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Angela Davis: Radical e libertária 26/01/21, 15:55

Angela Davis: radical e libertária


2 de junho de 2017

Um ataque terrorista marcou de forma dramática a história da cidade de


Birmingham, no sul dos Estados Unidos. Em 15 de setembro de 1963, a
Igreja Batista da 16th Street, um ponto de encontro de militantes pró-
direitos civis, foi bombardeada por uma conhecida organização
supremacista branca, a Ku Klux Klan. Addie Mae Collins, Cynthia Wesley,
Carole Robertson e Carol Denise McNair, com idades entre 11 e 14 anos,
foram mortas e outras 22 pessoas ficaram feridas. O caso foi considerado
um dos crimes mais chocantes da história estadunidense.

Foi nessa cidade que nasceu, em 26 de janeiro de 1944, a filósofa Angela


Yvonne Davis. Época em que a segregação racial institucionalizada
vigorava a partir de um conjunto de leis conhecidas como Jim Crow, que
restringiu os direitos da população negra no sul do país entre 1876 a
1965. Birmingham, em especial, era considerada a cidade mais segregada
dos Estados Unidos. Mais do que um fato isolado, o atentado à igreja
revelou o clima que reinava no lugar. As quatro meninas mortas eram
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amigas da irmã mais nova de Angela, Fania Davis. Angela é a mais velha
de quatro irmãos de uma família de classe média negra. Sua mãe, Sallye
Davis, participou de organizações do movimento pelos direitos civis e era
uma ativista na comunidade negra local. A trajetória de Sallye não foi uma
exceção; o movimento pelos direitos civis esteve organizado a nível
comunitário por mulheres negras, ainda que as figuras proeminentes
tenham sido masculinas. Fannie Lou Hamer, Ella Baker, Diane Nash,
Amelia Boynton, Rosa Parks, Septima Clark, por exemplo, foram mulheres
fundamentais para a organização e construção do movimento, ainda que
pouco citadas nas narrativas mais usuais sobre o período.

Em 1959, aos 15 anos, Angela ganhou uma bolsa de estudos e mudou-se


para Nova York com a intenção de cursar o Ensino Médio na Elisabeth
Irwin High School, uma escola muito peculiar que abrigava professores de
esquerda marginalizados no sistema público de ensino americano por
suas ideologias políticas. Em 1961, iniciou a graduação em Literatura
Francesa na Universidade Brandeis, em Massachusetts. Durante o
primeiro ano na universidade, recebeu uma nova bolsa de estudos que
possibilitou seu intercâmbio por um ano na Sorbonne.

O seu interesse pela filosofia apareceu nessa época. Angela teve a


oportunidade de conhecer o professor alemão Herbert Marcuse que a
orientou nos estudos paralelamente à sua graduação. Ele se tornaria uma
referência importante para ela e para muitos militantes da New Left
americana. Em 1965, terminou a sua graduação obtendo a qualificação
magna cum laude no exame profissional – o equivalente a um prêmio de
distinção por excelência no desempenho acadêmico. Por meio de outra
bolsa, dessa vez outorgada pelo governo da Alemanha Ocidental, pôde
continuar os estudos em filosofia na Universidade de Frankfurt, onde foi
aluna de Theodor Adorno e Jürgen Habermas. Regressou aos Estados
Unidos em 1967, dessa vez para San Diego, na Califórnia, onde terminaria
a sua pós-graduação sob a orientação de Marcuse.

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As motivações que a trouxeram de volta aos Estados Unidos não foram


acadêmicas, mas políticas. Angela já tinha alguma proximidade com a
militância política em sua infância, por conta de sua mãe e de toda a
movimentação comunitária em torno da questão dos direitos civis. A
experiência de engajamento continua durante a adolescência, em Nova
York, quando se aproxima de uma organização juvenil ligada ao Partido
Comunista dos Estados Unidos. Mais tarde, no período em que esteve na
França, conviveu com estudantes argelinos e conheceu a luta de
libertação contra o colonialismo francês. Na Alemanha, participou das
movimentações estudantis contra a Guerra do Vietnã. Porém, ainda não
estava integrada a nenhum partido, movimento ou organização. Sua
atuação política aprofundou-se no contexto de seu retorno.

