Você está na página 1de 36

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

JULIANA RAMOS BOLDRIN

Respirações Instáveis, Corpos Extensos:

Etnografia dos manejos da respiração e das formas de gestão da vida e da morte no

serviço público de saúde

Campinas

2023
Respirações Instáveis, Corpos Extensos:

Etnografia dos manejos da respiração e das formas de gestão da vida e da morte no

serviço público de saúde

Rebecca Horn, Mechanical Body, 1973-19741.


Fotografia de Achim Thode
Fonte: Flash Art

1
A artista alemã Rebecca Horn sofreu uma intoxicação pulmonar por fibras de vidro e, entre 1968 e 1969, respirou
com a colaboração de um respirador mecânico. A partir dessa experiência, da década de 1970 em diante, a artista
passou a realizar uma série de criações artísticas sobre próteses, aparelhos médicos e extensões corporais para
questionar os limites dos corpos. Mechanical Body, performance fotografada por Achims Thode, é uma dessas
criações.
Introdução

Breathe, breathe in the air


Don’t be afraid to care2

Esta tese conta histórias sobre respirações. São histórias que se passam em um grande
hospital escola público, localizado em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, onde realizei
trabalho de campo ao longo de um ano. Nesse período, entrevistei diferentes profissionais de
saúde, acompanhei reuniões de pneumologistas em que diagnósticos e tratamentos de doenças
pulmonares complexas eram discutidos, assisti a palestras e aulas que tematizavam a respiração,
acompanhei a rotina de uma ala cirúrgica de neurologia por duas semanas, fiz outras breves
incursões em diferentes setores do hospital escola e, por seis meses, acompanhei diariamente
profissionais de fisioterapia na Zona Temporária3, uma ala de emergência clínica.
Todos esses materiais compõem as histórias sobre respirações apresentadas nesta tese. No
entanto, o material empírico proveniente da Zona Temporária é a espinha dorsal deste
empreendimento etnográfico. A ala era caracterizada pela gravidade das condições de saúde, pelas
instabilidades das respirações dos pacientes hospitalizados e possuía a maior taxa de mortalidade
do hospital. Nesse contexto, acompanhei a rotina das fisioterapeutas e atentei-me para as diferentes

2
Pink Floyd. Breathe. Londres: Harvest Records; Capitol Records, 1973.

3
Todos os nomes de pessoas e lugares são fictícios e foram por mim inventados.

1
formas pelas quais a respiração era manejada4 ao observar técnicas, práticas, tecnologias,
procedimentos, tomadas de decisão, protocolos e máquinas.
A partir desse conjunto heterogêneo de mecanismos médicos, tecnocientíficos e
assistenciais que serão descritos ao longo desta tese, a respiração era materializada como um dado
legível, mensurável; ela era tornada visível a partir de técnicas de observação e feita audível a
partir de técnicas de sonorização; bem como era materializada por meio do acoplamento dos corpos
com diversas próteses respiratórias — máscaras, cateteres e máquinas —, a fim de que fosse
estabilizada. Na “vizinhança da morte” (Mbembe, 2020), não demorou para que eu percebesse que
os manejos por meio dos quais a respiração era materializada visavam, principalmente, estabilizá-
la5 para manter a vida diante do risco da morte que habitava o cotidiano o setor.
Assim, ao seguir a respiração na ala de emergência clínica, pude perceber que as suas
materialidades eram centrais na gestão da vida e da morte. Estabilizar a respiração por meio de
diferentes manejos significava manter e prolongar a vida e, mais do que isso, os manejos da
respiração também eram centrais para que a morte fosse instituída como um processo e para que
a finitude da vida fosse tecnicamente gerida. Esta etnografia, portanto, ocupa-se dos processos que
materializam múltiplas respirações e de como modulam, configuram e produzem formas de gestão
da vida e da morte no contexto hospitalar. Dos manejos que fazem da respiração um dado legível
e observável para que se identifique e se afirme a sua instabilidade, passando pelos diferentes
acoplamentos dos corpos com as próteses respiratórias e pelas formas de cuidado, até os processos
de morte que culminam no último suspiro dos corpos, a tese descreve como as materialidades da
respiração conformam e produzem modos de prolongar e manter a vida, mas também de instituir
a morte e de geri-la tecnicamente.
Por meio de uma abordagem antropológica das práticas médicas, tecnocientíficas e
assistenciais, a tese procura tornar visíveis as relações sociais que constituem os processos de
materialização das respirações e as formas de gestão da vida e da morte no contexto hospitalar.
Isto, ao desdobrar as epistemologias dominantes, as desigualdades sociais, as moralidades e a

4
Com exceção dos termos estrangeiros, ao longo desta etnografia, marco as noções êmicas com a grafia do itálico.

5
De partida, vale mencionar que não entendo a estabilidade e a instabilidade da respiração enquanto noções fixas e
pré-existentes. De outra maneira, ao longo dos capítulos, espero mostrar que a identificação da instabilidade depende
de esforços práticas para materializar a respiração como um dado legível e que a estabilidade envolve um amplo
conjunto de esforços práticos, o acoplamento dos corpos com próteses, bem como cuidados diários de diferentes
ordens.

2
importância da raça, de gênero, de classe e dos pesos dos corpos nos manejos cotidianos da
respiração. À vista disso, um dos objetivos desta etnografia é tratar daquilo que cria as condições
para que se respire, para que a vida seja mantida e também para como se morre no ambiente
hospitalar.
O fio condutor que costura as histórias sobre respiração contadas ao longo dos capítulos
desta tese é duplo. Por um lado, a narrativa desdobra o caminho nada linear da instabilidade da
respiração, desenhando um movimento que vai da vida à morte. Dessa forma, os seis capítulos
narram o agravamento da instabilidade da respiração, ressaltando a não-linearidade desse caminho
a partir de suas zonas arenosas de esperanças, de incertezas e também da ameaça constante da
irrupção da morte. Por outro lado, a produção de um corpo extenso também atravessa toda a tese.
Os diferentes manejos das respirações, cada vez mais instáveis, implicam em corpos que não
cessam de ser conectados e de se conectarem, de serem acoplados e alargados para que as
respirações sejam estabilizadas. Os corpos são conectados aos fios e eletrodos dos aparelhos
médicos, aos acessos abertos nas veias para que se administre fármacos, às sondas, aos tubos, às
próteses, às máquinas de respirar e a uma ampla rede de oxigênio hospitalar, rede esta que estende
os corpos dos pacientes ao próprio corpo arquitetônico do hospital, para que o oxigênio chegue até
as vias aéreas.
Esses dois fios condutores — o caminho de agravamento da instabilidade da respiração e
o corpo extenso — costuram os seis capítulos desta tese e se enredam, na medida em que o corpo
não cessa de ser conectado, acoplado e alargado para que a respiração, cada vez mais instável, seja
estabilizada. Nesse sentido, ao performar descritivamente o corpo extenso a partir dos caminhos
nada lineares da instabilidade da respiração, esta etnografia também busca mostrar que, no
movimento da vida à morte, quanto mais instável a respiração, mais o corpo é feito estendido, na
mesma medida em que morte marca o momento derradeiro em que, carnalmente, o corpo deixa de
se conectar, de poder ser conectado; deixa de se acoplar e de se alargar.
No último suspiro de um corpo, a fronteira que separa a vida da morte é instituída,
demarcando a diferença entre o corpo e o cadáver (Haraway, 2008, p. 163). Muito carnalmente, a
morte marca o momento em que o corpo cessa de poder se acoplar, de se conectar e de se alargar;
de poder ser feito extenso por meio do acoplamento com fios, próteses e máquinas.
Assim, em toda a tese, a partir da noção de corpo extenso, pretende-se defender que tão
extraordinária quanto mundana, a respiração mostra que a própria vida e a estabilidade do corpo

3
se fazem por meio de conexões e de acoplamentos. Conexões profundamente mundanas, voláteis
e carnais, que dependem de cuidado, de engajamento, de suportes artificiais de vida, de afetos, de
próteses e cujas condições de estabilidade estão emaranhadas a processos de vulnerabilização e às
desigualdades sociais, bem como ao modos pelos quais se expressam em um hospital público de
um país do Sul Global.

À beira-leito: algumas posições ético-metodológicas

Inicialmente, tive muitas dificuldades para encontrar uma abertura para realizar o trabalho
de campo no hospital escola. Todavia, ao chegar na Zona Temporária — através de movimentos
de pesquisa que serão descritos no Capítulo 1 —, acabei tendo um amplo acesso à rotina hospitalar
ao acompanhar as profissionais de fisioterapeuta na Zona Temporária. Esse acesso, vinculado às
profissionais da assistência que atuavam no corpo a corpo com as respirações à beira-leito,
decorrem algumas posturas ético-metodológicas que informam a escrita da tese.
A primeira dessas posturas ético-metodológicas é, certamente, a garantia do anonimato de
todos os interlocutores da pesquisa, do hospital escola e do setor onde realizei a parte mais
substancial da pesquisa empírica que sustenta a etnografia, a Zona Temporária. Assim, todos os
nomes de pessoas e lugares mencionados nesta tese são fictícios e foram por mim inventados.
A segunda posição ético-metodológica que adoto diz respeito às descrições etnográficas
apresentadas ao longo dos seis capítulos desta tese. Para firmá-la, é necessário situar mais
pormenorizadamente a minha prática de pesquisa no hospital, tendo em conta o modo como se deu
a minha inserção em campo.
A equipe de fisioterapia da Zona Temporária era composta pela fisioterapeuta responsável
e por, ao menos, mais duas alunas, que mudavam mensalmente de setor. Elas eram profissionais
já graduadas em fisioterapia e realizavam uma especialização em fisioterapia hospitalar. Para
cumprir os requisitos da especialização, elas passavam um mês em cada um dos muitos setores do
hospital escola. Assim, ao longo dos seis meses em que fui diariamente até a Zona Temporária, as
diferentes estudantes que passavam pelo setor a cada mês foram as minhas principais companhias.
Na maior parte do tempo, as fisioterapeutas se dedicavam ao atendimento dos pacientes.
Comumente, quando um novo paciente dava entrada na ala, a equipe toda ia até o seu leito. Nesse

