dos anos 1990 por organi- Longe de Washington e Genebra, os ronda Farro, da Frente Amplio, uma Aqui, como nos outros países da Amé-
zações indígenas no noroeste da Ama- líderes wampis que conhecemos evo- coalizão de movimentos de esquerda rica Latina, o “multiculturalismo neo-
zônia peruana, apoiadas por advoga- cam, todo o tempo, como um mantra, que teve algum sucesso na última elei- liberal” visa valorizar as especificida-
dos e antropólogos como Pedro García as mesmas referências: Convenção 169 ção presidencial, chegando em terceiro des socioculturais das minorias
Hierro e Alexandre Surrallés. Era uma da Organização Internacional do Tra- lugar, com quase 19% dos votos,5 essa indígenas, a fim de melhor integrá-las
questão de pensar nas ferramentas balho sobre Povos Indígenas e Tribais acusação de separatismo, sem funda- à economia de mercado,6 uma lógica
que tornariam possível ir além do mo- (1989) e Declaração das Nações Unidas mento, destina-se apenas a desacredi- que floresce no Peru.
delo comunal, uma fonte de divisão, a sobre Direitos dos Povos Indígenas tar a iniciativa. Como presidenta da co- Prefeito do distrito de Rio Santiago
fim de alcançar uma unidade territo- (2007). Esses tratados ajudaram a legi- missão ordinária Povos Andinos, (que abrange a metade ocidental de to-
rial maior.2 timar na cena internacional o direito à Amazônicos e Afro-Peruanos, Meio do o território), Mateo Impi ilustra isso
O principal argumento dos Wam- autodeterminação, à autonomia terri- Ambiente e Ecologia, ela distinguiu o perfeitamente. Na sala onde a reunião é
pis é de ordem ecológica. Metais pesa- torial, política e administrativa nos Es- governo wampis outorgando-lhe o tí- realizada, a intensidade das discussões
dos liberados nos solos e rios por mine- tados-nações contemporâneos. Os tulo de “defensor do meio ambiente”. não impede os participantes de exigir
radores de ouro ou em razão de Wampis encontram neles um apoio É dia de reunião em Puerto Galilea. uma pausa para o almoço. Aproveita-
rompimentos no oleoduto norte-pe- poderoso para esse esforço, não ape- Sob o calor do telhado de calamina, os mos a oportunidade para questioná-lo
ruano ameaçam a fauna, a flora e a nas quando se trata de desenvolver um debates se sucedem por quase oito ho- sobre os eixos de sua política e sobre
saúde do conjunto da população. Em modelo limpo de governo, mas tam- ras. A natureza das sanções contra os sua visão de desenvolvimento. No car-
2016, foram identificados onze rompi- bém pela forma como esses tratados garimpeiros é discutida em detalhes. A go desde 2014, Impi é Awajún, o outro
mentos de oleoduto; eles causaram conceituam o tema da lei. Os Estados sala está lotada, a atmosfera é agitada. grande grupo étnico da região. Duran-
uma poluição alarmante nessa região são levados a reconhecer a preexistên- Aqui encontramos as várias instâncias te a primeira sessão da manhã, ele foi
da Floresta Amazônica. Da mesma for- cia de “nações” ou “povos” autóctones, do governo descritas nos estatutos acusado de não adotar uma posição
ma, o comércio de madeira em grande e não a reconhecê-los como subcon- constitutivos do governo autônomo. clara e medidas concretas para impedir
escala ou a sobrepesca são denuncia- juntos sociais; é por esse motivo que os No centro da pequena plataforma es- a extração de ouro. No escritório onde
dos como uma ameaça à biodiversida- Wampis se referem constantemente a tão representantes da Grande Assem- nos recebe, ele se diz a favor da iniciati-
de e ao bem-estar da população. isso – um modo de lembrar ao Estado bleia (Un Iruntramu). Algumas autori- va do “povo Wampis” e reconhece “se-
A integração de áreas comunais peruano suas obrigações, já que ele é dades eleitas usam orgulhosamente a melhanças” com sua política munici-
dentro de uma jurisdição comum é en- signatário desses tratados. coroa de penas de tucano, acessório pal. Mas há um ponto de desacordo
tão apresentada como a única solução A autonomia a que o povo Wampis dos grandes guerreiros do passado, fundamental que o opõe ao governo
para preservar o território ancestral aspira não se baseia em ambições in- símbolo de uma vontade inabalável de autônomo, que diz respeito à sua gestão
diante da indústria extrativa e da po- dependentistas. Bem ao contrário, ex- assumir seu mandato representativo. econômica do território e seu corolário:
luição que ela pode causar. Como ex- plica-nos Julio Hinojosa, secretário- Ficamos impressionados com o o regime de propriedade privada.
plica Andres Noningo, líder wampis de -geral da Grande Assembleia: “Somos crescente apego dos Wampis a uma or- De fato, se os estatutos constitutivos
Puerto Galilea, a criação de um gover- peruanos, temos carteira de identida- ganização de tipo estatal – um gover- da nação Wampis procuram reafirmar
no autônomo é “uma estratégia de de- de peruana. Não queremos romper no e uma assembleia –, organização o caráter coletivo e inalienável da pro-
fesa territorial, uma resposta aos es- nosso relacionamento com o Estado, que lhes era estranha até a segunda priedade territorial,7 Impi defende uma
forços feitos para nos dividir em mas queremos administrar nós mes- metade do século XX. Essa escolha de- visão oposta: “Se eu conseguir adquirir
comunidades”.3 O fato de cada comu- mos nosso território, de acordo com ve-se a razões estratégicas. A primeira um terreno na comunidade, quem ga-
nidade ser levada a negociar caso a ca- nossa visão e nossa cultura, para pre- delas: fazer parte da continuidade do rantirá meus direitos de propriedade?
16 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

Podem me tirar de lá a qualquer mo-


mento. Assim, quem arriscará investir UM RECONHECIMENTO AMBÍGUO
se não lhe for dada uma garantia que a
terra dele realmente lhe pertence? Em
minha opinião, não é porque se é um Q uando, em novembro de 2015, quase trezentos líderes
wampis, representando cerca de setenta comunidades,
formalizaram a criação de seu governo autônomo, o esforço era
sobre o lote de petróleo número 192, que cobre 500 mil hecta-
res no norte da Amazônia e tem capacidade de produção de 10
mil barris por dia.1 O anúncio provocou a ira de centenas de
indígena que se deve continuar a viver
na pobreza”. Ele lamenta a perspectiva certamente sem precedentes, mas inscrevia-se numa longa e comunidades tradicionais diretamente afetadas por essas
“muito fechada” do GTANW, que recu- delicada história da relação entre os indígenas e o Estado pe- atividades.
ruano. A iniciativa se apresentou, de início, como uma reação à Limitado desde o início, esse direito à propriedade coletiva
sa qualquer liberalização da terra e de-
chamada lei das “comunidades nativas”, adotada em 1974 pelo foi em seguida atacado o tempo todo por sucessivos governos.
seja conferir à escala do território governo militar de Juan Velasco Alvarado. Líder autoritário de A natureza “inalienável” do território comunal foi notavelmente
wampis o mesmo tipo de gestão coleti- orientação esquerdista, Velasco decretou uma ampla reforma revogada pela Constituição de 1993, abrindo caminho para a
va que a aplicada aos territórios comu- agrária voltada para a redistribuição das terras aráveis, havia privatização das parcelas comunais.2 A liberalização da terra
nais. Nas comunidades, todas as deci- muito monopolizadas por grandes latifundiários. A lei das co- começou em 1991, com o objetivo de pôr fim ao “paternalismo
sões relativas à chegada de um novo munidades nativas foi o primeiro corpus legal a garantir os di- estatal” em relação às comunidades rurais, estimulando o in-
morador, à concessão de uma parcela reitos territoriais aos indígenas da Amazônia. Ela encorajou as vestimento privado, cavalo de batalha dos principais economis-
para a construção de uma casa ou ao várias etnias a se unirem nas “comunidades” cujos membros, tas neoliberais, que veem na propriedade coletiva um arcaísmo
estabelecimento de uma empresa de- coletivamente proprietários do território, desfrutam de certa pré-capitalista.3
vem ser objeto de um acordo coletivo autonomia na administração dos assuntos internos. A lei deve- O processo de liberalização tem se aprofundado nos anos
por votação. Em último caso, depende- ria garantir a inalienabilidade das terras comunais. 2000 por causa do impulso da indústria de petróleo e gás, liga-
Símbolo de emancipação após ondas coloniais de grande do à forte demanda internacional. Como resultado, as ativida-
rá, portanto, da decisão do GTANW e
violência, esse dispositivo permanece, no entanto, projetado des relacionadas ao petróleo e à extração mineral representa-
de sua assembleia. para integrar as populações amazônicas (1,05% da população ram 14,36% do PIB de 2016. A importância desse setor foi
total atual) na dinâmica nacional. A inclusão de comunidades incentivada pelo aumento do preço do barril de petróleo, espe-
SEM MONOPOLIZAR A PALAVRA em uma complexa rede administrativa e a eleição de represen- cialmente a partir de 2005. Durante seu segundo mandato
Impi retransmite aqui uma falácia tantes encarregados de encarnar localmente o Estado, cuja (2006-2011), o presidente Alan García tentou remover os obs-
comum segundo a qual a propriedade comunidade é, em última análise, apenas uma espécie de ex- táculos ao investimento privado com uma política fiscal vanta-
coletiva, legal mas informal, retardaria crescência, são todas formas de estabelecer a legitimidade josa e a licitação maciça de áreas de exploração. Enquanto em
o desenvolvimento econômico, com os das instituições públicas na vida cotidiana. Além disso, o Esta- 2005 os lotes de petróleo cobriam “apenas” 15% da Amazônia
potenciais investidores temendo que do central, jacobino, continua sendo o dono da água, da fauna peruana, cinco anos depois cobriam 490 mil quilômetros qua-
seus bens fossem confiscados arbitra- e do subsolo: ele “cede para uso” o solo e os recursos florestais drados, ou quase 72% do território das terras amazônicas.4
riamente. Ele trabalha em estreita cola- para as comunidades. Por conseguinte, reserva-se o direito de Essas decisões políticas provocaram fortes protestos das fe-
conceder parcelas a empresas extrativas, como as companhias derações indígenas, violentamente reprimidos pela polícia. Os
boração com uma instituição respon-
petrolíferas, apesar dos riscos e consequências de suas ativi- confrontos em Bagua, em junho de 2009, deixaram 33 mortos
sável pela “formalização da propriedade dades para o ambiente e a saúde da população. e mais de duzentos feridos. (P.C. e R.C.)
informal”, a Cofopri. Muito ativa nas O gradual estabelecimento do Estado nessa região só reve-
comunidades da Amazônia, ela incen- lou o lugar que ocupa desde os primórdios da colonização: o de 1 “Califican a Petroperú com 100% del lote 192” [A Petroperú é contempla-
tiva os moradores das comunidades a um espaço considerado vazio, cuja exploração se vê alçada à da com 100% do lote 192], La República, Lima, 26 jan. 2018.
2 Sob a presidência de Alberto Fujimori (1990-2000), a Constituição de
recomprar a porção de terra em que sua condição de causa nacional. “A criação das comunidades foi,
1993 manteve apenas uma “imprescritibilidade” das terras comunais, o
casa é construída. Apesar das boas in- em última instância, muito problemática porque, legalmente, os que significa que elas podem (sob certas condições) ser vendidas, cedi-
tenções apresentadas, essa estratégia recursos continuam a pertencer ao Estado, que pode decidir das, doadas ou ainda hipotecadas (art. 89).
deixa poucas dúvidas sobre o objetivo explorar a floresta ou o petróleo no interior dos territórios co- 3 Ler Raphael Colliaux, “L’économiste, les indigènes et le cadastre” [O eco-
munais”, explica Juan Nuningo, atuuke (equivalente de minis- nomista, os nativos e o cadastro], Le Monde Diplomatique, jun. 2016.
dos poderes públicos: desmontar gra- 4 Cf. Matt Finer e Martí Orta-Martínez, “Oil frontiers and indigenous resistan-
dualmente o regime de comunidades, tro) responsável pelo desenvolvimento político e administrativo ce in the Peruvian Amazon” [Fronteiras petrolíferas e resistência indígena
interno. O exemplo mais recente é o da atribuição à Petroperú, na Amazônia peruana], Ecological Economics, v.70, n.2, Nova York, 15
favorecendo o parcelamento progressi-
empresa estatal, de um direito de exploração de trinta anos dez. 2010.
vo de seus territórios.
Além de se opor a qualquer explo-
ração de petróleo, a forma como o go- 1 Os Wampis, ou Huambisa, em espanhol, perten-
verno wampis planeja administrar cluem uma exigência democrática. De cação de um diálogo de igual para cem ao grupo linguístico jivaro, que compreende
os Achuar, os Shuar, os Shiwiar e os Awajún.
coletivamente o acesso à terra vai acordo com os estatutos do governo igual com o Estado central e promoção 2 O conceito de território integral visa sobretudo
contra a orientação neoliberal do go- autônomo, a autoridade suprema não de uma política de desenvolvimento de chamar a atenção para a ecologia das relações en-
verno peruano. A política econômica é o pamuk, mas a Grande Assembleia, acordo com os valores do bem viver: o tre os seres, humanos e não humanos, que habitam
o meio ambiente. Cf. Alexander Surralled e Pedro
esteve precisamente no centro das um colégio de dirigentes. Durante as governo autônomo reúne todos os ele- García Hierro, Antropología de um derecho. Libre
discussões da quinta cúpula da na- reuniões, os líderes evitam cuidadosa- mentos que levaram a Bolívia e o Equa- determinación territorial de los pueblos indígenas
ção Wampis, realizada em agosto de mente monopolizar a palavra, mais dor a se definirem constitucionalmen- como derecho humano [Antropologia de um direi-
to. Livre determinação territorial dos povos indíge-
2017 na comunidade de San Juan de usada pelos representantes comunitá- te como Estados “plurinacionais “. Ao nas como direito humano], IWGIA, Copenhague,
Morona, a duas horas de barco da rios. Disseminados pelo público, eles contrário do multiculturalismo, o plu- 2009; e Simone Garra e Raúl Riol Gala, “Por el
fronteira equatoriana. Os represen- são de longe os que mais fazem reivin- rinacionalismo afirma ir além da atri- curso de las quebradas hacia el ‘territorio integral
indígena’: autonomía, frontera y alianza entre los
tantes eleitos da Grande Assembleia dicações e se esforçam para fazer que buição aos povos indígenas de um sta- awajún y wampis” [Ao longo das ravinas rumo ao
discutiram ali atividades alternativas a voz de sua comunidade seja ouvida tus de minoridade que deve ser “território indígena integral”: autonomia, fronteira e
e não poluidoras, como o turismo com toda a veemência que convém aos integrado a uma sociedade majoritá- aliança entre os Awajún e os Wampis], Anthropo-
logica, n.32, Lima, 2014.
ecológico, a piscicultura, a avicultura discursos políticos wampis. Um por ria. Sem renunciar a um princípio de 3 “Pueblo Wampis conforma primer gobierno autó-
e a cultura do cacau. vez, eles expõem sua opinião e tentam unidade nacional, trata-se de estabele- nomo indígena do Peru” [O povo Wampis confirma
Essa perspectiva faz parte de um convencer a plateia. Alguns, de rosto cer uma relação mais horizontal entre o primeiro governo autônomo indígena do Peru],
Servindi, 30 nov. 2015. Disponível em: <www.ser-
modelo de desenvolvimento alinhado pintado e armados com uma lança, o Estado e as entidades que o com- vindi.org>.
com os valores do bem viver (tarimat começam seu discurso esboçando os põem, com cada uma podendo reivin- 4 Ler Maëlle Mariette, “Em busca da Pachamama”,
pujut, em wampis). Essa noção, de que movimentos que outrora costumavam dicar uma gestão autônoma de seu ter- Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2018.
5 Ler Amanda Chaparro, “Duas opções: a direita ou a
os líderes wampis e as ONGs locais se preceder qualquer reunião entre os ritório e de seus recursos. Isso implica direita”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2016.
apropriaram, tornou-se o leitmotif de chefes tradicionais, uma maneira de uma profunda reforma do aparelho le- 6 Cf. Guillaume Boccara, “Le gouvernement des ‘Au-
muitas lutas indígenas na América La- lembrar aqueles que estão na platafor- gislativo. Lima vai aceitar? tres’. Sur le multiculturalisme néolibéral en Améri-
que latine” [O governo dos “Outros”. Sobre o mul-
tina, especialmente desde sua inscri- ma de que sua legitimidade emana de ticulturalismo neoliberal na América Latina], Actuel
ção nas constituições do Equador uma base local, a das comunidades. *Paul Codjia e Raphaël Colliaux são dou- Marx, v.2, n.50, Paris, 2011.
(2008) e da Bolívia (2009). Afirmação da anterioridade da na- torandos em Antropologia e Sociologia na 7 O artigo 41 estabelece: “O território da nação
Wampis é propriedade coletiva e ninguém poderá
Além das orientações econômicas ção Wampis em relação à chegada dos École des Hautes Études en Sciences Socia- vendê-lo a estrangeiros ou a instituições estatais
e políticas, os valores do bem viver in- colonos espanhóis, demanda reivindi- les, na França. ou privadas”.
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17

O BRASIL NA GEOPOLÍTICA ENERGÉTICA GLOBAL

Petróleo: números,
tendências e estratégias
Mesmo as grandes corporações privadas atuam no campo internacional de acordo com a estratégia de seu país
de origem e seus interesses nacionais, sobretudo nas situações de crise econômica ou de ameaça geopolítica ou militar
POR JOSÉ LUÍS FIORI*

© Daniel Kondo
“A dependência dos sistemas acordado previamente. Com isso, os vência do sistema político e econômi- tados Unidos, pertencem neste mo-
energéticos e sua complexidade e países buscam estabilizar o preço em co mundial e de cada um dos seus mento aos seus Estados nacionais e
alcance crescentes deixam em torno dos US$ 60 o barril, aumentando duzentos Estados e economias nacio- são exploradas por empresas estatais.
evidência a necessidade de a produção para compensar a queda nais. Um recurso natural estratégico e Na verdade, a exploração, o refino e a
entendermos os riscos e as na Venezuela e no Irã, dois grandes ex- concentrado do ponto de vista geográ- distribuição internacional do petróleo
exigências da segurança energética portadores atingidos pelas sanções fico, além de ser controlado por um também estão nas mãos de apenas
no século XXI. Cada vez mais o econômicas do governo norte-ameri- número muito pequeno de governos e quinze ou vinte grandes empresas
comércio de energia ultrapassa as cano, e também para se antecipar à de grandes corporações transnacio- transacionais. E o que é ainda mais
fronteiras nacionais. Além disso, a expectativa negativa de um agrava- nais, públicas e privadas. Desse ponto importante: dessas vinte maiores pe-
segurança energética não é apenas mento do conflito entre os Estados de vista, aliás, os números são absolu- troleiras do mundo, quinze são esta-
combater a enorme variedade de Unidos e o Irã, com a possibilidade in- tamente contundentes e inquestioná- tais e controlam 80% das reservas
ameaças; está relacionada também clusive de uma guerra contra este últi- veis. Vejamos. mundiais de óleo. Apenas cinco são
às relações entre os países, como mo, a qual envolveria inevitavelmente As principais reservas de petróleo privadas – três anglo-americanas,
eles interagem entre si e qual é o os demais países do Golfo Pérsico. No do mundo se concentram no território uma holandesa e uma francesa – e
impacto da energia na segurança caso da Venezuela, cabe ressaltar que, de não mais do que quinze ou vinte produzem menos de 15% da oferta
nacional como um todo.” para além das sanções, a estatal tem países. Se tirarmos as grandes reser- mundial de petróleo. Essa estrutura
encontrado dificuldade de contratar vas da Venezuela, Canadá, Rússia e Es- oligopólica se repete no caso do mer-
Daniel Yergin, A busca: energia, fornecedores internacionais de servi- tados Unidos, a maioria desses países cado mundial de gás natural, cuja im-
segurança e reconstrução do mun- ços para apoiar suas atividades de ex- se encontra no Oriente Médio e, em portância energética é crescente e
do moderno, Intrínseca, São Paulo, ploração e produção. particular, no Golfo Pérsico, que de- cujas grandes reservas se concentram
2011, p.277. Por isso, Daniel Yergin – importan- tém cerca de 60% das reservas com- no território de nove países e são ex-
te especialista norte-americano em provadas de petróleo de todo o mun- ploradas por oito empresas estatais e
petróleo – afirmou, em algum mo- do, sendo responsável, ao mesmo só uma privada. Como consequência,
PREÇOS E OLIGOPÓLIO mento, que a definição do preço médio tempo, por um terço da produção pode-se estimar que pelo menos dois
os dias 22 e 23 de junho de 2018, internacional do petróleo nos perío- mundial. Apenas o cartel da Opep, que terços do que ocorre no mercado mun-

