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MÔNICA MILIANI MARTINEZ

AS FACES DA MERITOCRACIA

Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da


Linguagem/IEL, da Universidade Estadual de Campinas
como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título
de Mestra em Linguística.

Orientador: SÍRIO POSSENTI

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO
DEFENDIDA PELA ALUNA MÔNICA
MILIANI MARTINEZ, E ORIENTADA
PELO PROFESSOR DR. SÍRIO POSSENTI

CAMPINAS
2020
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Martinez, Mônica Miliani, 1982-


M366f MarAs faces da meritocracia / Mônica Miliani Martinez. – Campinas, SP : [s.n.],
2020.

MarOrientador: Sírio Possenti.


MarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

Mar1. Análise do discurso. 2. Meritocracia. 3. Fórmula discursiva. 4. Polêmica.


I. Possenti, Sírio. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos
da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Facets of meritocracy


Palavras-chave em inglês:
Discourse analysis
Meritocracy
Discursive formula
Polemics
Área de concentração: Linguística
Titulação: Mestra em Linguística
Banca examinadora:
Sírio Possenti [Orientador]
Jauranice Rodrigues Cavalcanti
Hélio de Oliveira
Data de defesa: 26-11-2020
Programa de Pós-Graduação: Linguística

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-7583-4585
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8010021472257863

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BANCA EXAMINADORA

Sírio Possenti

Hélio de Oliveira

Jauranice Rodrigues Cavalcanti

IEL/UNICAMP
2020

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.
DEDICATÓRIA

Ao meu avô Francisco, com muita saudade, pela pureza no olhar e nas palavras.
Ao meu sobrinho Leonardo, pela esperança em dias melhores.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, amigo e linguista favorito, professor Sírio Possenti, pela parceria
sincera e extremamente comprometida, pelo rigor científico nos apontamentos, pela paciência
e pelos grifos amarelos tão úteis para a minha formação como analista do discurso.
Aos componentes da banca de qualificação e de defesa, Jauranice Cavalcanti e Hélio
Oliveira, pela generosidade e pelas preciosas considerações feitas no exame de qualificação –
sem dúvida, minha melhor experiência acadêmica até aqui – e na defesa. Espero que vocês
reconheçam suas vozes na versão final do trabalho.
Aos professores do IEL Ana Cláudia Ferreira, Anna Bentes, Aquiles Tescari, Lauro
Baldini, Mônica Zoppi-Fontana, Sheila Oliveira, por cativarem meus olhos cansados a persistir
na pesquisa.
Aos amigos pesquisadores, Ana Volpato, Filipo Figueira, Miresnei Bomfim, Patrícia
Borges, Shara Lylian, Vinicius Teixeira, Vitória Eugênia, pela partilha incessante.
Aos amigos educadores, Ana Carolina Alecrim, Adriana de Paiva, Daniela Almenara,
Fátima Weber, Henrique Frey, José Alves de Freitas Neto, Katia Yabiku, Maria Carolina
Scudeler, Maurício Mafra, Suzana Higa, Tiago Tozzi, pela amizade e pelos incentivos diários.
Às amigas-irmãs, Ana Rita Ferraz, Daniele Fontes, Mariana Lara e Vanessa Alberti,
pela amizade que alimenta a alma.
À minha família, Neusa, Eliseu, Renata, Mariana, pelos princípios sólidos, pelo diálogo
constante, pela parceria respeitosa e pelo amor incondicional.
RESUMO

Esta dissertação analisa as ocorrências do termo “meritocracia” e suas variantes no universo


discursivo brasileiro contemporâneo, em um recorte temporal de 2014 até 2020. Para isso,
embasa-se na Análise do Discurso, particularmente, nas noções de fórmula discursiva,
conforme proposta por Alice Krieg-Planque (2010, 2018), cujos trabalhos se inserem na
Análise do Discurso de orientação francesa, e da estreita relação entre discurso e poder
(FOUCAULT, 2014, 2017). O corpus, organizado a partir das ocorrências da unidade lexical
simples citada, é constituído por artigos, editoriais, gêneros das mídias impressa, online, como
notícias, campanhas e charges. A questão fundamental da pesquisa diz respeito ao estatuto de
“meritocracia” tendo em vista as quatro propriedades constitutivas da fórmula – ter um caráter
cristalizado, inscrever-se em uma dimensão discursiva, funcionar como referente social e ser
objeto de polêmica. Os objetivos são analisar em que medida “meritocracia” funciona como
um “lugar” privilegiado para “compreender a forma como os diversos atores sociais organizam,
por meio dos discursos, as relações de poder e de opinião” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 9) e
autorizar ou não essa expressão como fórmula no corpus selecionado. A principal conclusão é
que há dois semas que disputam os sentidos de “meritocracia”, /obstáculo/ e /justiça/, bem como
seus respectivos simulacros, /privilégio/ e /vitimismo/, pois as reformulações acontecem em
meio a uma intensa polêmica, indicativa da relação interdiscursiva e da gênese de um discurso
sobre o mérito.

Palavras-chave: meritocracia; fórmula discursiva; polêmica.


ABSTRACT

This dissertation analyzes the occurrences of the syntagma "meritocracy" and its variants in
Brazilian contemporary discursive universe, in a time frame from 2014 to 2020. To do so, it’s
based on the notion of “formula” as proposed by Alice Krieg-Planque (2010, 2018), whose
works are included in French Discourse Analysis, and the close relationship between discourse
and power (FOUCAULT, 2014, 2017). The corpus, organized from the circulation of the
mentioned syntagma, consists of texts from different genres: articles, editorials, print media
(newspapers and magazines), online media (news, advertising campaign, cartoons, and others).
The first question concerns to the status of "meritocracy" as a discursive formula, considering
the four constitutive features of the formula: to have a crystallized character, to have a
discursive dimension, to be a social referent, and to be object of polemics. The main goal is to
analyze how "meritocracy" can become a "special place to understand how the various social
actors organize, through the discourses, relations of power and opinion" (Krieg-Planque, 2010,
p. 9) and, at the same time, how it can take part in a process of social acceptability of it. The
main conclusion is that there are two semas that dispute the meaning of “meritocracy”,
/obstacle/ and /justice/, as well as their respective simulacrums, /privilege/ and /victimism/,
because the reformulations happen in the midst of as intense controversy, indicative of the
interdiscursive relationship and the genesis of a discourse on merit.

Key words: meritocracy; discursive formula; polemic.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1. printscreen como exemplo de pesquisa da formulação “não existe


meritocracia”..................................................................................................................... 23
Figura 2. printscreen como exemplo de pesquisa da formulação “meritocracia, ou
seja”................................................................................................................................... 24
Figura 3. Printscreen de páginas iniciais do Google como exemplo de buscas.............. 25
Figura 4. Printscreen com exemplo do resultado do Google Trends.............................. 26
Figura 5. Printscreen do resultado da busca por “imagens” usando o termo
“meritocracia”................................................................................................................... 27
Figura 6. Printscreen da imagem retirada de uma página online.................................... 33
Figura 7. Printscreen do Google Trends como exemplo da pesquisa do termo
“meritocracia”................................................................................................................... 64
Figura 8. Printscreen de imagem ilustrativa de um texto sobre a diferença de
meritocracia e meritoriedade............................................................................................. 104
Figura 9. Printscreen de imagem ilustrativa de um texto sobre meritocracia em
empresas............................................................................................................................ 104
Figura 10. Printscreen de imagem ilustrativa de uma campanha da TIM em parceria
com a Netflix no Facebook............................................................................................... 105
Figura 11. Printscreen da capa do livro “Meritocracia”.................................................. 105
Figura 12. Printscreen do vídeo do Ministério da Educação.......................................... 110
Figura 13. Printscreen do vídeo do Ministério da Educação.......................................... 113
Figura 14. Printscreen do vídeo do Ministério da Educação.......................................... 113
Figura 15. Printscreen do vídeo do Ministério da Educação.......................................... 115
Figura 16. Printscreen do vídeo do Ministério da Educação.......................................... 116
Figura 17. Printscreen da imagem retirada de uma página online.................................. 118
Figura 18. Charge do cartunista Vini (2017)................................................................... 121
Figura 19. Charge do cartunista Toni.............................................................................. 122
Figura 20. Charge do cartunista Duke............................................................................. 123
Figura 21. Post da página do @quebrandotabu, autor desconhecido.............................. 127
Figura 22. Charge de autor desconhecido....................................................................... 130
Figura 23. Charge do cartunista Vitor Teixeira............................................................... 132
Figura 24. Trecho do quadrinho “On a plate”, Toby Morris........................................... 134
Figura 25. Trecho do quadrinho “On a plate”, Toby Morris........................................... 136
Figura 26. Trecho do quadrinho “On a plate”, Toby Morris........................................... 137
Figura 27. Trecho do quadrinho “On a plate”, Toby Morris .......................................... 138
Figura 28. Trecho do quadrinho “On a plate”, Toby Morris........................................... 140
LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Gráfico das ocorrências da palavra “meritocracia” em dois jornais e uma


revista............................................................................................................................... 61
Quadro 2. Quadro Síntese.............................................................................................. 69
Quadro 3. Exemplo do esquema..................................................................................... 69
Quadro 4. Exemplo do esquema de................................................................................ 70
Quadro 5. Sistematização dos excertos 04 e 05............................................................. 71
Quadro 6. Tabela descritiva dos semas e de suas representações imagéticas................ 141
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 12

CAPÍTULO 1
METODOLOGIA............................................................................................................ 15
1.1 Análise do discurso: aproximações teórico-metodológicas.................................. 15
1.2 A importância dos buscadores digitais de pesquisa.............................................. 21
1.3 Análise das definições em dicionários.................................................................. 27

CAPÍTULO 2
MERITOCRACIA, PODER E VIOLÊNCIA................................................................ 37

CAPÍTULO 3
“MERITOCRACIA”: UMA FÓRMULA...................................................................... 54
3.1. O estatuto formulaico........................................................................................... 54
3.2. As quatro propriedades da fórmula...................................................................... 59
3.2.1. O caráter cristalizado................................................................................. 59
3.2.2. O caráter discursivo................................................................................... 62
3.2.3. O caráter de referente social...................................................................... 65
3.2.4. O caráter polêmico..................................................................................... 78

CAPÍTULO 4
“MERITOCRACIA” EM CIRCULAÇÃO................................................................... 99
4.1. O contexto discursivo.......................................................................................... 99
4.2. A noção de campo................................................................................................ 106
4.2.1. “Meritocracia” no campo publicitário....................................................... 107
4.2.2. “Meritocracia” no campo humorístico....................................................... 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 142

REFERÊNCIAS............................................................................................................... 145
12

