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Ciclo de Vida da Família e do Terapeuta: Implicações para a Terapia Familiar


Sistêmica

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Angela Helena Marin Débora Silva de Oliveira


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Ciclo de Vida da Família e do Terapeuta: Implicações
para a Terapia Familiar Sistêmica

Angela Helena Marin 1


Débora Silva de Oliveira 2

Resumo

No processo terapêutico com famílias, para que haja um bom ajuste


com vistas à mudança da disfuncionalidade familiar, faz-se necessário
pensar em um sistema mais complexo, considerando não apenas um, mas
dois ciclos de vida, o da família e o do terapeuta. Portanto, o objetivo deste
trabalho consiste em refletir sobre o ciclo de vida familiar e sua relação
com o ciclo de vida do terapeuta, a partir de uma .análise fundamentada ·
na teoria sistêmica. Destaca-se que o sistema terapêutico, para além da
teoria e da prática, também pressupõe as experiên_cias de vida do terapeu-
ta e as vivências de sua terapia individual e de supervisão clínica, o que
implica dizer que terapeutas podem sentir diversamente cada um de seus
pacientes, assim como estes podem se relacionar de diferentes modos
com seus terapeutas.
Palavras-chave: ciclo de vida familiar; terapeuta; teoria sistêmica.

Family and Therapist Life Cycle: lmplications


for Systemic .Family Therapy

Abstract

ln the famíly therapeutic process, to treat family'.s dysfunctionality, if s


necessary think a more complex system, considering two life cycles and
not just one, the family:s and therapist's cycle. Therefore, the aim of this
paper is focus the family /ife cycle and íts relatíonship with the therapíst fite
cyc/e, from systems, theory analysis. Thus, the therapeutic system, 6eyond

1
Angela Helena• Marin é psicóloga, especialísta em psicologia clínica (INFAPA), mestre e ·
doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e professora do Programa de Pós.,
-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
2 Débora Sílva de Oliveira é psicóloga, especialista em psicologia clínica (INFAPA),· mestre e

doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e professora do Complexo de Ensino
Superior de Cachoeirinha (CESUCA- Faculdade lnedi) e da Fundação Escola Superior do

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the theory and practice, a/so assumes the therapist's fite experíences, theír
individual therapy and clinic supervision, which implies that therapists may
teel differently each ot his patients, as we/1 as these can relate in different
ways with yours therapists.
Keywords: tamily fite cycle; therapist; systems theory.

No trabalho clínico com famílias se faz necessário considerar que a


mudança no sistema familiar ocorre apenas se houver também a inclusão
de um aspecto nem sempre discutido, o terapeuta (Minuchin, 1982; Simon,
1995). Combinar fatores que envolvem a família e o terapeuta representa
um bom prognóstico para a mudança familiar, fazendo-se necessário pensar
em um sistema terapêutico mais complexo, que considere não apenas um,
mas dois ciclos de vida para sua estruturação, o da família e o do terapeuta
(Carter & McGoldrick, 1995; Simon, 1995). Portanto, a maneira como os
ciclos de vida da família e do terapeuta se combinam constitui-se parte
importante do processo.
O ciclo de vida familiar pode ser definido como o conjunto de transfor-
mações que marcam os diferentes estágios de evolução da família (Carter
& McGoldrick, 1995). Especificamente no processo terapêutico, o entendi-
mento do ciclo de vida familiar permite entender os sintomas e disfunções
da família ao longo do tempo, buscando contemplar o seu curso passado, o
que está vivenciando no presente e o que pretende para o futuro, podendo
contribuir para o reestabelecimento do seu momento desenvolvimental
(Andolfi, 1996; Carter & McGoldrick, 1995).
Embora teóricos da abordagem sistêmica tenham retratado a impor-
tante relação entre o ciclo de vida da família e o ciclo de vida do terapeuta
(Andolfi, 1996; Bowen, 1978; Minuchin, 1980; Osório 2002b; Simon, 1995;
Valle, 2002), encontram-se poucos estudos atuais, principalmente no con-
texto brasileiro, que discutam as características do terapeuta como fazendo
parte do processo terapêutico e interatuando com ele. Tanto em virtude
da escassez de publicações sobre o assunto quanto da importância de se
considerar a inter-relação entre o ciclo de vida da família e o ciclo de vida do
terapeuta que a atende, torna-se relevante discutir sobre o assunto. Nesse
sentido, o presente estudo visa refletir sobre o ciclo de vida da família e do
terapeuta, a partir de uma análise fundamentada na teoria sistêmica. Para
tanto, foi feita uma ampla busca de trabalhos sobre o tema, analisando-os
teoricamente e destacando suas principais contribuições.