Quando retornou, encontrou nos Estados Unidos uma conjuntura política


muito singular. Em 23 de julho de 1967, ocorreu em Detroit a maior
rebelião urbana do país no século 20. O estopim foi a violência racista da
polícia contra membros da comunidade negra – um padrão de
comportamento recorrente por parte dessa categoria. Não só essa, mas
outras revoltas negras aconteceram em Watts, Newark, Harlem, Chicago.
Curiosamente, nenhum desses lugares estavam no sul do país, onde a
segregação era legalizada. Todas essas revoltas foram alimentadas pelo
racismo estrutural e forte insatisfação popular. Para a população negra, a
igualdade social, jurídica e política assegurada no plano legal não garantiu
o fim do racismo, da desigualdade, da marginalização. Além disso,
descortinava-se a situação do norte e outras regiões do país, onde
ainda não havia segregação racial institucionalizada.

Para se ter uma ideia do ambiente de tensão da época, basta recordar


que entre os anos de 1963 a 1968, contabiliza-se, aproximadamente,
mais de trezentas revoltas. Simultaneamente, havia também uma forte
organização política dentro das comunidades negras, em alguns casos
originárias do movimento pelos direitos civis e outras que surgiam
naquele momento. A partir de 1966, sobressaiam distintas orientações

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políticas no movimento; havia uma percepção compartilhada acerca da


necessidade de um programa político negro autônomo, no entanto,
existiam divergências ideológicas sobre a definição das prioridades, dos
objetivos e das estratégias das novas organizações. As orientações
giravam, resumidamente, em torno de ideais como nacionalismo,
separatismo, retorno à África e socialismo.

Panteras Negras

Panteras Negras e Angela Davis são associados automaticamente por


muitas pessoas. Contudo, é necessário desvendar melhor essa relação.
Inicialmente, ela esteve no Comitê Estudantil de Coordenação Não
Violenta (em inglês, Student Nonviolent Coordinating Committee –
SNCC), de Los Angeles, organização estudantil nacional fundada em
1960 que lutava pelo fim da segregação racial no sul do país e advogava a
favor da resistência pacífica. O SNCC foi muito importante para o
movimento pelos direitos civis e ficou conhecido por organizar as
famosas jornadas da liberdade (Freedom Rides) em 1961. Porém, em
1966, rompeu com a mencionada estratégia, passando do discurso
integracionista para adotar uma vertente mais nacionalista negra. O SNCC
de Los Angeles durou pouco, havia problemas internos e a questão de
gênero era um deles. As militantes opunham-se ao sexismo das
lideranças masculinas, que designavam a elas atividades de escritório e
assuntos internos, enquanto eles discursavam e apareciam para o
público.

Em 1968, Angela Davis entra simultaneamente no Partido dos Panteras


Negras e no Partido Comunista. Em suas palavras, a relação com os
Panteras oscilava, como consta em A taste of power (1993), de Elaine
Brown: “Meu status era permanentemente ambíguo no Partido dos
Panteras Negras, alternou entre ‘filiada’ e ‘companheira de luta’. Eu estava
em ação quando se tratava da organização da comunidade – por um
tempo dirigi o programa de educação política da sede no West Side

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(localidade de Los Angeles) –, porém estava sempre à margem das


disputas internas do Partido”. Saiu em 1969 por decorrência de
desacordos ideológicos.

Angela Davis em 2006 (Foto: Divulgação)

Em suas narrativas da época, Angela menciona o sexismo presente em


muitas organizações negras. Ela, em especial, sofreu constantemente por
não exercer as funções ditas femininas. Alguns grupos, como os Panteras,
defendiam retoricamente a igualdade de gênero, ainda que a prática
pouco conciliasse com esse discurso, enquanto outras nem
sequer consideravam ou pensavam no tema, como a Organization US, de
Maulana Karenga, por exemplo. Existia por parte de muitos militantes uma
visão distorcida sobre as mulheres e o seu papel na luta política. Em
alguns casos, a luta pelo poder negro (black power) era confundida com o
poder para o homem negro e não para a comunidade. A orientação
política patriarcal atravessou quase todos os movimentos políticos da
época. Uma frase conhecida do período e constantemente dita pelos
militantes brancos do movimento antiguerra elucida o problema: girls say
yes to boys who say no (“garotas dizem sim para os caras que dizem não
[à Guerra do Vietnã]”).