INTRODUÇÃO

Essa pesquisa nasceu de um interesse sobre processos que são tomados como
individuais quando na verdade precisariam ser demandas do coletivo, como o mérito e os
dispositivos meritocráticos criados para medir o desempenho ou o sucesso de uma pessoa. De
certa forma, esse tipo de administração da vida cotidiana, centrada no indivíduo como o único
responsável pelo seu desempenho, gera “sujeitos microempresa”, competitividade e inversão
de valores: o que é direito é interpretado como privilégio e o que é privilégio deixa de ser visto
dessa maneira, naturalizando os abismos sociais patentes no corpo social brasileiro.
Esse tipo de reflexão permite situar a meritocracia como um espelho que sugere o tipo
de sociedade que somos, enquanto brasileiros, e o tipo de sociedade que queremos ser, já que
as inúmeras defasagens e desigualdades históricas que funcionam cotidianamente no Brasil
seguem promovendo efeitos destrutivos para uma educação cidadã, por exemplo, e para os
preceitos democráticos existentes na Constituição Federal de 1988.
A análise do termo “meritocracia” conduz essa pesquisa para um estudo discursivo que
toma essa unidade lexical simples como uma forte candidata ao estatuto de fórmula discursiva.
Seja pela memória que mobiliza ou pela polêmica comum no interior dos campos em que
funciona, “meritocracia” afirma-se como um referente social, cujos sentidos deslizam e
permitem também que existam estabilizações desses sentidos de formas mais ou menos
regulares, a depender da situação de produção e de recepção. Além disso, a fórmula em questão
divide a opinião pública que toma o mérito como algo “transparente”, que pode ser interpretado
a partir do empenho ou do desejo de ascender socialmente.
Nesse cenário, que contextualiza a meritocracia como uma “fórmula discursiva”, essa
pesquisa foi organizada por meio de resenhas, análises, leitura e releitura do corpus,
responsáveis por balizar, como um gesto analítico, a transição entre uma suposta intuição das
faces (mais ou menos explícitas) da meritocracia na sociedade brasileira e o efetivo
funcionamento do discurso meritocrático em diferentes meios de comunicação nacionais e
internacionais de ampla circulação.
Por isso, essa dissertação de mestrado, no capítulo 1, explica a metodologia de análise,
pautado nas teorias da Análise do Discurso – a partir desse momento AD – que articula, no
nível do discurso, elementos como “enunciado e enunciação, linguagem e contexto, fala e ação,
instituição linguística e instituições sociais” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 16). Essa visão
abrangente, que o autor chama de “práticas discursivas”, permite o estudo das unidades tópicas
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e não-tópicas, os percursos e as fórmulas. O esforço desse capítulo é articular questões teóricas


que permitam uma análise que tome o “primado do interdiscurso” e valorize a heterogeneidade
por meio de uma visão do interdiscurso como interior e constituinte do discurso.
No capítulo 2, analisa-se como o termo “meritocracia”, ainda considerada apenas como
uma palavra que circula discursivamente, relaciona-se com os conceitos de poder, justiça e
violência, na tentativa de mostrar como as relações de força em uma sociedade contribuem para
efeitos mais ou menos cristalizados, capazes de mobilizar memórias e, em certa medida, revelar
diferentes faces do mérito além de um nome ou um sobrenome na lista. Inicialmente, há uma
resenha sobre os conceitos de Foucault – poder e governamentalidade – no esforço de
compreender como o poder funciona e quais são as relações de poder que permitem uma leitura
menos ingênua das temáticas sobre o mérito, considerando sua heterogeneidade, bem como as
aproximações possíveis entre as premissas foucaultianas e os efeitos de sentido observados na
circulação do discurso meritocrático.
No capítulo 3, desenvolve-se a discussão em torno da teoria que sustenta a hipótese
central dessa dissertação – se o termo “meritocracia” funciona como uma fórmula discursiva.
Para refletir teoricamente sobre essa possibilidade, o capítulo mobiliza a noção de fórmula
discursiva (KRIEG-PLANQUE, 2010, 2018), um dispositivo teórico e metodológico cuja
importância é central para o percurso de análise. A resposta para a pergunta-hipótese – a
meritocracia funciona como uma fórmula discursiva? – exige que as quatro propriedades
constitutivas da fórmula sejam consideradas: 1) seu caráter cristalizado; 2) sua inscrição em
uma dimensão discursiva; 3) seu funcionamento como referente social; 4) sua existência como
objeto de polêmica. É fundamental afirmar que, para a comprovação da hipótese, a análise das
quatro propriedades que qualificam um termo ou sintagma como “fórmula” é, em segundo
plano, quantitativo - se há ocorrências - , mas principalmente qualitativo, ou seja, se as
ocorrências se dão em termos discursivos, com qual intensidade cada um dos itens se manifesta,
etc.
No quarto e último capítulo, observa-se a circulação da fórmula “meritocracia” –
avaliando a discursividade formulaica nos campos publicitário e humorístico, em temas como
educação, economia, política, com a análise de uma campanha institucional, de propagandas,
de uma entrevista e de dois quadros humorísticos. A partir das análises realizadas, as
ocorrências do termo “meritocracia” foram categorizadas não pelo tema, mas sim pelo
funcionamento discursivo. Trata-se, assim, de uma abordagem que leva em conta as condições
de produção dos discursos, as contradições e equívocos das discursividades, colocando em
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relação a linguagem, a ideologia e a história, sem que haja complementariedade ou conciliação


entre os campos que constituem esses encontros e desencontros discursivos.
Embora a metodologia de análise esteja exposta no capítulo 1, o grande esforço dessa
pesquisa, além de fazer cumprir o objetivo central do trabalho – explorar o funcionamento
discursivo de “meritocracia” enquanto fórmula discursiva – ao longo de todos os capítulos, é o
constante movimento, próprio de análises discursivas, entre a base teórica, o dispositivo de
análise e a leitura do corpus, para valorizar o funcionamento da linguagem, a base analítica
necessária para interpretar o mundo não transparente dos sentidos, estes por vezes estabilizados,
mas sem perder a capacidade de deslizar, de se deslocar para outros lugares, previsíveis ou não.
Por fim, essa dissertação é organizada, também, para ser uma luta pela leitura crítica,
contextualizada e histórica dos percursos que conduzem o funcionamento de “meritocracia”
enquanto palavra que assume o estatuto de fórmula e, dessa forma, tem um funcionamento
polêmico e que mobiliza memórias variadas. Essa foi a forma encontrada para compreender a
dimensão discursiva das palavras como um local privilegiado de funcionamento e de
enfrentamento dos problemas sociais de uma época.
15

CAPÍTULO 1

METODOLOGIA

1.1 Análise do discurso: aproximações teórico-metodológicas

Possenti (2009b) mostra que a noção de discurso não está, necessariamente, oposta à
gramática, nem é dela um mero anexo. Para embasar essa interpretação, o autor mobiliza
exemplos de análises feitas por teóricos de áreas mais ou menos próximas à Análise do discurso
(AD) e analisa a concepção de discurso que assume ao longo do texto: “o discurso é entendido,
aqui, como um tipo de sentido – um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia – que se
materializa na língua embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos de expressão
da língua” (2009b, p. 16). Essa é também a posição assumida nessa pesquisa.
O primeiro exemplo é uma análise do alemão Gunther Kress, de trechos de uma emissão
jornalística por TV, que descreve uma situação específica em um jogo de futebol, envolvendo
torcedores e a polícia neozelandesa; o segundo, da sociolinguista argentina Beatriz Lavandera,
estuda o pronunciamento, realizado no México, do presidente argentino Alfonsín; e o terceiro,
do analista do discurso francês Paul Henry, estuda as orações restritivas e explicativas. A análise
dos exemplos permite validar a perspectiva de discurso que o autor brasileiro assume no texto:
não há uma relação biunívoca entre discurso e gramática, tendo em vista que “é porque se trata
de certo discurso que o suporte linguístico é o que é” (POSSENTI, 2009b, p. 22), ou seja, as
posições que ocupam os sujeitos e a situação de produção dos discursos são móveis e, por isso,
também são móveis os fatos de sintaxe e os efeitos de sentido produzidos.
O percurso de Possenti, que apresenta a análise dos pesquisadores mencionados, produz
duas regras de interpretação: é impossível prever quais estruturas sintáticas são mais ou menos
potenciais para o funcionamento dos discursos, porém, certas estruturas podem se apresentar
como indícios potenciais do funcionamento do discurso, mesmo quando ele tenta se esconder.
Essas regras permitem problematizar noções do discurso que circulam frequentemente, como
o fato de ele dar conta dos elementos que a linguística não dá, ser uma camada mais periférica
do núcleo duro da linguística ou ser a língua em uso e, por isso, não demanda regras de outra
natureza. O fundamental, em consonância com a afirmação de Possenti, é que “embora sempre
haja um ‘suporte’ linguístico para um discurso, nem sempre o mesmo recurso da língua
‘expressa’ o mesmo discurso, ou seja, aceita a mesma interpretação” (2009b, p. 16) – sendo
assim, os fatos de linguagem, segundo a AD, não são definitivos, fechados em si: a cada nova
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tentativa analítica, novos caminhos são abertos, considerando a singularidade dos