Ciclo de vida: a família e o terapeuta em constante transformação

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No ~rabalh~ _com famílias, é importante o estudo pormenorizado do


ciclo de v1d~ familiar em su~s nuances (Osório, 2002a). A família pode ser
compreen dida como uma unidade social altamente significativa no processo
de desenvolvimento do indivíduo (Minuchin, 1980). Ela se caracteriza por ser
um sistema em constante transformação devido aos fatores relacionados à
sua história e à interação de seu ciclo vital com as mudanças sociais. Sua
história percorre a dialética continuidade-mudança , entre vínculos de per-
tencimento e necessidade de individuação. Em função da sua importância
para o entendimento do desenvolvimento e comportamento humanos, a
família se tornou alvo de estudo e foco das terapias sistêmicas.
Segundo Carbone (2007) , a terapia familiar sistêmica organizou-se
em torno de alguns conceitos básicos, a saber: a globalidade, a não-
-somativi dade , a homeostase, a circularidade , a retroalimentação e a
equifinalidade. A globalidade se refere ao funcionamento de um sistema,
em qu e a mudança de uma parte altera todas as demais e o sistema como
um todo. Já o conceito de não-somatividade enfatiza que um sistema não
pode ser considerado apenas a soma de suas partes. A homeostase diz
respeito ao processo de autorregulação que mantém a estabilidade do
sistema e a morfogênese, ou seja, sua capacidade de absorver inputs do
meio e mudar sua organização. Além destes também se destaca o conceito
de ci rcularidade, que diz respeito à relação bilateral entre quaisquer dos
elementos do sistema, o que pressupõe uma interação que se manifesta
como sequência circular. Já a retroalimentação garante o funcionamento
circu lar pelo mecanismo de rotatividade da informação entre os membros
do sistema pelo princípio de feedback (o negativo funciona para manu-
tenção da homeostasia e o positivo responde pela mudança sistêmica).
Por fim, a equifinalidade ressalta que independente de qual for o ponto de
partida, um sistema aberto apresenta uma organização que garante o seu
funcionamento. -
A terapia fam ili ar sistêmica, estruturada em torno dos conceitos men-
cionados, entende a fam ília como um sistema aberto que se autogoverna
através de regras que definem o seu padrão de comunicação (Nichols
& Schwartz , 2007). Nesse sentido, há uma interdependência entre seus
membros e destes com o meio, estabelecendo trocas de informações e
usando recursos de retroalimentação para manter certo grau de equilíbrio
em torno das transações. Quando se fala em transações que ocorrem ao
longo do tempo, não se pode deixar de mencionar o estudo do ciclo de
vida da família, que é um dos pilares da visão atual dos sistemas familiares
em desenvolvimento.
O ciclo de vida da família passa por períodos previsíveis, de estabilida-

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de e transição, de equilíbrio e adaptação, e por momentos de desequilíbrio


que alavancam um estágio novo e mais complexo, no qual se desenvolvem
novas funções e capacidades. Esta passagem de uma fase a outra ocorre
numa reestruturação contínua, na busca de uma nova dinâmica familiar. As
etapas do ciclo vital estão marcadas por eventos significativos: separação da
família de origem e formação do novo casal, nascimento do primeiro filho,
do primeiro irmão, a adolescência e a passagem à idade adulta dos filhos,
a desvinculação progressiva de pais e filhos, o casal conjugal e parental
na maturidade e envelhecimento, o tornar-se avós, a separação pela morte
de um dos membros do casal, entre outros (Carter & McGoldrick, 1995).
Paralelamente a esses acontecimentos, a família pode viver o impacto
de eventos inesperados como divórcios, mortes imprevistas, doenças,
desempregos, etc. , que atuam nas modificações da estrutura relacional e
dificultam as tarefas de superação e coesão próprias de seu funcionamento.
Em situações críticas, cada família tende a encontrar modos singulares
de enfrentar circunstâncias semelhantes. Assim, a proposta de considerar
o ciclo de vida familiar no processo terapêutico é buscar sobrepor sua
estrutura aos fenômenos esperados da vida que se sucedem ao longo do
tempo (Carter & McGoldrick, 1995). Dessa forma, o terapeuta terá maior
clareza sobre os problemas a serem considerados e as forças familiares
que podem ser ativadas.