4
momento, eu era apresentada como a “ju, que está fazendo uma pesquisa aqui com a gente”. A
apresentação da equipe aos pacientes era um protocolo e se estendia aos pacientes inconscientes,
assim como a comunicação prévia dos procedimentos que seriam realizados e o pedido de licença
para fazê-los, dizendo, por exemplo, “Agora, vou auscultar o pulmão, dá licença”.
Os atendimentos, que eram realizados tanto em conjunto quanto individualmente, eram
acompanhados por mim. Quando em conjunto, os atendimentos contavam com a presença da
fisioterapeuta responsável e das duas alunas (às vezes, três), funcionando como um momento de
ensino e de aprendizagem. Quando feitos de forma individual, as profissionais se dividiam e, cada
uma delas, atendia a um paciente. Essas diferentes configurações estavam relacionadas tanto à
gravidade e complexidade envolvida nos atendimentos quanto às demandas de cada um dos dias.
Quando as alunas atendiam sozinhas, a fisioterapeuta responsável, passava constantemente para
supervisioná-las entre um atendimento e outro que ela mesma realizava. Algo que deve ser
mencionado é que sempre havia pelo menos algum atendimento no dia que era realizado
conjuntamente por todas as profissionais.
Ao acompanhar as fisioterapeutas, a própria dinâmica da rotina, possibilitou-me observar
de perto práticas performadas por diferentes profissionais. Mais especificamente, da equipe
horizontal da Zona Temporária — composta pela fisioterapeuta responsável, pelas enfermeiras,
pelas técnicas de enfermagem e pelo médico chefe da ala —, dos residentes de medicina, que,
assim como as alunas de fisioterapia, mudavam mensalmente de setor, e também da técnica de
laboratório, da profissional da limpeza e das nutricionistas, profissionais que passavam pela ala
em algum momento do turno da manhã para, respectivamente, coletar exames, higienizar o
ambiente e avaliar as dietas dos pacientes.
A partir de uma posição à beira-leito, ligada às práticas da assistência, pude enxergar
muitas das dinâmicas relacionais de visibilização e de invisibilização que modulavam a
configuração hierarquizada da ala. Por exemplo, embora desempenhasse uma das funções mais
importantes para garantir os importantes e vigiados protocolos de higienização da ala, a
invisibilização da profissional da limpeza, uma mulher negra que realizava um trabalho
terceirizado na instituição, era notável. Além disso, as hierarquizações também eram notáveis nas
relações dos residentes com o restante da equipe, principalmente quando chegavam ao setor. Em
grande medida, as hierarquias visíveis por meio de invisibilizações relacionais no cotidiano e

5
também sentidas de diferentes maneiras, desenhavam-se nas intersecções das profissões —
diferencialmente valoradas — com raça e gênero.
Nesse ambiente bastante hierarquizado, aos poucos, pude perceber que a minha
incorporação à rotina estava relacionada com a estrutura e com as dinâmicas de ensino e de
aprendizagem que sustentavam o funcionamento do hospital escola. Por um lado, para acompanhar
as profissionais de fisioterapia e compreender minimamente a linguagem técnica mobilizada por
elas e as práticas que elas performaram durante os atendimentos, eu precisava estudar alguns
conteúdos básicos sobre respiração e sobre as próteses respiratórias enquanto realizava o trabalho
de campo.
Desse modo, passei a conseguir participar um pouco das dinâmicas de ensino e de
aprendizagem realizadas durante os atendimentos e depois deles, inclusive porque tinham espaço
para perguntas e porque as diferentes alunas, sempre muito gentis, apreciavam que eu perguntasse
para que testassem seus conhecimentos. Nesse sentido, como as próprias estudantes faziam
anotações em seus caderninhos, que levavam no bolso dos jalecos, eu também me sentia
confortável para fazer anotações no meu próprio caderno de campo, inclusive enquanto elas
preenchiam as fichas dos pacientes após atendê-los.
Por outro lado, essa mesma dinâmica de ensino e de aprendizagem que criava um espaço
para mim dentro da rotina, e que permitia que eu me engajasse de formas específicas com as
profissionais durante os atendimentos, fundamentava-se na disponibilização dos corpos doentes
ao aprendizado e ao olhar. Tal disponibilização dos corpos expressava-se, dentre outras coisas, na
própria arquitetura hospitalar, um dispositivo que, evidentemente, operava como um “aparelho de
observação, de registro e de treinamento” (Foucault, 1987, p. 198). Os vidros destinados à
observação dos leitos — grandes janelas lacradas que, em muitos dos espaços, ocupavam o lugar
das paredes de cimento, a fim de produzir visibilidades e transparências para fazer ver os leitos —
são sem dúvida nenhuma as peças centrais da arquitetura desse hospital escola e nas dinâmicas de
ensino e de aprendizagem.
A presença dos vidros exemplifica como o leito era um espaço aberto ao olhar e como o
corpo doente era tornado disponível ao aprendizado, algo totalmente normalizado no cotidiano.
Nesse sentido, o caminho para realizar a pesquisa — a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa
do hospital escola, as relações, as colaborações, a autorização da chefia da fisioterapia, as
declarações de responsabilidade que me solicitaram e autorização da Superintendência da

6
instituição — fizeram com que o leito também se tornasse um espaço de observação na minha
prática antropológica.
Contudo, se a minha posição enquanto sujeita-pesquisadora envolveu um amplo acesso à
rotina a partir de uma posição à beira-leito, os limites dessa posição não estavam dados a priori,
por exemplo, por delimitações institucionais. Quer dizer, ao receber a autorização institucional de
diversas instâncias para realizar a pesquisa, a minha observação da rotina enquanto antropóloga
foi condicionada ao uso de máscaras N95, ao uso de um jaleco e ao seguimento dos protocolos
para entrar nos quartos6, mas nem a instituição e nem as fisioterapeutas circunscreveram ou
definiram o que eu podia observar ou não. Ao ser autorizada pela instituição para realizar a
pesquisa, a normalização do leito como um espaço aberto ao olhar foi estendida à minha prática
de conhecimento.
Por isso, à beira-leito, todos os dias, eu procurava me situar criticamente e, ao mesmo
tempo, situava os limites da minha prática antropológica no delicado contexto hospitalar de uma
ala de emergência permeada por processos de morte. Embora nem os pacientes e nem as
profissionais de saúde tenham me pedido, em algumas ocasiões deixei de entrar em determinados
atendimentos e deixei de observar procedimentos, compreendendo que a minha posição de
observação não era a mesma que a das profissionais de saúde ou das estudantes e que, por isso, a
minha presença não era cabível em determinados espaços e situações.
Ciente de que a minha prática antropológica de observação e de aprendizado se
diferenciava das práticas de conhecimento dos profissionais de saúde, já que ela implica na escrita
de uma etnografia e não no engajamento com o cuidado dos pacientes, procurei manejar
diariamente a minha posição à beira-leito.

6
Quando iniciei o trabalho de campo na Zona Temporária, no começo de 2022, ainda vivíamos uma pandemia, mas,
para além da circulação do vírus da Covid-19, estar na ala implicava no seguimento dos protocolos relacionados à
presença e aos perigos de contágio de diversos microrganismos. Como os pacientes lá hospitalizados estavam em
estado grave de saúde, a infecção hospitalar era minuciosamente gerida, pois podia ser fatal. Todos os dias, a técnica
de laboratório coletava materiais (como, por exemplo, secreções e sangue), que eram analisados no laboratório.
Quando os exames identificavam a presença de microrganismos infecciosos nos corpos, os quartos eram colocados
em precaução: uma placa que identificava a bactéria encontrada nos exames era colocada em cima dos leitos, onde
também havia o nome dos pacientes e as suas idades. A precaução implicava na execução de protocolos mais severos
de paramentação do corpo. Além disso, qualquer objeto que entrava no quarto — como um estetoscópio — torna-se
destinado ao uso exclusivo daquele paciente e só deixava o sê-lo quando o paciente deixava a ala e o quarto e todos
os objetos eram desinfetados por meio de protocolos de higienização específicos. No meu caso, como não tocava nos
pacientes para atendê-los, eu não precisava me paramentar para além do uso da máscara N95, mas precisei disciplinar
o meu corpo e me manter atenta para nunca encostar em nada, tornando-me um veículo de contágio. Também vale
mencionar que o seguimento dos protocolos era inspecionado por um médico que, com sua prancheta, passava pelo
setor observando a rotina.

7
Dou um exemplo. Houve uma paciente que esteve internada quase que por todo o período
do meu trabalho de campo e que faleceu no fim de minhas atividades na Zona temporária. Todos
os dias, eu acompanhava os atendimentos da paciente, que se tornou alguém muito querida para
mim. Ela tinha apenas quarenta anos, era branca e estava hospitalizada há meses em ventilação
mecânica invasiva7, sem expectativa de alta ou de poder voltar a respirar sem a colaboração da
máquina novamente.
Como explicarei adiante, os pacientes em ventilação mecânica traqueostomizados podem
ficar conscientes8 quando têm condições para isso e, assim, conseguem se comunicar. Contudo,
em razão das reconfigurações materiais decorrentes do acoplamento com a máquina, quando eles
falam, a voz não é emitida. Desse modo, a comunicação se dá por meio da leitura labial. À beira-
leito, descobri que tinha boas habilidades para realizar leitura labial e buscava me engajar nos
atendimentos para entender o que diziam os pacientes nessas condições. De início, a leitura labial
e o encantamento compartilhado por cachorros me aproximaram dessa paciente que, muitas vezes,
buscava a minha atenção para se comunicar. Apesar disso, como mencionei, eu não tocava nos
pacientes. Ou seja, eu não estava engajada com as minhas mãos no cuidado como todas as
profissionais do setor.
Pelas minhas experiências pessoais, eu entendia que a diferença entre quem toca e quem
não toca para cuidar é fundamental. Isso norteou muitos dos meus posicionamentos à beira-leito.
A vergonha, por exemplo, também passava pela diferença entre quem toca e quem não toca para
cuidar, entre quem cuida e quem apenas olha. A paciente que menciono não tinha vergonha das
técnicas de enfermagem que davam banho e trocavam as suas fraldas, mas quando o assunto era
fralda, ela tinha vergonha de mim.
Então, por exemplo, em nenhuma situação que envolvia fralda, eu permanecia no quarto,
fosse no caso de pessoas conscientes, fosse no caso de pessoas inconscientes. Portanto, a minha
posição específica à beira-leito era diariamente manejada, dentre outras coisas, a partir do

7
Como tratarei nos capítulos 3 e 4, a o ventilador ou respirador mecânico, como também era chamado, é um suporte
artificial de vida, uma máquina que mantém a vida por meio da produção de uma respiração mecânica.
8
Como explicarei adiante, os pacientes são acoplados aos ventiladores mecânicos por meio do procedimento de
intubação - quando um tubo é inserido nas vias aéreas. No entanto, quando precisam fazer um uso considerado
prolongado da máquina (mais de 15 dias), eles passam a serem acoplados à máquina por meio da realização de uma
traqueostomia - uma incisão cirúrgica no pescoço. Diferentemente da intubação, a traqueostomização permite que os
pacientes fiquem conscientes. Vale mencionar que utilizo o itálico na palavra consciente, na medida em que ela a
consciência e a inconsciência são dimensões medidas na avaliação clínica por meio de escalas médicas.