funcionamentos discursivos.
A perspectiva teórica do discurso como “camada” situa a dificuldade em definir tanto o
conceito discurso como, de forma mais abrangente, a AD, o que exige dos analistas um claro
rigor para comprovar os procedimentos de análise mobilizados, de forma a permitir a
descoberta dos sentidos e os efeitos das categorizações, além da classificação das atividades
discursivas selecionadas de acordo com as restrições e os objetivos da pesquisa. Para isso,
define-se discurso, como “uma maneira de apreender a linguagem” e, complementarmente,
“uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de
regularidades enunciativas” (MAINGUENEAU, 2020, p. 172).
Maingueneau (2015) propõe a distinção entre dois tipos de unidades: tópicas e não
tópicas. Para o autor, “só pode haver análise do discurso se ela se apoia em unidades tópicas,
mas elas não podem dar conta sozinhas do funcionamento do discurso” (2015, p. 81), em
virtude da presença de uma falha constitutiva que atravessa o discurso – “o sentido se constrói
no interior das fronteiras, mas mobilizando elementos que estão fora delas” (ibid.). Embora a
divisão em dois tipos seja descrita nesse capítulo de forma, inicialmente, pontual – primeiro,
fala-se de um tipo; depois, fala-se de outro – isso pode insinuar que essas categorias não se
relacionam. Contudo, o percurso proposto procura por analogias entre as perspectivas como
possibilidade teórica principal.
Primeiramente, as unidades tópicas são, de alguma forma, decorrentes das práticas
sociais, institucionais e articuladas ao redor da categoria “gênero de discurso”, definida “como
instituição de fala, dispositivo de comunicação sócio historicamente determinado”
(MAINGUENEAU, 2015, p. 66). A definição de “gênero” não pode ser vista de forma relativa
e/ou estática, pois isso poderia restringir seu enquadramento não homogêneo. Uma pesquisa
com foco nessa unidade considera as esferas de atividade nas quais os gêneros estão inseridos
– o que é nuclear e o que é periférico; os campos discursivos – locais onde os posicionamentos
se inscrevem, submetendo os gêneros a uma lógica de concorrência entre os posicionamentos;
e, por fim, os lugares de atividade – a valência das “etiquetas” dos gêneros, as fontes e as
singularidades textuais.
Como é possível notar, as unidades tópicas apoiam-se nas instituições, que têm gêneros
associados a elas, por isso permitem gestos de análise situados em limites pré-definidos, o que
não significa, por exemplo, que o trabalho com as unidades não-tópicas seja desprovido de
qualquer fronteira, pelo contrário: embora os sentidos as ultrapassem, é preciso muito cuidado
para buscar os elementos que ajudam essa construção fora delas. Assim, as unidades não-
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tópicas têm por função “integrar textos de diversos gêneros em conjuntos vastos, reunidos em
torno de um foco, às vezes, de vários” (MAINGUENEAU, 2015, p. 95), apropriando-se da
lógica dos gêneros não como um delimitador, mas sim como um elemento que permite a busca
por uma dispersão que atravessa diferentes gêneros, em diferentes momento históricos.
Inicialmente, em virtude da relevância que cada tipo de unidade não-tópica impõe –
formação discursiva e percurso - elas são analisadas a partir das considerações de Maingueneau
e por diferentes analistas, sem que as possibilidades de revisão se esgotem. A primeira –
formação discursiva (FD) – foi primeiramente elaborada por Michel Foucault, em A
arqueologia do saber, mas, para Maingueneau, essa paternidade pode ser duplamente atribuída,
já que Michel Pêcheux também a tomou como um conceito fundador. Tanto o primeiro autor
quanto o segundo, dadas as devidas diferenças, assumem a FD, de acordo com Maingueneau,
como “um sistema de restrições invisíveis, transversal às unidades tópicas” (2015, p. 81). Essa
afirmação é relevante para a pesquisa porque ela autoriza a constituição de corpora
heterogêneos, reunindo, de forma abrangente, enunciados originários de diferentes lugares.
Ademais, o dicionário de Análise do discurso também atribui a dupla paternidade do
termo, ao mencionar que a noção “foi introduzida por Foucault e reformulada por Pêcheux”
(MAINGUENEAU, 2020a, p. 240). Como o primeiro autor não se filia diretamente à AD, o
segundo foi o responsável por trazer o conceito à baila, no quadro teórico do marxismo
althusseriano. Na obra “Semântica e discurso”, Pêcheux (2014) apresenta seus procedimentos
da análise discursiva, dando visibilidade ao funcionamento da ideologia e do inconsciente nos
processos, entre outros elementos caros para essa perspectiva da AD.
A partir da reflexão sobre interdiscurso, teorizado como uma exterioridade constitutiva
do próprio discurso, Pêcheux explicita o duplo funcionamento do interdiscurso por meio dos
efeitos de pré-construído e de sustentação. Segundo o autor, o interdiscurso não é passível de
representação, ou seja, ele é “o ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas”,
submetido “à lei de desigualdade-contradição-subordinação, [...] que caracteriza o complexo
das formações ideológicas” (2014, p. 149). Assim, para o autor, as formações discursivas
determinam “o que pode e o que deve ser dito”, dissimulando uma possível transparência de
sentido, como se não dependessem da memória discursiva para significar no mundo.
Ademais, Maingueneau (2008a) mobiliza três itens para explicar a constituição e a
complexidade envolvidas na formação discursiva. O primeiro, universo discursivo, é descrito
como “o conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem em uma dada
estrutura” (2008a, p. 33), cuja produtividade para o analista do discurso se realiza quando ele
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se utiliza deste item apenas para demarcar a extensão máxima e o horizonte a partir do qual
recortes mais específicos serão feitos, os “campos discursivos”.
Os “campos” são também um conjunto de formações discursivas, mas neste caso elas
são mais específicas, pois se encontram em “concorrência, delimitam-se reciprocamente em
uma região determinada do universo discursivo” (2008a, p. 34). Estar em concorrência, neste
caso, significa estabelecer uma relação de consenso ou dissenso. Por exemplo, no campo
político-social, há formações discursivas em concorrência quando a questão é o “mérito”: o que
é ter ou não mérito, como se premia o mérito que não se pode quantificar/qualificar, pode-se
olhar para o mérito e desconsiderar o ponto de partida dos indivíduos, entre outros. As possíveis
respostas para esses questionamentos não são unívocas, tampouco evidentes, dada a
heterogeneidade dos discursos concorrentes.
O terceiro conceito – espaços discursivos – caracteriza-se como “subconjuntos de
formações discursivas que o analista, diante de seu propósito, julga relevante pôr em ação”
(MAINGUENEAU, 2008a, p. 35), ou seja, no caso do item lexical selecionado – meritocracia
– conjuntos de hipótese (é uma fórmula discursiva) e restrições, definidos pelo pesquisador,
serão mobilizados na análise do funcionamento dos enunciados, refutando ou confirmando a
hipótese e a utilidade das restrições.
Essa definição de Maingueneau, que reconhece o primado do interdiscurso, incita “a
construir um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade
de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro” (2008a,
p. 36). Esse Outro não é um interlocutor, um elemento material exterior, uma citação ou um
fragmento localizável, mas sim “uma parte de sentido que foi necessário o discurso sacrificar
para constituir a própria identidade” (2008a, p. 37). É a partir dessa premissa que se dá o caráter
dialógico de todo enunciado, em especial pela impossibilidade de dissociar o Mesmo e o Outro.
A FD, quando delimita o campo do dizível, legitima o Outro no espaço do interdito, ou seja, do
dizível que falta. O Outro “circunscreve justamente o dizível insuportável sobre cujo interdito
se constitui o discurso” (2008a, p. 37), por isso não é necessário dizer a cada enunciação que o
dito nega um outro dizer inadmissível, pois este último é excluído. Por exemplo, quando se diz
“a meritocracia é uma falácia” não cabe dizer que “a meritocracia é justa”, pois a primeira
ocorrência em si já desqualifica a segunda, em uma relação inseparável.
A FD como uma unidade não tópica é fundamental para a AD francesa, mesmo que ela
seja descrita ora com mais precisão, ora com menos precisão. Para a finalidade do capítulo, ela
tem uma função bem demarcada: “integrar textos de diversos gêneros em conjuntos mais
vastos, reunidos em torno de um foco, às vezes, de vários” (MAINGUENEAU, 2015, p. 95),
19

como já dito. Essa primeira integração é importante ao longo do processo de leitura das
materialidades linguísticas, sejam elas notícias, charges, campanhas, editoriais, definições,
entre outros, mas passa a ser secundária para comprovar a hipótese deste estudo – se a
meritocracia funciona uma fórmula discursiva – pois, para essa confirmação, estuda-se a
dispersão do termo, a circulação, muito mais que as diferentes FDs mobilizadas no jogo
discursivo.
Dado esse cenário, a segunda unidade não-tópica descrita por Maingueneau – o percurso
– é tomada como fundamental para a reunião dos materiais heterogêneos em torno de uma
fórmula – “meritocracia” – para analisar sua circulação, observando os sentidos mobilizados,
abandonados, retomados, parafraseados, entre outros, e possibilitar a medida de um tamanho,
uma dimensão para essa dispersão que, por hipótese, funciona como uma fórmula discursiva.
Os percursos distinguem-se em “percursos de tipo formal” (derivação sufixal ou em uma
metáfora), “percursos fundados em materiais textuais” (pequenas frases ou fragmentos de texto)
e “percursos fundados em materiais lexicais” (retomadas e transformações de uma mesma
fórmula em uma série de textos). Para essa análise, foca-se no tipo 3 – percursos fundados em
materiais lexicais – já que a “meritocracia” se enquadra melhor nessa divisão. A característica
primeira dessa unidade não-tópica é atravessar unidades tópicas variadas e tecer, assim, “uma
rede através do interdiscurso” (MAINGUENEAU, 2015, p. 95), além de compreender que as
“fórmulas” são unidades linguísticas propícias para esse tipo de processamento via percurso.
Embora o capítulo 3 dessa pesquisa seja dedicado à apresentação das “fórmulas
discursivas”, destaca-se que a fórmula, de acordo com Krieg-Planque, corresponde a uma
utilização particular da palavra. Para isso, deve-se refletir cuidadosamente sobre a vida de uma
unidade lexical em seu percurso na sociedade, em dado momento histórico ou ao longo do
tempo, por isso unidade não-tópica “percurso” é mobilizada: a vida da palavra nada mais é do
que o percurso dela no universo discursivo.
De acordo com Maingueneau (2015), “a fórmula não se limita necessariamente a um só
significante” (2015, p. 97), pois ela está no centro de uma rede. Por esse motivo, um analista
do discurso, que se utiliza da unidade não-tópica percurso para estudar as fórmulas, não busca
o sentido “primeiro” das palavras – como em “meritocracia” – o sentido “certo” ou “errado”,
mas sim estuda elementos além de efeitos de sentido na atualidade das enunciações,
considerando as restrições da própria língua e as características das FDs em funcionamento.
Assim, as fórmulas oferecem uma oportunidade de observação relevante para a linguística, já
que a movimentação dos sentidos é potencializada, ora com a cristalização de uma concepção,
ora com a interdição de outra. Na FD, o que autoriza e o que impede um determinado sentido é
20

o que dá sustentação para a análise do percurso de uma fórmula, pois ela pode tanto promover
sua aceitabilidade, como também tem a força de tornar algo inaceitável.
Deve-se considerar que a decisão pela unidade não-tópica percurso mobiliza “reações
ambivalentes” que, de acordo com Maingueneau (2008b), é um gesto tão sedutor, pela
possibilidade de atravessar as múltiplas fronteiras e circular pelo interdiscurso, quanto perigoso,
já que isso pode dificultar a vida do analista no momento da justificativa das escolhas
realizadas, tendo em vista a extrema heterogeneidade do corpus de análise. Por isso, o autor
esclarece que essa “fissura constitutiva” da Análise do discurso, entre aqueles que decidem por
análises no interior das fronteiras, com limites já pré-formatados, e outros que buscam os
sentidos foram dos limites oferecidos, é o que impede a AD de “fechar-se sobre si mesma”
(2008b, p.25) e exige dos analistas um extremo cuidado, pois “o sentido é fronteira e subversão
da fronteira, negociação entre pontos de estabilização da fala e forças que excedem toda
localidade” (Ibid., p. 26).
Em síntese, define-se como trajetória, partindo de categorias mais abrangentes para
chegar às específicas, o seguinte: unidades não-tópicas > percurso > fórmula > “meritocracia”.
As unidades não-tópicas permitem a reflexão sobre a diversidade e a natureza dos itens
reivindicados. Já os percursos permitem a análise de uma dispersão e, por isso, exigem um
recorte, tendo em vista sua extrema abrangência. Para esse trabalho, delimita-se a
temporalidade das buscas (item justificado no próximo tópico) para formação do corpus de
pesquisa (2014-2020) e campo jornalístico-midiático, como domínio privilegiado para a
observação do funcionamento discursivo da “meritocracia” no corpo social.
Para verificar o caráter público da fórmula em questão, pesquisou-se sua ocorrência em
veículos impressos e digitais, como jornais (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo,
entre outros), revistas (El País, Le Monde Brasil, Carta Capital, Veja, Isto É, Piauí Herald, Cult,
entre outras), blogs e sites jornalísticos (DCM [Diário do centro do mundo], Geledés, Carta
Maior, blogs de jornalistas, como Leonardo Sakamoto e Kennedy Alencar, entre outros), com
a finalidade de obter a diversidade de gêneros do discurso e de posições político-ideológicas.
Por fim, as fórmulas, além de serem uma porta de entrada muito produtiva para a reunião do
material que constitui o corpus de análise, dão a dimensão discursiva necessária para a língua,
captando e disseminando discursos específicos.
21