Interfaces entre o ciclo de vida da família e do terapeuta

A combinação entre os ciclos de vida da família e do terapeuta é de-


finida por Simon (1995) como ajuste, o qual não inclui uma ação ou uma
conotação de valor, simplesmente acontece, não sendo linear. O ajuste
muda de acordo com a experiência de vida do terapeuta e também a cada
família atendida, podendo ser influenciado por uma série de fatores, tais
como: estilo pessoal, conhecimento, carisma e desembaraço do terapeuta,
os quais podem interferir e favorecer uma mudança em sistemas disfun-
cionais (Simon, 1995).
O conceito de ajuste de Simon (1995) se relaciona ao conceito fami-
liar de ligação ou união de Minuchin (1980), pois este se refere à conexão
essencial do terapeuta com a família. Para esse último autor, o terapeuta
se une ao sistema familiar do paciente e então utiliza a si mesmo para
transformá-lo. Destarte, dois conceitos são fundamentais para descrever
esse processo: a união e a acomodação. A união diz respeito à própria
presença do terapeuta, que por si só é significativa, pois a família se or-
ganiza em relação a ele. Já a acomodação refere-se ao próprio ajuste do

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terapeuta à família , com vistas a alcançar sua união com ela. Nesse sen-
tido, a mudança ocorre através do processo de associação do terapeuta
à família e da reestruturação desta. Assim , o terapeuta sistémico deve ser
considerado como um membro-agente e reagente do sistema terapêutico,
pois enfatiza os aspectos de sua personalidade e de sua experiência para
se vincular à família. Frente a tal compreensão, os ciclos de vida da família
e do terapeuta podem se combinar de três maneiras principais, de acordo
com Simon (1995): 1) o terapeuta ainda não experienciou o estágio do ciclo
de vida da família; 2) o terapeuta está experienciando o mesmo estágio do
ciclo de vida da família; e, por fim, 3) o terapeuta já passou pelo estágio do
ciclo de vida da família.
Um terapeuta jovem que ainda não experienciou o estágio do ciclo
de vida da família pode se ajustar a uma família mais velha através das
lembranças de sua própria infância e adolescência. Em geral, o subsiste-
ma fraterno gosta desses terapeutas, mas seu rapport pode ter limitações
com o subsistema parental (Simon, 1995). Pode haver uma identificação
com os filhos, no sentido de se posicionar a favor destes, sem considerar
o ponto de vista dos pais. Também é possível ocorrer de o terapeuta estar
vivenciando em sua família situação semelhante a que recebe para aten-
dimento, como , por exemplo, estar enfrentando o divórcio entre os pais
e receber um casal de meia-idade prestes a se separar. Tais situações
podem acionar emoções difíceis de o terapeuta manejar e é possível que
alguma manifestação reativa em relação à família seja observada (Simon ,
1995). Contudo, tais aspectos não se constituem em um fator negativo para
a carreira do terapeuta. Pelo contrário, uma boa resolução dos eventos
traumáticos ou a autodiferenciação, conforme Bowen (1978), pode levar
a uma empatia e a entendimento valiosos para o paciente. Nesse mesmo
sentido, Simon (1995) aponta que o desenvolvimento desses recursos nos
terapeutas possa ser uma dádiva da experiência de supervisão clínica, além
' \
de consistir em uma questão de treinamento .
A segunda combinação possível é o terapeuta estar no mesmo estágio
do ciclo de vida da família, o que pode proporcionar a este, em função de
sua própria experiência pessoal, a não patologização das questões proble-
máticas vivencíadas pela família (Simon, 1995). Todavia, também pode ser
difícil para o terapeuta manejar a carga emocional que implica acompanhar
uma família que esteja vivendo situações de vida semelhantes as suas. É
possível que o terapeuta não consiga considerar questões importantes de
serem discutidas ou se comporte de forma reativa à família, podendo até
mesmo desprezá-la. No entanto, estar vivenciando o mesmo momento do
ciclo de vida familiar pode levar o terapeuta a estabelecer um entendimento