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Apesar das proximidades e passagens por esses grupos, Angela elegeu o


Partido Comunista, organizando-se no Coletivo Che-Lumumba, formado
por militantes negros do Partido Comunista em Los Angeles. A sua
relação com o partido sempre foi vista com desconfiança por alguns
setores do movimento negro, que consideravam o marxismo incapaz de
combater o racismo, além de ser uma ideologia europeia. Para Angela,
contudo, o racismo estava dentro das estruturas do capitalismo
estadunidense; ela considerava que, para derrubar o racismo, o
capitalismo e o imperialismo, eram necessárias alianças entre classes e
comunidades oprimidas. Davis acreditava que o discurso nacionalista
negro considerava a raça separada das classes e das relações de
produção, por isso, na avaliação da filósofa, não seria suficiente. O Partido
Comunista dos Estados Unidos teve um papel importante nas décadas
anteriores na luta contra a segregação racial, no entanto, na década de
1960, encontrava-se fragilizado, entre outros motivos, pela perseguição
política violenta que sofrera na década de 1950. Angela manteve-se no
Partido até 1991, chegou inclusive a ser candidata à vice-presidência dos
Estados Unidos nos anos de 1980 e 1984. Passou a militar nas
organizações The Committees of Correspondence for Democracy and
Socialism, em 1991, e no Critical Resistance, em 1997.

Perseguição e paranoia

Ameaças de morte, cartas raivosas, ligações intimidadoras. Foi assim que


Angela foi recebida como professora assistente de Filosofia na
Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Foi necessário andar
armada para se defender. Embora possa soar estranho no contexto
brasileiro, o porte de armas é um direito assegurado por meio da Segunda
Emenda da Constituição nos Estados Unidos. Ela travara uma batalha
legal para lecionar na instituição. Ronald Reagan, governador da Califórnia
à época, tentou expulsá-la da UCLA, alegando que Angela era comunista
e, portanto, não poderia ensinar na universidade. Ele se baseava em uma
regulação de 1949 que proibia a contratação de professores comunistas

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naquela universidade. O processo teve uma grande repercussão e


protestos em sua defesa ocorreram dentro e fora da universidade. A sua
imagem foi projetada para além do circuito da militância política, do
movimento negro e da intelectualidade de esquerda. Os tribunais
declararam que tal ação era inconstitucional, pois feria o direito de
liberdade de expressão garantido pela Constituição. Após o incidente,
Angela ganhou popularidade no campus. Seu curso “Recurring
philosophical themes in black literature” abordava a escravidão e a
liberdade a partir da filosofia negra, recorrendo a textos autobiográficos
escritos por ex-escravos. Esses temas eram tratados pela primeira vez na
universidade. O curso foi disputadíssimo, com turmas sempre
superlotadas. Por ter assumido publicamente que era comunista, sua vida
passou a estar em risco. O ambiente de perseguição política e a paranoia
contra os comunistas vinha desde a década de 1950, com o macarthismo,
e não se dissipara totalmente. Somase, ainda, todo o estigma alimentado
contra os militantes negros, definidos à época como radicais e violentos.

O ano de 1970 foi importante para a sua trajetória política. Angela


começou a dedicar-se mais ativamente à luta contra a repressão política e
“ironicamente” tornou-se vítima dessa mesma repressão. Iniciou a sua
participação no Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos da
Penitenciária Estadual de San Quentin, na Califórnia. Lá estava preso
George Jackson, acusado de roubo com uma história quase idêntica a de
muitos outros jovens negros que receberam penas altíssimas por
pequenos delitos. Como também ocorrera com outras militantes negros,
George teve o seu amadurecimento político na prisão, tornou-se uma
liderança política e intelectual entre os detentos e membros do Partido
dos Panteras Negras. Desse contato afetivo e político evidencia-se, para
Angela, a continuidade entre duas instituições: a escravidão e a prisão. O
encarceramento em massa da população negra é um dos temas centrais
em sua produção intelectual. Seu livro Are prisons obsolete?, de 2003, é
uma referência sobre o assunto. A autora advoga o abolicionismo penal,
não só no sentido da negação e destruição das prisões, bem como no
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sentido propositivo de construção e criação de novas instituições. O


sistema prisional, em sua avaliação, está relacionado ao lugar para onde
vão as pessoas vitimadas pelo fracasso em se produzir a democracia para
as pessoas negras no período pós-abolição. As cadeias comportam hoje,
nos Estados Unidos, em torno de 2,5 milhões de pessoas, o número de
afro-americanos presos é desproporcionalmente maior a outros grupos
étnicos. Esses debates são, para Angela, também uma maneira de discutir
os problemas da democracia estadunidense e o capitalismo
contemporâneo. A sua militância política atualmente incide fortemente na
luta por um mundo sem prisões.