1.2 A importância dos buscadores digitais de pesquisa

Tendo em vista a escolha da unidade não-tópica percurso, que inclui a noção de fórmula
e sua possibilidade de olhar para um texto não apenas por meio de seu conteúdo, a etapa
seguinte encontrou nos dispositivos de pesquisa eletrônica um auxílio para o mapeamento de
questões importantes. Apoiada na perspectiva de Maingueneau, que afirma o estudo dos
percursos como algo, atualmente, razoavelmente facilitado “pela existência de programas de
informática que permitem tratar corpora muito vastos” (2015, p. 23), essa prática tem por
objetivos:

a) Definir “meritocracia” como um sintagma candidato ao estatuto de fórmula;


b) Definir o recorte temporal da pesquisa, levando em consideração o momento em que o
termo passa a circular de forma mais frequente, cristalizando e hierarquizando sentidos;
c) Interpretar as associações que o termo “meritocracia” permite, em virtude das buscas
solicitadas pelos usuários da rede, com a finalidade de analisar a dispersão de sentidos
no corpo social, já que as fórmulas demandam uma circulação em diferentes campos
discursivos;
d) Reunir um conjunto de textos com o sintagma selecionado a partir de critérios mais ou
menos estabelecidos;

Além da extensa análise discursiva realizada, Oliveira (2018) faz uma ressalva
pertinente dos limites dos dispositivos digitais de busca, considerando que embora as chamadas
searchengines (máquinas de pesquisa, em tradução livre) sejam muito utilizadas para pesquisas
que envolvam fórmulas ou corpus baseado em outras unidades tópicas/não-tópicas, elas podem
“falsear dados e confundir o direcionamento da análise” (2018, p. 33), já que, a depender da
plataforma, a pesquisa é mais ou menos precisa e pode trazer indícios equivocados do que se
pretende analisar. Como solução para mediar essa questão, considerando que a tecnologia pode
e deve ser utilizada, mas com precauções, Oliveira sugere o conceito teórico interpretante
razoável (KRIEG-PLANQUE, 2011), como uma espécie de filtro que abrange o próprio
analista do discurso.
Na obra “Fórmulas discursivas”, organizada por Motta e Salgado (2011), há uma
entrevista com Alice Krieg-Planque, analista do discurso francesa alinhada às pesquisas de
Faye, Fiala e Ebel (KRIEG-PLANQUE, 2010). Quando questionada sobre a necessidade de
relacionar, no momento da análise dos dados, tanto à inteligência humana quanto a
22

interpretação, a autora menciona a expressão “interpretante razoável” e explica que essa


designação descreve “aquele que não é inteiramente invadido pelo já-dito de toda palavra,
aturdido pelo dialogismo no qual cada palavra se produz, [...], nem inteiramente preso aos
grilhões do dicionário e da gramática mais tradicional” (MOTTA; SALGADO, 2011, p. 30).
Ou seja, essa definição é um esforço que cada analista deve fazer para não pressupor sem
investigar, mas quando em investigação, desconfiar do que vê, buscar aquilo que não vê e deixar
também que, durante a leitura, metaforicamente, os dados conversem com o pesquisador, o que
faz razão nas pesquisas de mestrado e doutorado em fórmula, nas quais o presente trabalho se
insere e as pesquisas de Oliveira também.
Com essa ressalva, Oliveira (2018) menciona as dificuldades iniciais em pesquisas com
fórmulas, tendo em vista que as quatro propriedades essenciais atribuídas às fórmulas –
funcionar como referente social, ter uma estrutura cristalizada, ter caráter discursivo e ser
polêmica (KRIEG-PLANQUE, 2010) – podem não ser, na prática, tão facilmente descritível.
Por isso, o pesquisador oferece um conjunto de práticas analíticas que podem transformar a
hipótese do analista, que olha para uma determinada unidade e supõe que ela funcione como
uma fórmula, em um filtro efetivo para os dados de pesquisa, como as categorias de re/de dicto,
ambas apresentadas na obra de Krieg-Planque (2010).
Oliveira (2018, p. 38) propõe uma tabela com itens, como conteúdo informacional e
referencial, circulação de pequenas frases, slogans, citações, entre outros, que correspondem a
frases a serem digitadas nos buscadores na tentativa de “flagrar na materialidade textual
vestígios dos critérios discursivos diversos”. O autor faz sugestões, como o uso de “discordo
do termo x”, “não aceito o termo x”, e outras variáveis, para verificar se o alvo do
questionamento é a própria palavra (valor de dicto) ou a existência daquilo que ela designa
efetivamente (valor de re), além de outros aspectos relativos à circulação de uma provável
fórmula.
Sobre a questão específica dos valores de re / de dicto, os resultados apresentados na
tese de doutorado mostram que, para a fórmula “consciência negra”, há maior discordância em
torno de seu valor de re que de dicto, ou seja, há mais questionamentos que pedem o fim do
Dia da Consciência Negra ou questionam a existência de algo como uma consciência negra, do
que discussões sobre o sintagma “consciência negra” em si. Para a unidade “meritocracia”,
seguem-se o resultado, utilizando as seguintes frases:
28

permitem a nomeação de realidades, como também para que, a partir delas, seja possível fazer
pesquisas do funcionamento discursivo de itens lexicais, slogans, pequenas frases, entre outros.
Krieg-Planque (2018) afirma que as palavras podem ser analisadas a partir de três
aspectos fundamentais: em sua forma material, como um vocábulo e como um referente para
qualquer coisa externa a elas. Para esse trabalho, assume-se que as “palavras” pertencem “a
categorias sintáticas e são constituídas de uma morfologia específica” (2018, p. 130). A
relevância de analisar a palavra “meritocracia”, após uma reflexão mais abrangente das
categorias de análise discursiva, apoia-se na ideia (2018, p. 104), pois há fenômenos de
sobreposição, de seleção e de deslocamento de sentidos fundamentais para que seja razoável
assumir que as palavras podem mudar de sentido de acordo com a posição que o locutor assume
quando as mobiliza. Assim, consideram-se as propriedades morfossintáticas de cada uma das
variantes analisadas, relacionando-as aos efeitos de sentido que podem produzir, pois a palavra
permite ao locutor privilegiar determinados usos para defender ou repudiar uma causa por meio
de um nome que valide essa luta publicamente.
No contexto Brasil, por exemplo, como exemplificam os tradutores da obra de Krieg-
Planque, há uma disputa de sentidos que envolve a mobilização dos termos “invasão” e
“ocupação” para designar os movimentos que lutam pelo direito à moradia, significando
primeiro uma posição de repúdio à ação, criminalizando os coletivos; e o segundo, uma posição
favorável às ocupações. Ou seja, o que pode parecer um gesto automático de mobilização
lexical, a partir da análise do contexto, da situação de produção e da posição dos locutores,
apresenta-se como a tomada de posição discursiva frente ao tema destacado, pois “uma
mudança de denominação participa de uma modificação do sentido” cuja ação “mostra-se
particularmente interessante na medida em que participam da categorização de acontecimentos”
(KRIEG-PLANQUE, 2018, p. 113).
Nos debates públicos, como destaca a autora, as denominações são importantes
indicadores para a análise de controvérsias, pois é possível desmistificar a ideia corriqueira que
as palavras “etiquetam”, de forma clara e evidente, uma coisa, um fato e/ou um acontecimento.
A questão importante é que a forma como uma palavra é mobilizada no “fio do discurso” não
é capaz de estabilizar a natureza daquilo que é referido, pelo contrário: é no discurso que os
processos de categorização e recategorização agem e permitem análises extremamente caras
para a análise do discurso. Para exemplificar esse movimento, sugerem-se as seguintes
formulações hipotéticas pertencentes a formações discursivas opostas:
29

a) A meritocracia é o principal critério do vestibular. Esse método injusto reforça a


desigualdade social nacional;
b) A meritocracia é o principal critério do vestibular. Esse método justo permite uma
competição justa.

O processo envolvido nessas sentenças chama-se anáfora, “um conjunto amplo de


fenômenos de retomada que permitem ao discurso correlacionar diferentes segmentos da cadeia
verbal, assegurando assim a coerência, a economia e a progressão de sentenças” (KRIEG-
PLANQUE, 2018, p. 115). Nas sentenças em destaque, os sintagmas nominais “método
injusto” e “método justo” anaforizam “meritocracia”, tratando-se de uma progressão
discursiva que também indica o ponto de vista do tema – primeiro, uma perspectiva com traço
negativo, ou seja, a meritocracia vista como uma noção injusta; na sequência, uma perspectiva
com traço positivo, ou seja, a meritocracia vista como justa. No desenvolvimento analítico do
corpus selecionado, no capítulo 3, as anáforas serão um recurso importante de como o
deslocamento de significado dos sintagmas permite que as posições discursivas dos locutores
sejam identificadas.
Esse exemplo procura ilustrar o discurso como uma materialidade em ação que, por
meio de palavras, frases, entre outros, cria tensões que interessam particularmente à análise do
discurso, já que “estudar o real do discurso, seus observáveis em contextos situados” (KRIEG-
PLANQUE, 2018, p. 60) permite a análise que debruça sobre o modo como as diferenças e as
semelhanças de sentido operam em determinados contextos, em um dado período histórico. E,
para analisar o funcionamento discursivo da palavra “meritocracia”, algumas definições de
dicionário são mobilizadas.
Para justificar esse gesto analítico, é preciso, inicialmente, assumir o dicionário como
um instrumento linguístico que, de acordo com Orlandi (2000), promove um “efeito de
completude”, ou seja, “o dicionário assegura, em nosso imaginário, a unidade da língua e sua
representatividade” (2000, p. 98). Por isso, observar os verbetes como parte de um processo
discursivo que pode ser produtivo para verificar se a palavra “meritocracia” é descrita (isto é,
se existe a entrada “meritocracia” nos livros), como é descrita e quais exemplos mobiliza. O
caráter não transparente da linguagem e o fato de as palavras não serem neutras são a base para
esse percurso. Primeiramente, duas entradas específicas são analisadas – “meritocracia” e
“mérito” – em Houaiss (2001) e Borba (2004).
30

Houaiss
Meritocracia s.f (d1958) 1. Predomínio numa sociedade, organização, grupo, ocupação, etc.
daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem-dotados
intelectualmente) 2. p.met classe ou grupo de líderes em um sistema desse tipo 3. sistema de
recompensa ou promoção fundamentado no mérito pessoal ETIM mérito + -o- + -cracia, prov.
por infl. do ing. meritocracy (1958); trata-se de voc. híbrido, pois meritum é de orig. latina e -
cracia de origem grega1.