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L
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e empatia valiosos com a família, através do sentimento de estarem com-


partilhando experiências de vida (Simon, 1995).
Por fim, pode acontecer de o terapeuta já ter passado pelo estágio
do ciclo de vida da família que está em atendimento. De acordo com Si-
mon (1995), o ajuste com as famílias se torna mais fácil à medida que se
envelhece, porque o terapeuta que já passou pelas dificuldades atuais da
família que atende pode acolhê-la e compreendê-la. Contudo, não quer
dizer que um terapeuta mais jovem não consiga desempenhar bem seu
papel quando no atendimento com famílias em estágios mais avançados
que o seu , mas certamente o ajuste e as estratégias utilizadas no processo
terapêutico serão diferentes.
Por outro lado, também pode acontecer de o terapeuta ter tido dificul-
dades de superar seus problemas em algum momento de seu ciclo de vida
e ao entrar em contato com a família, reviver seus traumas, travando o pro-
cesso terapêutico por meio de sentimentos de autodefesa, distanciamento
ou condescendência. Ainda pode acontecer de o terapeuta parecer sábio
demais, o que pode levar a família a abandonar seus próprios recursos e
tentar imitar os do terapeuta, formando uma fusão (Simon, 1995).
Conforme mencionado, quando acontece de os ciclos de vida da
família e do terapeuta não se ajustarem bem, há algumas sugestões que
podem ser úteis. A principal recomendação é o estudo rigoroso da família
de origem do terapeuta (Bowen, 1978; Osório 2002b; Simon, 1995; Valle,
2002). Bowen (1978) aponta que o estudo da própria família tem como
objetivo compreender a rede de regras e expectativas familiares sobre as
quais cada um de nós foi socializado. Assim, o terapeuta poderá discriminar
suas próprias imagos familiares e se autoconhecer para melhor auxiliar no
processo de discriminação e de individuação dos membros da família que
acompanha (Valle, 2002). Esse autoconhecimento já deveria ocorrer no
processo de formação profissional através do trabalho do self do terapeuta,
em que há a possibilidade de este entrar em contato com suas vivências
familiares que podem interferir em sua prática profissional.
Nessa mesma direção, Stein (1996) ressalta que o estudo da própria
família por parte dos terapeutas permite o enriquecimento como pessoa e
como profissional, além de um acesso mais livre a si mesmo, que se tra-
duz num trabalho eficiente e criativo. De acordo com o autor, o que pode
contribuir para o privilégio de ser terapeuta é:

mergulhar na sua própria história, encontrar-lhe sentido, resol-


ver os conflitos possíveis, identificar o que não é possível conciliar,
selando algum tipo de compromisso pacífico, aumentar o grau de

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....
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curiosidade a respeito de si e dos outros e não temer o confronto


com sua própria psicopatologia (p. 221 ).