N a Opep realizou em Viena uma


reunião dos seus países-mem-
bros com representantes da
Rússia e de alguns outros países rele-
vantes para a indústria mundial do pe-
dos de crise, guerra ou mutação geo-
política – como o que estamos vivendo
neste momento do século XXI – tende
a ser 90% “política” e apenas 10% “eco-
nômica”. E tudo indica que Yergin te-
reúne esses mesmos países do Golfo,
mais Venezuela, Líbia, Angola, Nigéria
e Equador, controla 71,6% das reser-
vas, e a Arábia Saudita, que lidera o
cartel, possui sozinha 25% de todos es-
dial de petróleo e de energia em geral,
incluindo seus preços e níveis de pro-
dução, resultam de decisões tomadas
por governos e empresas estatais, com
a grande e notável exceção dos Estados
tróleo, cujo acordo foi de expansão da nha razão, porque ele está se referindo ses recursos. Mas mais importante do Unidos e do Canadá. Além disso, do
oferta de petróleo. Na declaração após a uma commodity e a um mercado que isso talvez seja – para entender a outro lado do balcão, estima-se que
a reunião, a Opep garantiu o aumento global que envolve a segurança ener- tese de Yergin – que as reservas de to- pelo menos 50% do crescimento da de-
da produção ao limite de 100% do nível gética, assim como à própria sobrevi- dos esses países, menos Canadá e Es- manda mundial de petróleo nos próxi-
18 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

mos trinta anos virá da China e da Ín- Na década de 1980 e até a primeira – o acelerado processo de concen-
dia, cujas estratégias energéticas são metade dos anos 1990, num cenário em tração e centralização do capital pe-
comandadas por seus respectivos go- que o preço do petróleo ficou mais bai- troleiro privado, entre 1998 e 2002,
vernos e por suas empresas estatais ou xo e houve um acirramento das dispu- com a fusão da Exxon com a Mobil, da
mistas, mas sob controle acionário do tas por reservas em nível global, as BP com a Amoco, da Chevron com a
Estado. Essa “configuração de merca- grandes petroleiras euro-americanas Texaco, da Conoco com a Philips e da
do” explica e reforça a tese de Yergin a promoveram uma profunda reorgani- Total com a ELFP, dando origem às no-
respeito da natureza predominante- zação interna, com a descentralização vas superpetroleiras Exxon-Mobil, Co-
mente política da determinação dos e a “desverticalização” de suas estrutu- nocoPhillips, Chevron, BP e Total, ao
preços do petróleo hoje no mundo. ras, transformando o petróleo num ati- lado da velha Royal Dutch Shell, que
Mas isso não foi sempre assim durante vo financeiro com preço negociado permaneceu como estava;
os 150 anos de história do petróleo, co- diariamente na Bolsa de Valores de No- – o ressurgimento da Rússia como
mo veremos a seguir. va York. Mas a guerra entre árabes e superpotência energética mundial, na
persas acabou, assim como a Guerra condição de segundo maior produtor e
PERÍODOS E TENDÊNCIAS Fria, e no fim da década de 1990 e início sétima reserva global de petróleo e de-
Durante os primeiros cinquenta do século XXI começou uma profunda tentor da maior reserva mundial de
anos da história do petróleo, entre revolução no “universo do petróleo”, gás natural, junto com a reestatização
1859 e a Primeira Guerra Mundial, os cujas consequências se estendem até total ou parcial de suas três grandes
Estados Unidos e a Rússia foram os hoje e devem se prolongar ainda por empresas energéticas, Gazprom, Ros-
dois maiores produtores e exportado- muitos anos ou décadas. Quais são as neft e Lukoil, que passaram a operar
res de óleo do mundo, e o mercado do causas dessa transformação e quais são de forma explícita como peças da polí-
petróleo foi inteiramente dominado suas tendências fundamentais? tica externa russa, em particular com
pelas grandes petroleiras privadas an- relação à Europa e à China e com os
glo-americanas, em particular a nor- A “NOVA ORDEM ENERGÉTICA” países da região do Mar Cáspio;
te-americana Standard Oil Company. É muito difícil identificar uma cau- – a estatização plena ou parcial das
Nesse período e até o fim da Segunda sa única e precisa que explique esse três grandes empresas petroleiras da
Guerra Mundial, os Estados Unidos fo- terremoto que atingiu a indústria do China, que também passam a operar
ram o maior produtor e o maior expor- petróleo, mas é possível apontar vários de forma agressiva e em escala inter-
tador de petróleo do mundo. As duas acontecimentos, em distintos planos, nacional, a serviço da estratégia ener-
Grandes Guerras Mundiais, entretan- que foram se somando e promovendo gética do Estado chinês: a PetroChina,
to, produziram uma mudança funda- um afastamento cada vez mais radical a Sinopec e a CNOOC.
mental na relação dos governos oci- das tendências do período anterior, de Esse conjunto extremamente com-
dentais com suas grandes petroleiras, corte neoliberal.1 Destacam-se nesse plexo de “causas” ou “fatores determi-
sobretudo depois que o almirantado sentido: nantes” acabaram convergindo numa
britânico decidiu substituir o carvão 1) No plano geopolítico: mesma direção:
pelo petróleo como combustível da – a expansão e intensificação das – reconcentração e centralização
sua Marinha e suas Forças Armadas, a guerras por todo o Oriente Médio, de- do grande capital petroleiro privado;
partir de 1911, e mais ainda depois que pois do fim da Guerra Fria, em parti- – aumento exponencial do número
o governo inglês decidiu – sob a batuta cular na região nevrálgica do Golfo e da importância internacional das
de Winston Churchill – criar a primei- Pérsico, a partir da primeira Guerra do empresas estatais dentro do mercado
ra grande empresa estatal de petróleo, Golfo, em 1991, mas sobretudo depois e da indústria global do petróleo;
a British Petroleum, para garantir o dos atentados de 11 de setembro de – crescente apoio internacional ao
suprimento de energia da Inglaterra, 2001 nos Estados Unidos e do início da nacionalismo e ao estatismo econômi-
que estava em guerra e não dispunha Na década de 1970, entretanto, a in- Guerra do Iraque, em 2003; co e, em particular ao “nacionalismo
de reservas em seu próprio território. dústria e o mercado mundial de petró- – o aumento crescente da influên- energético”, adotado por todas as
Os Estados Unidos não chegaram a es- leo sofreram uma mudança radical, cia regional do Irã, dentro do Oriente grandes potências do sistema mun-
se extremo, mas estabeleceram uma depois da criação da Opep, em 1960, Médio, e de sua competição e conflito dial, mesmo entre as chamadas “po-
coordenação centralizada do governo que impôs um embargo aos aliados de com os Estados Unidos, a Arábia Sau- tências liberais”;
com suas empresas petroleiras, princi- Israel, na Guerra do Yom Kippur, de dita e Israel, esses dois últimos princi- – luta das “grandes potências” pela
palmente durante sua participação na 1973. Esse embargo, em conjunto com pais aliados norte-americanos, dentro diversificação dos seus fornecedores
guerra, a partir de 1917. a Revolução Iraniana de 1978, teve um desse tabuleiro geopolítico crucial pa- de petróleo e de energia em geral.
Esse panorama manteve-se relati- papel decisivo nos dois grandes “cho- ra o suprimento mundial de petróleo; Uma mudança tão radical que le-
vamente estável depois da Segunda ques” do preço do petróleo que contri- – a recuperação da Rússia e da ca- vou Michael Klare – outro grande es-
Guerra, até o início dos anos 1970. En- buíram decisivamente para a primeira pacidade de projeção do seu poder mi- pecialista norte-americano em petró-
tretanto, o epicentro da produção grande crise econômica mundial pos- litar e diplomático na antiga “zona de leo – a declarar que o mundo havia
mundial do petróleo deslocou-se do terior à Segunda Guerra, no mesmo pe- influência” da União Soviética e, em entrado numa “nova ordem energética
Golfo do México para o Golfo Pérsico, ríodo em que todos os países do Orien- particular, no próprio Oriente Médio; internacional”.
e a Arábia Saudita assumiu o lugar dos te Médio nacionalizaram suas reservas – o conflito cada vez mais intenso
Estados Unidos como reguladora/ e criaram ou estatizaram suas grandes dos Estados Unidos com o Irã e a Vene- CONJUNTURA RECENTE
provedora, em última instância, do empresas de petróleo, passando a ter zuela, dois países que têm sido objeto Todos esses traços e tendências
mercado mundial. Assim mesmo, os uma relação inteiramente diferente de sanções econômicas que vêm im- dessa “nova ordem energética” se
Estados Unidos mantiveram a lide- com as “sete irmãs” euro-americanas. pactando a indústria mundial do pe- acentuaram ainda mais nos últimos
rança do mercado e da indústria mun- Entretanto, essa tendência estatizante tróleo e provocando um comporta- três anos, em particular depois da exi-
dial de óleo e garantiram o suprimen- foi interrompida pela Guerra Irã-Ira- mento reativo e preventivo das demais tosa intervenção militar da Rússia na
to de óleo barato e abundante para a que (1980-1988), o que fragilizou dois potencias petroleiras do mundo. Guerra da Síria, a partir de 2015. Essa
Europa e todos os seus aliados, até o dos principais países exportadores da 2) No plano geoeconômico: presença militar consolidou e am-
início dos anos 1970, graças à sua Opep e abriu as portas para que a nova – o rápido crescimento econômico pliou também a influência diplomáti-
aliança estratégica com a Arábia Sau- ideologia neoliberal anglo-saxônica e da China e da Índia, responsável pelo ca da Rússia no Oriente Médio, onde
© Daniel Kondo

dita, estabelecida em 1945, e à sua po- sua política de abertura e desregulação verdadeiro “choque de demanda” que vem se posicionando, cada vez mais,
sição militar hegemônica no Oriente dos mercados e de privatização de em- atingiu e alimentou o mercado mun- como um árbitro equidistante, mais
Médio, desde o fim da Crise do Canal presas estatais também alcançassem o dial de energia nas duas últimas déca- do que um aliado incondicional dos
de Suez, em 1956. mundo do petróleo. das, de forma quase contínua; seus velhos parceiros iranianos, den-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19

tro de uma conjuntura geopolítica re- com a estratégia de seu país de origem derança econômica e estratégica do II
gional que sofreu outra grande muta- e seus interesses nacionais, sobretudo Plano Nacional de Desenvolvimento
ção depois do fracassado golpe de nas situações de crise econômica ou (1974-1980), que apontava, de forma
Estado na Turquia, em julho de 2016, de ameaça geopolítica ou militar. Mas explícita, na direção de um projeto de
que iniciou um período de afastamen- também é verdade que essas grandes “potência regional”, que acabou sendo
to progressivo dos turcos com relação empresas petroleiras contam sempre contestado pelos Estados Unidos, e na
aos seus antigos aliados da Otan, com com o apoio de seus respectivos gover- direção de um projeto de “capitalismo O olhar da cidadania
sua concomitante aproximação do ei- nos e de suas Forças Armadas em suas de Estado”, que acabou sendo rejeita-
xo formado pela Rússia e pelo Irã, den- disputas ao redor do mundo pela con- do pelos grandes empresários e ban-
tro da guerra síria. quista e monopolização de recursos e queiros brasileiros. Na década de 1990,
Mas não há dúvida de que o grande mercados. Isso acontece em países pelo contrário, o governo neoliberal
terremoto geopolítico e econômico que são ou se propõem a ser “grandes do presidente Fernando Henrique
mundial – que acabou afetando o Gol-
fo Pérsico e todo o “mundo do petró-
potências”, mas não são autossuficien-
tes em petróleo, como é o caso da Chi-
Cardoso iniciou um processo de reor-
ganização da empresa que seguia – Na luta
leo” – veio mesmo dos Estados Unidos na, como também em países autossu- com uma década de atraso – o modelo
e da eleição de Donald Trump, em ficientes do ponto de vista energético, de descentralização e financeirização
2016. Trump assume e radicaliza o na-
cionalismo econômico dominante
mas que utilizam seus recursos como
instrumento de projeção do seu poder
das grandes corporações petroleiras
norte-americanas. Mas, no período de pela
dentro do sistema mundial e acelera a internacional, como é o caso da Rús- 2003 a 2016, os governos de Luiz Inácio
política de autonomização energética sia. E acontece ainda no caso dos paí- Lula da Silva e Dilma Rousseff coloca-
dos Estados Unidos, no momento em ses que não são nem têm pretensão de ram uma vez mais a Petrobras no cen-
que o país volta a ser o maior produtor
mundial de petróleo, mas também de
grande potência, mas utilizam seus
recursos energéticos nacionais e suas
tro de uma política nacional de desen-
volvimento, que foi sendo concebida e
construção
gás, e se propõe a reassumir sua velha empresas estatais como instrumentos colocada em prática de forma pragmá-
função de articulador do mercado a serviço do seu desenvolvimento eco- tica e acabou sendo atropelada, uma
mundial de energia. Essa decisão já
havia sido tomada antes da eleição de
nômico, como é o caso da Sonatrach,
da Argélia, ou do seu desenvolvimento
vez mais, pela resistência de grandes
setores do empresariado nacional e in-
de uma
Trump, mas não há dúvida de que o social, como é o caso exemplar da Sta- ternacional e pelo clientelismo e pe-
presidente lhe deu uma dimensão toil, da Noruega. quenez ideológica e estratégica da
muito mais agressiva, recolocando os
Estados Unidos na luta pelos merca-
Em todos esses países, o funda-
mental não está no fato de essas em-
maioria dos partidos que compunham
a base de sustentação dos seus gover-
sociedade
dos europeu e asiático, em competi- presas serem inteiramente estatais ou nos. Logo depois do golpe de Estado de
ção aberta com os russos e os irania- monopólicas. Elas podem ser mistas e 2016, o novo governo instalado e a no-
nos, mas também, de certa forma,
com seus velhos aliados da Arábia
participar de mercados competitivos;
contudo, o que importa é que elas obe-
va direção da Petrobras – assumida
pelo partido do ex-presidente FHC –
mais justa,
Saudita. Essa concorrência explica em decem e atendem, ao mesmo tempo, a mudaram uma vez mais o rumo da
parte a nova rodada de sanções eco- seus objetivos empresariais e aos obje- empresa, retomando seu mesmo e ve-
nômicas de Washington contra a Rús-
sia e o Irã, que atingem diretamente a
tivos estratégicos mais amplos de seu
respectivo Estado nacional. É isso que
lho projeto dos anos 1990, de “desver-
ticalização”, privatização e financeiri- solidária e
capacidade exportadora desses dois faz dessa “nova ordem energética in- zação da empresa. Mas agora esse não
países. Por outro lado, essa mesma ternacional” uma ordem eminente- é um assunto definido e encerrado. Pe-
ofensiva acelerou o processo de apro-
ximação entre a Rússia e a Arábia Sau-
mente estratégica e política.
Na disputa pelos recursos energé-
lo contrário, é uma escolha e uma de-
cisão que ainda terão de ser arbitradas sustentável.
dita, que está em pleno curso e deve ticos escassos e concentrados geogra- pela sociedade brasileira: entre esse
culminar com o ingresso de Moscou, ficamente, já não há mais lugar, na in- velho projeto neoliberal já abandona-
em breve, como membro pleno da dústria do petróleo, para uma visão e do pelas grandes petroleiras privadas
Opep. Por outro lado, o “nacionalismo uma estratégia exclusivamente em- euro-americanas e um novo projeto,
econômico” de Trump e suas novas presariais e microeconômicas. E isso de inserção da Petrobras em uma es-
sanções comerciais contra a China porque, em última instância, graças à tratégia de desenvolvimento que já
devem provocar uma retaliação chi- sua importância vital para todas as não pode ser a dos governos militares, Quartas, às 17h,
nesa também no campo energético. sociedades humanas, o suprimento tampouco a que foi seguida de forma Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
Como se sabe, os chineses são hoje os nacional de energia dos Estados e das sinuosa durante o período de 2003 a
Ribeirão Preto: 107,9 FM)
maiores consumidores de petróleo e economias nacionais é um problema 2016. Essa escolha transcende o cam-
gás norte-americanos e poderão subs- de segurança nacional e uma questão po minúsculo da microeconomia, no
tituí-lo, pelo menos em parte, pela de poder internacional. Nesse sentido, qual em geral se move a razão ortodo- Quartas, à meia-noite
oferta iraniana negociada em yuan parafraseando Yergin, pode-se dizer xa dos economistas e tecnocratas neo-
TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
em vez de dólar. Isso representaria que, também dentro dessa “nova or- liberais. Será, com certeza, uma das
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
uma dupla derrota para os interesses dem energética internacional” de que principais escolhas que o Brasil fará
norte-americanos tanto no campo da fala Michael Klare, 80% ou 90% das nas eleições de outubro.
energia como no da competição mo- decisões mais importantes são políti-
netário-financeira com os chineses. cas ou geopolíticas e só 10% ou 20% *José Luís Fiori é professor titular do Institu-
Tudo apontando para uma influência obedecem às flutuações econômicas e to de Economia da UFRJ e pesquisador do
cada vez maior da política e da geopo- financeiras do mercado internacio- Instituto de Estudos Estratégicos de Petró-
lítica dentro do mercado mundial e na nal, por mais que isso horrorize os leo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).
observatorio3setor
formação dos preços internacionais economistas ortodoxos e os tecnocra-
do petróleo – e também do gás – na tas neoliberais.
próxima década.
ENCRUZILHADA BRASILEIRA
observatorio3setor
1 Movimento que passou inteiramente despercebido
ESCOLHAS E ESTRATÉGIAS Nas décadas de 1950 e 1960, a Pe- pelo neoliberalismo periférico adotado no Brasil
Nesse novo contexto, mesmo as trobras foi o símbolo maior do nacio- durante a década de 1990, pelo governo de Fer-
nando Henrique Cardoso e, em particular no caso www. observatorio3setor.org.br
grandes corporações privadas atuam nalismo brasileiro. Nos anos 1970, a da Petrobras, durante a gestão de Francisco
no campo internacional, de acordo estatal ocupou um papel central na li- Gross (1998-2002).
20 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