8
entendimento de que, ainda que eu conseguisse participar minimamente dos momentos de ensino
e de aprendizagem e que procurasse me engajar nos atendimentos como podia nos momentos que
estava à beira-leito, as minhas mãos não estavam engajadas no cuidado.
Assim, ainda em campo e também depois de finalizá-lo, teci e reteci com paciência os
significados da minha posição na ala enquanto antropóloga. Elaborei e reelaborei, em um processo
interminável, a minha posição à beira-leito — sempre acompanhada pelas fisioterapeutas — e o
contato com as pessoas em condições graves de saúde, sendo que algumas delas estavam
inconscientes e que muitas delas faleceram durante a pesquisa.
Com efeito, as descrições aqui apresentadas reverberam o meu próprio movimento em
campo nas ocasiões em que deixei de ver e que me retirei dos quartos por diferentes razões, bem
como reverberam o entendimento de que a autorização institucional para realizar a pesquisa não
desobrigada da reflexão sobre os limites das práticas antropológicas nas instâncias mundanas das
relações.
Com isso em mente, adoto como postura ético-metodológica manter muitas dimensões do
cotidiano opacas e até mesmo em relação àquilo que observei, mas que não considero pertinente
descrever. As opacidades tem por objetivo que o meu aparato analítico não reifique o mecanismo
de funcionamento do hospital e as concepções e epistemologias dominantes que atravessam os
manejos da respiração9.
Entendo que nem tudo deve e pode ser feito visível por meio de descrições. Assim, em
cada capítulo, procuro diferentes estratégias para contar sobre os processos de materialização da
respiração e sobre a gestão da vida e da morte no ambiente hospitalar. No capítulo 1, Nos fluxos
do serviço de saúde: das visibilidades às materialidades da respiração, elaboro a produção
relacional do objeto desta pesquisa, a partir das movimentações que realizei por diferentes
especialidades médicas em busca de uma entrada para realizar o trabalho de campo. Considero que
a respiração questiona uma noção tradicional de objeto — sólido, bem delimitado e espacializado.
A partir disso, desenvolvo como as movimentações de pesquisa me permitiram perceber a
respiração como múltipla, heterogênea e não linear, diante do contato com respirações contagiosas
e rápidas, com imagens de pulmões com tumores e com “pulmões empoeirados” (Górska, 2016,

9
Esse esboço inicial acerca da adoção da opacidade enquanto uma posição ético-metodológica que se contrapõem aos
mecanismos de funcionamento do hospital e a como operam por meio da produção de transparências deve às reflexões
de Édouard Glissant (2008).

9
p. 34) e com corpos acoplados com próteses para respirar. Assim, por meio da descrição desses
movimentos de pesquisa e das diferentes respirações que emergiram a partir deles, este capítulo
narra como esta pesquisadora manejou e materializou a respiração como um objeto possível e
volátil de investigação antropológica.
No capítulo 2, As mensurações do vital: os processos de legibilidade da respiração,
descrevo como a respiração é materializada pelas profissionais de saúde como um dado legível e,
mais especificamente, como um indicativo de saúde. Para isso, focalizo nas práticas de medir a
respiração e mostro como as mensurações contam às profissionais sobre as condições de saúde, o
que permite produzir, identificar e afirmar a sua instabilidade. Em particular, neste capítulo,
interessa-me mostrar e argumentar que as mensurações são formas científicas de materializar a
respiração como um dado legível a partir de uma noção de precisão que, como descrevo
etnograficamente, está vinculada tanto com epistemologias dominantes quanto com projetos
coloniais, modulando diferentes acessos à saúde.
Já o capítulo 3 — Respirações maleáveis —, versa sobre os processos de estabilização da
respiração e sobre as reconfigurações das fronteiras de vida e de morte por meio da entrada do
ventilador mecânico no serviço de saúde. Enquanto o capítulo 2 mostra como a produção da
respiração como um dado legível permite identificar a sua instabilidade, o capítulo 3 narra o
manejo da instabilidade através de diferentes próteses respiratórias e de como são articuladas com
diferentes graus de dificuldade respiratória.
Neste capítulo, procuro mostrar como as próteses reconfiguram as materialidades da
respiração e os limites dos corpos e argumento que tais respiratórias, ao tempo que visam
estabilizar a respiração, também mostram a sua maleabilidade (Sanabria, 2016, p.38). Por meio da
descrição das práticas e próteses direcionadas à estabilização de respirações cada vez mais
instáveis, abordo a maleabilidade da respiração, explicitando como a sua estabilização depende da
conexão dos corpos com uma ampla rede de oxigênio, que estende os limites dos corpos ao próprio
corpo arquitetônico do hospital.
O capítulo 3, assim, delineia o caminho de agravamento da instabilidade da respiração, que
desencadeia na mobilização daquele que é considerado o último recurso disponível no sistema de
saúde para estabilizar os quadros mais severos de dificuldade para respirar: o ventilador ou
respirador mecânico. Nessa esteira, o capítulo 4 se ocupa inteiramente do acoplamento dos corpos
com os respiradores mecânicos e de como ele produz respirações mecânicas (ou antifisiológicas,

10
como também são conceituadas pelas profissionais de saúde). Neste capítulo, percorro toda a
extensão do acoplamento, a fim de mostrar como ele produz radicais reconfigurações materiais do
corpo e da respiração. Ao mesmo tempo, procuro descrever como a contínua materialização das
respirações antifisiológicas depende de inúmeros esforços práticos de assistência e de cuidado.
No capítulo 5, ocupo-me do cuidado, a fim de mostrar como ele é sempre situacional.
Interessa-me abordar como o cuidado é tão vital quanto a própria respiração, mas como também é
atravessado por moralidades, pelos modos como as profissionais de saúde entendem as diferentes
configurações familiares dos pacientes, pelo reconhecimento desigual da dor dos diferentes corpos
que respiram. Em particular, este capítulo tem o objetivo de tornar visíveis as complicações do
cuidado por meio de suas articulações com raça, gênero e com as zonas arenosas de esperança e
incerteza de vida e a morte.
O capítulo 6 — Finitude —, versa sobre os processos de materialização da respiração que
instituem a morte como processo e que permitem geri-la tecnicamente através de medidas de
conforto. Portanto, este capítulo final se dedica ao momento em que as práticas biomédicas e
tecnocientíficas se esgotam para estabilizar a respiração, assumindo a sua irregularidade como um
sintoma que faz parte do caminho até o dia da morte. Neste capítulo, procuro mostrar como o
processo de morte é um momento em que o corpo, gradativamente, vai deixando de se conectar e
de ser conectado; de poder ser feito extenso.

11
Capítulo 02. As mensurações do vital: os processos de legibilidade da respiração

A visão é sempre uma questão do poder de ver - e talvez da violência


implícita em nossas práticas de visualização10.

Quando o turno da manhã começava na Zona Temporária, as profissionais de fisioterapia


— a fisioterapeuta responsável e as duas alunas de especialização em fisioterapia hospitalar —
realizavam a sua primeira prática do dia, a coleta de parâmetros. Salvo em situações de
intercorrência11, em meio à agitação característica do começo da manhã, as fisioterapeutas se
dividiam e passavam de leito em leito. Atentas aos monitores, elas anotavam as diferentes
mensurações dos fluxos corporais dos pacientes, tais como temperatura, pressão arterial,
batimentos cardíacos, balanço hídrico, frequência respiratória e saturação de oxigênio.
Cada um dos parâmetros registrados no papel pelas profissionais e posteriormente
digitalizados no sistema online do hospital escola implicava em um aparelho médico conectado
provisória ou continuamente aos corpos dos pacientes. A temperatura era mensurada com o
termômetro; a pressão arterial com o esfigmomanômetro; os batimentos cardíacos com os
eletrodos colados no tórax; o balanço hídrico por meio da sonda inserida na uretra e acoplada a um

10
(Haraway, 1995, p. 25)

11
Intercorrência é um evento imprevisto relacionado à piora dos pacientes como, por exemplo, uma parada
cardiorrespiratória.

12
saco plástico com medidas12 e, por fim, a saturação de oxigênio era mensurada com o oxímetro
colocado nos dedos dos pacientes13.
Assim, os parâmetros eram mensurações que tornavam diferentes fluxos corporais legíveis
e observáveis aos profissionais de saúde através de aparelhos de medição. Como tematiza Lundy
Braun (2014) em seu trabalho sobre o espirômetro — o dispositivo médico usado para mensurar a
capacidade pulmonar —, as mensurações se tornaram objetos científicos a partir do século XIX,
momento marcado pelo crescente interesse de investigar as capacidades vitais para descrevê-las
com precisão e exatidão. Conforme pontua a autora, a “validação empírica por meio da medição
aumentou a autoridade dos instrumentos técnicos para produzir conhecimento confiável, válido e
reprodutível, o que passou a ser considerado conhecimento ‘objetivo’ em meados do século XIX”
(Braun, 2014, p. 3).
Com especial atenção à respiração, durante a prática de coleta de parâmetros realizada
pelas fisioterapeutas na Zona Temporária, chamava-me atenção como tal fenômeno corporal era
materializado como um dado, a um só tempo, observável e mensurável, especialmente porque
essas medições eram, de diferentes formas, importantes no monitoramento contínuo e no cuidado
dos pacientes graves hospitalizados na ala. Com essas questões em mente, neste capítulo, ocupo-
me dos processos de mensuração da respiração, a partir de dois parâmetros vitais: a frequência
respiratória e a saturação de oxigênio.
Na primeira seção, analiso como a frequência respiratória é materializada a partir de uma
técnica de observação padronizada. Ao descrever esse processo, argumento que o próprio olhar
médico é um aparato clínico de produção da respiração. Em outras palavras, uma tecnologia de
visão relacionada à educação dos “códigos perceptivos” (Foucault, 2021, p. 57), às práticas de
conhecimento fisiológicas e anatômicas e à experiência e ao desenvolvimento da acuidade do olhar
médico.