Vários são os autores que enfatizaram a importância do trabalho com


os aspectos da personalidade do terapeuta, indicando a capacidade de
usar a si mesmo como instrumento da terapia e como agente de mudança
para a família (Andolfi & Ângelo, 1988; Bumberry & Whitaker, 1990; David
& Erickson, 1990; Elkaim, 1988; Festa, 2007; Prosky, 1996; Rober, 2005).
Inicialmente, é necessário que o terapeuta desenvolva a capacidade de in-
tegrar a sua vida e incluir suas próprias circunstâncias sociais e culturais em
seus atendimentos. Para Festa (2007), o terapeuta conecta continuamente
na relação terapêutica seus próprios sofrimentos e possibilidades de cura .
ou tratamento, o que remete a pensar sobre a autorrevelação. A técnica de
autorrevelação exige dos terapeutas um elevado nível de autoconhecimento
e disciplina (Omylinska-Thurston & James, 2011). Portanto, é necessário
que o seu uso seja bem pensado, bem como indica-se a necessidade do
desenvolvimento pessoal contínuo do terapeuta (Roncari, 2011).
Para Elkaim (1990) e Festa (2007) a terapia, assim como qualquer
outra situação na vida, é autorreferencial, não sendo possível a neutrali-
dade no processo terapêutico. Da mesma forma, Andolfi e Ângelo (1988)
destacam: "É necessário ao terapeuta transferir o baricentro da própria
competência e se permitir entrar na relação sem se ancorar em posições
estáticas, baseadas mais na abstração que na participação da construção
emotiva do cenário terapêutico" (p. 60).
É preciso que o terapeuta acolha a sua própria humanidade e tenha
oportunidade de ressignificar suas experiências para que consiga manter a
reciprocidade em um processo terapêutico familiar (Colombo, 2009). Castiel
(1996) corrobora a discussão, destacando que o terapeuta precisa ter certa
flexibilidade que lhe permita construir um repertório de emoções capaz de
conectar-lhe com a diversidade de sentimentos e a singularidade das pes- "\
soas. É importante que ele assuma suas vulnerabilidades e se sensibilize
com a família, permitindo-se surpreender-se, misturar-se e separar-se dela
quando se fizer necessário.
Além do estudo da própria família de origem do terapeuta e da cons-
trução da relação terapêutica, Simon (1995) também destacou a postura
que o terapeuta assume diante da família, indicando que este não deve
se colocar na posição de especialista ou colocar os membros da família
como tal. Tampouco é adequado assumir uma postura submissa, quando
se é muito jovem ou arrogante quando já se é mais velho (Simon, 1995).
Tal cuidado é necessário porque a idade do terapeuta e a sua experiência

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de vida podem influenciar na credibilidade da família para com ele, bem


como no alcance e poder das suas estratégias de intervenção (Andolfi,
1996; Bowen, 1978; Osório 2002b; Rober, 2005; Simon, 1995; Valle , 2002).
Nesse mesmo sentido, Osório (2002b) aponta que o terapeuta, que
ocupa o papel de centralizador e que possui dificuldades em lidar com a
pluralidade das expectativas humanas, estaria desqualificando os pacientes
e desconsiderando seu direito ao livre arbítrio e ao questionamento crítico
propostos pelo setting clínico. Portanto, o processo terapêutico deve abarcar
as responsabilidades de todos os envolvidos, terapeutas e pacientes, com
seus diferentes saberes e compromissos (Colombo, 2009).
Também é importante escolher o modelo terapêutico a ser seguido,
porque cada um deles enfatiza posições diferentes do terapeuta diante
da família. Simon (1995) aponta que o modelo Boweniano, por exemplo,
ressalta a postura de um terapeuta neutro que opera através da pesquisa
do sistema familiar, enquanto que a terapia estrutural requer um posicio-
namento mais carismático. Em geral, a escolha pelo modelo ocorre de
acordo com a proposta do curso formador, mas a sua limitação pode ser
compensada também pelo apoio do supervisor (Simon, 1995). Além disso,
a integração de modelos e teorias tem sido cada vez mais incentivada entre
os centros formadores, pois se acredita que aqueles que são capazes de
apreciar mais de uma visão de mundo, podem alternar entre perspectivas
diferentes, ampliando suas opções para ajudar aos seus pacientes (Safran,
2002, ln Prado, 2002).
A supervisão também se torna fundamental na formação e práti-
ca do terapeuta, pois o manejo clínico será influenciado pelo sistema
família+terapeuta+supervisor (Osório, 2002a; 2002b; Simon, 1995; Valle,
2002). Essa deve ser escolhida não apenas com base na experiência clí-
nica do supervisor, mas também visando complementar a experiência de
vida do supervisionado (Osório, 2002a; 2002b; Simon, 1995; Valle, 2002).
Para Simon (1995), tal influência, em geral, é positiva porque reequilibra
situações em que o ajuste entre terapeuta e família é improdutivo ou dis-
funcional. Ele enfatiza que "ver o mundo clínico através dos olhos de outras
pessoas é como viver partes do ciclo de vida que o destino resolveu não
nos conceder pessoalmente" (p. 104 ).
A rede de trabalho também é destacada como um importante as-
pecto para estabelecer um bom ajuste entre o terapeuta e a família, visto
que a supervisão está limitada a uma sessão periódica e a um número de
casos necessariamente restritos (Simon, 1995). A interação entre colegas
terapeutas de diferentes idades, gêneros, etnias e orientação sexual pod~
ser experienciada como outro tipo de supervisão (David & Erickson, 1990,