Mérito: s.m 1. m.q. MERECIMENTO 2. JUR a questão central de uma pendência, ou num
conjunto de fatos e provas, que orienta a formação de uma decisão judicial ou administrativa;
merecimento. ETIM lat meritum ganho, lucro, proveito, merecimento.

Dicionário UNESP
Meritocracia s.f regime que privilegia o mérito: Numa meritocracia não há lugar para a
nomeação de parentes2.

Mérito s.m 1. Merecimento; valor: O grande mérito dos gregos foi o de inaugurar o pensamento
racional, isento de toda e qualquer preocupação religiosa. 2. Talento; aptidão: Ninguém ignora
o mérito desse atleta, que tantas glórias deu ao Brasil. 3. (Jur.) questão que constitui o principal
objeto de litígio e que orienta a decisão judicial ou administrativa: Depois da liminar, o
interessado precisa esperar o resultado do julgamento do mérito da ação.

Na primeira ocorrência, antes de dar atenção para o conteúdo linguístico propriamente


dito, destaca-se o ano de dicionarização do termo no Brasil: 1958. Em 1944, na Grã-Bretanha,
foi promulgada a Lei de Educação Butler, cujo destaque é a implantação de um sistema
secundário público. A partir dela, todas as crianças do país, entre 11 e 12 anos, ao terminar o
Ensino Primário, devem realizar um teste cujos resultados indicariam qual dos três tipos de
escola elas posteriormente frequentariam. De acordo com Hart, Moro e Roberts (2012), essas
escolas eram divididas, em grau crescente de importância e prestígio, em secundárias (grammar
schools), técnicas (technical schools) e secundárias modernas (secondary modern schools) cuja
avaliação, chamada de Eleven Plus, mede o QI dos alunos, por meio de questões de raciocínio
geral, aritmética e de um ensaio sobre um tema de conhecimentos gerais.

1
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1900.
2
BORBA, Francisco (Org.). Dicionário UNESP do português contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2004. p. 911.
31

Uma das principais críticas feitas ao sistema de avaliação Eleven Plus foi realizada pelo
sociólogo britânico Michael Young, no livro “The Rise of Meritocracy, 1870-2033: na Essay
on Education and Equality”, publicado em 1958. Na obra, um sociólogo vive no ano 2034 e
analisa os últimos 160 anos do sistema educacional da Grã-Bretanha, que avaliava as crianças,
não casualmente, por testes de QI, e determinava, já nos primeiros anos de vida escolar, qual
seria o nível de proficiência atingido de acordo com o ranking de desempenho, ou seja, o mérito
é uma medida de alta relevância social em virtude de seu potencial de classificação. Não por
acaso, no final da obra, o protagonista, que buscava encontrar as causas e os efeitos do colapso
do sistema meritocrático proposto, suicida-se nas mãos dos rebeldes, pois o ideário do “culto
ao mérito” venceu os sujeitos em sociedade.
A distopia de Young faz refletir a respeito do papel da “inteligência acadêmica” como
o único tipo de mérito para a divisão social e quais são os impactos de um sistema que determina
o percurso educacional de uma criança a partir de um único teste, pois uma prova com poder
de divisão social também pode permitir relações de poder pouco produtivas, além de, como
aponta Young, conduzir essa sociedade a regimes totalitários. Apesar da reflexão do autor estar
diretamente relacionada ao cenário educacional, é possível extrapolar esse limite e, pela mesma
perspectiva que analisa os processos educacionais de seleção, vislumbrar outros ângulos nos
quais o mérito pode ser também um agente segregador, em especial no cenário brasileiro,
permitindo afirmar que se vive no Brasil constantes processos seletivos de sobrevivência
(voltaremos a essa questão ao longo do trabalho).
A digressão histórica feita não é ocasional. Ela conecta-se ao fato de o verbete
“meritocracia” ter sido aceito como uma entrada de dicionário no mesmo ano da publicação da
distopia, mostrando a importância da narrativa, e também que a decisão de dicionarizar (ou
não) uma palavra passa por alguns crivos, dentre os quais o político. Além disso, nos dicionários
Aurélio3, Larousse Cultural4, Cegalla5 e o da Academia brasileira de letras6, o termo
“meritocracia” não aparece como um verbete - há apenas a entrada “mérito”, isso já nos anos
2000. Os dois verbetes, do dicionário Houaiss e do dicionário da Unesp, estão em destaque
porque foram os únicos cujos verbetes de “mérito” e “meritocracia” foram encontrados.

3
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
4
LAROUSEE CULTURAL. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1992. p. 740
5
CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2.ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2008. p. 577
6
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2.ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2008. p. 851.
32

De volta para as materialidades destacadas, o dicionário Houaiss define, no item 1, que


há meritocracia em uma sociedade quando existe o predomínio daqueles que têm mais mérito,
definindo “mais mérito” como “os mais trabalhadores, os mais dedicados, os mais bem
dotados”, ou seja, há uma associação diretamente proporcional entre mérito e trabalho, ou seja,
basta trabalho e empenho para ser “mais bem dotado” e, portanto, ser reconhecido e acessar os
direitos iguais a todos os cidadãos. Uma leitura possível sobre o trecho “mais bem dotados
intelectualmente” indica uma brecha interpretativa na definição, reconhecendo que nem sempre
a “conquista” é uma questão de esforço, pois há pessoas que já nascem com determinadas
vantagens.
Inclusive, no contexto social brasileiro, pode-se afirmar, a partir do verbete selecionado
(de um dicionário nacionalmente reconhecido), que há uma incoerência na aplicação do
conceito meritocrático, pois há valores sociais distintos para as funções laborais existentes,
distinção também realizada em termos de remuneração. Um trabalhador docente, por exemplo,
não atinge o mesmo acesso socioeconômico que um trabalhador do judiciário, mesmo com
cargas de trabalho semelhantes e extremo empenho. Ou seja, como se quantifica o empenho?
E como se atribui valor, por meio de vagas em universidades/concursos/cargos em empresas
privadas/na política, a um empenho e um trabalho que não se podem quantificar?
Ainda no mesmo verbete, destaca-se o item 3 – “sistema de recompensa ou promoção
fundamentado no mérito pessoal”. O traço positivo da palavra “recompensa” pode induzir o
leitor a compreender “meritocracia” como um poder generoso – assim como se faz em épocas
de guerra, como afirma Foucault, já que o poder pode promover uma aparente paz, mas, em
verdade, mascara uma guerra contínua travada pelas relações de força que controlam o pensar,
o sentir e o corpo social de forma sistêmica. Recompensar pelo mérito, novamente, é um
instrumento pouco coerente para uma sociedade desigual como a brasileira que, segundo o
IBGE7, na comparação do índice Gini (indicador que mede a diferença de renda), a
desigualdade social tem alta ininterrupta desde o segundo trimestre de 2015, já que “nem
mesmo em 1989, que constitui o pico histórico de desigualdade brasileira, houve um
movimento de concentração de renda por tantos períodos consecutivos”. Quanto mais perto de
1, maior a desigualdade; quanto mais perto de 0, maior a igualdade: em termos de rendimento
médio mensal, em 2018, o índice nacional foi de 0,545.
Já a segunda definição de “meritocracia” não traz nenhuma novidade quanto à descrição
em si “regime que privilegia o mérito”, porém, por meio da exemplificação, que situa o termo

7
PNAD Contínua 2018: 10% da população concentram 43,1% da massa de rendimentos do país. Agência IBGE
notícias, 16 out. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3mkGT2r>. Acesso em: 10 jan. 2020.
33

em um determinado contexto, adiciona-se, por negação, um fato: “numa meritocracia não há


lugar para a nomeação de parentes”, ou seja, o componente “nepotismo” – prática dos
administradores públicos que consiste na nomeação de parentes8 – é um fato algo oposto a uma
ação meritocrática válida. De forma associada, dois exemplos nacionais do ano de 2019, o
primeiro, da página The Intercept Brasil – “Uma terra de dinastias”9; o segundo, uma charge,
que circulou com bastante frequência e assiduidade pelas redes sociais, como Facebook,
Instagram, entre outras, podem ser analisados como exemplos que não se encaixam à lógica da
definição do dicionário de meritocracia, embora tentem construir uma imagem questionável.
Na matéria do Intercept, a jornalista Nayara Felizardo descreve o funcionamento dos
concursos do Tribunal de Justiça do Amazonas: o último edital previa 23 novas vagas de juízes,
com um salário inicial de R$24,6 mil. Dois filhos de uma desembargadora e a sobrinha de um
desembargador (ambos do mesmo tribunal) candidataram-se, porém com classificação 34º, 43º
e 51º. Misteriosamente, um mês depois de o resultado ser divulgado, um projeto de lei sugere
a criação de 12 cargos de juízes auxiliares, além da desistência de cinco candidatos ao cargo.
Resultado: os três candidatos mencionados foram aprovados. Se na meritocracia não há lugar
para a nomeação de parentes, então, parece pouco convincente valer-se do argumento
meritocrático como indica a matéria. Em adição, o segundo exemplo também dialoga com a
exemplificação promovida pelo verbete, em especial, pela polêmica na tentativa de nomeação
de Eduardo Bolsonaro para a embaixada dos Estados Unidos10.