A PETROBRAS NO BIÊNIO 2016-2018

Um balanço da gestão
de Pedro Parente
A Petrobras se desresponsabilizou de atuar em favor da segurança energética nacional, da autossuficiência e da garantia
do abastecimento do mercado interno. Em vez disso, passou a priorizar a entrada de players e traders estrangeiros, a retomada
da remuneração dos acionistas e o encolhimento de sua escala e de seu escopo de atuação
POR WILLIAM NOZAKI E RODRIGO LEÃO*

© Daniel Kondo

O
s interesses econômicos e polí- nio que ocupou o governo tornou a de preço divulgada em setembro de ainda no primeiro semestre de 2017, a
ticos por trás do conjunto de nuvem de sujeiras no ar ainda mais 2016, bem como do anúncio, logo em Petrobras apresentou uma política de
medidas adotadas pela Petro- espessa, fazendo da decifração do ce- seguida, de que a Petrobras abando- governança e conformidade que não
bras no biênio 2016-2018 ainda nário um exercício bastante comple- naria sua atuação no setor de biocom- imunizou a companhia de interesses
não foram observados com o devido xo. Entretanto, os desdobramentos re- bustíveis. A nova política de preços – que lhe deveriam ser externos e estran-
cuidado. Um balanço da gestão de centes nos permitem reunir, ainda fortemente atrelada às cotações do geiros, endossando a nomeação do
Pedro Parente também é uma avalia- que no calor da conjuntura, algumas barril internacional do petróleo e do conselho de administração marcado
ção dos pontos de convergência e das peças de um quebra-cabeça que tal- câmbio – permitiu um ganho de com- pela maior presença de pressões das
fissuras do bloco no poder que pri- vez só seja mais bem montado no fu- petitividade ao setor do etanol. Não petrolíferas estrangeiras e do rentismo
meiro montou as bases para a ascen- turo. Vejamos. por coincidência, entre novembro de financeiro.
são do CEO, mas depois abriu o chão A coalizão que deu sustentação a 2016 e janeiro de 2018, o volume de As petroleiras estrangeiras conquis-
para sua queda. Pedro Parente foi composta por um vendas de etanol hidratado em relação taram uma janela de oportunidade pa-
Os ressentimentos com o giro libe- conjunto diverso de interesses, nem ao de gasolina saltou de 27% para 41%. ra assegurar reservas de petróleo e gás
ralizante do segundo governo Dilma, os sempre coerentes e coesos, entre o A saída dos biocombustíveis, por sua natural do pré-sal em função da postu-
traumas provocados pelo impacto do agronegócio, o mercado financeiro, as vez, sinalizou uma reversão da política ra cada vez mais passiva da Petrobras
golpe, o ódio gerado pela Operação La- petrolíferas estrangeiras, as grandes de apoio aos pequenos produtores e à nos leilões, principalmente após a am-
va Jato e pela grande imprensa contra a importadoras, os acionistas da com- utilização de outras culturas para a pliação do plano de desinvestimento.
Petrobras e o assombro com a avalan- panhia e o Planalto. Em conjunto com produção de biodiesel. Essa medida, Esse fato, associado às mudanças re-
che de medidas contra a Constituição mudanças promovidas pelo Executivo sem dúvida, agradou aos produtores gulatórias aprovadas pelo Congresso
de 1988 e a Consolidação das Leis do e o Legislativo, o primeiro ano da ges- de biodiesel do complexo da soja. de desobrigar a Petrobras de participar
Trabalho de 1943, que sustentou nossa tão de Parente navegou em relativa O mercado financeiro e os acionistas de todas as rodadas de licitação pré-
modernização, significaram uma ruína tranquilidade na medida em que um minoritários comemoraram o aumen- -sal, em novembro de 2016, e de reduzir
que levantou uma nuvem de poeira. Por primeiro ciclo de medidas contemplou to do plano de desinvestimento da Pe- o percentual mínimo de conteúdo lo-
dois anos se turvou o olhar da opinião boa parte das demandas colocadas trobras em janeiro de 2017, ao mesmo cal nas mesmas rodadas de licitação,
pública para o conjunto de interesses por esses setores que compuseram, tempo que a estatal manteve a gestão em fevereiro de 2017, abriu espaço não
que estavam por trás das medidas to- ainda que temporariamente, sua base excessivamente austera da dívida da só para a entrada de novas operadoras
madas pela Petrobras. de sustentação. empresa, ampliando os cortes de cus- estrangeiras no pré-sal, como também
Mais ainda, a própria heterogenei- O segmento do agronegócio, princi- tos e a antecipação de pagamentos pa- para a garantia da compra de bens e
dade de microinteresses privatistas e palmente o sucroalcooleiro e o da soja, ra passivos jurídicos norte-americanos serviços aos fornecedores de seus paí-
personalistas no interior do condomí- beneficiou-se da alteração da política não julgados. Nesse mesmo compasso, ses de origem.
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 21

Nesse período, a Petrobras ainda Com isso, solidificou-se uma forte contrato da cessão onerosa, no qual a do mercado financeiro, economistas
se desfez de inúmeros blocos explo- base de coalizão em torno da gestão de Petrobras é credora do Planalto, e a de viés liberal e, inclusive, membros de
ratórios de petróleo (como o BM-S-8, Parente, que ainda surfou na fama in- possibilidade de realização do leilão seu partido, o PSDB.
incorporado pela norueguesa Sta- tensificada pela grande mídia de bom de seu excedente. O ápice da crise, ao que pareceu,
toil) e campos do pré-sal (como os gestor e de nome “irretocável” para re- Em quarto lugar, o anúncio do fim deu-se paradoxalmente pela própria
de Iara e Lapa, arrematados pela cuperar uma empresa supostamente das atividades no segmento de fertili- intransigência de Parente na negocia-
francesa Total) em transações que quebrada. Essa opção evidentemente zantes, em março de 2018, gerou uma ção com governo e caminhoneiros,
também privilegiaram, em geral, as agregou certo apoio da indústria nacio- fragmentação dentro do agronegócio. pois, ao diminuir a margem de mano-
grandes petrolíferas internacionais, nal e da população mais geral, a despei- Isso porque a saída da Petrobras signifi- bra dos termos colocados na mesa, in-
com destaque para as norte-ameri- to da forte rejeição existente no interior caria uma “pá de cal” em qualquer pos- diretamente ele incitou o governo a co-
canas e chinesas. dos movimentos sociais, incluindo os sibilidade de autonomia no forneci- gitar mudança no ICMS, provocando
Outros players do setor, principal- próprios trabalhadores da Petrobras. mento de fertilizantes para a produção reação dos governadores, e alterações
mente as importadoras de derivados de No entanto, a partir da gestação de agrícola nacional, tornando o setor to- na Cide e no PIS-Cofins, que demanda-
petróleo, aproveitaram-se tanto da no- um segundo ciclo de medidas desde ju- talmente dependente das importações. riam mais cortes em gastos sociais e de
va política de preços como da mudan- lho de 2017, essa suposta sólida base de Em quinto lugar, e talvez mais im- investimentos, gerando mais insatisfa-
ça na política de refino e gás da Petro- coalizão de apoio à gestão de Parente portante, há a mudança no reajuste ção em diferentes setores.
bras. Ainda em setembro de 2016, a se evaporou em menos de um ano, ca- dos preços dos combustíveis. A Petro- Essa sucessão de atos foi minando
direção da estatal anunciou o interesse be ressaltar, com uma generosa con- bras manteve a fórmula, atrelada ao as bases políticas e econômicas de
de buscar parceiros para atuar no refi- tribuição do Executivo. barril internacional de petróleo e ao sustentação de Parente na presidência
no (tal medida foi introduzida em abril Em primeiro lugar, em julho de câmbio, mas em julho de 2017 alterou da Petrobras.
de 2018, com o anúncio da desintegra- 2017, o governo anunciou o aumento a temporalidade dos reajustes, que O desgoverno denuncia a fragmen-
ção de quatro refinarias: a Refap, a Re- do PIS-Cofins para todos os combustí- passaram a ser diários em vez de men- tação dos interesses do latifúndio na-
par, a RLAM e a RNEST), bem como veis, incluindo o etanol, o que eviden- sais. Essa mudança, em especial nos cional, do rentismo internacional, do
executou uma contínua subutilização temente gerou relativa insatisfação últimos quatro meses, quando houve pacto federativo, das diversas alas par-
do parque de refino, cujo percentual de desse segmento por conta do aumento uma escalada acelerada do preço do lamentares e das alianças partidárias
uso da capacidade das refinarias caiu da tributação. barril do petróleo, desorganizou com- que dão sustentação ao governo de Mi-
de 79% em outubro de 2016 para 67% Em segundo lugar, a flexibilização pletamente a estrutura de custos de chel Temer, tudo isso em um ambiente
em janeiro de 2018. Ao seguir “fielmen- e a redução expressiva dos índices de diversos setores da indústria e de ser- de incerteza na geopolítica e na geoe-
te” os preços internacionais e ao dimi- conteúdo local, apesar de agradar às viços, sobretudo o de transporte. conomia internacional. O condomínio
nuir a utilização de suas refinarias, a petroleiras internacionais, seguiu blo- Portanto, a barafunda entre o Pla- oportunista que está à frente do país se
Petrobras abriu um espaço importante queando qualquer processo de substi- nalto e a Petrobras, e os impactos dele- encontra em ruínas; seus sócios e pa-
para atendimento do mercado interno, tuição de importações e o potencial de térios das medidas fiscais, de desin- rentes começam a dar mostras de que
ocupado pelas importadoras. irradiar ganhos com investimentos vestimento e de preços da estatal de entraram no modo “salve-se quem pu-
A Petrobras lavou as mãos e se des- para as indústrias naval, de engenha- petróleo desordenaram aquela base der”. Somente as urnas podem colocar
responsabilizou de atuar em favor da ria pesada e de construção civil. Tais de coalizão na qual se sustentava a um fim a esse desenfreado “barata-
segurança energética nacional, da au- medidas esgarçaram as relações da di- gestão de Parente, principalmente de -voa” em que se transformou a política
tossuficiência em petróleo e derivados reção da empresa com parte dos seg- frações do agronegócio, de parte da in- e a economia no Brasil. Ou as urnas
e da garantia do abastecimento do mentos industriais e com uma fração dústria e do serviço de transporte. governam a Petrobras ou a Petrobras,
mercado interno de combustíveis. Em do corpo intermediário, gestores e en- Em meio à exacerbação da crise a dar sequência a essa política, desgo-
vez disso, a companhia passou a prio- genheiros ligados à petrolífera. provocada por essas medidas, obser- verna o Brasil.
rizar de forma exclusiva a abertura do Em terceiro lugar, se num primeiro vamos, por um lado, a renúncia do
mercado de óleo e gás para a entrada momento Petrobras, Ministério de Mi- conselheiro da empresa oriundo da *William Nozaki e Rodrigo Leão, diretores
de players e traders do mercado estran- nas e Energia (MME) e Agência Nacio- Shell, sinalizando o afastamento das técnicos do Instituto de Estudos Estratégicos
geiro, a retomada da remuneração dos nal de Petróleo (ANP) comungaram da petroleiras estrangeiras com a gestão de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
acionistas e o encolhimento de sua es- mesma cumplicidade para mudar o de Parente, e, por outro, a greve dos ca- (Ineep), são, respectivamente, professor de
cala e de seu escopo de atuação. De marco regulatório do pré-sal do regi- minhoneiros reacendendo o espírito Ciência Política e Economia da Fundação Es-
quebra, a nova política de preços e os me de partilha para o de concessão, fa- de paralisação dos petroleiros, que cola de Sociologia e Política de São Paulo
desinvestimentos em setores específi- vorecendo sua desnacionalização, no passaram a pedir a renúncia de Paren- (FESPSP) e pesquisador visitante do Núcleo
cos caíram no gosto do agronegócio e último período a empresa alimentou te. O sentimento de desgaste veio de Estudos de Conjuntura Econômica da
do mercado financeiro. divergências com o governo sobre o acompanhado de críticas de analistas Universidade Federal da Bahia (UFBA).
22 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

O ANIMAL, UM CIDADÃO COMO TODOS OS OUTROS?

Entre a descoberta de surpreendentes capacidades dos bonobos – que resolvem conflitos copulando – e o destaque
conferido ao sofrimento das criações na pecuária, nossa percepção sobre os animais foi modificada e a questão assumiu
uma importância inesperada. Em geral acalorados, os debates que surgem não podem ser reduzidos a caricaturas: os malvados
carnívoros arrogantes contra os doces vegetarianos empáticos, ou, pelo contrário, o bom senso dos comedores de carne contra
o sectarismo dos trituradores de cenoura. Os questionamentos que surgem são de fato relevantes: qual é a parcela animal
do ser humano? Qual é a melhor forma de coexistir? Devemos alguma coisa às outras criaturas vivas? Resta, por fim, descobrir
se esse acolhimento da alteridade, alimentado de emoção, pode contribuir para o progresso social

A era dos açougueiros


vegetarianos
POR BENOÎT BRÉVILLE*

s vacas francesas poderão em Na França, e ainda mais na Alema- bastidores e sensibilizar a opinião vam a ação direta, a sabotagem dos

A breve morrer alegremente: em


virtude de uma lei votada em
maio pela Assembleia Nacional,
cada matadouro será dotado de um
“responsável pelo bem-estar animal”,
nha, nos países escandinavos, no Ca-
nadá e em Israel (Tel Aviv reivindica o
título de “capital vegetariana do mun-
do”), o número de vegetarianos não
para de aumentar. Sua proporção na
com imagens chocantes. Muitos con-
vertidos explicam ter dado esse passo
depois de verem alguns desses vídeos
– vacas cujo sangue é tirado quando
ainda vivas, para que o processo seja
meios de transporte, o roubo de pré-
dios da indústria alimentar e dos gru-
pos farmacêuticos. Seus primeiros al-
vos eram as manifestações burguesas
da exploração animal, tais como a ca-
que zelará para que os bichos estejam França varia segundo estudos entre mais rápido; pintinhos machos esma- ça e as corridas de cachorros, práticas
bem “atordoados” – ou seja, eletrocuta- 3% e 6% da população (contra 8% a gados aos milhares...2 que testemunhavam, segundo eles, a
dos ou dopados com gás – antes de sua 10% na Alemanha), dos quais 1% seria Para garantir reverberação midiáti- imbricação das dominações social e
execução. Não há certeza de que isso vegano e teria assim excluído qualquer ca, a causa animal pode inclusive con- “especista”.3
seja suficiente para aumentar a classi- forma de exploração animal de seu tar com a contribuição de uma penca Forjado no modelo dos termos “ra-
ficação da França no Índice de Prote- modo de vida – desde comer mel até se de famosos. Na França, os jornalistas cismo” e “sexismo”, esse neologismo
ção Animal estabelecido por ONGs pa- vestir com lã. Contaríamos, além dis- Franz-Olivier Giesbert e Aymeric Ca- apareceu no início dos anos 1970 e se
ra comparar as legislações de cerca de so, com um quarto de “flexitarianos”, ron, a cantora Mylène Farmer, o monge impôs rapidamente como a base ideo-
cinquenta países. Com um medíocre uma noção vaga designando pessoas budista Matthieu Ricard... Enquanto lógica do movimento de libertação
C, a França está no meio, bem à frente preocupadas em reduzir sua alimen- isso, Leonardo di Caprio subvenciona a animal. Segundo os Cahiers Antispé-
da Bielorrússia, do Azerbaijão e do Irã, tação de carne, sem, no entanto, aboli- proteção dos elefantes, Angelina Jolie e cistes (“Cadernos antiespecistas”), “o
onde não existe interesse algum pelo -la. Ainda que a sensibilidade em rela- Brad Pitt se consagram à vida selvagem especismo é para a espécie o que o ra-
assunto, mas longe da Áustria, que ção ao sofrimento animal não seja a na Namíbia. Já os atores Penelope cismo é para a raça e o que o sexismo é
proíbe a criação de frangos em granjas única motivação para a mudança de Cruz, Pamela Anderson e Natalie Port- para o sexo: uma discriminação com
industriais, o comércio de peles, expe- regime – razões alimentares ou am- man e os cantores Justin Bieber, Mor- base na espécie, quase sempre em fa-
riências médicas em macacos, a cas- bientais podem levar a isso –, a ideia de rissey, Paul McCartney, Bryam Adams vor dos membros da espécie humana”.
tração sem anestesia de leitões, a supe- que podemos não consumir carne ga- e Moby participam das cruzadas da as- Seria então conveniente libertar os
ralimentação de gansos... nha espaço. sociação People for an Ethical Treat- animais como antes foram emancipa-
A questão do sofrimento animal Os recentes avanços da causa ani- ment of Animals (Peta – Pessoas pelo dos os escravos ou as mulheres – com a
não entrou apenas nos parlamentos. mal se devem aos seus militantes. As- Tratamento Ético dos Animais), uma diferença notável de que os principais
Ela ocupa um espaço cada vez maior do sociando objetivos a curto prazo (fe- das mais importantes do movimento envolvidos não correm o risco de se
debate público e dos meios militantes, chamento de um matadouro ou de um de defesa dos animais, que produz unir à luta.
em particular ecologistas. Na internet, aquário de golfinhos) e um projeto campanhas publicitárias em que mu- Houve no passado diversas vozes
vídeos virais explicitam o horror dos mais geral (a “libertação animal”), lheres nuas aparecem em posições para pregar o vegetarianismo e recu-
matadouros e da criação industrial. eles organizam um lobby frenético sugestivas. sar a morte dos animais. No século VI
Sob a pressão das associações, diversas junto aos representantes políticos. Que Hollywood tenha se tornado antes da nossa era, por preocupação
companhias de circo (Joseph Bouglio- “São cinquenta e-mails por dia que to- um dos centros nevrálgicos da causa de não violência e porque acreditavam
ne na França, Barnum nos Estados Uni- dos [os deputados da República em animal não deixa de ser irônico. na transmigração da alma, o matemá-
dos...) recentemente pararam de usar Marcha, o partido de centro do presi- Quando se impôs no Reino Unido dos tico Pitágoras e seus discípulos se abs-
animais em seus espetáculos e redes de dente Emmanuel Macron] recebemos anos 1960, o movimento de “liberta- tinham de comer carne. Mais de um
supermercado tiraram de suas prate- sem parar sobre a questão da violên- ção animal” se ligava à estética punk e milênio depois, seitas evangélicas e
leiras os ovos das galinhas criadas em cia animal”, constatou recentemente se identificava com a contracultura. puritanas continuavam banindo pro-
gaiolas. Quanto às livrarias, suas prate- o deputado Gilles Le Gendre.1 Eles se Seus militantes, frequentemente bati- dutos da carne, esperando assim “ven-
leiras se cobrem de livros que exaltam introduziram clandestinamente nos zados de ecoguerreiros e dos quais al- cer a carne e fazer o espírito triunfar”.4
os méritos do regime sem carne. locais do agronegócio para filmar os guns terminaram na prisão, pratica- A partir dos anos 1960-1970, justificou-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23