12
No caso do balanço hídrico, a mensuração da quantidade de urina coletada no saco plástico em 24h era subtraída
da quantidade de líquidos ingeridos também em 24h. Como veremos nos próximos capítulos, o balanço hídrico é um
parâmetro importante para avaliar a respiração em diferentes situações.

13
Como tratarei no capítulo 4, as diferentes conexões estabelecidas nos corpos eram consideradas pelas profissionais
de saúde como invasivas ou não-invasivas. Nessa lista de parâmetros, o balanço hídrico emerge a partir da sonda
inserida na uretra, sendo considerada uma invasão, justamente porque o que caracteriza uma conexão como invasiva
ou não é a penetração da superfície da pele. Quando o paciente está conectado a diferentes dispositivos invasivos —
sondas, tubos e cateteres —, ele é considerado um paciente invadido.

13
Na segunda seção, tomo como ponto de partida uma recente controvérsia científica sobre
o viés racial do oxímetro, o aparato tecnológico que mede os níveis de oxigênio no sangue arterial.
A partir da controvérsia — e inspirada pela abordagem de Lundy Braun (2014) sobre o espirômetro
—, ocupo-me da “arquitetura do dispositivo” (Braun, 2014). Mais especificamente, descrevo a
mecânica de funcionamento dessa tecnologia de mensuração.
Tendo em conta esses processos de medição, argumento que tais materialidades não são
representações da respiração, mas sim formas médico-científicas-tecnológicas de produzi-la
fisiologicamente como um dado legível capaz de contar aos profissionais de saúde sobre as
condições de saúde e de doença dos pacientes. Enquanto o foco da primeira seção é mostrar de
que maneira a mensuração da respiração a torna legível para que seja um indicativo de saúde, na
segunda seção, aprofundo as reflexões sobre as mensurações aos mostrar como a medição dos
níveis de oxigênio no sangue arterial estão articuladas com processos coloniais de biologização da
raça.

2.1 “Olhando e vendo”: os ritmos da respiração

Uma médica infectologista me disse que a forma como se respira aponta muito sobre as
condições de saúde e que, por isso mesmo, os médicos são treinados “para prestar muita atenção
na respiração”. Para exemplificar o modo como tal atenção se dava na sua prática no hospital, a
médica narrou o seguinte evento:

Uma vez, chegou uma paciente no Pronto-Socorro. Ela era portadora de HIV e foi
trazida por algum familiar. Muito para tentar o diagnóstico, eu sempre pergunto:
“por quê é que você veio aqui?". Na busca pelo que é que tá incomodando mais, a
pergunta é sempre essa. Se é uma dor de cabeça… Enfim… Então, assim que ela
chegou no Pronto-Socorro, eu perguntei isso pra ela e ela respondeu: “Eu tô ótima,
não sei o que eu vim fazer aqui…” Até tinha um médico mais novo junto e ele
disse: “Ela tá bem. Olha! Tá vendo!” E eu só olhando pra ela e vendo que a
frequência respiratória dela tava em 30. Aí eu até falei pra ele [o outro médico],
vamos colher uma gasometria. Gasometria é uma punção da artéria. Geralmente,
quando você faz punção é da veia, mas essa é na artéria, porque é na artéria que
tá o sangue oxigenado. Eu já falei pra ele, vamos colher uma gasometria dela,
independentemente do que ela... Bom, porque tem essas coisas... Ela queria ir
embora. Ela não queria estar lá. Às vezes, a gente tem que tentar ir além. E, nesse
sentido, a respiração conta! Até, às vezes, o que a pessoa não quer contar pra gente
por n motivos, a respiração conta.

14
A respiração emerge a partir da saturação de oxigênio e da frequência respiratória.
Interessa-me examinar como a médica, só “olhando e vendo”, pôde mensurar a respiração da
paciente em termos de sua frequência respiratória, ou seja, do número de movimentos respiratórios
— de inspirações e de expirações — que a mulher realizou ao longo de um minuto.
A infectologista explicou que, para mensurar a frequência da respiração, “a gente conta
quantas incursões respiratórias o indivíduo faz por um minuto. Olhando no relógio, a gente conta
mesmo, conta quantas vezes o tórax expandiu em um minuto”. Por meio de seu olhar treinado, e
demonstrando grande domínio da técnica de observação14 ao se atentar para a expansão do tórax e
para o relógio enquanto conversava com a paciente, a médica fez da respiração um fenômeno
corporal, a um só tempo, observável e mensurável.
O número que resultou da contagem da elevação do tórax — os 30 movimentos
respiratórios realizados pela mulher em um minuto — foi avaliado pela médica em relação ao
padrão de referência, a escala que define que uma frequência respiratória regular varia de 12 a 20
mrm15. Assim, foi justamente a atenção treinada da profissional que a permitiu observar e mensurar
a respiração para, em seguida, relacionar a medição com um padrão de referência que institui a
normalidade do ritmo respiratório, algo que o outro médico menos experiente também presente no
atendimento não foi capaz de perceber.
Através de observação, mensuração e comparação, a profissional de saúde compreendeu
que, apesar de a paciente relatar estar bem, algo de errado se passava com a sua saúde. É notável
que a mensuração da frequência respiratória depende de uma técnica específica de observação
padronizada dos corpos e também de definições que instituem o que é normal e o que é anormal
por meio dos padrão de referência, sobre o que me deterei melhor na próxima seção.
Ao realizar a análise do discurso da experiência médica, Michel Foucault (2021) desdobrou
as condições de possibilidade que, no início do século XIX, levaram à emergência da prática
clínica e à instituição da medicina como uma ciência moderna e, consequentemente, objetiva. Um

14
Vale mencionar que existem diferentes técnicas padronizadas de observação da respiração. Embora todas essas
técnicas sejam formas de tornar a respiração legível, a maior parte delas não mensura a respiração, mas materializa
padrões respiratórios, sobre os quais tratarei adiante.

15
Mrm é a unidade de medida da frequência respiratória: movimentos respiratórios por minuto.

15
dos pontos destacados pelo autor foi, precisamente, a transformação dos “códigos perceptivos”
(Foucault, 2021, p. 57) e do campo de objetos para o qual a medicina passou a dirigir a sua
observação e, sobretudo, a forma como esse olhar reconfigurado pôde ser articulado com um
discurso dotado de estrutura científica ou, melhor dizendo, com uma racionalidade médica.
A proeminência da visão na constituição da medicina moderna reverbera um movimento
mais amplo, já que a visão foi amplamente articulada ao paradigma científico moderno da
objetividade nos mais diversos campos de saber (Daston e Galison, 2007). De fato, a importância
da visão se tornou tamanha nas práticas científicas que o visto adquiriu o status de evidência
(Sicard, 2006), assim como vimos em relação às imagens médicas no capítulo anterior.
Fundamental aos arranjos que vinculam saber, poder e modernidade (Foucault, 2021;
Glissant, 2008), a proeminência do olhar na produção de conhecimento científico foi localizada
por Maria Puig de la Bellacasa a partir da noção de “epistemologias dominantes do conhecimento-
como-visão” (Bellacasa, 2017, p. 20). Afinal, os sentidos foram hierarquizados, assim como as
diferentes formas de conhecimento (Oyěwùmí, 2002).
Para Donna Haraway (1995), a relação entre visão e objetividade remete a um olhar
ocidental, onisciente, masculinista e colonial. Ao pretender-se descorporificado, tal qual fosse uma
lente errante sem corpo, que supõe tudo ver de ponto de vista algum, a visão objetiva fez com que
a perspectiva fosse relegada aos corpos historicamente marcados, como se fosse um viés
contaminante:

A ‘ausência do corpo’ tem sido uma pré-condição do pensamento racional.


Mulheres, povos primitivos, judeus, africanos, pobres e todas aquelas pessoas que
foram qualificadas com o rótulo de ‘diferente’, em épocas históricas variadas,
foram consideradas como corporalizadas, dominadas, portanto, pelo instinto e pelo
afeto, estando a razão longe delas. Elas são o Outro e o Outro é um corpo
(Oyěwùmí, 2002, p. 4).

Compreendendo esse olhar pretensamente descorporificado como uma “ilusão de ótica”


(Haraway, 1995, p.28), Donna Haraway aponta que as práticas visuais são necessariamente
corporificadas e, por isso mesmo, localizadas. A objetividade é, necessariamente, devedora de uma
perspectiva parcial e situada, o que pretendo mostrar a partir da técnica de observação padronizada

16
do tórax, ao esmiuçar o que faz ver a respiração. Observar a respiração com atenção aos
movimentos do tórax depende do treinamento do olhar a partir de práticas de conhecimento
fisiológicas e anatômicas que, no entanto, não esgotam as descrições e materializações da
respiração.

Nas perspectivas ocidentais, considera-se que a respiração é realizada por meio da


inspiração e da expiração, e no Pranayama, por exemplo, considera-se que a
respiração é realizada em quatro partes: inspiração, uma pausa cheia de ar após a
inspiração, expiração e uma pausa sem ar após a expiração. A respiração também
tem diferentes significados, por exemplo, nas teorias e práticas de ioga, no controle
da dor e no pensamento filosófico, místico e religioso, nos quais a respiração está
associada predominantemente aos espíritos, aos deuses e à imaterialidade da vida.
(Górska, 2016, p. 29).

Desse modo, particularmente, a fisiologia descreve a respiração como um fluxo material


que se divide em dois processos distintos:

O processo é descrito em duas fases: inspiração e expiração. Durante a inspiração,


o diafragma (o músculo na parte inferior da cavidade torácica) e os músculos
intercostais (os músculos entre as costelas) se contraem e permitem que o fluxo de
ar entre nos pulmões. Inspire. Durante a expiração, o diafragma e os músculos
intercostais relaxam e empurram os gases para fora dos pulmões. Expire. (Górska,
2016, p. 42 [tradução minha]).

O direcionamento da observação e da atenção da médica para a expansão do tórax traz à


tona que “o código perceptivo” (Foucault, 2021, p. 57) médico, para insistir no termo usado por
Michel Foucault, opera a partir de uma base fisiológica que tanto multiplica os agentes envolvidos
na respiração, estendendo o processo respiratório, por exemplo, aos músculos16, quanto orienta o
olhar para o tórax. Para que os médicos olhem e vejam a respiração como uma sequência de
movimentos visíveis no tórax e distribuídos no tempo, o olhar é treinado e direcionado a partir da

16
Como veremos adiante, as técnicas de observação dos padrões respiratórios também se direcionam às musculaturas
envolvidas na respiração. Perceber o uso da musculatura (especialmente abdominal) é uma das formas pelas quais as
profissionais de saúde olham e veem a dificuldade respiratória.