Da relação com George Jackson desponta também a questão das


representações em torno das mulheres negras. A forma como ele retrata
a sua mãe – uma matriarca dominadora e castradora – é estendida às
mulheres negras em geral. A discussão pode ser examinada a partir da
correspondência trocada entre eles, publicado em Soledad brother: the
prison letters of George Jackson. Ele responsabilizava a sua mãe, em
parte, por suas dificuldades como homem negro. Essas não eram
opiniões exclusivas de George, que depois mudou de posição, mas uma
percepção recorrente sobre as afro-americanas em geral. O estudo feito
para o programa de guerra à pobreza do presidente Lyndon B. Johnson,
em 1965, por exemplo, repetiu as mesmas opiniões. A publicação
chamava-se The negro family: case for national action e consistia em
análises feitas pelo político e sociólogo Daniel P. Moynihan sobre as
pesquisa a respeito das famílias negras. A tese do autor era que os
problemas e o “comportamento patológico” da comunidade negra não
tinham raízes na deterioração econômica, no racismo estrutural, nem
tampouco na segregação, mas na “degradação moral“ das famílias
chefiadas e sustentadas por mulheres negras. O relatório oficial
reafirmava os clichês preconceituosos sobre a família negra.

Angela refuta todos esses argumentos indicando que não houve


“colaboracionismo” da escrava com o “seu senhor” que lhe garantisse

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algum tipo de poder ou benefício. Ela exemplifica citando a separação


imposta entre mãe e filho recém-nascido e introduz a discussão
do estupro como um ato de contrainsurgência do “proprietário” contra a
escrava, uma tentativa de levá-la à condição animalesca, de desumanizá-
la, para quebrar a sua resistência e da sua comunidade como um todo. O
estupro, nessa análise inovadora proposta pela autora, seria visto como
um método terrorista de controle com especificidade de gênero. E ainda
ressalta que a contribuição das mulheres negras em resistências,
rebeliões e ações cotidianas contra a escravidão foram pouco
consideradas. Toda essa discussão serviu posteriormente como base
para o seu pioneiro artigo escrito na época da prisão, Reflections on the
black woman’s role in the community of slaves, de 1971. O artigo, como
aponta a cientista política Joy James, é “uma das primeiras análises do
cruzamento do racismo, sexismo e capitalismo dentro da comunidade de
escravos e um dos primeiros ensaios sobre a teoria feminista antirracista
contextualizada na experiência negra nas Américas”.

Há outros estudos pioneiros feitos por Angela, que abordaram, por


exemplo, o blues e seu legado ao feminismo negro. Esse estilo musical foi
a primeira expressão artística do pós-abolição, e nele se pode “escutar”
as narrativas das mulheres negras pobres que tratavam abertamente da
sexualidade – um tema tabu. A liberdade sexual era um dos poucos
campos onde havia parcial liberdade, se contrapondo a outras esferas da
vida cotidiana privadas da liberdade.

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No Festival Latinidades, em Brasília, em 2014 (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

A mulher mais procurada

Terrorista, assim lhe chamou o então presidente Richard Nixon quando o


FBI apanhou Angela, aos 26 anos. O seu nome entrou para a lista dos dez
criminosos mais procurados pelo FBI. Foi presa em outubro de 1970, em
Nova York, em companhia de seu amigo David Poindexter, depois de dois
meses na clandestinidade. O presidente parabenizou publicamente o FBI
pela captura. A razão pela qual foi considerada uma ameaça tinha
motivações políticas, em um nítido esforço de incriminá-la e conter a sua
influência dentro da comunidade negra. É bem conhecido o empenho em
criminalizar militantes negros na época. O FBI criou, em 1956, o Programa
de Contrainteligência (COINTELPRO), com o objetivo de desestruturar o
movimento pelos direitos civis. Posteriormente, o programa foi usado para
conter as atividades dos Panteras Negras, em especial, e de outras
organizações consideradas subversivas pelo governo estadunidense. A
particularidade do programa é que se valia de ações ilegais e clandestinas
para alcançar seus objetivos, que eram expor, enganar, provocar
desentendimentos, destruir a credibilidade, como também neutralizar
organizações e lideranças. Sabe-se, hoje, que o programa esteve

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envolvido no assassinato de líderes e militantes dos Panteras e de


outros grupos e foi responsável pela prisão de pessoas inocentes por
motivações políticas – alguns se encontram presos até hoje.