© Odyr
-se o vegetarianismo pela igualdade nheiro do Google, cientistas norte-a- Privilégio das classes superiores lhões a 9 milhões de bichos, que trate
entre as espécies, sob o pretexto de mericanos se dedicam a cultivar bifes durante séculos, a carne “mudou de cada um com delicadeza?9 Introduzir a
que todas seriam compostas de seres in vitro a partir de células-tronco – campo sociológico”: os operários e as vídeo-vigilância nos matadouros irá
sensíveis à dor, capazes de refletir e de projeto aplaudido com entusiasmo pe- pessoas sem diploma consomem hoje apenas reforçar o controle exercido so-
se comunicar. lo Peta. Enquanto a preocupação com em dia mais do que os executivos e di- bre os operários, que já são submetidos
Pouco a pouco, o símbolo da luta a alimentação vegetariana se desen- plomados, ressalta a Terra Nova, uma a cadências infernais. O bem-estar dos
animalista se deslocou da caça e das volve, novos produtos aparecem nos fundação que se propõe a contribuir animais de criação passa por cima do
peles para a indústria da carne. O as- mercados: salsichas à base de ervilhas, para a “renovação intelectual da es- dos trabalhadores da linha e os dois
sunto tem, com efeito, poder de mobi- presuntos “sem carne, mas ricos em querda progressista” convidando-a a dependem do mesmo imperativo: di-
lização. A cada semana, segundo a Or- proteínas”... Na França, os números do “aproveitar as oportunidades de uma minuir o ritmo da produção.
ganização das Nações Unidas para a departamento “embutidos vegetais” alimentação com menos carne” e ba-
Alimentação e a Agricultura (FAO), quase dobrou entre 2015 e 2016. Essas seando-se nos “setores mais promisso- *Benoît Bréville é jornalista do Le Monde
mais de 1 bilhão de animais terrestres misturas que têm aparência, textura e res da FoodTech”.7 Agora, os mais favo- Diplomatique.
são mortos para encher estômagos hu- pretensamente gosto de carne são fre- recidos se distinguem ao renunciar à
manos, sem contar cerca de 20 bilhões quentemente elaboradas por multina- carne, por sensibilidade à causa ani-
de peixes e crustáceos.5 A fim de satis- cionais da carne ou dos embutidos, co- mal, assim como por preocupação
fazer uma demanda sempre crescente, mo a Fleury-Michon, que criou em com sua saúde, e o vegetarianismo se 1 Coletiva de imprensa na Assembleia Nacional, 23
em particular nos países do Sul, é pre- 2016 a linha Côté Végétal (“Lado vege- transforma em estandarte. Tratar-se-ia maio 2018.
ciso produzir e matar o mais rápido tal”), a Herta, com Le Bon Végétal (“O do “novo regime da moda”, segundo a 2 O filme Earthlings (“Terráqueos”), dirigido por
Shaun Monson (2005) e narrado por Joaquin
possível, da forma mais barata possí- bom vegetal”), a Aoste, com “Le Végé- revista semanal Le Point (13 jun. 2015). Phoenix, apresenta tais imagens, assim como as
vel. A zootecnia, a ciência das produ- tarien (“O vegetariano”), e a Le Gaulois “Comer bem sem consumir animais grandes plataformas de vídeo on-line.
ções animais, adaptou então os bichos (“Le Gaulois Végétal”). E elas não têm nunca foi tão descolado”, declara a re- 3 Marianne Celka, Vegan Order. Des éco-warriors
au business de la radicalité [Vegan Order. Dos
às necessidades de criação, para que nada de natural. Para preparar seu vista Elle (1º jul. 2016). Quanto à estilis- ecoguerreiros ao business da radicalidade], Arkhé,
eles crescessem mais rápido, para que “cordon bleu vegetal” (vendido por um ta Lolita Lempicka, especializada na Paris, 2018.
as tetas das vacas se adaptassem me- preço 67% mais caro que seu equiva- moda têxtil custosa mas 100% vegetal, 4 Segundo as palavras de um teórico vegetariano do
século XVII, citadas em Arouna P. Ouédraogo, “De
lhor às máquinas etc. “Os animais de lente de carne), o aviário Le Gaulois ela se gaba de seu “negócio glam e ve- la secte religieuse à l’utopie philanthropique. Genè-
criação se tornaram ‘máquinas ani- deve, por exemplo, misturar não me- gano”.8 A batalha contra a carne abre se sociale du végétarisme occidental” [Da seita
mais’ a serviço de um projeto indus- nos de quarenta ingredientes, entre os um novo episódio na luta de classes? religiosa à utopia filantrópica. Gênese social do
vegetarianismo ocidental], Annales Histoire,
trial de exploração da ‘matéria ani- quais maltodextrina (que fornece o Os restaurantes vegetarianos já se Sciences Sociales, v.55, n.4, Paris, jul.-ago. 2000.
mal’”, analisa a socióloga e agrônoma aroma e o agente de carga que permite tornaram símbolo da gentrificação dos 5 “Livestock Primary”. Disponível em: <www.fao.org>.
Jocelyne Porcher.6 Para alguns, o ani- o aumento de volume do alimento), antigos bairros populares. Ao mesmo 6 Jocelyne Porcher, “Ne libérez pas les animaux! Plai-
doyer contre un conformisme ‘analphabète’” [Não
mal constitui um obstáculo para a in- alho-poró e clara de ovo em pó, goma tempo que despertam as consciências libertem os animais! Pregar contra um conformis-
dústria agroalimentar – é preciso alo- xantana (gelificante), carragenina (es- sobre a realidade da agroindústria, os mo “analfabeto”], La Revue du MAUSS, n.29, pri-
já-lo, alimentá-lo, cuidar dele... –, que pessante e estabilizante), proteínas de vídeos da associação L214 contribuem meiro semestre de 2007.
7 “La viande au menu de la transition alimentaire” [A
não teria nenhum escrúpulo em se li- soja reidratadas, citrato de sódio (con- para estigmatizar os operários dos ma- carne no cardápio da transição alimentar], Terra
vrar dele se encontrasse uma matéria- servante regulador de acidez, aromati- tadouros, a respeito dos quais os co- Nova, 23 nov. 2017.
-prima mais rentável. zante) etc. A paixão vegetariana pode mentaristas se divertem ao discutir so- 8 Citado em Patrick Piro, “Nouveau REV pour l’éco-
logie” [Novo REV para a ecologia], Politis, Paris, 17
Investido pelos fundos de pensão e paradoxalmente gerar um alimento bre a falta de empatia. Mas podemos maio 2018.
as start-ups da FoodTech, o setor dos cada vez mais artificial, reforçando o realmente esperar de um esquarteja- 9 Segundo um cálculo efetuado por Jocelyne Por-
produtos similares à carne está em poder da agroindústria sobre a cadeia dor que viu passar por suas mãos, ao cher. Cf. Vivre avec les animaux. Une utopie pour le
XXIe siècle [Viver com os animais. Uma utopia para
pleno desenvolvimento. Com o di- alimentar. longo de 25 anos de carreira, de 6 mi- o século XXI], La Découverte, Paris, 2014.
24 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

O ANIMAL, UM CIDADÃO COMO TODOS OS OUTROS?

Fazer jus aos


direitos dos animais
As universidades de Limoges, na França, de Basileia, na Suíça,
e de Barcelona, na Espanha, oferecem cada vez mais diplomas em
Direito Animal. O dinamismo dessa disciplina testemunha a crescente
institucionalização da questão animal, em particular nos países ricos
POR JÉRÔME LAMY*

© Odyr
m caso de divórcio, quem vai fi- hommes (1755) [Discurso sobre a ori- 1848, visava sobretudo policiar o com- bem-estar dos animais enquanto se-

E car com o cachorro? Como ava-


liar os prejuízos causados pelas
divagações de uma vaca peram-
bulante? O que fazer em caso de desres-
peito a espécies protegidas? Todas essas
gem e os fundamentos da desigualda-
de entre os homens], atesta que, “liga-
dos de alguma maneira à nossa
natureza pela sensibilidade de que são
dotados, consideramos que eles de-
portamento de uma população da qual
se temiam agitações violentas.3
De modo geral, a sensibilidade ex-
pressa no século XIX, principalmente
nos ambientes mais favorecidos (a ra-
res sensíveis”, afirma o artigo 13. Os
Estados-membros procuraram, en-
tão, adaptar sua legislação.
Na França, apesar de diversos ar-
ranjos, principalmente nos códigos Pe-
perguntas e muitas outras relevantes na vem participar do direito natural e que inha Vitória aderiu à SPCA britânica), nal e Rural, foi preciso esperar uma lei
França encontram-se em textos espa- o homem está sujeito a uma espécie de não vai além dessas proibições de de 16 de fevereiro de 2015 para o Códi-
lhados em sete códigos legislativos (Ci- dever para com eles”. O “direito natu- maus-tratos – permanecendo a toura- go Civil deixar de considerar o animal
vil, Penal, Rural, do Meio Ambiente etc.) ral” designa aqui o conjunto dos direi- da um símbolo dos limites a não ultra- um “bem móvel” e o reconhecer como
e constituem, de fato, o direito dos ani- tos derivados da própria natureza de passar, uma vez que o artigo do Códi- um “ser dotado de sensibilidade”. Mas,
mais. Diante dessa dispersão, começa a um ser, em oposição ao “direito positi- go Penal que proíbe os atos de signo das ambivalências na França, o
se constituir um “direito animal”, que vo” praticado pelo Estado. Alguns crueldade prevê que suas disposições animal selvagem não é mencionado, e
visa elaborar um conjunto coerente de anos depois, na Introduction aux prin- não são “aplicáveis às touradas na me- é sempre possível, como previsto no
normas jurídicas.1 Não se trata apenas cipes de la morale et de la législation dida em que uma tradição local dura- artigo 426-6 do Código do Meio Am-
de um objetivo prático. Essa remodela- (1789) [Introdução aos princípios da doura pode ser evocada”. Da mesma biente, estabelecer listas de “perigo-
ção assinala não só o desejo de fortale- moral e da legislação], o filósofo inglês maneira, a dissecação horroriza, mas sos” suscetíveis de serem eliminados.
cer a proteção dos animais, mas tam- Jeremy Bentham continua essa refle- sem que o direito venha legislá-la. Outros países se mostram nitidamente
bém o surgimento de uma nova xão, considerando a capacidade de so- Na segunda metade do século XX, mais protetores. Na Alemanha, onde
concepção sobre sua natureza. frer, que reconhece nos animais, como o corpus legislativo torna-se mais den- desde 1993 há o Partido dos Animais, a
A questão dos deveres humanos fundamento do “direito aos direitos”.2 so e dá origem a um direito próprio dos proteção animal foi inscrita, em 2002,
para com os animais começou a ser animais, paralelamente a um interes- na Constituição como objetivo do Es-
teorizada a partir do Iluminismo. Cer- “SER DOTADO DE SENSIBILIDADE” se cada vez maior do público. Procla- tado. Assim como Áustria, Dinamarca,
tamente, como prova de sua perenida- Foi preciso esperar o início do sécu- mada na sede da Unesco em Paris, em Israel, Itália e Reino Unido, a Alema-
de, costuma-se citar um fragmento lo XIX para que surgissem as primeiras 1978, a Declaração Universal dos Di- nha proíbe o empanturramento força-
isolado da obra do filósofo Teofrasto, leis condenando a crueldade praticada reitos dos Animais se inspira direta- do de animais, bem como a presença
discípulo de Aristóteles, que no século contra animais. Em 1822, dois anos an- mente na Declaração Universal dos de animais selvagens nos circos – uma
IV antes de nossa era fala de uma iden- tes da fundação, na Inglaterra, da So- Direitos Humanos de 1948 e estabele- disposição em vigor também na Bélgi-
tidade entre as “almas” dos humanos e ciety for Prevention of Cruelty of Ani- ce diferentes princípios: “Toda vida ca, Áustria, Grécia, Dinamarca... Al-
das outras espécies, compostas de ra- mals (SPCA) [Sociedade para animal tem direito ao respeito”; “se a guns países europeus, tais como a Áus-
zão, agressividade e desejo. Do mesmo Prevenção da Crueldade contra os Ani- matança de um animal for necessária, tria, a Dinamarca e o Reino Unido,
modo, é lembrada com frequência, mais], a Martin’s Act [Lei de Martin] ela deverá ser instantânea, indolor e baniram a produção e a venda de peles
principalmente pelos que se opõem à proíbe os maus-tratos infligidos ao ga- não deverá gerar angústia”; “o animal dos animais, enquanto outros (Norue-
tourada, a bula papal De Salute Gregis, do britânico. Na sequência, leis contra que o homem mantém sob sua depen- ga, Holanda, Suécia e Estados Unidos)
de 1º de novembro de 1567, na qual Pio a tortura em animais surgem no mun- dência tem direito a um sustento e ao dispõem de uma política encarregada
V ameaça de excomunhão os que par- do germânico. Na França, a Société zelo...”. Mas esse texto, sem alcance ju- de fazer respeitar os direitos dos ani-
ticipam de “espetáculos em que touros Protectrice des Animaux (SPA) [Socie- rídico coercitivo, permanece sobretu- mais. Mas talvez a evolução mais im-
e animais selvagens são perseguidos dade Protetora dos Animais] só foi do simbólico. pressionante ocorra na Suíça, que não
na arena”, considerando-os “contrá- criada em 1846, pouco antes da Lei O mesmo não acontece com o Tra- é Estado-membro da União Europeia.
rios à piedade e à caridade cristã”. O Grammont, de 9 de julho de 1850, que tado de Lisboa sobre o funcionamento As novas regras helvéticas da política
papa determina então essa primeira dispõe em seu artigo 1º: “Serão puni- da União Europeia, assinado em 2007 veterinária pretendem melhorar o
limitação dos maus-tratos públicos dos com multa de 5 a 15 francos e pode- e que passou a vigorar em 2009. “Na bem-estar animal: proíbem ferver os
em nome de Deus e de suas criaturas. rão ser condenados à pena de um a cin- definição e aplicação das políticas da crustáceos vivos e algumas modalida-
Os filósofos iluministas se perguntam co anos de prisão aqueles que tiverem União nas áreas da agricultura, da des de eutanásia, e obrigam que sejam
sobre o status dos animais em relação praticado pública e abusivamente pesca, dos transportes, do mercado retirados das competições esportivas
ao ser humano. maus-tratos aos animais domésticos”. interno, da pesquisa e desenvolvi- os animais extremamente estressados
Assim, Jean-Jacques Rousseau, no No entanto, não devemos nos iludir mento tecnológico e do espaço, a pela situação...
prefácio de seu Discours sur l’origine et com ela. Essa lei de inspiração burgue- União e os Estados-membros levarão Se deixarmos de lado o caso da Ín-
les fondements de l’inégalité parmi les sa, adotada após as sublevações de totalmente em conta as exigências do dia, esses avanços dizem respeito so-
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25

bretudo ao mundo ocidental. Eles reve- of Animal Law e a Animal Law Review caco-de-crista que fez, em 2011, uma processo, beneficiou-se de um ha-
lam como levar em conta o sofrimento (editada desde 1994) revelam o dina- selfie com o aparelho fotográfico de beas corpus (que proíbe aprisionar
dos animais se tornou um fenômeno mismo dessa disciplina na área acadê- David Slater, poderia reivindicar os di- sem julgamento): tendo-lhe sido con-
social nos países ricos. A institucionali- mica. Na França, desde 2009, a Revue reitos autorais de seu autorretrato? cedido o direito à liberdade, após ter
zação progressiva do direito dos ani- Semestrielle du Droit Animalier se es- Após vários anos de trâmites, o tribu- passado toda a sua vida em cativeiro,
mais confirma isso. O primeiro curso força para unir “os trabalhos dos juris- nal respondeu com uma negação no ela poderia assim abandonar o zooló-
consagrado aos direitos e aos animais tas de todas as especialidades acadê- último mês de abril. gico de Buenos Aires.
foi ministrado nos Estados Unidos na micas, mas também de filósofos e De modo mais amplo, as capacida-
Seton Hall University em 1977, a pedido cientistas”, a fim de acompanhar sua des jurídicas de articular corretamen- *Jérôme Lamy é pesquisador do Centre Na-
de um estudante.4 Depois, essa matéria evolução e as disputas teóricas. te a copresença de todas as espécies tional de la Recherche Scientifique (CNRS),
se espalhou em um grande número de Um nome aparece continuamente animais na Terra (inclusive os huma- na França.
faculdades norte-americanas. Na Fran- em colunas dessas revistas: trata-se de nos) passaram a ser, desde então,
ça, seguindo o exemplo da Universida- Peter Singer. Esse filósofo australiano questionadas: uma vez que formamos 1 Jean-Pierre Marguénaud, Florence Burgat e Jac-
de Autônoma de Barcelona, a Universi- uma “comunidade mista”8 com os ani- ques Leroy, Le droit animalier [O direito animal],
abriu caminho para uma nova articu- Presses Universitaires de France, 2016.
dade de Estrasburgo propôs, a partir de lação do direito e da ética em sua obra mais, como organizar as relações en- 2 Jeremy Bentham, An Introduction to the Principles
2015, duas especializações – Direito Animal Liberation (“Libertação ani- tre humanos e não humanos, de tal of Morals and Legislation [Introdução aos princí-
Animal e Ética Animal em sua pós-gra- modo que elas não sejam “apenas em pios éticos e legislação], T. Payne and Son, 1789,
mal”, 1975),5 ao afirmar, na esteira de p.CCCIX.
duação Ética e Sociedade. No ano se- benefício dos primeiros”? Seria neces-
Jeremy Bentham, que o critério perti- 3 Jean-Yves Bory, La douleur des bêtes. La polémi-
guinte, a Universidade de Limoges sário, então, de acordo com a filósofa que sur la vivisection au XIXe siècle en France [A
nente de consideração moral é a capa- dor dos animais. A polêmica sobre a dissecação
abriu um bacharelado em Direito Ani- Corine Pelluchon, uma teoria política
cidade de sofrer. Ele considera, então, no século XIX na França], Presses Universitaires
mal para os alunos do “bac+2” e as pes- que dê sentido aos direitos dos ani-
que os seres humanos têm certo nú- de Rennes, 2013, p.78.
soas “interessadas”. Para satisfazer es- mais, na perspectiva de construir uma 4 Joyce Tischler, “The History of Animal Law, Part I
mero de obrigações a respeitar em re- (1972-1987)” [A história da legislação para os ani-
ses novos estudantes e a pedido da sociedade mais justa para todos. O que
lação aos animais. Mas, para ele, o em- mais, Parte I (1972-1987)], Journal of Animal Law
Fundação 30 milhões de Amigos, a edi- os filósofos canadenses Will Kymlicka and Policy, v.2008, p.10.
prego do vocabulário dos direitos é
tora Lexis Nexis publicou, em março, o e Sue Donaldson propõem concreti- 5 Peter Singer, La libération animale [A libertação
apenas “um resumo político prático”: 6 animal], Grasset, Paris, 1993.
primeiro Código do animal, um volume zar: com base na convicção de que o
ele próprio não baseia sua defesa dos 6 Peter Singer, Questions d’éthique pratique [Ques-
de mais de mil páginas que reúne todos direito dos animais se encontra num tões de ética prática], Bayard, Paris, 1997 (edição
os textos legislativos e jurisprudências animais na reivindicação de seus di- impasse, não impede o sofrimento nas original: 1979).
sobre o assunto. reitos. O jurista norte-americano Gary criações industriais de animais e não 7 Gary L. Francione, Introduction aux droits des ani-
L. Francione reivindica que os animais reflete a realidade das relações entre
maux [Introdução aos direitos dos animais], L’Age
d’Homme, Lausanne, 2015. Ler também “Pour
OS DIREITOS AUTORAIS DE UM MACACO sejam considerados pessoas e, portan- homens e animais, eles sugerem es- l’abolition de l’animal-esclave” [Pela abolição do
Paralelamente a essa estruturação to, dotados de personalidade jurídica.7 tender o modelo da cidadania aos ani- animal escravo], Le Monde Diplomatique, n.629,
universitária, surgiram inúmeras re- O tribunal da Califórnia, evidente- mais domésticos.9
ago. 2006, p.20.
8 Corine Pelluchon, Manifeste animaliste. Politiser la
vistas acadêmicas especializadas. Nos mente, não está convencido disso. Sur- Em 2015, Sandra, de 29 anos, fê- cause animale [Manifesto animalista. Politizar a
Estados Unidos, o Journal of Animal preendido por uma associação de de- mea orangotango, reconhecida “pes- causa animal], Alma, Paris, 2016.
fesa dos animais, ele teve de resolver 9 Will Kymlicka e Sue Donaldson, Zoopolis. Une
Law, produzido na Universidade do soa não humana” pelo tribunal (ar- théorie des droits des animaux, [Zoópolis. Uma
Estado de Michigan, o Stanford Journal uma questão inédita: Naruto, um ma- gentino) encarregado de julgar o teoria dos direitos dos animais], Alma, 2016.