17
organização fisiológica do “dinamismo material” da respiração (Górska, 2016, p. 42), que concebe
o pulmão como o espaço material por excelência das trocas gasosas.
Nesse sentido, vale mencionar que as descrições anatômicas do corpo estão relacionadas a
uma longa história experimental de práticas de dissecação de cadáveres, de desenvolvimento de
técnicas de plastinação de órgãos e também às tecnologias de imagem, que, como vimos no
capítulo anterior, reconfiguraram os espaços do corpo e o olhar médico. Ao mesmo tempo, a
organização fisiológica do “dinamismo material” da respiração também foi uma descrição
científica dos fluxos respiratórios estabilizada a partir de uma longa história de práticas e
experimentações, que envolvem o próprio desenvolvimento de aparatos de mensuração, a
elaboração de leis físico-químicas sobre o comportamento dos gases e as disputas político-
científicas travadas pelos fisiólogos do século XIX para consolidarem a fisiologia como um campo
disciplinar (Braun, 2014, p. 11).
Emaranhando o olhar clínico com práticas de conhecimento fisiológicas e anatômicas, a
atenção à respiração descrita pela médica também mostra que olhar e ver requer um processo
pedagógico da atenção (Ingold, 2010) técnica à respiração. Trata-se não apenas de compreender
as descrições fisiológicas e anatômicas nos livros, mas de treinar o olhar para que ele consiga ver
a respiração fisiologicamente por meio dos movimentos do tórax em um constante esforço ativo e
performativo para materializá-la. Trata-se de um processo pedagógico para o qual a experiência
faz diferença, já que, como vimos, a médica percebeu que a respiração da mulher estava rápida
demais enquanto o outro médico, menos experiente, não notou nada.
A minha própria experiência etnográfica exemplifica as nuances desse processo
pedagógico que permite olhar e, então, ver a respiração fisiológica. Certa feita, as alunas de
fisioterapia estavam finalizando o atendimento de um dos pacientes internados na Zona
Temporária. Eu estava diante do vidro, que me permitia observar o interior do quarto ao lado, onde
estava Kátia, a paciente que, como mencionei na introdução, esteve internada por um longo
período na Zona Temporária. Ainda que a transparência arquitetônica gerada pelo vidro me
permitisse ver o interior do quarto ao lado e observar que Kátia estava dormindo, o meu olhar
destreinado não era capaz de perceber que algo anormal estava se passando. A fisioterapeuta
responsável chegou ao local e posicionou-se diante do vidro, juntando-se a mim. Assim que firmou
os seus olhos na paciente por meio da transparência do vidro, ela afirmou, já saindo apressada para
intervir, “ela tá em gasping”.

18
Como descobri pouco depois, o gasping é um padrão respiratório17 relacionado à angústia
respiratória e também chamado de padrão agônico. Uma explicação não técnica e corrente
utilizada para que se identifique esse padrão é que a pessoa respira “como um peixe fora d’água”,
como me disse a fisioterapeuta mais tarde naquele dia. Nesse caso, olhar e ver o padrão
respiratório, dentre outras coisas por meio dos movimentos do tórax, significa ver uma respiração
relacionada com o sofrimento. Não à toa, a fisioterapeuta correu para intervir, a fim de estabilizar
a respiração de Kátia. Mesmo olhando a paciente por algum tempo diante do vidro, não pude
enxergar ou identificar o padrão respiratório agônico relacionado pelos profissionais de saúde ao
sofrimento. Tampouco pude compreender prontamente a gravidade do estado de saúde envolvido
no sono da paciente, que, como a pressa da fisioterapeuta anunciava, requeria intervenção rápida.
Assim como a médica infectologista olhou e viu a frequência respiratória elevada da
paciente por meio da técnica de observação padronizada performada pelo seu olhar clínico, a
fisioterapeuta — também a partir de seu olhar treinado para prestar atenção na respiração — olhou
e viu, através da mediação da transparência do vidro, que a paciente estava em gasping.
Ver, como demonstra a minha própria experiência de observação e os eventos ocorridos no
PS e na Zona Temporária, é uma prática visual “sempre mediada por conhecimento, tecnologias,
dispositivos, teorias, ideologias, e assim por diante.” (M’Charek, 2020, p. 372). Precisamente, é
nesse sentido que compreendo o olhar médico como uma tecnologia de visão. Ou seja, como um
aparato clínico de observação que produz a respiração como um fenômeno legível, observável e
mensurável. Feita legível por meio das mensurações (e dos padrões), a respiração passa a contar
sobre as condições de saúde dos pacientes.
Ao ser performada, a técnica de observação do tórax também traz à tona a animação da
respiração. Como a médica também apontou ao relatar a sua experiência:

Eu prefiro fazer isso [contar a elevação do tórax] quando o paciente não percebe,
senão você fica olhando muito fixamente e gera uma certa tensão. Às vezes, eu
faço de longe, mas perto o suficiente pra poder contar ou, quando isso não é
possível, eu falo pro paciente: ‘olha, tô olhando tão fixamente por isso’, para não
gerar ansiedade. Às vezes, é um pouco tenso, porque conversar e contar, né... mas
eu falo, explico pro paciente o que eu tô fazendo, porque alguém ficar olhando fixo
pra você, ainda mais numa situação… Então, eu sempre explico: ‘Ó, tô aqui, tô

17
Enquanto a frequência respiratória materializa a velocidade da respiração a partir de determinado tempo, um
minuto, o padrão respiratório materializa o ato vital como ritmos normais ou irregulares, que são visíveis por meio da
atenção ao tórax, mas só. Também se observa, por exemplo, o batimento das asas nasais e o uso de musculatura
acessória, especialmente abdominal.

19
olhando um pouco quieta pra contar quantas vezes você tá respirando’. Mas eu
prefiro que eles não vejam, porque também gera uma ansiedade e isso até muda a
respiração, a pessoa passa a respirar mais rápido.

A observação pode alterar a respiração. As fronteiras entre o sujeito que observa e o objeto
observado não são sólidas e rigorosamente delineadas, porque a mensuração emerge do “encontro
entre a matéria e o significado” (Barad, 2007). Assim, para evitar a ansiedade e a tensão dos
pacientes, a médica, preferencialmente, procurava por um ponto de vista a partir do qual ela
pudesse olhar e ver sem ser vista, ou seja, um ponto de vista que a permitisse olhar os pacientes
sem que estes a vissem performando a técnica que exige repousar fixamente o olhar no corpo.
Na medida que a técnica de observação pode alterar o ritmo da respiração — que é o
próprio objeto da observação —, a médica manejava a sua posicionalidade: a profissional buscava
uma posição, ou seja, um ponto de vista específico que a permitisse manejar e controlar os
potenciais “efeitos subjetivos” (M’charek, 2020) — como a ansiedade e a tensão dos pacientes —
durante a performatividade da técnica.
O manejo da posicionalidade do sujeito que performa a observação padronizada mostra de
forma cristalina como a mensuração não é uma representação da respiração, mas sim o efeito de
uma tecnologia de visão relacional. Nesse sentido, embora eu não tenha tido oportunidade de
acompanhar as investigações clínicas em um nível ambulatorial, a partir de minhas experiências
de pesquisa na Zona Temporária e também de minhas experiências como usuária do SUS ao longo
de toda a minha vida, entendo que muitas dimensões podem atravessar o encontro de médicos e
de pacientes e que os “efeitos subjetivos” não necessariamente se restringem às alterações da
respiração dos pacientes pelas emoções que podem sentir quando o olhar médico repousa sobre o
corpo. Melhor dizendo, considero que diversos “efeitos subjetivos” e moralidades também
constituem o próprio olhar médico, modulando a atenção à respiração e aquilo que se olha e se vê.
Observar o corpo de forma padronizada para ver a respiração em termos numéricos também
significa manejar os efeitos da relacionalidade implicada na prática visual. Portanto, para que a
respiração seja materializada como frequência respiratória a partir do olhar médico, a visão precisa
ser corporificada. A visão é educada e treinada, tecnicamente sensibilizada e situacionalmente
posicionada para que se controle os próprios efeitos relacionais da técnica padronizada. Trocando

20
em miúdos, a respiração fisiológica não pré-existe às observações padronizadas do corpo. Ela
emerge a partir delas, por exemplo, por meio da medição da frequência respiratória.
É importante notar que a mensuração passa a ser clinicamente relevante — um parâmetro
— em relação a um padrão de referência. Os 30 mrm realizados pela paciente no PS mostraram
para a profissional que a despeito de a paciente relatar estar bem, algo se passava com a sua saúde,
porque a medição, o ritmo da respiração materializado por meio do olhar médico, estava fora do
que o padrão de referência institui como normal. A partir da identificação da anormalidade ou
normalidade do ritmo da respiração por meio da comparação do número com o padrão de
referência, a respiração se torna, enfim, um indicativo de saúde: ela passa a contar sobre a saúde.
No caso do atendimento realizado no PS, a identificação da frequência respiratória elevada
da paciente fez com que os médicos seguissem com as investigações clínicas, porque, como
também mencionou a infectologista:

Quando o paciente está com a frequência respiratória elevada, a gente sabe que é
uma questão de tempo até que ele entre em fadiga [situação de cansaço apenas para
respirar], porque a gente não foi feito pra respirar rápido durante muito tempo. A
gente aguenta durante um tempo, umas horas. Por isso que eu digo, mesmo quando
o paciente apresenta uma oxigenação razoável, uma frequência respiratória
elevada é um sinal de que ele vai fatigar. Então, por isso que eu digo, mesmo um
paciente com uma oxigenação razoável, uma frequência respiratória elevada, é um
sinal de que ele vai fatigar, porque ele tá respirando rápido pra conseguir manter
essa saturação boa. Ele tá tentando aumentar o aporte de oxigênio respirando
rápido, mas não consegue. Aí, ele entra em fadiga respiratória e isso é mais um
sinal de que ele pode entrar em falência18.

Tornadas fenômenos legíveis, as respirações contam sobre a saúde e doença e, assim, são
gerativas de práticas que têm por objetivo estabilizar os corpos. Nesse sentido, como mencionei
no início deste capítulo, a primeira prática realizada pelas profissionais na Zona Temporária era a
coleta de parâmetros. As fisioterapeutas registravam um conjunto de mensurações que, assim
como a frequência respiratória — materializada a partir do olhar clínico no contexto do PS —,
eram geradas por meio de aparatos maquínicos específicos de medição. Diferentemente do

18
A relação estabelecida pela médica entre a oxigenação e a frequência respiratória a partir da fatiga exemplifica
como os parâmetros são associados em termos da racionalidade médica.