A prisão de Angela Davis esteve vinculada ao rapto, ao assassinato e à


conspiração ocorridos no tribunal de San Rafael na Califórnia,
comandados por Jonathan Jackson – irmão mais novo de George, de 17
anos –, que utilizou a arma registrada no nome dela para executar uma
ação cujo objetivo era libertar seu irmão e os outros presos políticos.
Jonathan e outros três homens sequestraram o juiz, o promotor e alguns
jurados e os levaram até uma caminhonete que os esperava. Porém,
quando todos estavam dentro do carro, um guarda que estava na rua
começou a atirar. Como resultado final do tiroteio, Jonathan, o juiz e os
dois presos foram mortos e os demais feridos. Angela foi acusada pelas
mortes ocorridas porque a arma era sua, mas ela sempre alegou
inocência, afirmando que a arma foi pega sem sua autorização. Ficou
presa durante um ano e meio, a maior parte do tempo na solitária. Nesse
período, produziu muitos artigos e trabalhou em sua própria defesa. Além
disso, foram feitas campanhas nacionais e internacionais pela sua
libertação, intituladas Free Angela. Recebeu apoio de figuras importantes
da comunidade afro-americana, como Coretta King, Roberta Flack, Aretha
Franklin, entre outras.

O julgamento ocorreu em junho de 1972 e a inocentou, tendo sido ela


própria integrante da equipe de defensoria no julgamento. Durante todo o
processo, Angela afirmava a sua inocência contra as acusações
plantadas, em suas palavras, pelo Estado da Califórnia, ressaltando que
havia um caráter misógino nas acusações, pautadas no argumento de que
sua suposta paixão desenfreada por George a teria levado a cometer o
crime. George foi assassinado dentro da prisão de San Quentin por
guardas, em 21 de agosto de 1971. Ele também foi vítima da repressão
orquestrada pelo COINTELPRO.

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Angela era uma “mulher livre” quando a sentença final a declarou


inocente, em 4 de junho de 1972. A campanha internacional Free Angela
foi determinante para a sua libertação, bem como para mitificação da sua
figura, que se celebrizou em quase todo o mundo. Para se ter uma ideia
da proporção, a banda Rolling Stones e o músico John Lenonn fizeram
canções em sua homenagem. Isso ajuda a entender a popularidade que
Angela ganhou. O comitê de apoio para a campanha de sua libertação
serviu de base para a criação da National Alliance Against Racism and
Political Repression (NAARPR), organização que tinha como propósito
apoiar os presos políticos criminalizadas pelo racismo.

Professora emérita da Universidade de Santa Cruz na Califórnia, com


livros, artigos publicados e traduzidos, Angela permanece envolvida com
diversas causas políticas e sociais acreditando em lutas coletivas que
podem transformar a realidade social. Participou ativamente do
movimento contra o apartheid na África do Sul e hoje está comprometida
com o movimento internacional em solidariedade à Palestina. É referência
teórica para o feminismo negro, para os estudos sobre complexo
carcerário industrial e o para o abolicionismo penal. A sua trajetória
intelectual e política sempre esteve unida e vinculada ao que o intelectual
palestino Edward Said considerou a tarefa dos intelectuais engajados nos
movimentos sociais: “Criar as condições sociais para a produção de
utopias realistas.”

Distanciando-a das idealizações e mitificações, Angela continua ativa,


otimista, militando, escrevendo, viajando e inspirando. Mais do que uma
representação isolada, ela é parte de uma bela tradição de mulheres
negras ativistas comprometidas com as transformações radicais e
libertárias. Em uma conversa, a jornalista afro-americana Lori S. Robinson
a definiu assim: “Ela é uma das nossas melhores mentes. Conecta o
acadêmico e intelectual com as raízes.”

RAQUEL BARRETO é historiadora, doutoranda pela UFRRJ e autora da

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dissertação “Enegrecendo o feminismo ou feminizando a raça: narrativas


de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez”.

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