Porcos e touros no banco dos réus


Nos dias de hoje, quando um cachorro morde uma criança, seu dono é considerado penalmente responsável e pode,
portanto, ir parar num tribunal. Na Idade Média, era o próprio animal que precisava comparecer diante dos juízes
POR LAURENT LITZENBURGER*

m 1408, dois processos muito mo que se adapta à ascensão e à queda bertas dos pesquisadores. Por outro prios animais. Enquanto o homem foi

E singulares se desenvolveram pa-


ralelamente no reino da França
e em suas redondezas. Em Pont-
-de-l’Arche (ducado da Normandia) e
em Saint-Mihiel (ducado de Bar), por-
dos processos como uma magia. No
entanto, os exemplos continuaram ra-
ros, o que durante muito tempo fez os
historiadores pensarem que esses ca-
sos não passavam de manifestações
lado, a maior parte desses episódios só
é conhecida de forma indireta, pelo
viés de documentos contabilizados e
de despesas efetuadas para a audiên-
cia e a execução. Ou seja, não suscitam
punido apenas com uma pena pecu-
niária destinada a cobrir as custas da
justiça, a porca foi considerada culpa-
da e condenada à forca, ao mesmo
tempo que seus porquinhos escapa-
cos acusados de terem matado crian- da remanescência de arcaísmos judi- a curiosidade que, hoje, é nossa... ram da morte, por não haver nenhuma
ças foram condenados à forca. Alguns ciários. Em trabalhos pioneiros, o so- O mais impressionante é que o pro- prova que permitisse incriminá-los.
anos antes, em 1386, na Falaise, uma ciólogo Edward Payson Evans identifi- cesso contra animais seguia o ritual Da mesma maneira que os seres
porca, também acusada de infanticí- cou, entre a Idade Média e o século judiciário dos processos contra seres humanos, os animais eram submeti-
dio, foi maquiada como se fosse um XIX, pouco mais de duzentos casos em humanos. Os animais eram vistos co- dos com frequência à prisão preventi-
homem, julgada e executada diante todo o continente.2 No reino da Fran- mo seres conscientes, movidos por va durante a instrução de seu processo
dos porcos da região.1 ça, o historiador Michel Pastoureau re- vontade própria, responsáveis por e, às vezes, colocados sob vigilância,
Processos como esses parecem ter censeou uns sessenta entre 1266 e seus atos e capazes de compreender as provavelmente porque poderiam se
ocorrido em todo o Ocidente cristão 1586. Numa escala ainda mais reduzi- sentenças. Assim, uma porca e seus mostrar particularmente agitados e
desde meados do século XIII até os da, os arquivos da Lorraine e de Barr seis porquinhos foram acusados de menos sensatos que seus homólogos
tempos modernos. A maioria de casos revelam 34 casos entre os séculos XIV “morte e homicídio” de uma criança bípedes. Em 1408, em Saint-Mihiel, vá-
conhecidos se passa no século XVI; de- e XVIII: um conjunto de documentos de 5 anos, em Savigny, no ducado da rios arqueiros receberam, assim, 10
pois, a prática diminui e dá lugar ao provavelmente incompleto e suscetí- Borgonha, em 1457. Advogados defen- soldos “para beber com seus amigos”
pensamento do Iluminismo, num rit- vel de ser corrigido conforme as desco- deram o proprietário, mas não os pró- durante dois dias de vigilância do por-
26 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

co infanticida. Em Pont-de-l’Arche, o criar porcos na cidade. A ameaça que Deus procurava punir o grupo por No momento, nenhum texto de lei
encarceramento durava 24 horas. eles representavam para as crianças, seus pecados. O tribunal ordenava, enquadrando a possibilidade de em-
O papel das instituições judiciárias que ficavam sozinhas em casa durante então, a organização de uma procissão preender esses processos foi encontra-
era interrompido no momento em que as jornadas de trabalho agrícolas, não geral, que reunisse as autoridades lai- do. Esses crimes atacam os próprios
o julgamento se dava, sob a responsa- era ignorada. Os testamentos dos cam- cas e religiosas, que terminava com fundamentos da sociedade: as violên-
bilidade da força pública que deveria poneses no fim da Idade Média mos- um anátema contra os insetos e roedo- cias contra as crianças tocam no sa-
realizá-lo. Como durante processos de tram pais que se preocupavam com a res nocivos. Os gafanhotos que amea- grado; as calamidades agrícolas impu-
seres humanos, as sentenças variavam adoção de seu filho “até que ele atinja a çavam o feno da grande pradaria de tadas aos parasitas colocam em risco a
de acordo com o contexto: a acusação idade para se defender de cachorros e Tomblaine, ao lado de Nancy, passa- subsistência e a estabilidade das co-
podia ser abandonada quando a víti- porcos”. Na França, na Inglaterra e em ram por essa experiência em 1719, as- munidades. De acordo com o pensa-
ma sobrevivesse aos ferimentos, como outros lugares na Europa, os tribunais sim como os besouros das vinícolas da mento do filósofo René Girard, é possí-
em 1416, em Hennecourt (Vosges); os não paravam de intimar as famílias a aldeia de Eulmont, nove anos depois. A vel identificar aqui a causa do bode
acusados eram às vezes inocentados zelar melhor por sua progenitura e ruptura do equilíbrio natural, deseja- expiatório. No momento em que os
por falta de provas (como os porqui- seus animais. da por Deus, justifica esses processos. juízes poderiam considerar os crimes
nhos de Savigny). Ao contrário, todos Ao lado desses processos julgados A maior parte dos animais selva- julgados como reflexo de uma crise
eles podiam ser executados se fosse por tribunais civis, existia uma segun- gens não é lembrada a não ser nos pro- mais global, eles buscam, no caso in-
possível identificar o culpado. A sen- da forma de processo de animais, mais cessos de magia. Em geral, Satã toma a dividual, a origem e a causa de tudo o
tença para os animais assassinos era a antiga e duradoura: as ações realizadas forma (ou o controle) de um lobo e até que fere o corpo social.3 Segundo o
mesma que para os homens: a forca. pelos tribunais eclesiásticos, principal- mesmo de uma malta, com o objetivo historiador Robert Muchembled, cada
Às vezes, os cadáveres permaneciam mente encarregados dos casos relevan- de atacar os animais, os seres huma- processo contribui, assim, para enrai-
expostos durante algum tempo nos tes para a Igreja, contra os insetos e roe- nos isolados ou devorar as crianças. O zar mais profundamente as crenças na
patíbulos, a fim de impressionar. Esses dores nefastos às plantações. O Diabo e os vampiros, os feiticeiros e as magia e as superstições, dando mais
procedimentos judiciários que, como primeiro caso testemunhado diz res- feiticeiras, que supostamente podem força ao sobrenatural.4
salienta Michel Pastoureau, “repre- peito a arganazes, uma espécie de roe- se transformar da mesma maneira que De qualquer maneira, esses pro-
sentam o exercício da ‘justiça eficaz’”, dor, e lagartas em Laon, em 1120, e en- seu mestre maléfico, podem também cessos responderam às preocupações
se dizem demonstrativos. contramos vestígios desse tipo de caso ganhar a aparência de um rato, uma religiosas das sociedades pré-indus-
O bestiário convocado para o ban- até o século XIX. Quatro casos em Lor- lebre, um corvo, um pássaro ou um ca- triais. Eles manifestaram uma vonta-
co das testemunhas era relativamente raine, entre 1692 e 1733 (antes da anexa- chorro (errante, que não é considerado de de restabelecer a hierarquia instau-
restrito. O porco infanticida dominava ção do ducado à França, em 1766), per- mais como doméstico). O único ani- rada, por Deus, entre os homens e os
com entusiasmo o banco dos réus, mitem tornar o esquema mais preciso. mal comum aos processos de magia e animais. De acordo com a Gênese,
acompanhado de gatos e touros. Os Quando as comunidades rurais se de animais é o gato. O Diabo muitas Deus criou o homem conforme sua
dados refletem a predominância, na viam diante de uma situação prejudi- vezes se reveste dessa aparência, a fim própria imagem, permitindo-lhe sub-
época, dos porcos nas áreas rurais e cial que não conseguiam controlar, de perturbar os adultos durante o sono meter “os peixes do mar, os pássaros
nas cidades, onde animais errantes es- apelavam para a intercessão de um tri- ou as crianças no berço. do céu, os animais, toda a terra e todos
tavam presentes em toda parte. Eles bunal eclesiástico. Este enviava emis- Para compreender essa prática ju- os pequenos animais que se movem
circulavam livremente nas ruas, pra- sários para intimar os insetos e roedo- diciária, inúmeras hipóteses foram le- na terra” (Gênese, 1:26). Quando os
ças e cemitérios, desempenhando res incriminados a se apresentarem vantadas: sobrevivência de supersti- animais violam essa hierarquia divi-
muitas vezes o papel de lixeiros. Às ve- “em pessoa” diante do tribunal. Du- ções populares; vontade de eliminar na, o processo deve restabelecer a or-
zes, eles incomodavam as autoridades rante a audiência, o juiz ordenava um uma ameaça que pesa sobre a socieda- dem cósmica. Ele se parece com um
municipais, que temiam uma polui- deles a se retirar, com os seus, dos de; desejo de instaurar o medo entre mecanismo de proteção das socieda-
ção das fontes de água. Foi principal- campos ameaçados. Se os parasitas os congêneres do animal executado; des, que constituiria uma verdadeira
mente por essa razão que uma lei do fossem exterminados, a comunidade tentativa de inverter a ordem da natu- ideologia, no sentido medieval do ter-
duque de Lorraine, datada de 1607, poderia agradecer a Deus com ora- reza e da sociedade, como durante mo, ou seja, “uma estrutura imaginá-
proibiu os habitantes de Nancy de ções. Se a praga persistisse, era porque motins e carnavais... ria [...] um sistema de representações
mentais, de ritos e de comportamen-
tos, no ponto de junção do consciente
com o inconsciente, capaz de tornar o
mundo significativo e de agir sobre
ele”.5 Formas de adaptação e de resi-
liência diante dos riscos de uma pro-
miscuidade permanente com os ani-
mais, esses processos permitiam
racionalizar o indizível e devolviam a
iniciativa ao homem.

*Laurent Litzenburger é pesquisador asso-


ciado no Centro de Pesquisa Universitário
Loreno de História (CRULH – Centre de Re-
cherche Universitaire Lorrain d’Histoire), da
Universidade de Lorraine.

1 Michel Pastoureau, Une Histoire symbolique du


Moyen Âge occidental [Uma história simbólica da
© Odyr

Idade Média ocidental], Seuil, Paris, 2004.


2 Edward Payson Evans, The Criminal Prosecution
and Capital Punishment of Animals [A acusação
criminosa e a pena capital de animais], William Hei-
nemann, Londres, 1906.
3 René Girard, Les Origines de la culture [As ori-
gens da cultura], Fayard, Paris, 2004.
4 Robert Muchembled, La Violence au village (XVe-
-XVIIe siècle) [A violência no campo (do século XV
ao XVII)], Tournai, Brepols, 1989.
5 Amaury Chauou, Le Roi Arthur [O rei Arthur],
Seuil, 2009.
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 27

NA COSTA DO MARFIM, A PRECARIEDADE OU O EXÍLIO

A miséria do futebol africano


Das 32 seleções que disputam a Copa na Rússia, apenas Nigéria e Senegal representam a África subsaariana.
O continente não carece de jogadores excepcionais, mas estes são desejados pelos países ricos. Campeões africanos
em 2015 e classificados para as últimas três edições do mundial, os marfinenses assistem a esta Copa pela TV.
No dia a dia, seus clubes profissionais apenas sobrevivem
POR DAVID GARCIA*, ENVIADO ESPECIAL

m Koumassi, comuna a sudeste na de milhões de jovens africanos e a bre o time. Um jogador contraiu malária Footballeurs Ivoiriens (AFI)], os

E de Abidjã, o pátio da escola mu-


nicipal se transforma em campo
de treinamento durante as férias
escolares. Nessa manhã de abril, os
aprendizes de futebol da “academia”
dureza da divisão do trabalho no plane-
ta do futebol. Apesar de uma sucessão
de experiências dolorosas em vários
clubes, Justin S., de 27 anos, ainda espe-
ra calçar novamente as chuteiras.
e um jovem goleiro de 21 anos morreu
no hospital em consequência de um
choque nos treinos. Foi demais para
Justin S. e quatro de seus companheiros
de equipe, que decidiram deixar o clu-
“maiores” salários variam de 450 a 600
euros. A remuneração média do joga-
dor de futebol local estaria na faixa de
230 a 300 euros, ou seja, três vezes o sa-
lário mínimo, em um país que reto-
Métro Star chutam a bola, sob um ca- Aos 17 anos, em 2007, ele assinou be durante a temporada. Melhor o de- mou o crescimento (8% ao ano desde
lor sufocante. Cofundador dessa aca- seu primeiro contrato profissional. semprego do que a superexploração. 2015). “Como você quer que, no final
demia semelhante a centenas na capi- Seu pagamento mensal de 76 euros de uma carreira, curta por definição,
tal econômica da Costa do Marfim, era inferior ao salário mínimo da Cos- um jogador de futebol possa tirar pro-
Aristide B.1 treina equipes de jovens. ta do Marfim (91,50 euros). O bônus de veito de suas economias e comprar
Esse ex-jogador de futebol profissional rendimento de 229 euros previsto no “Alguns jovens se uma casa?”, observa Cyrille Domo-
aponta seu melhor atleta. De camisa e contrato nunca foi honrado. “A presi- queixam de não serem raud, presidente da AFI. O ex-goleiro
short vermelhos, um garoto de 9 anos denta nos ganhava pelos sentimentos: da Inter de Milão nos recebe na sede
dá um passo adiante. “Eu quero jogar ‘Eu sou sua mãe, sua mãe não tem di- pagos, mas eles nem da organização, que fica em Cocody,
na Europa”, diz, seguro de si. Ele está nheiro’. Caíamos na armadilha”, con- sequer têm sua cópia do uma comuna rica ao norte de Abidjã.
ciente dos riscos de tal aventura? A es- ta. Depois de um teste fracassado em contrato. Impossível Capitão da seleção marfinense, Do-
trela em ascensão do Métro Star con- um clube da Tunísia em janeiro de tomar uma decisão sem moraud jogou na França, no Olympique
corda com a cabeça. 2008, ele tentou a sorte na segunda di- de Marselha e no Mônaco, depois no Es-
Pagamentos atrasados, bichos não visão da Costa do Marfim. O começo haver um contrato” panyol, de Barcelona. Os outros mem-
pagos, lesões e cuidados hospitalares do inferno. “Eu recebia pouco mais de bros fundadores da associação também
não assumidos: esse é o dia a dia dos 15 euros por mês, quando os operários fizeram grandes carreiras na Europa.
jogadores africanos. Em oposição aos ganhavam 5 euros por dia”, desabafa. Aos 21 anos, seu colega Samuel K. Ícone do futebol marfinense, adorado
poucos privilegiados que vendem seu Para encorajar os atletas a batalhar também já experimentou os tormen- no país, Didier Drogba venceu a Liga
talento a preço de ouro nos campeo- para subir para a primeira divisão, a tos da vida de jogador profissional de dos Campeões da Europa pelo Chelsea.
natos europeus, eles vivem com fre- gestão do clube acenou com bichos de futebol. Titular na primeira divisão, Outra estrela nacional, Kolo Touré, tam-
quência sem contrato e em condições 30 euros por vitória. A equipe ficou ele se machucou em dezembro de bém jogou na Inglaterra, no Arsenal, no
de trabalho deploráveis. dois meses sem vencer e o salário foi 2016. “A grama sintética do estádio Manchester City e no Liverpool.
Ex-capitão da seleção da Costa do pago com atraso. As condições de mo- Champroux, em Abidjã, onde é dispu- Poucos são os que ousam dar início
Marfim, Yaya Touré ganha cerca de 1 radia também lembravam as piores tada a maioria das partidas do cam- a um processo para fazer valer seus di-
milhão de euros por mês no Manches- oficinas clandestinas. Justin S. lembra peonato, está desgastada e perigosa”, reitos. Por medo de represálias. Vice-
ter City;2 Neymar, a estrela brasileira que os jogadores dormiam direta- testemunha. “Muitos se machucam -presidente da Federação de Futebol
do PSG, mais de 3 milhões...3 Esses jo- mente no chão, usando as mochilas ali.” O presidente do clube concordou da Costa do Marfim [Fédération Ivoi-
gadores pertencem à elite que ganha como travesseiro. em pagar a operação... assim que rece- rienne de Football (FIF)], Sory Diabaté
mais de US$ 720 mil por ano: 2% dos Dez anos depois, esse tipo de con- besse o valor da transferência de outro nega qualquer responsabilidade. “Al-
assalariados do futebol, segundo um dição persiste na Costa do Marfim. Os jogador. Seis meses depois, o paga- guns jovens se queixam de não serem
estudo do Sindicato Mundial de Joga- presidentes de clube concordam com mento ainda não foi feito. A Federação pagos, mas eles nem sequer têm sua
dores (Fifpro) feito em 2016 com 54 isso, do seu jeito. Paternalista, Bernard de Futebol da Costa do Marfim assu- cópia do contrato. Impossível tomar
sindicatos nacionais. A maioria deles Adou, presidente da Associação Espor- miu o acompanhamento médico. Ce- uma decisão sem haver um contrato”,
atua na Europa, nos países do Golfo ou tiva de Indénié [Association Sportive dido para outro clube da primeira di- desvencilha-se o dirigente, que tam-
na China. Em contraste, 21% dos joga- de l’Indénié (ASI)], um clube da Liga 1 visão, ele se machucou novamente em bém é presidente da Liga Profissional
dores recebem menos de US$ 300 por de Abengourou, no leste do país, con- fevereiro de 2018. O presidente pediu a de Futebol. Enquanto Diabaté respon-
mês. Entre esses profissionais pobres, clama os jogadores lesados a fechar os ele que ainda assim jogasse a partida de às nossas perguntas em seu escritó-
muitos trabalham para os clubes afri- olhos: “Mesmo em caso de condições seguinte, três dias depois. O jogador rio, um funcionário da federação filma
canos, que pagam os salários mais precárias e de não pagamento de salá- recusou. O pagamento de seu salário a entrevista. Outro assiste à conversa.
baixos. E se, em termos globais, 41% rios, os jogadores devem jogar. Um sa- foi suspenso. “Já faz mais de um mês “Essa comissão não é independente
dos jogadores questionados citam re- lário não pago a gente recupera, mas que não sou mais pago; os presidentes nem paritária, como recomendado
munerações diferenciadas durante as uma partida, não”, continua Adou. Na dos clubes da Costa do Marfim são to- pela Fifpro”, objeta Domoraud: os jo-
duas últimas temporadas, na África verdade, salários e bichos não pagos dos iguais”, diz enraivecido. Ele não é gadores da AFI não têm assento ali, o
essa proporção chega a 55%. O conti- nem sempre “são recuperados”. o único a sofrer tal tratamento. que alimenta uma suspeita de dese-
nente é de longe o mais precário para Com a paciência esgotada, Justin S. “Três meses sem receber na Liga 1 é quilíbrio em favor dos empregadores.
os jogadores: 15% não têm contrato, e seus companheiros de equipe termi- comum”, denuncia Aristide B. “Às ve- Os presidentes de clube não elegem os
contra 3% na Europa. naram por boicotar os treinos em 2008- zes, o pagamento do salário básico é membros do comitê executivo da fede-
O testemunho de Aristide B. e de três 2009. Em uma carta aos dirigentes, os condicionado à obtenção de uma ou ração marfinense?
de seus amigos jogadores (ver boxe), ori- jogadores pediram colchões e ventila- mais vitórias consecutivas.” Segundo Na Costa do Marfim, a sobrevivên-
ginários como ele de Koumassi, ilus- dores. Eles foram atendidos, mas as ca- a Associação dos Jogadores de Futebol cia dos clubes profissionais depende
tram a lacuna entre os sonhos de fortu- lamidades continuaram a se abater so- da Costa do Marfim [Association des de financiamento federal. Todo clube
28 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