21
contexto do Pronto-Socorro, onde a médica infectologista atendeu a paciente que apresentava uma
frequência respiratória elevada, na Zona Temporária, os pacientes graves hospitalizados eram
monitorados a todo o momento por meio de aparelhos de medição conectados aos corpos.
Assim, as mensurações dos fluxos corporais eram continuamente visíveis nos monitores
que, quando olhados pelas profissionais, eram prontamente articuladas aos seus respectivos
padrões de referência, emergindo como parâmetros centrais nas suas práticas. Exemplo disso é
que o período da manhã era marcado pela grande presença de desconforto respiratório dos
pacientes na Zona Temporária. Uma das razões para isso era o acúmulo de secreções que obstruem
as vias aéreas dos pacientes ao longo da noite, já que não havia fisioterapeutas no período
noturno19.
O acúmulo de secreções afeta os fluxos de ar, isto é, o “dinamismo material” (citar) da
inspiração e da expiração. Com efeito, as mensurações da respiração visíveis nos monitores
também eram afetadas nessas situações, embora não fossem as únicas maneiras de observar e ver
o desconforto respiratório gerado pela obstrução das vias aéreas.
A presença de desconforto respiratório fazia com que as fisioterapeutas, ainda durante a
realização da prática de coleta de parâmetros, identificassem que os parâmetros respiratórios
visíveis nos monitores — como a frequência respiratória e saturação de oxigênio — estavam
alterados. Tal identificação influenciava tanto na definição das prioridades de atendimento quanto,
muitas vezes, desencadeava prontamente na realização de alguma prática para trazer, rapidamente,
conforto respiratório aos pacientes, o que, consequentemente, levava à normalização do
parâmetro. Isso era muito comum em relação aos pacientes que estavam em uso de suportes de
oxigênio. Diante da identificação da irregularidade da saturação de oxigênio — visível nos
monitores graças aos oxímetros conectados aos dedos dos pacientes —, as profissionais ajustavam
as quantidades do gás fornecido ainda na fase da própria coleta. Atentas aos monitores, elas
esperavam que o número normalizasse nos monitores antes de deixarem os quartos.
Assim, as mensurações, associadas aos padrões de referência, são formas médico
científicas de tornar esse fenômeno vital um indicativo de saúde, que é importante tanto para
identificar as condições de saúde — tal como explicita o relato da médica que viu a respiração
rápida da paciente —, quanto para monitorar a estabilidade dos pacientes — por exemplo, por

19
Como tratarei adiante, essas profissionais, dentre inúmeras outras práticas, manejavam as secreções dos pacientes
nos atendimentos, o que era um aspecto fundamental para manter o conforto respiratório.

22
meio da identificação do desconforto respiratório provocado pelo acúmulo de secreções — e,
ainda, para ajustar adequadamente o fornecimento de oxigênio para as pessoas que precisam de
próteses respiratórias para conseguirem respirar com conforto.
Como descrevi, diversas dimensões constituem as condições de objetividade do olhar
médico — as práticas de conhecimento, o processo de educação da atenção e a posição
corporificada que permite performar a técnica a partir de um ponto de vista que não altere o ritmo
da respiração — para que ele opere como um aparato clínico, uma tecnologia de visão capaz de
produzir a legibilidade mensurável da respiração a partir da frequência respiratória.
No próximo tópico, abordo a saturação de oxigênio, um parâmetro diretamente relacionado
e associado com a frequência respiratória nas dinâmicas cotidianas, como o próprio relato da
médica infectologista sobre a fadiga elucida. Considerando que os parâmetros são relacionados na
prática clínica e tendo elaborado como a mensuração é fundamental para que a respiração emerja
como um indicativo de saúde, no que segue, estendo as reflexões e as problemáticas que
atravessam as formas de medir a respiração a partir da saturação de oxigênio e procuro desdobrar
melhor o papel dos padrões de referência.

2.2 Respirações racializadas: as mensurações moleculares

Em outubro de 1976, Edwin B. Merrick e Thomas J. Hayes, dois cientistas que


investigavam as mensurações dos níveis de oxigênio no sangue arterial, publicaram no Hewlett-
Packard Journal um estudo que indicava para como diferentes pigmentações de pele alteravam as
medições dos níveis de oxigenação dos corpos. Apesar do estudo datado de 1976 e de outros
publicados ao longo das décadas seguintes (Adler, et al., 1998; Bickler et. al, 2005), foi apenas no
século seguinte que o tema recebeu atenção e notoriedade pública no campo da medicina e fora
dele.
Em dezembro de 2020, quando todos os olhos estavam voltados para a respiração em razão
da pandemia de Covid-19, médicos da University of Michigan Medical School publicaram um
estudo (Sjoding et. al, 2020) que apontava o viés racial do oxímetro, o principal dispositivo
atualmente utilizado nos serviços de saúde ao redor do globo para mensurar de forma rápida a
saturação de oxigênio no sangue arterial. Com efeito, o FDA (Food and Drug Administration),

23
uma das mais relevantes agências regulatórias do mundo, passou a aferir a eficácia do oxímetro,
tendo, em outubro de 2022, lançado um relatório de recomendações para o seu uso20.
Importante em diferentes níveis de atenção à saúde, a mensuração da saturação de oxigênio
permite identificar a hipóxia — nível de oxigenação considerado insuficiente para manter as
funções corporais —, regular e administrar as quantidades de oxigênio fornecidas aos pacientes
que estão em uso de diferentes suportes respiratórios e monitorar continuamente pacientes
internados em unidades de terapia intensiva e em setores de emergência. Além disso, a saturação
de oxigênio também é um parâmetro relevante para determinados processos de tomada de decisão
e, no caso do Sistema Único de Saúde (SUS), é comumente aferida nos procedimentos de triagem,
por meio dos quais as prioridades de atendimento são definidas de acordo com o protocolo de
Manchester21.
O estudo de 2020, que impacta diretamente nas capilaridades do cuidado e da assistência
oferecidos aos pacientes com quadros respiratórios, foi realizado por meio da comparação das
mensurações da saturação de oxigênio geradas por dois diferentes métodos: a oximetria e a
gasometria22.
No caso da gasometria, exame laboratorial mencionado no relato da médica infectologista
que inicia o tópico anterior, o sangue puncionado das artérias com agulhas, seringas e saberes é
analisado no laboratório por meio de técnicas que permitem mensurar os gases presentes no sangue
arterial, dentre eles, o oxigênio. Embora seja firmado como o método padrão-ouro para mensurar
a saturação de oxigênio, a gasometria é um exame considerado invasivo, assim como requer tempo
para que seja realizada no laboratório. De forma muito diferente, o oxímetro mensura a saturação
de oxigênio contínua e instantaneamente. Basta colocar o dispositivo no dedo e a mensuração
aparece no visor em termos percentuais.
A praticidade de uso do aparelho está relacionada com a sua mecânica de funcionamento.
O oxímetro possui um microprocessador que controla a emissão de ondas de luz infravermelhas e

20
O relatório “Review of Pulse Oximeters and Factors that can Impact their Accuracy” foi lançado pelo FDA em
novembro de 2022. Disponível em: [https://www.fda.gov/media/162709/download]

21
O protocolo de Manchester é usado para definir as prioridades de atendimento e estabelecer o tempo de espera dos
pacientes para serem atendidos, a partir da identificação e da classificação da gravidade do estado de saúde.

22
O estudo foi realizado com pacientes adultos internados em unidades de terapia intensiva em 178 hospitais no
período de 2014 a 2015 e com pacientes adultos que receberam oxigênio hospitalar no período de janeiro a julho de
2020 no hospital da mesma universidade onde o estudo foi realizado (Sjoding et. al, 2020).

24
vermelhas. Assim, quando os aparelhos médicos são colocados nos dedos dos pacientes, os
emissores emitem as ondas de luz, capazes de interagir com a hemoglobina — a proteína presente
nos glóbulos vermelhos do sangue arterial e estabilizada pela ciência como a responsável pelo
transporte de oxigênio no corpo.
Para compreender o funcionamento do equipamento, é importante ter em mente que as
luzes emitidas pelo oxímetro são absorvidas de forma diferente pela desoxi-hemoglobina —
quando a hemoglobina presente no sangue arterial não se conectou às moléculas de oxigênio — e
pela oxihemoglobina — quando a proteína, pelo contrário, conectou-se com as moléculas de
oxigênio. A partir do método de espectrofotometria23, a diferença de absorção das ondas de luz
pela desoxi-hemoglobina e pela oxihemoglobina é captada por fotodetector (um receptor dos sinais
dessas diferentes interações entre a desoxi-hemoglobina e oxihemoglobina com as ondas de luz
emitidas pelo aparato). Captada, essa diferença é calculada em termos percentuais de forma
automatizada por algoritmos que, assim, indicam os níveis de oxigênio presentes nos corpos.
No estudo dos pesquisadores norte-americanos, a comparação entre as mensurações dos
níveis de oxigênio no sangue provenientes dos dois métodos — a gasometria e a oximetria —
levou-os a identificar que “os pacientes negros tiveram quase três vezes mais frequência de
hipoxemia oculta não detectada pela oximetria do que os pacientes brancos.” (Sjoding et. al, 2020).
Em outras palavras, a comparação dos níveis de oxigênio nos corpos de um amplo grupo de
pacientes, mensurados por meio de dois métodos diferentes, resultou na constatação de que o
oxímetro foi significativamente menos eficiente para detectar os baixos níveis de oxigênio (a
hipóxia) em corpos negros do que em corpos brancos.
A diferença de eficácia do instrumento médico constatada no estudo comparativo dos
pesquisadores de Michigan foi relacionada àquilo que Merrick e Hayes apontaram há mais de
quatro décadas, isto é, à pigmentação da pele. A afirmação do viés racial do instrumento médico
trouxe à tona que a melanina, proteína que foi cientificamente relacionada com a pigmentação da
pele, é uma mediadora, até então invisibilizada, do processo de materialização da saturação de
oxigênio por meio da oximetria.
À semelhança de Karen Barad (2007) e como procurei descrever em relação à frequência
respiratória no tópico anterior, entendo que os fenômenos corporais feitos mensuráveis não estão
apartados dos aparatos que permitem materializá-los. Naquele caso, elaborei que a observação da