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Simon, 1995). Colombo (2009) refere que a experiência do outro pode ser
considerada como uma coautoria na construção de si mesmo. Ela acredita
que o "ser terapeuta" consiste em uma construção conjunta de sua própria
história e da escuta de diferentes interlocutores através da experiência
exterior.
Em suma, ser terapeuta pressupõe formação teórica e prática, além de
um processo de dar-se conta da interferência de suas próprias experiências
e história de vida no processo de mudança da família por ele atendida. Tais
aspectos têm implicações importantes para a formação de especialistas em
terapia familiar sistêmica, bem como para a vivência da terapia individual
e de supervisão.
Conforme Grandesso (2000), o sistema terapêutico está apoiado em
torno dos princípios de imprevisibilidade e incerteza, da impossibilidade de
um conhecimento objetivo e da autorreferência. Constantemente, o tera-
peuta se depara com diferentes histórias de vidas. Cada família atendida
traz consigo uma nuance que se entrelaça com a pessoa do terapeuta e
forma um novo sistema. Caso, em algum momento, o terapeuta não se der
conta de sua vulnerabilidade e emoção, ele poderá se distanciar de sua
voz interna e se desconectar do seu próprio self terapêutico. Quando isso
acontece, corre-se o risco de ele perder sua condição íntegra e espontâ-
nea na relação com a família, que é imprescindível para um real encontro
humano (Colombo, 2009).

Considerações finais

A terapia sistêmica familiar, ao incluir o terapeuta nas relações que se


estabelece com a família, enfoca de maneira singular aspectos pessoais
do terapeuta (Castiel, 1996). Em função disso, torna-se fundamental que
o terapeuta esteja consciente de si , em especial, de sua história familiar ,,
e do seu ciclo de vida, e busque constantemente recursos para trabalhar
com aspectos do seu self. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho consistiu
em refletir sobre o ciclo de vida familiar e sua relação com o ciclo de vida
do terapeuta, a partir de uma análise fundamentada na teoria sistêmica.
Constatou-se que as histórias, as vivências e a forma de ser do tera-
peuta darão, segundo Prado (2002), unicidade a cada intervenção, sendo
que um dos seus maiores desafios é encontrar as técnicas e o modo de
implementá-las que melhor se adapte ao seu self, pois sua construção
passa pela integração da sua vida com o seu trabalho. Bumberry e Whitaker
(1990) corroboram a discussão afirmando que a dinêmica da psicoterapia
está centrada na pessoa do terapeuta, já que a teoria e a técnica apenas

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são efetivas através dele, ou seja, quando filtradas pela sua personalidade.
Especificamente quanto ao ciclo de vida, destaca-se que as implica-
ções do ajuste entre a etapa da família e a do terapeuta permeiam a prática
clínica e de pesquisa. Embora seja um tema de fundamental importância
para o processo terapêutico, poucos estudos atuais foram encontrados,
principalmente no contexto nacional. Portanto, essa discussão convida a
reflexão sobre a prática da terapia sistêmica com famílias, pois na medida
em que os terapeutas estiverem cientes dos aspectos e das demandas
envolvidas no processo terapêutico será possível um melhor ajuste com
vistas à mudança da disfuncionalidade familiar.

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Porto Alegre: Editora Artmed.

Endereço para correspondência


marin.angelah@gmail.com

Enviado em18/03/2012
1ª revisão em 14/05/2012
Aceito em 28/06/2012

Pensando Famílias, 16(1), jul. 2012; (217-228)


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