por seu colaborador. Esse empresário A maioria dos clubes marfinenses


dirige a filial marfinense do grupo GEA, não tem sede. Na falta de escritórios,
empresa francesa especializada na ins- os dirigentes recebem seus parceiros
talação de cabines de pedágio. Ele nos de trabalho em casa ou em bares de
recebe na sala de sua luxuosa villa em hotéis. “Na África subsaariana, o pro-
Abidjã. Adou assumiu o clube em 2014 e fissionalismo não é desenvolvido, tan-
herdou uma equipe cujos jogadores re- to em termos de infraestrutura quanto
cebiam uma miséria: cerca de 90 euros, de organização”, resume Stéphane
o salário mínimo. O empresário au- Burchkalter, secretário-geral da divi-
mentou os salários e formou um time são africana da Fifpro.
competitivo. Os resultados esportivos No entanto, do ponto de vista geral,
se seguiram. “Este ano, os salários estão tem-se por certo que o clube mais ba-
sendo pagos regularmente. Cada vez dalado da Costa do Marfim é uma ex-
© Reuters / Luc Gnago

mais”, assinala Abdoulaye Diabaté, com ceção. O Asec Mimosas é por unani-
uma ponta de malícia. midade considerado a única entidade
Impulsionado por grandes ambi- de futebol verdadeiramente profissio-
ções, Adou não se contenta em traba- nal. Como o Africa, a associação es-
lhar para o progresso esportivo de seu portiva dos empregados do comércio
clube. Em dezembro de 2016, ele foi se beneficiou de altos apoios. Irmão do
Remi Bamba marca um gol durante partida de futebol nas ruas de Abidjã eleito deputado da circunscrição de atual presidente, Georges Ouegnin era
Abengourou. “O clube contribuiu com o braço direito do presidente Hou-
algo em torno de 30% a 40% para mi- phouet. Diretor do Protocolo da Presi-
recebe a mesma cota, fixada em 114 go, diretor-geral das filiais togolesa e nha eleição”, diz o presidente da ASI as- dência da República, era considerado
mil euros por ano. Esse igualitarismo beninense da Snedai, concessionária sumindo o fato. “Pessoas que não me o número dois do regime. “Isso mostra
não é unânime. Pela voz de seu dire- dos passaportes e vistos biométricos conheciam me viram na TV.” Em mar- que há sempre conexões políticas du-
tor-gerente, Benoît You, o Asec Mimo- em nome desses países. “Tiramos do ço, ele anunciou sua candidatura à pre- vidosas no futebol marfinense”, obser-
sas acusa esse sistema de desmotivar nosso bolso. Eu adianto dinheiro há sidência do Conselho Regional de Indé- va Alexis Vagba. “Sem essas conexões,
clubes dinâmicos e com boas atua- mais de dez anos!”, completa o presi- nié-Djuablin, de que Abengourou é a um clube não consegue se desenvol-
ções. O Asec recomenda um subsídio dente do Stella, entre duas explosões principal cidade. “Apenas os políticos ver.” Em contraste com Simplice Zin-
composto de uma parte fixa, idêntica de riso. A subvenção federal cobre ape- são capazes de dirigir clubes na África”, sou, Roger Ouegnin, presidente do clu-
para todos, e de uma parte variável, in- nas um quarto do orçamento anual e, assegura Adou. “Se amanhã eu me tor- be desde 1989, forneceu a ele os meios
dexada ao grau de organização dos após o rebaixamento do clube para a nar presidente do conselho regional, para se desenvolver a longo prazo. Tor-
clubes. A maioria dos dirigentes e a FIF Liga 2, em 2015, o grupo Orange se re- vou colocar dinheiro para desenvolver nou o Asec um dos clubes mais bem
rejeitam essa possibilidade. tirou. Desde então, nenhum outro pa- o clube. Um empresário não vai inves- estruturados da África subsaariana.
Além das disputas internas, o fute- trocinador assumiu. Seus jogadores tir em um clube que não vai lhe render Com o Sol Béni, sua sede social e
bol marfinense é prejudicado sobretu- também emprestam ao clube... contra nada.” O presidente da ASI pode estar seu complexo esportivo de 10 hectares
do por sua crônica incapacidade de ge- a vontade. “Eu lhes pago com pelo me- seguindo os passos de seu equivalente instalados à beira da lagoa Ébrié, em
rar receita. A afluência média de uma nos um mês e meio de atraso. É preciso do AS Tanda. Líder empresarial e vice- Cocody, o Asec Mimosas possui equi-
partida da primeira divisão é de cerca que eu mesmo tenha recursos, espe- -prefeito da circunscrição de Assuéfry- pamentos que fazem jus à sua reputa-
de mil espectadores. Apenas um con- cialmente pelo fato de a federação pa- -Transua, no nordeste do país, Séverin ção. Dois campos de treinamento, um
fronto atrai multidões: o Asec Mimo- gar a subvenção em várias vezes, ge- Kouabénan Yoboua conquistou dois tí- centro de formação, escritórios admi-
sas contra o Africa Sports. Rivais histó- ralmente com atraso”, justifica ele, que tulos da Liga 1, em 2015 e 2016. nistrativos, um prédio dedicado aos
ricos, esses dois times de Abidjã são os foi jogador do Stella antes de presidir Na Costa do Marfim, a porosidade meios de comunicação do clube e até
mais prestigiados do país. Cinco mil os destinos de seu clube de coração, entre o mundo político e o universo do mesmo um hotel com piscina. Geren-
espectadores assistiram ao seu último desde os 18 anos. futebol é uma tradição antiga. Na dé- te de comunicação, técnico da equipe
confronto. De um montante de 750 eu- Como a maioria de seus colegas, Bi- cada de 1980, Simplice Zinsou gover- dos jovens com menos de 15 anos... e
ros, a receita magra foi dividida igual- togo usa o pagamento de seus jogado- nou o futebol marfinense. O genro do diretor-geral, o francês Benoît You faz
mente entre os dois clubes... Dado o res como uma variável de ajuste orça- chefe de Estado e pai da independên- malabarismos entre as funções. Ele
baixo nível de exposição, os patrocina- mentário e ressalta seu desinteresse e cia, Félix Houphouët Boigny, presiden- nos guia por esse lugar sem equiva-
dores não têm interesse em colocar seu sua experiência de empreendedor, te do Africa Sports, ignorava os proble- lente no país.
logotipo nas camisetas dos jogadores. prova de seriedade e de profissionalis- mas de fluxo de caixa. “Simplice Entramos em uma sala de aula da
Desde 2016, o Canal+ paga 2,3 mi- mo, segundo ele. Menos legítimos e Zinsou tinha presença em todos os lu- academia. Com idade entre 13 e 17
lhões de euros anualmente à Federa- mais interessados, alguns dirigentes gares”, lembra com saudade Alexis Va- anos, uma dúzia de estudantes faz um
ção Marfinense para transmitir os jo- puxam para baixo o futebol marfinen- gba, atual presidente do Africa. “O clu- curso sobre centros de saúde e auto-
gos da primeira divisão. Esta se recusa se. “Se houvesse um policiamento fi- be tinha os meios para segurar medicação. “Fabrice, quantos vocês
a divulgar esse montante, que nos foi nanceiro, como na França [onde a Di- jogadores tentados por uma carreira eram na classe antes de entrar na aca-
confirmado por vários dirigentes de reção Nacional de Controle de Gestão no exterior.” O ex-dirigente do clube demia?”, pergunta You. A resposta da
clubes e que parece irrisório, enquanto supervisiona as contas dos clubes pro- chegava a buscar talentos em outros criança: “45”. Outra: “70”. As classes da
a Liga Profissional Francesa deve rece- fissionais], mais da metade dos clubes países africanos. Fiel ao Africa por Mimosifcom são menos lotadas do
ber 1,153 bilhão de euros em direitos de seria rebaixada”, diz. quarenta anos, Vagba conheceu os que as da Educação Nacional da Costa
retransmissão por temporada a partir Agente de jogadores influente, Ab- tempos áureos, seguidos de uma relati- do Marfim. Entre os estudantes, dois
de 2020. “Graças ao contrato com o Ca- doulaye Diabaté confirma esse diag- va decadência. “Empreendedor de su- voarão para a Europa no dia seguinte,
nal+, a federação conseguiu aumentar nóstico. “Alguns clubes só vivem da cesso, Simplice Zinsou não tornou o indo para a França e a Bélgica, onde
o subsídio para os clubes em 25%”, ar- subvenção. Eles não têm nenhuma clube permanente. O Africa nunca teve competirão em torneios juvenis.
gumenta seu vice-presidente, Diabaté. ideia de como crescer, seus dirigentes um patrimônio, nem sequer possui um A melhor escola do país capacita 45
Não é certo que isso seja suficiente. não são empresários”, lamenta ele, campo para treinar!”, afirma desolado. futuros jogadores profissionais, com
Um exemplo é o Stella Club, uma que é também gerente-geral da ASI. O segundo maior clube da Costa do idade entre 12 e 18 anos. Escolhidos a
equipe emblemática da comuna de- “Empreendedorismo” seria um remé- Marfim aluga o gramado em que seus dedo, esses jovens são geralmente dos
serdada de Adjamé, ao norte de Abidjã. dio para o subdesenvolvimento do fu- jogadores se aperfeiçoam... Seu centro bairros pobres da capital. O orçamen-
“Todo ano faltam pouco mais de 90 tebol marfinense? de treinamento é “ambulante”. Um to anual de 300 mil euros é totalmente
mil euros para pagarmos nossas des- Presidente da ASI, Bernard Adou pa- ônibus pega os jovens jogadores de fornecido pelo grupo agroindustrial
pesas”, expõe o irreverente Salif Bito- rece corresponder ao perfil delineado manhã e os leva para casa à noite. Sifca, o maior empregador da Costa do
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Marfim, com 30 mil empregados. O biu as cotas de jogadores de futebol


Asec oferece aos seus jogadores rendi- estrangeiros autorizados a jogar em
PROLETÁRIOS DA BOLA
mentos que variam de 500 a 800 euros uma equipe profissional da União Eu-
por mês. Valor irrisório em compara- ropeia. Assinado em 23 de junho de
ção com o que poderiam ganhar na
Europa, Ásia, norte da África ou África
2000, o Acordo de Cotonou estendeu
essa disposição aos cidadãos africa-
F ormado em Yaundé (Camarões),
sua cidade natal, Anthony B. é um
trabalhador da bola. Filho de um agricul-
mento das indenizações de formação
para os clubes formadores (somas úteis
para o desenvolvimento do futebol ama-
do Sul, essas quantias representam nos. Desejados pelo Eldorado euro- tor, esse jovem de 23 anos já circulou dor e profissional na África). “As indeni-
três vezes os salários oferecidos em peu, os futebolistas do continente ne- por toda a África do futebol. Em 2002, zações de formação ou de solidarieda-
outros clubes marfinenses. As receitas gro emigraram então em massa e, após uma difícil primeira experiência na de não chegam aos clubes formadores,
vêm dos anunciantes, mas também – a desde os 18 anos, como exige a Fifa. “A segunda divisão de Camarões – “zero porque as federações nacionais não
metade – da transferência de jogado- extensão do acordo Bosman transfor- de salário” –, ele emigrou para a Guiné são honestas”, denuncia esse que tam-
res para clubes marfinenses ou estran- mou a África”, observa Sory Diabaté. Equatorial, onde, em busca de uma “vida bém preside a divisão África da Fifpro, o
geiros: “Por falta de meios suficientes “Nossos jovens se identificam com jo- melhor”, assinou com um clube da pri- Sindicato Mundial dos Jogadores. Coin-
meira divisão. Seu agente roubou seu cidentemente, no hotel onde o encon-
para segurar nossos talentos, somos gadores que embolsam milhões de
bônus de rendimento. Ele continuou a tramos, o palácio desenrolou naquele
obrigados a vendê-los. O clube ganha euros. Eles querem sair, e cada vez carreira na Nigéria, onde foi pago corre- dia o tapete vermelho para... George
um pouco de dinheiro, mas isso em- mais cedo.” Custe o que custar.4 Entre tamente (mil euros mensais). Mas se Weah, o novo presidente da Libéria,
pobrece o espetáculo”, admite You. os melhores, muitos optam pela dupla machucou. Convidado a sair, juntou-se a eleito o melhor jogador de futebol do
Vinte anos atrás, o espetáculo esta- nacionalidade, a fim de jogar em uma um clube senegalês, ganhando... 45 eu- mundo em 1995, no momento em uma
va presente. No andar da direção, uma equipe nacional europeia. Assim, du- ros por mês. Aguentou trinta dias. visita de estado à Costa do Marfim.
galeria de fotos de ex-jogadores faz re- rante a Eurocopa de 2016, quarenta jo- “Cheio de raiva”, acabou desembarcan- Direitos de TV, técnicas de marketing,
viver a década gloriosa do clube. Nos gadores de origem africana jogaram do na Costa do Marfim, onde um treina- patrocínio de empresas... Os países do
anos 1990, os melhores jogadores de em um time europeu.5 dor lhe exigiu uma parte de seu bônus. norte da África assumiram uma liderança
futebol da Costa do Marfim jogavam “Os clubes europeus compram a Fim da odisseia. Provisoriamente? Sem- considerável sobre seus vizinhos do sul,
no Asec e formavam a espinha dorsal preço baixo jogadores africanos de 18, pre no ataque, Anthony “procurou paí- como evidenciado pela classificação do
ses com condições favoráveis para ser Egito, Tunísia e Marrocos para a Copa do
da seleção que conseguiu se classificar 19 ou 20 anos, para obter lucro na re-
bem acolhido”. Enquanto isso, ele trei- Mundo de 2018. “Próximos da Europa do
três vezes para a Copa do Mundo (em venda”, assinala Benoît You. Aliás, nava com outros jogadores de futebol ponto de vista geográfico, assim como
2006, 2010 e 2014) e ganhou a Copa muitas vezes eles se recusam a pagar no destino maltratado de Koumassi, co- em termos de funcionamento, seus clu-
Africana de Nações em 2015. Bakary as indenizações de formação para os muna a sudeste de Abidjã. bes têm recursos muito superiores aos
Koné foi um deles. Esse ex-atacante do clubes de origem, como mostra o in- O destino favorito dos jogadores de nossos”, reconhece Sory Diabaté, presi-
Olympique de Marselha entre 2008 e fortúnio do Aigles Verts de Kinshasa futebol africanos fica mais ao norte. dente da Liga Profissional de Futebol da
2010 cresceu em Williamsville, um (República Democrática do Congo), “Como lhes oferecem 600 euros por Costa do Marfim. Consequência feliz: os
bairro popular no norte de Abidjã. que não conseguiu obter do clube bel- mês, eles estão prontos para ir para jogadores locais não são obrigados a ar-
Descoberto por olheiros do Asec, ele ga Anderlecht o custo de formação do qualquer clube, apesar de todos os ris- riscar a pele em uma embarcação clan-
integrou a primeira turma da acade- jogador Junior Kabananga. “Se a do- cos, financeiros ou físicos, mesmo que destina. Eles ficam no norte da África e
mia aos 13 anos de idade, em 1994. minação colonial não pode ser res- tenham de mentir a idade ou cruzar o conseguem ganhar a vida. O mesmo
Mar Mediterrâneo numa jangada”, diz o ocorre na África do Sul, onde os melhores
“Aos 17 anos, eu sonhava com uma ponsabilizada por todos os males, é
jornalista Barthélemy Gaillard, coautor jogadores ganham cerca de 9 mil euros
carreira para poder ajudar minha fa- difícil ignorar seu impacto nos termos de um livro sobre os jogadores migran- por mês, relata Thulaganyo Gaoshubel-
mília. Isso foi o que todos os frequen- de troca”, diz Jérôme Champagne, ex- tes egressos da África.1 Segundo o Ob- we, presidente da associação de jogado-
tadores da academia fizeram”, diz Ba- -diretor de relações internacionais da servatório de Futebol do Centro Interna- res de futebol sul-africanos.
ky em voz baixa. Depois de quatro Fifa de 2007 a 2010. “Como os minerais cional para o Estudo do Esporte [Centre A mil milhas de distância do mundo
temporadas no Asec, ele jogou um ano e o petróleo, os jogadores de futebol International d’Étude sur le Sport (Cies)], chamativo do foot business, Luc La-
no Catar, um prelúdio para uma gran- são extraídos de seus países de origem, os africanos representam 8% do efetivo gouche, professor de profissão, treina
de carreira no campeonato francês. explorados e valorizados pelos países dos clubes profissionais europeus. voluntariamente os Black Stars de Ki-
Tendo voltado ao seu clube de for- ricos, especialmente os europeus.” Mesmo que não consigam realizar o bera, no Quênia. Essa modesta equipe
mação em 2016, o jogador agora traba- Desanimado, o presidente do Afri- sonho de se tornar um jogador de fute- de segunda divisão é o orgulho dos mo-
lha como gerente administrativo e ca Sports está prestes a passar o bas- bol, “apesar da desilusão, é uma alegria radores da maior favela de Nairóbi. “O
ter escapado da miséria e viver na Euro- projeto é mais social que esportivo”, pro-
lembra a era de ouro de seu começo. tão. Com voz baixa, no hotel onde nos
pa”, assinala Jean-Claude M’Bvoumin, clama com orgulho o diretor de espor-
Os torcedores do Asec e do Africa dor- encontramos, Alexis Vagba confiden- ex-profissional camaronês que preside tes do clube. “Com o apoio de nossos
miam em frente ao estádio Houphouet cia um segredo: “O clube não tem o Foot Solidaire, uma associação de patrocinadores, ajudamos os jogadores
Boigny, em Abidjã, para garantir o lu- meios de progredir. Eu corro por todos apoio aos imigrantes da bola. Seu com- a aprender um ofício. Mesmo em uma
gar! Esse tempo passou. A banalização os lugares para fazer como o Asec. O patriota Geremi Njitap, ex-jogador do favela, o futebol pode ser uma alavanca
do futebol na televisão mudou a rela- Africa está sendo cedido para um in- Real Madrid, hoje presidente da Asso- para a inserção.” Seria possível haver
ção dos torcedores com seu time favo- vestidor belga”. O comprador em ques- ciação de Jogadores de Futebol Cama- um outro futebol na África? (DG)
rito. “O torcedor do Asec atua como tão está justamente negociando com roneses [Association des footballeurs
camerounais], luta contra os agentes 1 Barthélémy Gaillard e Christophe Gleizes,
consumidor de um espetáculo espor- um de seus colaboradores, duas mesas Magique système. L’esclavage moderne des
tivo. Ele compara os produtos. De um adiante... Depois dos jogadores, os clu- apressados em vender seus jogadores footballeurs africains [Sistema mágico. A es-
lado, a Liga dos Campeões da Europa bes? Decididamente, o futebol marfi- na Europa a qualquer preço e com o ris- cravidão moderna dos futebolistas africanos],
co de criar um impasse sobre o paga- Marabout, 2018.
na televisão, com suas estrelas inter- nense desperta muito desejo.
nacionais. De outro, Asec contra Bas- Solidamente estabelecido na Áfri-
sam no estádio, um jogo medíocre jo- ca, como o grupo Bolloré, sua matriz, o
gado em um campo de má qualidade, Canal+ faz parte de uma estratégia pa- para tornar mais atraente o “produto
1 O nome dos jogadores de futebol de Koumassi foi
a uma temperatura de 40 graus. Sua ra apoiar os clubes de futebol locais. Liga 1” e atrair um público jovem e alterado a pedido deles.
escolha é feita rapidamente”, resume “O Canal+ forneceu à Liga 1 francesa a moderno. Pelo mesmo preço, entrete- 2 Afrikfoot, 31 dez. 2017.
de forma abrupta You. visibilidade e os meios financeiros pa- nimento, dança e concertos vão ani- 3 L’Équipe, 24 set. 2017.
4 Leia também Johann Harscoët: “Tu seras Pelé, Ma-
O campeonato da primeira divisão ra se desenvolver. O campeonato da mar regularmente o antes e o depois radona, Zidane... ou rien” [Você será Pelé, Marado-
foi criado em 1960, três anos após a Costa do Marfim pode ser profissiona- da partida. Isso colocará fim ao êxodo? na, Zidane... ou não vai ser nada], Le Monde Diplo-
primeira edição da Copa Africana de lizado no mesmo modelo”, quer acre- De acordo com um estudo do Interna- matique, jun. 2006.
5 “Euro 2016: 40 joueurs d’origine africaine” [Euro
Nações. Depois de décadas de pro- ditar o diretor de “produção esportiva” tional Football Observatory, 173 joga- 2016: quarenta jogadores de origem africana],
gresso relativo, o Tribunal Europeu de da rede na Costa do Marfim. Tendo dores marfinenses escolheram o exílio Football 365, 9 jun. 2016.
Justiça deu um golpe fatal na ascensão rompido com as técnicas de comercia- em 2018.6 6 “Les footballeurs expatriés dans le monde: étude
globale 2018” [Futebolistas Expatriados no Mun-
do futebol africano. Em 15 de dezem- lização, o volúvel Eddy Rabin quer do: Estudo Global 2018], Centro Internacional
bro de 1995, o acórdão Bosman proi- transformar em eventos as partidas *David Garcia é jornalista. para o Estudo do Esporte (Cies), maio 2018.
30 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