23
Método científico baseado no cálculo da diferença de absorção de luz por uma dada substância.

25
respiração depende de técnicas padronizadas, de práticas de conhecimento fisiológicas e
anatômicas, de processos pedagógicos de educação da visão, da arquitetura de vidros, do manejo
da posicionalidade do sujeito que olha o corpo para performar a técnica e também dos padrões de
referência que definem o que é uma mensuração normal. Ou seja, a frequência respiratória está
articulada com o aparato que a produz, o olhar médico. Com isso em mente, diante da controvérsia
do oxímetro, tampouco compreendo que o instrumento “lê” ou que representa uma dimensão
respiratória molecular preexistente seja ela saturação de oxigênio, seja ela a melanina. De outra
maneira, entendo que tais materialidades — as hemoglobinas conectados às moléculas de oxigênio
e as melaninas — são performadas por meio de intra-ações (Barad, 2007) que, como descrevi
acima, envolvem as ondas de luz infravermelhas e vermelhas, os seus emissores e receptores,
sangue, moléculas de oxigênio, os chips de silício e os algoritmos, que fazem da diferença de
absorção de luz pelo corpo uma questão de ordem matemática, calculável.
Diante disso, interessa-me entender por meio da mecânica de funcionamento do dispositivo
de mensuração como a melanina, uma mediadora até então invisibilizada do processo de
materialização da respiração, emerge como um viés racial no processo de materialização da
respiração feito por meio desse aparato tecnológico e cujo efeito é o acesso desigual à saúde.
Como argumenta Aníbal Quijano (2005), a noção de raça nasceu junto com a América no
processo de colonização. Na medida que o capitalismo colonial/moderno instaurou um novo
padrão de poder, a ideia de raça foi estabelecida como o seu eixo central de sustentação por meio
da classificação social da população mundial em termos raciais. Desse modo, a noção de raça não
só é historicamente localizável como também desempenhou um papel fundamental de “codificação
das diferenças entre conquistadores e conquistados” (Quijano, 2005, p. 217), pois, através dessa
forma de categorização, o novo padrão de poder foi legitimado a partir de uma “supostamente
distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a
outros” (ibidem). Mais tarde, como também desdobra Quijano (2005), os colonizadores fizeram
da cor o ponto nevrálgico da categorização racial da população, de modo que os processos de
biologização da diferença racial e o consequente enfoque na cor foram frutos de relações coloniais,
gerativas de uma “epidermização da inferioridade” (Fanon, 2020, p.25).
Nesse sentido, Amade M’charek (2020) pontua que com a intensa entrada da genética em
diversos campos de conhecimento após a realização do Projeto do Genoma Humano, o enfoque
científico no fenótipo, ou seja, na aparência, foi revigorado. Segundo a autora, o fenótipo tem sido

26
naturalizado e mobilizado como um instrumento para ver e conhecer diferenças raciais. No
entanto, como M’charek (2020) demonstra etnograficamente, o fenótipo não é um atributo inerente
dos corpos, mas um objeto material-semiótico por excelência. Articulada aos efeitos duradouros e
contínuos do padrão de poder do capitalismo colonial moderno, a biologização da diferença racial
foi gestada no seio das relações coloniais de dominação (Quijano, 2005). No caso da controvérsia
do oxímetro, assim como o fenótipo, a melanina aparece como uma suposta expressão biológica
inerente e molecular da diferença racial, que tensiona as condições de objetividade da
performatividade da tecnologia de mensuração da saturação de oxigênio. Assim como o fenótipo,
a melanina, antes de ser um atributo biológico inerente ao corpo, é um efeito das práticas científicas
e de como elas estão vinculadas aos processos coloniais de produção da biologização da raça
mencionados acima. Esse vínculo se torna visível quando miramos para algumas particularidades
da mecânica de funcionamento do aparelho médico.
Nem o fotorreceptor do oxímetro (o mecanismo que recebe os sinais de diferentes
absorções dos raios de luz) e tampouco as ondas de raios emitidas pelo dispositivo distinguem as
diferentes proteínas (a hemoglobina e a melanina) envolvidas nas intra-ações que materializam a
saturação de oxigênio. O aparelho simplesmente calcula a diferença de absorção de luz que é
refletida e captada na forma de sinais pelo fotorreceptor. Portanto, o aparelho não “lê” uma suposta
diferença racial biológica nos corpos. A dinâmica de luz e de reflexão envolvida na mecânica de
funcionamento da tecnologia faz com que o dispositivo seja capaz apenas de captar sinais refletidos
de diferença de absorção de luz, que, por sua vez, são convertidos em termos percentuais pelos
algoritmos, os agentes que estabelecem os termos da equação envolvidos na intra-ação.
Dessse modo, a melanina, mais do que explicitar uma diferença racial biológica inerente
aos corpos, mostra noções problemáticas de raça, que, conforme argumentou Lundy Braun (2014)
a partir do espirômetro, estão introjetadas na própria “arquitetura do dispositivo”. Isso porque, a
melanina emerge como um viés racial, na medida em que a arquitetura e o design do oxímetro
“foram projetados e calibrados usando tons de pele mais claros, (dessa forma) a melanina, em
pessoas com pele mais escura, faz com que o oxímetro superestime a quantidade de sangue
oxigenado que eles têm” (Oza et. al, 2023)24.

24
Disponível em: [https://www.npr.org/2023/02/10/1156166554/covid-19-pulse-oximeters-racial-
bias#:~:text=But%20light%20is%20also%20absorbed,case%20of%20COVID%2D19%20is.]

27
O aparato é menos preciso em corpos negros, justamente porque foi projetado, testado e
calibrado a partir de corpos brancos e para ser usado em corpos brancos. Longe de ler uma
diferença racial biológica, a visibilidade da melanina no processo de mensuração a partir da
controvérsia sobre a eficácia do dispositivo médico traz à tona que:

(...) a situação atual é o produto de uma longa e não examinada história na qual os
cientistas renunciaram o conhecimento do corpo a instrumentos de precisão,
obscurecendo a natureza social das categorias empregadas, as decisões tomadas
durante a produção do design do instrumento e as ambigüidades dos processos de
doença. (Braun, 2014, p.XiX)

A melanina só pode ser um viés racial porque o corpo branco foi instituído como a norma.
As condições de elaboração da objetividade do dispositivo foram inteiramente modeladas a partir
de corpos brancos: na produção, testagem e calibramento do aparelho. O projeto colonial que, ao
mesmo tempo, classificou a população em termos raciais e situou o homem branco como modelo
universal, está introjetado na própria mecânica de funcionamento da tecnologia que,
cotidianamente, performa a saturação de oxigênio reificando a diferença racial como uma
dimensão biológica, o que produz acessos desiguais à saúde. Desse modo, a proteína nos conta
muito mais sobre o fazer científico e sobre os efeitos duradouros do colonialismo e de suas
dimensões moleculares do que sobre uma diferença racial biologicamente inerente aos corpos.
Rosana Castro (2020), especificamente a partir das experimentações farmacêuticas em
seres humanos, tratou de como a raça passou a ocupar um lugar significativo na pesquisa clínica.

(..) a raça constitui um mediador central na extrapolação de dados científicos


produzidos em fluxos farmacocinéticos e uma categoria fundamental para a
particularização de grupos e fármacos como estratégia de produção e marketing
farmacêutico. (Castro, 2020, p. 163).

Como a autora aborda em seu estudo, a mediação central da raça na experimentação


farmacêutica está relacionada com reivindicações políticas e com a concepção de que o
comportamento dos medicamentos é racialmente diferenciado. A partir disso, desde a década de
1990, o FDA (Food and Drugs Administration) “passou a exigir dados clínicos racialmente
estratificados” (Castro, 2020, p. 161) para validar a eficácia dos medicamentos em diferentes

28
populações. Como analisa Castro, a partir das novas exigências regulatórias do FDA, países da
América Latina, e em particular o Brasil, tornaram-se ativos centrais para o desenvolvimento das
pesquisas clínicas de medicamentos. Processo que implicou tanto em noções problemáticas de raça
quanto na capitalização, pela indústria farmacêutica, das condições de saúde e de doença de
populações com acesso precarizado à saúde.
O contexto das experimentações farmacêuticas e os vetores que fizeram com que a raça se
tornasse uma mediadora central nas testagens reverbera o estado do debate em torno da
controvérsia sobre o viés racial do oxímetro, já que a afirmação do viés racial recolocou a questão
da importância da presença de diversidade racial nas fases de testagem dos dispositivos em seres
humanos. Ao mesmo tempo, as inúmeras questões científico-ético-políticas que emergiram a partir
da divulgação do estudo realizado na Universidade de Michigan vem sendo tratadas
principalmente como questões que podem ser solucionadas por meio de “correções” e de “ajustes”
técnicos no aparelho, o que está diretamente relacionado aos padrões de referência.
Vimos no tópico anterior que uma mensuração se torna clinicamente relevante, um
parâmetro que conta sobre as condições de saúde, quando ela é analisada à luz do seu respectivo
padrão de referência. No início deste capítulo, mostrei esse movimento a partir do relato da médica
infectologista, que pôde perceber que algo de errado se passava com a saúde da paciente no PS,
uma vez que a mensuração da frequência respiratória da mulher foi considerada elevada quando
colocada em relação ao padrão de referência que define a normalidade do ritmo da respiração.
No caso da saturação de oxigênio, a validade da mensuração gerada pelo oxímetro também
se dá a partir da relação estabelecida entre a mensuração gerada pelo aparelho acoplado ao dedo e
o padrão de referência que instituí o que é uma oxigenação normal. Nesse caso, os níveis de
oxigenação no sangue arterial devem variar de 92% a 98%, sendo que esse padrão de referência
“normal” não vale para os tabagistas e nem para pessoas com determinados diagnósticos de
doença pulmonar. Considera-se que o grupo “tabagista”, em particular, tem uma oxigenação
inferior decorrente da prática de fumar.
Como mostra Lundy Braun (2014), esses padrões de referência, verdadeiras caixas-pretas
(Latour), vale mencionar, são elaborados por meio de operações estatísticas e são “obtidos das
populações ‘normais’, ‘saudáveis’ ou ‘representativas’” (Braun, 2014, p.XX). A partir do
instrumento de mensuração da capacidade pulmonar, Lundy Braun (2014) demonstra de maneira
mais detalhada quais são métodos mais comuns de produzir o “normal”:

29
Existem dois métodos utilizados para “corrigir” ou “ajustar” a raça e a etnia, ambos
enraizados num paradigma de diferença. Até recentemente, o método mais comum
de correção racial – conhecido como ajuste proporcional – envolvia a redução da
norma ‘branca’, que previa, geralmente, 10 a 15 por cento para grupos rotulados
de ‘negros’ e de 4 a 6 por cento para grupos rotulados de ‘asiáticos’. A abordagem
alternativa – distinta de um ‘fator de correção’ por não estabelecer explicitamente
valores e referência ‘brancos’ como normativos – emprega padrões específicos da
população. Neste caso, o operador da máquina atribui um indivíduo a um grupo
racial e depois compara os seus valores com padrões derivados de estudos da
função pulmonar nesse mesmo grupo. Assim como o ajuste proporcional, este
método de correção racial também pressupõe diferenças com base na filiação ao
grupo. As diretrizes mais recentes do Joint Working Party da ATS/European
Respiratory Society (ERS), publicadas em 2005, recomendam o uso de valores de
referência específicos de raça e etnia, dependendo da sua disponibilidade. (Braun,
2014, p.XVII).