8
BORBA, Francisco (Org.). Dicionário UNESP do português contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2004. p. 963.
9
FELIZARDO, Nayara. Uma terra de dinastias. The Intercept Brasil, 01 jul. 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/3ji9PWL>. Acesso em: 02 fev. 2020.
10
Eduardo Bolsonaro pode ser embaixador nos Estados Unidos, anuncia presidente. Jornal Gazeta do Povo, 11
jul. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3kjuSto>. Acesso em: 2 fev. 2020.
34

Figura 6. Printscreen da imagem retirada de uma página online 11

No texto estão presentes a linguagem verbal, por meio do texto, e a linguagem não-
verbal, as imagens, em três quadros: no primeiro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro está
entre os presidentes dos Estados Unidos da América (Donald Trump) e do Brasil (Jair
Bolsonaro). Por meio de um questionamento: “eu tive privilégios por quê?” é possível perceber
que a noção de ter ou não ter privilégio parece pouco compreensível para o deputado. Esse
quadro contextualiza o tema da charge – o caso da nomeação de Eduardo para a embaixada
norte-americana e um suposto caráter não consensual dessa nomeação.
No segundo quadro, associa-se o trabalho político de Eduardo ao pai, transição que
permite a quebra de expectativa no último quadrinho: embora no quadro 2 Eduardo esteja com
uma expressão facial séria, não parece desestabilizado, interpretação que é rompida no quadro
3 tanto pelo texto – “se hoje eu fui indicado para ser o embaixador do Brasil nos Estados Unidos
é porque eu mereci, porra”, com destaque para a presença de uma palavra de baixo-calão,
empregada em situação de embate, raiva, entre outras, quanto pela imagem – olhos vermelhos,
expressão facial raivosa. De acordo com o exemplo do dicionário Unesp, “numa meritocracia
não há lugar para a nomeação de parentes”, a nomeação (com posterior desistência) além de
trazer traços nepotistas também não se qualifica como um cargo meritocrático (via processo

11
ARGEMON, Rafael. Eduardo Bolsonaro embaixador dos EUA: a internet também quer uma boquinha assim.
Portal Huffpostbrasil, 13 jul. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/31p5Q4n>. Acesso em: 2 fev. 2020.
35

seletivo, requisitos básicos, entre outros), como é de costume para esse cargo público nas
embaixadas brasileiras no exterior.
Além desses dois verbetes de “meritocracia”, outro também pode ser adicionado a essa
reflexão, dessa vez do dicionário online Michaelis, que define “meritocracia”12, como: a) forma
de administração cujos cargos são conquistados segundo o merecimento, em que há o
predomínio do conhecimento e da competência; b) indicação de promoção por mérito pessoal.
Tanto a primeira quanto a segunda descrições vinculam a palavra em destaque ao campo
administrativo, à lógica corporativa, o que oferece indícios interessantes para se pensar como
um termo, cujas entradas no dicionário têm esse direcionamento, migrou para outros campos
sociais, como a educação, a política, entre outros, e quais sentidos esse percurso construiu não
apenas do termo “meritocracia”, mas como se entende o que é “merecer” ou “ter merecimento”,
o que é “competência” e “conhecimento”, bem como o que é ser um sujeito que recebe uma
“promoção” por mérito pessoal.
Essa visão meritocrática do mundo, dividida em aspectos negativos e positivos,
relaciona-se à lógica da industrialização, pois está pautada pela dupla “desempenho e
produtividade”, palavras semanticamente semelhantes, mas que constroem sentidos diversos a
depender da situação de produção. De um lado, há uma boa variedade de medidas objetivas que
quantificam o desempenho e a produtividade das máquinas; de outro, há uma extrema
dificuldade em lidar com as medidas que qualificam o desempenho e a produtividade de
pessoas. Esse embate, entre máquinas e pessoas, acontece também entre as próprias pessoas,
que são cada vez mais reificadas pela lógica do sujeito-empreendedor, isto é, as pessoas passam
a disputar, via desempenho, seu espaço na sociedade, mas esquecem que seus valores são
simbólicos e abstratos, dificilmente manipuláveis, como se pode fazer com as máquinas.
“Coisifica-se” o homem para então posiciona-lo na mesma arena dos objetos, cujo descarte é
certeiro.
No mesmo dicionário, há sete entradas para o termo “desempenho13”: a) ato ou efeito
de desempenhar-se; b) conjunto de características que permitem determinar o grau de eficiência
de uma máquina; c) recuperação; d) modo de executar uma tarefa que terá, posteriormente, seu
grau de eficiência submetido a análise e apreciação; entre outros. Apenas nos quatro primeiros
verbetes, há aspectos quantitativos (item b) e qualitativos (item d), indicando a dificuldade em
mensurar com justiça o que é efetivamente um bom desempenho para uma pessoa e/ou um

12
Dicionário Michaelis Digital. Meritocracia. Disponível em: <https://bit.ly/31Rh8yX>. Acesso em: 05 jun. 2020.
13
Dicionário Michaelis Digital. Desempenho. Disponível em: <https://bit.ly/3joPhvy>. Acesso em: 05 jun. 2020.
36

grupo de pessoas. Para o termo “produtividade14”, há seis entradas: a) qualidade ou condição


do que é produtivo; b) potencial para produzir; c) quantidade produzida de determinado item;
entre outros. Neste item, a acepção (a) “qualidade e condição” também mostra a dificuldade na
distinção/gradação de produtividade, pois os critérios de “qualidade” e “condição” dependem
de julgamentos que, mesmo científicos em determinados contextos, podem sofrer interferências
de valor pessoal e abstrato, assim como o que é, efetivamente, ter mérito ou ser digno de mérito
e sua respectiva recompensa.
Essa breve análise de verbetes permite afirmar que o termo “meritocracia” está
direcionado para uma lógica de desempenho fabril, ou seja, há uma aparente e complicada
simbiose entre máquinas e homens, cujo desempenho é medido de acordo com a produtividade.
É possível dizer, com certa tranquilidade, que uma máquina é igual a outra máquina de mesmas
características, mas é impossível dizer que dois indivíduos – com a mesma idade, a mesma
classe social, a mesma cor de pele –, são iguais. Por isso, é importante destacar os efeitos de
sentido construídos quando um termo é utilizado, quais são as memórias discursivas
mobilizadas, como um uso lexical determina ou não uma posição social, etc.

14
Dicionário Michaelis Digital. Produtividade. Disponível em: <https://bit.ly/35uab7A>. Acesso em: 05 jun. 2020.
37

CAPÍTULO 2

MERITOCRACIA, PODER E VIOLÊNCIA

“3%, apenas 3 de vocês serão o seleto grupo de heróis a caminho do Maralto,


onde o casal fundador criou o mais perfeito dos mundos, onde ninguém é
injustiçado, todos têm a mesma chance e depois o lugar que merece: o Maralto
ou o continente. Ou como vocês costumam falar – o lado de lá ou o lado de
cá. Esse processo garante que só os melhores desfrutem do Maralto. Agora,
nem todos entendem isso. Vocês bem sabem que a inveja e o ressentimento
têm feito surgir grupos em nome de uma falsa e hipócrita igualdade, e com
ideias populistas buscam destruir tudo que conquistamos, mas não
conseguiram e não conseguirão. Enfim, bem-vindos a todos. (...) Lembre-se:
você é o criador do seu próprio mérito. Aconteça o que acontecer, você
merece"

Ezequiel, interpretado por João Miguel, protagonista da primeira


temporada da série 3%, da Netflix (2016)

O cotidiano brasileiro é marcado por diferentes tipos de relações de poder. Uma delas,
que emerge independentemente do tema, baseia-se no mérito ou na falta dele: mérito por
ascender/decrescer socialmente, mérito por não ter se tornado um criminoso mesmo morando
na periferia, mérito por passar no vestibular ou em um concurso público, mérito por ser
promovido em uma empresa. Em comum, essas temáticas envolvem o mundo do trabalho, ou
seja, o mérito associa-se, pelo menos em uma primeira leitura superficial, ao empenho e à
dedicação em prol de alcançar um patamar social melhor, mais valorizado pelo coletivo. Além
disso, o mérito (e posteriormente ser premiado por meio dele) tem uma “aparência de verdade”,
de legitimação. O efeito do reconhecimento do corpo social é a premiação por mérito e, como
diz o artigo 5º, da Constituição Federal Brasileira de 1988, “todos são iguais perante a lei”,
portanto, a igualdade é a manifestação legal da justiça.
Essa associação é tão comum que passou a ser chamada de “meritocracia”, ou seja, a
bonificação por meio do mérito (do trabalho, da dedicação, do esforço, do empenho, do
compromisso, etc.), independentemente do ponto de partida e/ou do percurso dos sujeitos
envolvidos. Esse termo, além de ser composto pela palavra latina meritum (mérito) e a palavra
grega kpatia (poder), pode produzir sentidos diversos mais ou menos produtivos para uma
sociedade desigual como a brasileira: de um lado, a meritocracia como “justiça social”, “sistema
que promove a igualdade”; de outro, a meritocracia como “uma falácia”, “um argumento que
naturaliza as desigualdades”, que coloca o sucesso (ou a ausência dele) como o reflexo do que
38

cada um merece ter. Entre essas possibilidades, há uma intensa disputa por sentidos que
relaciona mérito, trabalho, desigualdade, igualdade e justiça.
Essa breve observação relaciona-se ao trecho em destaque, que faz parte do episódio
inaugural da série brasileira 3% produzida pela Netflix (2016): “aconteça o que acontecer, você
merece”. A frase, proferida pelo personagem Ezequiel (interpretado por João Miguel), líder do
Maralto (o lugar harmonioso, acessado apenas pelos vitoriosos do processo seletivo chamado
de “Processo”) e responsável pelo Processo número 104, a síntese da série nacional, dirigida
por César Charlone. Abrir esse trabalho com uma associação entre ficção e realidade está
ancorada na ideia que considera as séries televisivas manifestações artísticas e também
expressões de possíveis sintomas da realidade social em curso. Essa consideração encontra um
campo reflexivo promissor em Foucault, que entende a ficção como uma força capaz de
desestabilizar os regimes de saber/poder, assim como permite que o presente seja interpretado
pela obra de arte. Para o autor, parece “possível fazer a ficção trabalhar na verdade, induzir
efeitos de verdade com um discurso ficcional e, de algum modo, fazer com que o discurso de
verdade suscite, fabrique alguma coisa que ainda não existe, portanto ‘ficcione’” (FOUCAULT,
1995, p. 23615 apud RODRIGUES, 2009, p. 233).
Foucault permite reconhecer tanto nos fatos sociais em circulação, como na série 3%,
por exemplo, enunciados que possibilitam a produção do discurso de meritocracia cujos efeitos
são mais ou menos cristalizados no corpo social. Na distopia, é possível assistir ao futuro
brasileiro, especificamente na Amazônia Subequatorial, arrasado pela lógica neoliberal, que
corrói o Estado até sua completa ausência, permitindo que os detentores da ciência, da técnica
e do capital determinem onde cada sujeito pode e merece estar – eles estão no Maralto, o lugar
dos privilegiados. Do outro lado, os moradores do Continente, que sofrem com todos os tipos
de falta. Em comum, pode-se dizer que a maioria deles passa a acreditar que essa divisão –
entre Maralto e Continente – realizada por meio de um processo seletivo, que escolhe “os mais
preparados”, é exatamente o que cada um merece, pois consideram o Processo justo.
A palavra “Processo” designa o modo de seleção de jovens de 20 anos, que vivem no
Continente, com sérios problemas de moradia, água, saúde, educação, entre outras violências.
O Processo seleciona os “melhores”, de acordo com os critérios da minoria dominante do
Maralto, qualificando os sobreviventes das provas como “um seleto grupo de heróis”. Essas
pessoas abandonadas pelo sistema, que sobrevivem diante da extrema pobreza do continente,
são chamadas de “heróis” apenas quando conquistam um espaço fora do Continente, ou seja, o