ECOSSOCIALISMO, UMA IDEIA QUE VEM DE LONGE

Marx e a exploração da natureza


Para alguns, a crise ecológica invalidaria as análises de Karl Marx, acusado de ter negligenciado a questão ambiental.
O produtivismo desenfreado dos regimes que reclamam suas ideias pareceu reforçar essa crítica. Outros trabalhos sugerem,
pelo contrário, que socialismo e ecologia constituem as duas abas de um mesmo projeto
POR JOHN BELLAMY FOSTER*

© Flavia Bomfim
os últimos anos, a crescente in- blema do uso dos recursos escassos”, o ladas e, em 1847, 220 mil. Durante esse nutrientes e da incapacidade de garan-

N fluência das questões ambien-


tais se manifestou sobretudo
pela releitura, por meio do pris-
ma da ecologia, de muitos pensadores,
de Platão a Mahatma Gandhi. Mas, de
que significava que era inútil o socia-
lismo ter qualquer “consciência ecoló-
gica”.3 Essas críticas se justificam?
Das décadas de 1830 a 1870, a dimi-
nuição da fertilidade do solo pela perda
período, os agricultores reviraram os
campos de batalha napoleônicos co-
mo os de Waterloo e Austerlitz numa
busca desesperada de ossos para espa-
lhar em suas áreas de cultivo.
tir sua regeneração. Marx concluiu
suas duas principais análises da agri-
cultura capitalista explicando de que
maneira a indústria e a agricultura em
grande escala se combinavam para
todos, foi sem dúvida Karl Marx quem de seus nutrientes constituiu a princi- [Interessado nos Estados Unidos, o empobrecer o solo e os trabalhadores.
deu origem à literatura mais abundan- pal preocupação ecológica da socieda- químico alemão] Justus von Liebig ob- O essencial da crítica daí resultante é
te e mais polêmica. Anthony Giddens de capitalista, tanto na Europa como servou que poderia haver centenas ou resumido numa passagem situada no
afirmou que Marx, embora tenha ofe- na América do Norte. A preocupação mesmo milhares de quilômetros entre final da “gênese da renda fundiária ca-
recido provas de uma sensibilidade causada por esse problema não pode os centros de produção de cereais e pitalista”, no terceiro livro de O capital:
ecológica particularmente desenvol- ser comparada àquela provocada pela seus mercados. Os elementos constitu- “A grande propriedade fundiária reduz
vida em seus primeiros escritos, ado- crescente poluição das cidades, pelo tivos do húmus eram, portanto, envia- a população agrícola a um mínimo, a
tou depois uma “atitude de Prometeu”, desmatamento de continentes inteiros dos para longe de seu local de origem, uma cifra que cai constantemente
de superação em relação à natureza.1 e pelos medos malthusianos da super- tornando mais difícil a reprodução da diante de uma população industrial,
Da mesma forma, Michael Redclift no- população. Nas décadas de 1820 e 1830, fertilidade do solo. concentrada nas grandes cidades, e
ta que, para ele, o meio ambiente tinha na Grã-Bretanha, e logo depois nas ou- que cresce sem cessar; ela cria assim
por função “tornar as coisas possíveis, tras economias capitalistas em expan- EMPESTEAR O TÂMISA condições que causam um hiato irre-
mas todo valor resultava da força de são da Europa e da América do Norte, a Longe de se mostrar cego em rela- mediável no complexo equilíbrio do
trabalho”.2 Finalmente, segundo Alec preocupação geral com o esgotamento ção à ecologia, Marx, influenciado pe- metabolismo social composto pelas
Nove, Marx acreditava que “o proble- do solo levou a um aumento fenomenal los trabalhos de Liebig do final da dé- leis naturais da vida; segue-se um des-
ma da produção havia sido ‘resolvido’ da demanda por fertilizantes. O pri- cada de 1850 e início da de 1860, perdício das forças do solo, desperdício
pelo capitalismo e que a futura socie- meiro barco carregado de guano pe- desenvolveu, a respeito da terra, uma que o comércio transfere para bem
dade dos produtores associados não ruano aportou em Liverpool em 1835; crítica sistemática da “exploração” ca- além das fronteiras do país em ques-
teria, portanto, de levar a sério o pro- em 1841, foram importadas 1.700 tone- pitalista, no sentido do roubo de seus tão. [...] A grande indústria e a grande
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 31

agricultura explorada industrialmente o fertilizante proveniente de 4,5 mi- contemporânea de desenvolvimento tureza. Como no caso de qualquer
agem na mesma direção. Se, na ori- lhões de homens do que usá-lo para sustentável, cuja definição mais famo- mercadoria no capitalismo, o valor do
gem, elas se distinguem porque a pri- empestear, a um enorme custo, o Tâ- sa foi dada pelo relatório Brundtland:7 trigo decorre do trabalho necessário
meira devasta e arruína mais a força de misa”. Segundo ele, os “resíduos resul- “Um desenvolvimento que satisfaça as para produzi-lo. Mas, para ele, isso
trabalho, portanto a força natural do tantes das trocas fisiológicas naturais necessidades do presente sem com- apenas refletia a concepção estreita e
homem, e a outra, mais diretamente, a do homem” deveriam, assim como os prometer a capacidade das gerações limitada da riqueza inerente às rela-
força natural da terra, elas acabam, ao dejetos da produção industrial e do futuras de satisfazer suas próprias ne- ções de mercado capitalistas, em um
se desenvolverem, por se dar as mãos: consumo, ser introduzidos no ciclo da cessidades”.8 Para ele, é necessário que sistema construído em torno do valor
o sistema industrial no campo termina produção, dentro de um ciclo metabó- a terra seja “consciente e racionalmen- de troca. A verdadeira riqueza consistia
também por debilitar os trabalhado- lico completo.5 O antagonismo entre te tratada como propriedade perpétua em valores de uso – que caracterizam a
res, e a indústria e o comércio, por seu cidade e campo e a ruptura metabólica da coletividade, condição inalienável produção em geral, para além de sua
lado, fornecem à agricultura os meios a que ele dava origem eram igualmente da existência e da reprodução das su- forma capitalista. Portanto, a natureza,
para explorar a terra”. evidentes em âmbito mundial: colô- cessivas gerações”. Assim, em uma que contribuía para a produção de va-
A chave de qualquer abordagem nias inteiras tinham suas terras, seus passagem famosa de O capital, ele es- lores de uso, era, tal como o trabalho,
teórica de Marx nessa área é o conceito recursos e seu solo roubados para creveu que, “do ponto de vista de uma também uma fonte de riqueza. Em sua
de metabolismo (Stoffwechsel) socioe- apoiar a industrialização dos países organização econômica superior da Crítica do programa de Gotha, Marx re-
cológico, que está enraizado em sua colonizadores. “Por um século e meio”, sociedade, o direito de propriedade de preende os socialistas que atribuem o
compreensão do processo de trabalho. escreveu Marx, “a Inglaterra indireta- alguns indivíduos sobre partes do glo- que ele chama de um “poder de criação
Em sua definição genérica do processo mente exportou o solo irlandês, sem bo parecerá tão absurdo como o direito sobrenatural” ao trabalho como a úni-
de trabalho (em oposição a suas mani- mesmo fornecer àqueles que o culti- de propriedade de um indivíduo sobre ca fonte de riqueza, sem levar em conta
festações históricas específicas), Marx vam os meios de substituir seus seu próximo”. o papel da natureza.
utilizou o conceito de metabolismo componentes.”6 Por muitas vezes, Marx é criticado
para descrever a relação do ser huma- As análises de Marx sobre a agri- também por ter se mostrado cego ao *John Bellamy Foster é redator-chefe da
no com a natureza por meio do traba- cultura capitalista e a necessidade de papel da natureza na criação do valor: Monthly Review, Nova York. Este texto foi ex-
lho: “O trabalho é primeiramente um restituir ao solo seus nutrientes (e so- ele teria desenvolvido uma teoria se- traído de Marx écologiste [Marx ecologista],
processo que acontece entre o homem bretudo os dejetos orgânicos das cida- gundo a qual todo valor decorreria do Éditions Amsterdam, 2011.
e a natureza, um processo em que o des) levaram-no, assim, a uma ideia trabalho, sendo a natureza considera-
homem regula e controla seu metabo- mais geral de sustentabilidade ecoló- da um “presente” oferecido ao capital.
lismo com a natureza pela mediação gica – ideia que ele pensou que só po- Mas essa crítica baseia-se numa inter-
de sua própria ação. Ele se apresenta deria ter uma pertinência prática mui- pretação errada. Marx não inventou a 1 Anthony Giddens, A Contemporary Critique of
Historical Materialism [Uma crítica contemporânea
diante da matéria natural como uma to limitada em uma sociedade ideia de que a terra seria um “presen- do materialismo histórico], University of California
potência natural em si. Ele põe em mo- capitalista, por definição incapaz de te” da natureza para o capital. Foram Press, Berkeley, 1981.
vimento as forças naturais de sua pes- tal ação racional e coerente, mas que Thomas Malthus e David Ricardo que 2 Michael Redclift, Development and the Environ-
mental Crisis: Red or Green Alternatives? [Desen-
soa física, de seus braços e pernas, de pelo contrário seria essencial numa avançaram esse conceito, uma das te- volvimento e crise ambiental: alternativas verme-
sua cabeça e mãos, para apropriar-se sociedade futura de produtores asso- ses centrais de suas obras econômicas. lhas ou verdes?], Methuen, Nova York, 1984.
da matéria natural de uma forma útil ciados. “O fato, para a cultura dos di- Marx estava ciente das contradições 3 Alec Nove, “Socialism” [Socialismo]. In: John Eat-
well, Murray Milgate e Peter Newman (orgs.), The
para sua própria vida. Mas, agindo so- versos produtos do solo, de depender socioecológicas inerentes a tais con- New Palgrave Dictionary of Economics [Novo di-
bre a natureza exterior e modificando- das flutuações dos preços do mercado, cepções e, em seu Manuscrito econô- cionário de economia Palgrave], v.4, Stockton,
-a por meio desse movimento, ele alte- que causam uma mudança perpétua mico de 1861-1863, criticou Malthus Nova York, 1987.
4 Karl Marx, Le Capital, livro 1, Éditions Sociales,
ra também sua própria natureza. [...] O dessas culturas, e o próprio espírito da por cair de forma recorrente na ideia Paris, 1978.
processo de trabalho [...] é a condição produção capitalista, focado no lucro “fisiocrata” segundo a qual o ambiente 5 Karl Marx, Le Capital, livro 3, Éditions Sociales,
natural eterna da vida dos homens”.4 mais imediato, estão em contradição é “um presente da natureza para o ho- 1978.
6 Karl Marx, Le Capital, livro 1, Éditions Sociales,
Para ele, assim como para Liebig, a com a agricultura, que deve conduzir mem”, sem levar em consideração a 1978.
incapacidade de restituir ao solo seus sua produção tendo em conta o con- maneira como isso estava ligado ao 7 Nosso Futuro Comum, relatório elaborado em
nutrientes encontrava sua contrapar- junto das condições de existência per- conjunto específico de relações sociais 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambien-
te e Desenvolvimento da Organização das Nações
tida na poluição das cidades e na irra- manentes das gerações humanas que instituído pelo capital. Unidas, sob a liderança do primeiro-ministro norue-
cionalidade dos sistemas de esgoto se sucedem.” Claro, Marx concordava com a opi- guês, Gro Harlem Brundtland [nota do editor].
modernos. Em O capital, ele inclui esta Ao enfatizar a necessidade de pre- nião de economistas liberais que, de 8 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desen-
volvimento (Comissão Brundtland), Our Common
nota: “Em Londres, por exemplo, não servar a terra para “as gerações seguin- acordo com a lei do valor do capitalis- Future [Nosso Futuro Comum], Oxford University
se encontrou nada melhor a fazer com tes”, Marx capturou a essência da ideia mo, nenhum valor é reconhecido à na- Press, Nova York, 1987.
32 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

SOCIEDADE DE CONSUMO

As crianças mimadas
do supermercado
A figura do consumidor livre em uma sociedade de mercado impõe-se com tal força que esquecemos as batalhas que
foram necessárias para seu nascimento. Antes dos liberais incorporarem e colocarem no centro do jogo esse ator informado
e calculista, a noção de sociedade de consumo servia de suporte, nos anos 1960, a uma contestação da ordem econômica
POR LOUIS PINTO*

ruptura com este, essas personalida- do carro ilustraria uma lição univer-
des têm também em comum compe- sal: “O ‘espetáculo do mundo’ se torna
tências filosóficas não ou pouco reco- consumo de espetáculo e espetáculo
© Daniel Kondo

nhecidas pela instituição universitária, do consumo”.2


assim como uma posição de franco-a-
tiradores em relação aos partidos de “UM SUAVE TERROR”
esquerda. Apoiando-se em pensado- A sociedade de consumo (de bens)
res norte-americanos ou na teoria crí- é considerada uma sociedade de espe-
tica alemã, seus trabalhos contribuem táculo (de signos), entregue à sedução
para a fortuna dos temas da alienação, das fantasias mais do que à pressão
da despolitização das massas, da “no- das necessidades. Ela comporta dois
va classe operária”. Para responder aos pilares: um indivíduo “alienado” inde-
desafios de uma sociedade em plena finido, cercado pelas imagens eufóri-
mutação, na qual o proletariado à mo- cas da publicidade e pelas mensagens
da antiga declinaria e tenderia, segun- mais ou menos criptografadas sobre
do eles, a se acomodar com a ordem os bens propostos no mercado, e um
estabelecida, uma revolução intelec- “sistema” que o força a consumir sem-
tual se imporia. O marxismo libertado pre mais. “A civilização neocapitalis-
de seus dogmas, que eles pretendem ta”, escreve André Gorz, “colocou de
encarnar, prefigura a “nova esquerda” pé um aparelho repressivo gigantesco
da década seguinte, aberta ao “movi- [...]. Um terror suave convoca cada in-
mento social” e à “sociedade civil”. divíduo a consumir.”3 Pequenos bur-
A reconversão de alguns desses in- gueses e operários se encontraram to-
telectuais das ciências sociais então mados por uma vertigem de consumo
em pleno crescimento favoreceu a que os fez perder a cabeça e que se
ideia de que vivemos em uma mente elásticas e vagas para se perpe- constituição de um gênero híbrido às chama alienação. Essa visão se choca