Assim, o que está em jogo nas soluções técnicas é, precisamente, como os padrões de
referência são definidos. A controvérsia do viés racial trouxe à tona que a mensuração
materializada pelo dispositivo e o padrão de referência que a valida clinicamente estão plenamente
associados à instituição dos corpos brancos como a norma. Quando se entende que o oxímetro
superestima a oxigenação nos corpos negros, ocultando a hipóxia, trata-se de compreender que, ao
ser analisada à luz dos padrões de referência, a mensuração gerada pelo aparelho não é precisa,
porque o “normal” foi produzido e instituído a partir e para corpos brancos. A questão é que os
próprios aparelhos de medição são instrumentos usados para definir o normal.
Nesse sentido, a questão que emerge é que reduzir as questões científico-ético-sociais e
históricas que não só produziram um aparelho médico a partir de noções e práticas coloniais, mas
que também mantiveram o efeito diferencial ao acesso à saúde obliterados até 2020, é que as
soluções técnicas reiteram a raça como uma diferença biológica inerente. Portanto, trata-se de
como o colonialismo segue se perpetuando em níveis moleculares. Quando as soluções técnicas
são empacotadas nos algoritmos acionadas automaticamente25, elas obliteram, uma vez mais, as
relações entre as práticas científicas e o colonialismo.

25
Nesse sentido, Lundy Braun também pontua que: “Até que os espirômetros fossem computadorizados, os cálculos
necessários para a correção foram feitos manualmente. Com a informatização, por mais bruto que fosse inicialmente,
os fatores de correção foram diretamente - e invisivelmente - programados no espirômetro. Todas as especificações,
fatores de correção e interpretações agora estão contidas em pequenos chips e integrados perfeitamente ao

30
Ao me debruçar sobre a mecânica de funcionamento do oxímetro, procurei mostrar como
essa pequena peça de plástico presente em várias instâncias de atendimento à saúde está vinculada
a uma gama de processos científicos que reiteram o colonialismo. Refiro-me à produção, testagem,
calibramento e também às práticas que definem a normalidade do padrão de referência da saturação
de oxigênio. Com isso, espero ter mostrado que a emergência melanina enquanto um viés conta-
nos sobre como a diferença racial não é um atributo biológico a priori, sendo lida pelo aparelho
médico. De outro modo, a saturação de oxigênio e a melanina são materialidades produzidas por
meio de um conjunto de relações e processos científicos que produzem a diferença racial como um
atributo biológico inerente aos corpos, de maneira que a hipóxia, um grave quadro de saúde, não
pode ser identificada com o mesmo grau de acuidade nos corpos negros. Nesse caso, a mensuração
não nos conta apenas sobre como tornar a respiração legível permite que ela emerja como um
indicativo de saúde, mas, sobretudo, como diferentes respirações importam para que tal fenômeno
se torne um indicativo de saúde.

2.3. O que conta a respiração?

Tornar a respiração visível é uma maneira central de torná-la legível. Isto é, de que a
respiração conte sobre as condições de saúde dos pacientes. Ao me engajar antropologicamente
com as práticas de medir a respiração nas duas seções anteriores, procurei mostrar que ver a
respiração e que os modos pelos quais ela é vista (neste caso, as mensurações) estão diretamente
vinculados com paradigmas da modernidade. Ao questionar que as medições (seja ela gerada pela
técnica de observação, seja ela gerada tecnologia) leem e representam as respirações,
compreendendo que as técnicas e tecnologias produzem tais materialidades, busquei problematizar
a “ilusão de ótica” de uma suposta objetividade descorporificada. No caso da saturação de
oxigênio, a melanina nos mostra a pretensa “ilusão de ótica” da mensuração ao emergir como um
viés: a visibilidade mensurada das molecularidades da respiração sempre foi situada, a partir do
corpo colonizador. O oxímetro mostra que no processo de materialização da saturação de oxigênio

equipamento. O processo inteiro é totalmente automatizado, de modo que os usuários, muitas vezes, não sabem que,
ao selecionarem a raça de um paciente, eles estão ativando um ‘processo de correção’”. (Braun, 2014, p. XIX).

31
quem respira é relevante para que a respiração seja ou não um indicativo de saúde. Ou seja, para
que ela conte de forma eficaz sobre condições de saúde ou não.
Os parâmetros, assim como os exames de imagem, nunca são compreendidos
isoladamente. A prática clínica “é sempre uma associação”, como afirmou a médica que entrevistei
(capítulo 1). A frequência respiratória e a saturação são duas formas de ver a respiração como um
fenômeno mensurável, ao tempo que uma está relacionada com a outra, como a médica
infectologista explicou na primeira seção deste capítulo a partir da fadiga, situação de grande
cansaço para conseguir respirar.
Assim, as práticas de mensuração aqui elaboradas contam que essas formas de ver a
respiração são fundamentais para identificar quadros respiratórios, para estabilizar os corpos, para
produzir e identificar a instabilidade da respiração de formas específicas; para monitorá-las em
contextos de emergência e realizar a oxigenoterapia — o fornecimento de oxigênio hospitalar
através das próteses respiratórias, do que tratarei no capítulo seguinte. As mensurações contam,
como ouvi frequentemente, que “a respiração é a vida” e também contam sobre as dimensões
moleculares que materializam o “eu não consigo respirar”, a frase dita por Eric Garner e George
Floyd, dois homens negros mortos, respectivamente, em 2014 e 2020, enquanto eram impedidos
de respirar por policiais brancos. Em outras palavras, por meio da saturação de oxigênio e de como
ela falha para identificar a hipóxia, vimos que a respiração, ao mesmo tempo que é materializada
como indicativo de saúde, também materializa condições de irrespirabilidade desde um nível
molecular.
Como mostrarei nos próximos capítulos, assim como no caso dos corpos obesos e dos
tomógrados, a menor eficácia do dispositivo de mensuração nos corpos negros não é uma dimensão
isolada do acesso à saúde prejudicado. As pneumoconioses, como procurei mostrar no capítulo
anterior, também estão relacionadas com a exposição desigual, marcada por raça, gênero e classe,
às toxicidades que levam ao adoecimento. Doenças que, muitas vezes, tornam-se visíveis nos
exames de raio-x feitos nos check-ups apenas “quando você não consegue mais respirar”.
Ao longo dos próximos capítulos, essa dinâmica feita visível a partir das mensurações, isto
é, da emergência da respiração como indicativo de saúde e das condições de produção de
irrespirabilidade que constituem os manejos da respiração e que a tornam legível, será desdobrada
a partir de outras materialidades respiratórias.

32
Iniciei este capítulo nos limites da Zona Temporária, onde a primeira prática realizada pelas
profissionais de fisioterapia era a coleta de parâmetros, dentre eles, a frequência respiratória e a
saturação de oxigênio, mensurações consideradas sinais vitais na rotina. Tendo dirigido minha
descrição para o próprio funcionamento do aparelho e para a técnica de observação do tórax neste
capítulo, a seguir, retomo esses parâmetros à luz de outras práticas. Mais especificamente, no
próximo capítulo, as mensurações aparecem em ação a partir do manejo dos suportes respiratórios
- das máscaras, cateteres e ventiladores mecânicos e da conexão dos corpos com a rede de oxigênio.
Ou seja, analiso como a produção e a identificação da instabilidade da respiração por meio dos
parâmetros é articulada com práticas que materializam as respirações por meio do acoplamento
dos corpos com próteses, a fim de estabilizá-la.

Referências Bibliográficas

ADLER, Jonathan; HUGHES, Lori; VTVLECCHIA, Roberto; CAMARGO JR, Carlos. Effect of
skin pigmentation on pulse oximetry accuracy in the emergency department. Academic
Emergency Medicine - A Global Journal Emergency Care, v. 5 (10), 1998.

BARAD, K. K. Barad, Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of
Matter and Meaning. Durham: Duke University Press, 2007.

BRAUN, Lundy. Breathing Race into the Machine: The Surprising Career of the Spirometer from
Plantation to Genetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.

CASTRO, Rosana. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação


farmacêutica. São Paulo: HUCITEC, 2020.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária (7 ed.),2021.

GLISSANT, Édouard. Pela opacidade. Revista Criação & Crítica, (1), 2008. p. 53-55.
https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i1p53-55

GÓRSKA, Magdalena. Breathing matters: Feminist intersectional politics of vulnerability.


Doctoral Thesis. Linköping University - Studies in Arts and Science No. 683, 2016.

HARAWAY, Donna. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.

33
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da
perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 1995. p. 7-41,
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773

M’CHAREK, Amade. Tentacular Faces: Race and the Return of the Phenotype in Forensic
Identification. American Anthropologist, Vol. 122, No. 2, 2020. p. 369–380.

MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: n-1 edições, 2021.

MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. São Paulo: N-1 edições, 2020.
.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os
discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

INGOLD, Tim. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, 33(1), 2010.

PUIG DE LA BELLACASA, Maria. Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human
Worlds. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2017.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

SANABRIA, Emilia. Plastic Bodies: sex hormones and menstrual suppression in Brazil. Durham
and London: Duke University Press, 2016.

SICARD, Mônica. A fábrica do olhar: Imagens de ciência e aparelhos de visão (século XV-XX).
Lisboa: Edições 70, 2006.

SLOTERDIJK, Peter. Terror from the Air. Los Angeles: Cambridge: MIT Press, 2009.

34

Você também pode gostar