15
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: ROBINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória
filosófica. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1995. p. 231-249.
39

heroísmo não parece estar colocado no cotidiano de sofrimento, mas sim na suposta ascensão
social quando chegam em Maralto – viver no Continente é condição; viver no Maralto é mérito.
As provas de resistência e de pressão psíquica são propostas com a finalidade de promover
alguns e descartar outros, gerando rivais, inimigos, fazendo-os crer que cada situação vivida é
justa e “os iguais” (os moradores do Continente), que estão na disputa por uma vaga no Maralto,
são efetivamente os vilões que devem ser combatidos.
Assim como em todas as disputas (reais ou fictícias), há um grupo opositor, pois o
dissenso está no centro da luta. Na série, a “Causa” é a oposição adjetivada de “falsa e
hipócrita”, por defender uma ideia de igualdade que, segundo o Processo, não existe, pois não
é possível, para a lógica da série, que toda a população possa viver em um lugar bonito, com
conforto, segurança, bons recursos de saúde e harmonia social. Na obra, quem resiste ao
Maralto chama-se “Causa”: a Causa pretende mostrar que o Processo não é justo, que os sujeitos
não podem acreditar que condições sub-humanas são dignas, nem silenciarem diante do
autoritarismo, criando o cenário de disputa entre “nós” e “eles”, que possibilita a mobilizações
de memórias sobre o período fascista, estruturado pela divisão. Essa quebra objetiva cria ou
fortalece essa distinção (“nós” x “eles”) para naturalizar, por exemplo, a desigualdade entre os
grupos e instaurar uma política de medo: “nós” somos os civilizados (Maralto); “eles” são os
bárbaros (Continente).
Diante disso, a série e o da vida real estão em relação, em especial pela emergência da
temática da meritocracia. Essa divisão (“nós” x “eles”), como afirma Jason Stanley (2019), na
obra “Como funciona o fascismo”, livro que descreve como o termo “fascismo” voltou a
circular intensamente no século XXI, é capaz de “moldar a ideologia e, em última análise, a
política”, pois “todo mecanismo da política fascista trabalha para criar ou solidificar essa
distinção” (2019, p. 15). Na série, o líder tenta naturalizar as diferenças de grupo para
potencializar a competição, fato que funciona também na realidade, executando diariamente a
ideia de que o “nós” é representado pelos cidadãos legítimos ou “cidadãos de bem” (como está
em voga) enquanto o “eles”, em contraste, são os criminosos de alta periculosidade para o
funcionamento da nação (mesmo que essa periculosidade seja a cor da pele e a classe social);
que “‘nós’ somos trabalhadores e conquistamos o primeiro lugar com luta e mérito, enquanto
‘eles’ são preguiçosos, “sobrevivem dos bens que produzimos, explorando a generosidade dos
nossos sistemas de bem-estar social ou empregando instituições corruptas, como sindicados,
para separar os cidadãos honestos e trabalhadores de seus salários” (STANLEY, 2019, p. 17).
Em suma: o “nós” compreende a meritocracia como algo justo; o “eles” compreende a
40

meritocracia como um abismo injusto. E, nessa briga, entre Causa e Maralto, entre Pobres e
Ricos, o fascismo retorna como tragédia.
Para combater a Causa, o Processo transforma iguais em rivais. Os jovens disputam o
direito de viver no “Maralto” – o lugar da beleza, do equilíbrio, da bonança, porém para apenas
3% daqueles que sobreviverem ao Processo: o “lugar perfeito” para poucos graças à miséria de
todos os outros. O preço? Ser estéril, já que o controle populacional é fundamental para que a
manutenção de classe aconteça, sem miscigenação, sem diversidade. No continente, 97% de
miseráveis; em Maralto, 3% de privilegiados. Na ficção, todos têm o direito de tentar o Processo
para acessar o Maralto, há igualdade de oportunidade, por meio de uma competição justa. Na
realidade, há muito tempo no Brasil, direitos são privilégios de uma minoria, sempre
justificados pela lógica do “a oportunidade é dada, basta se empenhar”. A mesma situação
social, mas com discursividades diferentes. Essas diferenças podem ser pensadas a partir do
modo como os lados “nós” e “eles”, representados pelos pares Maralto X Causa (ficção) e -
genericamente - Ricos X Pobres (realidade), pensam o conceito de igualdade e de justiça.
Bobbio, em sua obra “Direita e esquerda”, assegura que “a igualdade, como ideal
supremo, ou até mesmo último, de uma comunidade ordenada, justa e feliz, e, portanto, de um
lado, como aspiração perene dos homens conviventes, e, de outro, como tema constante das
teorias e ideologias políticas, está habitualmente acoplada ao ideal de liberdade, considerado,
também ele, supremo ou último” (1995, p. 111). Ou seja, para esse “lado” (Causa/Pobres) –
“eles” – a igualdade é considerada uma pauta central, o que permite o reconhecimento das
diferenças (e suas respectivas desigualdades) e a luta por políticas que diminuam o abismo entre
os grupos, enfraquecendo a lógica do mérito individual como determinante para o avanço
social. Do outro lado (Maralto/Ricos) – “nós” – a igualdade não está no núcleo dos embates
políticos, pois apenas o indivíduo é responsável por seus resultados, desconsiderando as
diferenças referentes à condição socioeconômica dos envolvidos. O argumento meritocrático,
portanto, é autorizado e sistemicamente retomado tanto na série 3%, por meio das frases “você
é o criador do seu próprio mérito”, “prove para você mesma que merece uma vida melhor”,
“apenas os melhores sobrevivem ao Processo”, como na rotina nacional, com exemplos já
previamente mencionados.
Essas frases também ressoam na população que tenta sobreviver aos “processos
seletivos” do cotidiano brasileiro, sejam eles as provas nacionais de acesso às universidades
públicas e privadas, por exemplo, como também as seleções para cargos laborais públicos e
privados, o fato de os impostos serem altos, mas não haver atendimento médico gratuito e de
qualidade para todos, entre outros. Para sustentar esse discurso, no qual é imprescindível a
41

manutenção de “processos seletivos”, tomados nessa dissertação como um instrumento


meritocrático, para acessar algo, há um argumento central: a ilusão de igualdade. Tanto na série
como na vida real, essa ilusão é um elemento construído e atualizado para permitir que os
miseráveis (do Continente/da realidade brasileira) lutem uns contra os outros, em nome de uma
suposta ascensão social, de um pertencimento que o Maralto e os níveis socioeconômicos mais
altos da sociedade hipoteticamente garantem após a sobrevivência aos processos.
Na atualidade, essa lógica já está em funcionamento, pois os “processos” esvaziam as
relações e autorizam discursos excludentes e de ódio, seja via redes sociais ou via mensagem
escrita em camisetas de cursinhos pré-vestibulares. Esse tipo de violência simbólica acentua as
desigualdades, mesmo quando alguns parecem “conquistar” um espaço na sociedade de
consumo. Em notícia do portal G1”16, no dia da aplicação de provas vestibulares nacionais,
alguns candidatos usam camisetas chamadas por uns de “motivadoras” e por outros de
“agressivas”. O que há em comum nessas duas interpretações, além da disputa de sentidos, é
que o cenário que permite esse tipo de performance é o “processo” seletivo.
Comparativamente, tanto no Processo (3%) quanto nos outros processos vividos no
cotidiano nacional, além de um exercício de seleção (normalmente há mais candidatos do que
vagas, então há exclusão nessa dinâmica), com o destaque para determinadas habilidades e o
abandono de outras, há uma violência velada: aqueles que conquistam o objeto de desejo – uma
vaga, uma medalha, um atendimento – passam a representar aquilo que um determinado grupo
entende por valorizado, que deve, assim, ser copiado porque permite o “sucesso”, o “status
social”, o “respeito” – o fim da invisibilidade social. Por exemplo: os candidatos aprovados em
um vestibular concorrido passam a ser vistos como um “modelo” de sucesso; assim como os
três por cento que conquistam um espaço no Maralto passam a ser vistos como um “modelo”
de cidadão ideal.
Por consequência, a sociedade movimenta-se para reproduzir traços desse modelo
“ideal” seja nas ficções, já que as narrativas podem ser vistas como formas de perceber e criar
as diferentes perspectivas de mundo, seja na realidade, com a repetição de padrões sociais que
reproduzem um tipo de violência que se veste com roupas de “sucesso”, de “exemplo”. Esses
itens não se dão previamente ou são meramente interpretativos. Eles são parte, de fato, de uma
construção de estereótipos alimentados pela lógica do mérito. Os estereótipos, nesse e em outros
casos, associam-se, de acordo com Amossy (2020, p. 215), a uma “representação coletiva
cristalizada”. Nessa perspectiva, eles são compreendidos enquanto “imagens pré-concebidas e

16
Enem 2019: 'Estou de luto pela sua derrota' e outras camisas 'intimidatórias' de cursinhos que causam polêmica.
Portal G1, 08 nov. 2019. Disponível em: <https://glo.bo/3crT3m6>. Acesso em: 10 fev. 2020.
42

cristalizadas, abreviadas e fatiadas, das coisas e dos seres que o indivíduo faz sob influência de
seu meio social”, de acordo com Morfaux (1980 apud AMOSSY, 2020, p. 215).
Essa reprodução de padrões permite inferir que há uma relação entre a ficção e a
realidade, como uma pode ser importante para a outra e como os discursos – em especial para
esse trabalho, o meritocrático – participam da construção desses contextos (real e fictício). E,
nesse jogo entre o que legitima ou não o pensamento que valoriza o mérito, o esforço e a
recompensa, há um outro questionamento: quais são os conceitos de justiça mobilizados que
permitem os deslocamentos de sentidos de a meritocracia? Pensar em “justiça” não diz respeito
apenas a como a lei se aplica e/ou como a sociedade deve se organizar, mas também como a
orientação teórica do termo “justiça” autoriza ou censura determinados pareceres sobre o
mérito. Na obra “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, o professor Michael J. Sandel transformou
o curso, que leciona em Harvard, chamado “Justice”, em livro.
Essa obra apresenta um percurso sobre as diferentes concepções analíticas de “justiça”,
seus desdobramentos ao longo dos anos, os principais teóricos que mobilizaram o conceito em
suas obras, além de oferecer condições de discutir como o esforço pode ou não ser um ponto
relevante para a reflexão do mérito, situando mais uma vez tanto a emergência da discussão
temática quanto o caráter polêmico do discurso meritocrático como um dilema ético emergente.
O autor menciona que muitos alunos “alegam que suas conquistas, incluindo a admissão em
Harvard, são consequências do seu próprio esforço e trabalho, e não de fatores moralmente
arbitrários além de seu controle” (SANDEL, 2019, p. 197), olhando com grande desconfiança
para as teorias de justiça que sugerem que os sujeitos não merecem recompensas morais pelos
seus esforços. O que se pode considerar desse tipo de lógica é que, provavelmente, a justiça não
se dá necessariamente pela premiação do mérito, mas sim pela discussão sobre o que realmente
é digno de recompensa: se o esforço ou a conquista em si.
Dentro dessa perspectiva, Sandel afirma que para saber o que o Estado valoriza, deve-
se analisar como ele distribui as coisas que prioriza, como “renda e riqueza, deveres e direitos,
poderes e oportunidades, cargos e honrarias” (2019, p. 28). Essa ideia pode ser utilizada para
analisar a conduta do Estado brasileiro frente à sua população: renda e riqueza estão sob tutela
dos mesmos poucos há muitas gerações; há muitos deveres e poucos direitos garantidos, esses
traduzidos em privilégios, como a saúde e a educação – quem tem condições financeiras paga
pelos planos de saúde e as escolas particulares; quem não tem, padece com a falta de qualidade
na gestão da saúde pública, embora o SUS (Sistema Único de Saúde) seja uma realidade muito
importante para a maioria da população brasileira. Esses cargos e essas honrarias seguem um
percurso de manutenção de classe, já que os mesmos privilegiados que acessam renda, riqueza
43