A sociedade de consumo é evi-


dente. Basta percorrer as arté-
rias de nossas grandes cidades
para nos extasiarmos ou nos exaspe-
rarmos diante da abundância de bens
tuarem sob formas e contextos dife-
rentes. Para resistir à sua evidência, é
preciso tratar essas palavras não co-
mo espelhos neutros e impessoais de
seu tempo, mas como meios funda-
fronteiras da filosofia, da literatura e
da sociologia: “a hermenêutica1 do co-
tidiano”, na qual se destacam Roland
Barthes (Mythologies), Jean Baudril-
lard (Le Système des objets [O sistema
principalmente com o ceticismo dos
sociólogos de campo.4 Autores de uma
pesquisa de referência, L’Ouvrier de
l’abondance [O operário da abundân-
cia],5 John H. Goldthorpe, David Lock-
expostos e das mensagens que eles mentalmente políticos de tratar a or- dos objetos] e La Société de consomma- wood, Frank Bechhofer e Jennifer Platt
promovem. Dessa constatação, que já dem social e de tomar uma posição tion [A sociedade de consumo]), Guy convidam a manter o senso de medi-
tem mais de meio século, surge uma em relação a ela. Debord (La Société du spectacle [A so- da, ressaltando que uma “máquina de
dupla afirmação. De acordo com a pri- O termo “sociedade de consumo” ciedade do espetáculo]), Henry Lefeb- lavar é apenas uma máquina de lavar”,
meira, os comportamentos da imensa aparece nos anos 1960 como um ins- vre (La vie quotidienne dans le monde mais do que um reservatório de “sig-
maioria da população estariam pro- trumento de crítica social. Confinada moderne [A vida cotidiana no mundo nos” para proletários enlouquecidos
fundamente transformados: tornamo- na primeira metade do século XX na moderno]) e Edgar Morin (L’Esprit du pela busca por status.
-nos “consumidores” em tempo inte- França às cooperativas de comprado- temps [O espírito do tempo]). Esses au- Durante os anos 1960, a crítica li-
gral, insaciáveis, fascinados. Segundo res, às associações domésticas ou às tores propõem exercícios de livre in- vresca da sociedade de consumo não
a outra, nossa sociedade teria se torna- comissões do Plano do Pós-Guerra terpretação que consistem em decifrar realiza junções com os militantes con-
do “unidimensional”, já que só oferece destinadas a ajustar a oferta e a de- significações ocultas em diferentes sumidores, inclusive fracos e pouco
uma única perspectiva, a do consumo. manda, a questão das relações entre áreas da existência ordinária, tais co- numerosos. Maio de 68 favorece a cris-
É bem fácil opor a esse díptico uma fornecedores e clientes individuais vai mo a publicidade, a mídia de massa e, talização desses temas que ampliam
negação: nem todo mundo está satis- tomar uma inflexão radical. Uma ne- ainda mais, o “carro”, carregado de então sua audiência para bem mais do
feito e as desigualdades gritantes de bulosa de intelectuais, entre os quais um poder de sedução quase irresistí- que os círculos intelectuais. No meio
renda se refletem nas grandes dispari- Henri Lefebvre, André Gorz e alguns vel (virilidade, ostentação...). Lefebvre dos anos 1970, diversas associações de
dades de consumo no que diz respeito outros, assumiu o controle do assunto consagra a ele, por exemplo, diversas consumidores transformam a crítica
à habitação, aos eletrodomésticos ou em meados dos anos 1950 e o reformu- páginas exaltadas: “O Automóvel é o da sociedade de consumo em palavra
aos lazeres. Mas esse argumento não lou em uma problemática contestado- Objeto-Rei, a Coisa-Piloto”; “com seus de ordem militante. Para a União Fe-
abala a força das crenças: a sociedade ra. Frequentemente ligados pela expe- feridos e seus mortos, é um resto de deral dos Consumidores (UFC) – Que
de consumo e sua figura específica, o riência da Resistência, do militantismo aventura no cotidiano”; “ele é símbolo choisir [O que escolher], associação
consumidor, são noções suficiente- no Partido Comunista, depois de uma de status social, de prestígio”. O caso criada em 1951, não se trata mais de
JULHO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33

guiar os consumidores em suas esco- pessoas comuns e coloca em destaque um parceiro econômico útil para de- Contestador ou agente econômico
lhas graças a testes comparativos, mas a noção de soberania dos agentes: com nunciar os abusos, mas com uma con- racional? O conflito político sobre o
de informá-los sobre as estratégias das as preferências individuais constituin- dição essencial: que não mexesse no consumidor teve por efeito paradoxal
empresas, a composição dos produtos, do dados primitivos que se refletem funcionamento das empresas e limitas- de se impor como um dado objetivo da
os mecanismos de distribuição e tam- nas compras, seu questionamento só se sua ação à arbitragem entre os bens sociedade de consumo. Tudo se passa
bém de incitá-los a um questionamen- pode expressar um pensamento “tota- propostos no mercado. “No contexto de como se os adversários reconheces-
to dos estilos de vida. A partir de então litário” ou um “dirigismo” arcaico. uma economia liberal fundada na livre sem, para além de seu desacordo, a
vendida nas bancas de jornais, a revis- Enfim, o mundo político se interes- escolha dos consumidores e na liberda- existência de uma nova ordem social
ta Que Choisir vê sua tiragem passar de sa por esses debates cujo eco se encon- de de empreender dos produtores”, ex- fundada sobre a proteção concorren-
35 mil exemplares em 1971 para mais tra amplificado pela imprensa consu- plica em maio de 1976 Christiane Scri- cial e a troca maciça de mercadorias,
de 300 mil em 1974, à medida que sur- merista por uma série de escândalos vener, a primeira titular da Secretaria umas para deplorar, outras para felici-
gem “manchetes” sobre praias poluí- relacionando as águas minerais poluí- de Estado para o Consumo, “uma polí- tar. A noção propõe uma vista sintética
das, mercúrio nas conchas, talco tóxico das (1973), o amianto no vinho (1976), tica do consumo não pode ter como ob- de nossas sociedades centradas em um
etc., e que se afirma uma linha militan- os pneus Kleber-Colombes que explo- jeto impor uma estrutura diferente do atributo julgado essencial, o do consu-
te. Em fevereiro de 1972, um artigo de- dem (1979), o bezerro com hormônios consumo nem ocupar o lugar dos pro- mo, que presumidamente diz respeito
fende a coletivização do eletrodomésti- (1980) etc. Parte da esquerda encontra dutores para conceber os produtos.” a todo mundo: ele substitui o sujeito
co (“Quem se opõe à coletivização de aí uma incitação para estender a con- político que delibera coletivamente as
certo número de bens, à organização testação para fora da fábrica, rumo à DO REBELDE AO EXPERT orientações econômicas e sociais por
dos serviços?). O dossiê de julho de 1975 “vida cotidiana”. Essa linha de crítica Ao longo da construção europeia, a um sujeito econômico que otimiza
apresenta “7 razões para ser ‘publifóbi- generalizada que prevalece de 1968 ideia de uma “ordem pública econô- suas compras. Instrumento de despoli-
co’”, uma das quais afirmando que a pu- até a “virada do rigor” do governo so- mica” garantindo um bem-estar cole- tização, ele anuncia um mundo onde
blicidade “corrompe os meios de comu- cialista em 1983 trata das questões de tivo fundado na concorrência apare- os “antigos” abismos, como as oposi-
nicação de massa” e “se passa por uma equipamentos coletivos, acordos cole- ceu, por uma Disposição de 1967, no ções sociais, dariam lugar a uma nova
verdadeira informação”. “Em toda parte tivos entre associações de consumido- direito francês – cujo velho enquadra- questão: como as sociedades moder-
onde reina a injustiça, o isolamento, o res e empresas, exames de produtos mento civilista e contratual ela iria fis- nas deverão resolver “nossos” proble-
risco, a ‘má informação’, existe matéria dentro dos comitês de empresa... A ar- surar progressivamente em proveito mas de “crianças mimadas”.
para intervenção para o consumidor”, gumentação, inscrita em uma visão de imperativos do mercado.6 A argu-
explica o editorial de novembro de 1977. global e politizada da sociedade, opõe mentação opunha dessa vez um indi- *Louis Pinto é sociólogo. Autor de L’inven-
A partir do momento em que a crí- um indivíduo alienado, condenado a víduo vigilante, que dispunha de ao tion du consommateur. Sur la légitimité du
tica da sociedade de consumo aparece agir e a pensar como o “sistema” deci- menos uma boa vontade informativa, marché [A invenção do consumidor. Sobre a
como um meio de contestar a ordem diu por ele, a um indivíduo revoltado, e um indivíduo ignorante, condenado legitimidade do mercado], Presses Universi-
social, os defensores desta última in- capaz de perceber e agir contra as cau- a uma condição de vítima, fosse por taires de France, Paris, 2018.
vestem no mesmo terreno. O executi- sas e os efeitos recorrentes da aliena- falta de cultura, fosse por vulnerabili-
vo Jean Saint-Geours intitula de Viva a ção, não apenas em matéria de produ- dade para seduções fáceis. O comer-
sociedade de consumo! um “livro de ção e distribuição, mas também de ciante de antigamente, presumida-
contracontestação” publicado em salários e de redistribuição de renda. mente motivado apenas pelo lucro, foi 1 A arte de interpretar.
2 Henri Lefebvre, La Vie quotidienne dans le monde
1971. O filósofo Raymond Ruyer e o À direita, a presidência de Valéry substituído, graças ao direito do con- moderne [A vida cotidiana no mundo moderno],
economista Jean-Jacques Rosa to- Giscard d’Estaing se revelou decisiva. sumidor consagrado pelo Parlamento Gallimard, Paris, 1968.
mam, cada um à sua maneira, a defesa Em 1976, ele criou a Secretaria de Esta- em 1993, por um “profissional”, deten- 3 André Gorz, Stratégie ouvrière et néocapitalisme
[Estratégia operária e neocapitalismo], Seuil, Paris,
da livre escolha do consumidor e cele- do para o Consumo. Tratava-se de com- tor de uma competência da qual ele 1964, retomado em Réforme et révolution [Refor-
bram as virtudes do mercado. Eles de- binar a resposta a uma contestação so- deve fazer um uso ativo e leal. Garan- ma e revolução], Seuil, 1969.
nunciam com insistência a arrogância cial e cultural às exigências do tindo pela informação as condições do 4 Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, “Socio-
logues des mythologies et mythologies de sociolo-
dos pensadores: por que graça intelec- “liberalismo avançado”, que, para se consentimento livre e esclarecido do gues” [Sociólogos das mitologias e mitologias dos
tual lúcida escapariam eles das ilusões ajustar às necessidades de uma econo- consumidor promovido à dignidade sociólogos], Les Temps modernes [Tempos mo-
dos outros? Em nome do que eles pre- mia fundada na concorrência, deveria de indivíduo soberano (prazos de re- dernos], Paris, dez. 1963.
5 Esse livro, publicado em 1972 pela editora Seuil, é
tendem distinguir as necessidades pôr fim a anos de economia “adminis- flexão e de retratação para o compra- a tradução francesa parcial de The Affluent Worker
“verdadeiras” das “falsas”? O pensa- trada”, herança da Libertação, comba- dor, obrigações de consultoria e de in- [Trabalhadores em ascensão], publicado em
mento conservador, explorando as fa- tendo as “rendas” e os “corporativis- formação por parte do vendedor), a 1968.
6 Ler François Denord e Antoine Schwarz, L’Europe
lhas dos adversários, torna-se facil- mos”. Com força adversa, o consumidor sociedade de mercado parece ainda sociale n’aura pas lieu [A Europa social não vai
mente o advogado do bom senso e das se tornaria, por meio das associações, mais legítima. existir], Raisons d’Agir, Paris, 2009.
34 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2018

O MUNDO DOS DERROTADOS

A Goodyear e
seus fantasmas
Eliminar mais de mil postos de trabalho na França
enquanto fatura bilhões de lucro no mundo:
esse foi o método da Goodyear para dobrar os
sindicatos. Após uma longa ocupação da fábrica,
o combate operário chegou ao fim em 2014,
e os primeiros mortos surgiram. Voltar a Amiens
permite medir o custo humano das demissões
POR ALEXIA EYCHENNE*

odo janeiro faz Sabrina Cadoret no de eliminação de 1.143 cargos age ociosidade destruidora, propícia ao tempos da Goodyear.” Entre os irmãos

T mergulhar de novo na dor da-


quele início de 2014, quando seu
marido, Laurent, recebeu a carta
de demissão da Goodyear. Por doze
anos, esse homem de 30 anos fabricou
como uma bomba de efeito retardado.
A antiga seção da Confederação Geral
do Trabalho (CGT) listou quinze suicí-
dios, dos quais vários nos últimos me-
ses. As comunicações das mortes de
crescimento das dependências e dos
problemas conjugais. “Foi isso em par-
te que estragou meu casamento”, ava-
lia Manuel S., de cerca de 40 anos. “Isso
e os anos de combate que travamos.
que trabalhavam com ele, um “caiu no
álcool, mas antes não bebia”. Manuel
não pode deixar de “temer o pior, se a
mulher o abandonar um dia”. “Hoje”,
completa Serge, “quando nos cruza-
pneus na região de Amiens-Nord. Um vários desses operários mencionam Eu trabalhava no fim de semana e pas- mos, dizemos: ‘Acima de tudo, não fa-
ano antes da dispensa, após cinco sua condição de “ex-funcionário da sava a semana diante das barreiras, ça besteira. Se você tem problemas, dê
anos de batalha sindical, a direção do Goodyear”. E, mesmo que as causas de em frente aos policiais. Praticamente uma ligada. Venha tomar um café aqui
grupo tinha anunciado o fechamento um suicídio sejam sempre difíceis de desisti do meu casamento. Ficamos em casa. Não se deixe abater’.”
da fábrica. O choque foi tal que, em 30 esclarecer, o fechamento da fábrica presos lá dentro, não percebemos mais
de março de 2014, Cadoret enforcou-se paira sobre cada um desses dramas. nada, e assim a esposa foi embora.” A AUSÊNCIA DE ACOMPANHAMENTO
na casa de repouso em que estava in- Unidos por anos de mobilizações, Inspeção do Trabalho alertava sobre o Quem estará lá para contar as víti-
ternado para tratar a depressão, ator- os ex-funcionários da fábrica se cru- sofrimento das equipes desde 2013. A mas da onda de choque dos anos que
doado pelos remédios, recluso num zam nos funerais, transmitem uns aos Goodyear garante ter colocado em estão por vir? Quando, quatro anos
quarto escurecido pelas barras de fer- outros à boca pequena os ecos dos prática desde aquele ano um “acom- antes da Goodyear, a fábrica Conti-
ro da janela. mortos: tal “Goodyear” se jogou em- panhamento completo, com apoio nental e Clairoix, no Oise, fechou dei-
“Sua demissão foi o fim de tudo”, re- baixo de um carro, o outro se enforcou psicológico e médico”, sem especificar xando 1.100 pessoas na rua da amar-
lata a viúva, com a voz embargada. no banheiro e foi descoberto pelo fi- quantos funcionários tiveram acesso a gura, Antonio da Costa, delegado da
“Seu trabalho era sagrado, ele não pa- lho, ou acabou morrendo destruído ele. A célula de escuta “parava às 17 ho- Confederação Francesa dos Trabalha-
rava de me dizer que tinha medo de pelo álcool. “Dói o coração ver esses ras, quando na verdade deveria fun- dores Cristãos (CFTC), parou a conta-
não conseguir pagar as contas.” Apesar caras morrerem. É uma facada que lhe cionar 24 horas, sete dias por semana”, gem depois de “catorze suicídios e tre-
da promessa de um contrato com du- dão, mais uma parte de você que se lamenta Jurek, que detalha: “Os que zentos divórcios”. “Como formávamos
ração determinada que deveria come- vai”, sussurra Serge R. Ele era próximo consultavam um psicólogo o faziam um coletivo que se reunia regular-
çar alguns dias depois, Laurent Cado- de Jean-René Brézin, que se matou em fora dali”. mente, era possível seguir os dramas,
ret não achava que poderia encontrar maio de 2017. Quando deu cabo da Os suicídios produzem outros dra- levá-los ao conhecimento do público”,
novamente um trabalho estável. No própria vida, esse quinquagenário ti- mas invisíveis. Como várias viúvas de explica. “Há dois anos, não temos
fim de 2017, a taxa de desemprego de nha as mãos devastadas por uma ex-funcionários da Goodyear, a senho- mais informações. Cada um tem de
Amiens atingia 11,7%. Para além da doença “que lhes causava uma espé- ra Cadoret tinha parado de trabalhar tocar sua vida.”
conjuntura, os “ex-Goodyear” têm a cie de crateras”, descreveu um colega. para criar a filha. Seu marido “ganha- “A história se esquece”, lamenta
impressão de trazer na testa um rótulo Um mal que aqueles que o rodeiam va bem” na fábrica, até “1.800, 1.900 também o psiquiatra Michel Debout.
indelével que agrava ainda mais suas atribuem aos produtos manipulados euros por mês”. Ele tinha orgulho de “Os atores dos conflitos sociais per-
buscas. “Colaram em nós a imagem de na Goodyear. “Como encontrar traba- poder sustentar a família. Hoje, ela vi- dem a ligação e os cuidadores não
vândalos que não querem trabalhar”, lho com mãos como essas?”, indaga ve da renda de solidariedade ativa questionam os pacientes sobre even-
lamenta Sébastien P., de 44 anos, dos Serge. “Ele não dormia mais, não esta- (RSA) e se preocupa ao ver a filha, órfã tuais traumas ligados à perda de um
quais cerca de vinte dedicados à fábri- va mais lá.” Régis Pommier, que se de pai, ser perturbada na escola. emprego. Um estado de depressão po-
ca. “Quando faço entrevistas de em- matou em setembro de 2017, aos 57 “Quando aconteceu, ela estava no en- de, no entanto, ser um ressurgimento
prego, sou sempre dispensado.” Se- anos, era também “esmagado fisica- sino básico e começou a ter dificulda- disso algum tempo depois.” Esse espe-
gundo dados da Goodyear, apenas 15% mente”, conta Reynald Jurek, ex-dele- des. Atualmente está no ensino médio, cialista em suicídio denuncia há cerca
dos cerca de 1.060 funcionários em gado da CGT. “Ele não conseguia mais mas numa classe especial, para tirar o de dez anos o “buraco negro” que
programas de reciclagem tinham con- dormir por causa de dores insuportá- atraso”. Os dois filhos de outro suicida, constitui a ausência de pesquisas so-
seguido um contrato indeterminado veis nas costas.” adolescentes, também são acompa- bre os efeitos do desemprego e das de-
em meados de janeiro de 2018, e 18%, O veneno da depressão não espe- nhados por um psiquiatra. missões sobre a saúde. Sem jamais ser
um contrato de mais de seis meses.1 rou 2014 para contaminar os operá- Os ex-Goodyear temem que o dra- ouvido pelos serviços públicos.
rios. “Uma parte deles tinha perdido o ma continue. Muitos chegam ao fim de
© Adão Iturrusgarai

QUINZE SUICÍDIOS equilíbrio antes do fechamento”, lem- seu período de afastamento para reci- *Alexia Eychenne é jornalista.
Desde o suicídio de Laurent Cado- bra-se Jurek. “Durante dois anos, fize- clagem e de seus direitos de desempre-
ret, a lista dos demitidos da Goodyear ram a gente vir para duas horas de tra- gados, e o mal-estar não passa. “Psico- 1 De acordo com a empresa, dos 730 restantes,
25% não têm “soluções identificadas”, 18% estão
que puseram fim à vida não para de balho por dia. Alguns jogavam cartas logicamente fatigado”, Manuel “não em formação, 10% criaram uma empresa e 15%
crescer, sinal de que a violência do pla- na cantina, traziam bebida...” Uma consegue mais ver a vida como nos se aposentaram.

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