e direitos ocupam cargos prestigiados e recebem glórias, estas legitimadas pelo discurso do
mérito. Mais uma vez, e agora por meio da relação com as palavras de Sandel, a série (3%) e a
realidade se encontram em um lugar comum. No livro, inclusive, o autor discute três abordagens
de “justiça”, pois assume que há uma dificuldade marcada em separar argumentos de justiça
das discussões sobre o mérito. Esses itens estão em ordem cronológica descendente (do mais
atual para o mais antigo).
Na primeira concepção, o nome principal é John Rawls (1921-2002), que define
“justiça” a partir de ações que podem ampliar o bem-estar e a felicidade coletiva. Segundo o
autor, o sistema feudal, o liberalismo e a meritocracia baseiam-se na distribuição de justiça a
partir de fatores arbitrários do ponto de vista moral, seja por nascimento, melhor posição
social/econômica ou aptidões/habilidades naturais. Por isso, Rawls apresenta sua teoria
igualitária, cuja lógica está orientada pelo princípio da diferença17 para repudiar “a teoria
meritocrática de justiça com base no fato de que os talentos naturais não são méritos de quem
o possui” (SANDEL, 2019, p. 196), pois considera que mesmo a vontade e o esforço estão
relacionados às circunstâncias socioeconômicas dos sujeitos.
Na segunda concepção proposta, o nome em destaque é Immanuel Kant (1724-1804),
que embora tenha se dedicado ao tema “justiça” em poucos ensaios da sua teoria política, as
concepções de moralidade e liberdade desenvolvidas, que emergem de seus escritos sobre ética,
apresentam valiosas implicações para sua teoria. De acordo com Kant, “uma Constituição justa
tem como objetivo harmonizar a liberdade de cada indivíduo com a liberdade de todos os
demais” (SANDEL, 2019, p. 171), pois compreende que cada indivíduo deve buscar a
felicidade da forma que melhor entende, desde que não fira a liberdade dos outros. Também
fundamenta que a justiça e os direitos funcionam como um contrato social imaginário, tendo
em vista que esses contratos são historicamente de difícil comprovação e que os princípios
morais não devem derivar apenas de fatos empíricos.
Na terceira concepção, o nome principal é Aristóteles (384-322 a.C.), que pensa a justiça
a partir da premissa do raciocínio teleológico, o qual defende que, para ser justa, uma ação deve
ter clareza quanto ao propósito de sua prática. Um exemplo está na seguinte tese: “para entender

17
“O princípio da diferença representa, na verdade, um acordo para considerar a distribuição de aptidões naturais
um bem comum e para compartilhar quaisquer benefícios que ela possa propiciar. Os mais favorecidos pela
natureza, não importa quem sejam só devem usufruir de sua boa sorte de maneira que melhorem a situação dos
menos favorecidos. [...] Ninguém é mais merecedor de maior capacidade natural ou deve ter o privilégio de uma
melhor posição de largada na sociedade. Mas isso não significa que essas distinções devam ser eliminadas. Há
outra maneira de lidar com elas. A estrutura básica da sociedade pode ser elaborada de forma que essas
contingências trabalhem para o bem dos menos afortunados” (RAWLS, 1971, seção 17 apud SANDEL, 2019, p.
194).
44

a natureza e o lugar que ocupamos nela, é preciso entender seu propósito e seu significado
essencial” (SANDEL, 2019, p. 236). Para o filósofo grego, “justiça” significa dar para as
pessoas o que elas moralmente merecem, sendo este merecimento baseado em virtudes dignas
de prêmio. O grande problema apontado por Sandel para essa concepção é que, apesar de
Aristóteles afirmar que a justiça discrimina pelo mérito (“os melhores flautistas ficam com as
melhores flautas”), não é possível mensurar o que cada um efetivamente merece, ou seja,
qualquer decisão moral sobre “merecimento” não pode ser adjetivada como “justa”.
Em síntese, o que essas maneiras de analisar o conceito de justiça oferecem é um
conjunto de possibilidades teóricas que melhor permite a reflexão dos enunciados como “você
é o criador do seu próprio mérito” (3%, episódio 1), e outros do cotidiano, como “você merece
essa conquista”, “apenas merecedores chegam ao topo da sociedade”, que aparentemente
colocam mérito e justiça no mesmo lugar do discurso. Assim, a meritocracia apresenta-se,
supostamente, como uma lógica tão envolvente quanto perigosa, já que o mérito é o argumento
fundamental que ora honra o “empenho” e “o sucesso”, ora justifica a desigualdade, pois o
preço dessa suposta igualdade ideológica é o desequilíbrio da Ordem social18. Esse “dilema
meritocrático”, que coloca justiça e igualdade em uma disputa inconciliável em nome do mérito,
procura fazer as pessoas acreditarem que o que recebem é adequado à qualidade do seu
desempenho individual e que, assim, a justiça é feita – o Maralto acontece no cotidiano do
Brasil; o Brasil permite que o Maralto seja narrado na ficção.
Por isso, é possível assistir à série como um retrato do cotidiano brasileiro, por descrever
uma sociedade profundamente desigual, mas capaz de defender a lógica da meritocracia como
componente central para a ascensão social, onde os oprimidos apoiam seus opressores, matam
e morrem por eles, negam a resistência da justiça social e sucumbem ao poder. Mais: a série, o
ponto de partida para as reflexões do funcionamento discursivo da “meritocracia”, materializa
outro fato da realidade nacional, ao colocar os processos seletivos como criações orquestradas
pela minoria que sempre esteve no poder, para construir um ilusório mundo ideal, acessível a
todos, mas disponível apenas para os escolhidos via mérito. Os vestibulares, a romantização de
narrativas de pura desigualdade, os deslizamentos de sentido de “igualdade”, “justiça”,
“trabalho”, “esforço”, “vitimismo”, “desempenho” e “mérito” são alguns dos elementos vistos
na ficção de “3%”. Essa identificação só foi possível porque esses itens enumerados já
funcionam no corpo social: a ficção reproduz os sintomas da realidade e a realidade é espelhada
pela ficção. A luta entre as classes e os discursos em confronto permitem que a ficção possa ser

18
“Ordem social refere-se à coesão social através da qual sistemas são mantidos integrados, incluindo que os
indivíduos sejam capazes de obedecer a normas e de sustentar valores” (JOHNSON, 1995, versão digital).
45

projetada na realidade – a sociedade do mérito já está em curso há um bom tempo e permite


que esse trabalho seja construído.
Também, o caráter circular da crítica exposta pela série: a audiência se identifica (ou
não) com o que assiste e pode transferir (ou não) para outras mídias: a série e os discursos
veiculados nela afetam/modificam a sociedade e não apenas a refletem. Nessa lógica, “os
indivíduos humanos produzem a sociedade nas – e através de – suas interações, mas a
sociedade, enquanto todo emergente, produz a humanidade desses indivíduos aportando-lhes a
linguagem e a cultura” (MORIN, 2003, p. 27), o que possibilita afirmar que as mídias são uma
espécie de reflexo do meio em que são produzidas, isto é, a série 3%, produzida no Brasil, a
partir desse princípio, pode ser posta como o reflexo de um sintoma nacional, no caso
específico, o funcionamento da lógica meritocrática na sociedade brasileira, os embates sobre
o que é justo ou não, se há ou não a chance de uma vida digna para todos, entre outros.
Embora a análise da ficção seja em grande medida sustentada pela realidade e a
realidade também seja uma forma de inspirar as ficções, a relação entre discurso e poder não é
explícita, pois nem o discurso nem o poder são evidentes. Considera-se que há muitos sentidos
que circulam sobre “discurso” e sobre “poder”: para o primeiro, por exemplo, o termo pode ser
interpretado como uma fala em público/pronunciamento (oficial ou não); para o segundo, o
termo pode ser tido como um objeto de desejo. Em verdade, tanto o discurso quanto o poder
são reconhecidos quando em relação: “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca
coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o poder”
(FOUCAULT, 2014, p. 9). Ou seja, descobre-se o poder quando há interdições na tentativa de
silenciar, excluir. Se há interdições, há também autorizações para os discursos, e é essa relação,
entre permissões e bloqueios, que poder e discurso atuam integradamente.
Foucault, no livro “A ordem do discurso”, descreve o fato de o discurso exercer a função
de controle, limitação e validação das instâncias de poder em funcionamento na sociedade, fato
que permite a afirmação, mesmo que sob a lógica da psicanálise (o discurso manifesta o desejo),
que o discurso é também o próprio objeto de desejo. Esse fato é constantemente rememorado
pela história, que não cessa em trazer o fato à tona: “o discurso não é aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar” (FOUCAULT, 2014, p. 10).
A força das formulações discursivas, como menciona Foucault, se dá pelo fato delas
possibilitarem a manutenção da estratificação social, por meio de interdições, marginalizando
e discriminando quais discursos terão o estatuto de verdade aceita ou não em sociedade. De
acordo com o autor, as áreas mais atingidas pelas interdições são a sexualidade e a política,
46

tendo em vista que, embora Foucault tenha mudado de opinião a esse respeito na obra “História
da sexualidade I”, ele defendia que a ação de “interditar” permite que o tabu do objeto, o ritual
da circunstância e o direito privilegiado daquele que fala funcionem e não cessem de se
modificar. E é por meio dessa relação que o poder e o discurso se relacionam intensamente.
Pode-se afirmar, como traço comum, o caráter positivo, criador, produtor tanto do discurso
quanto do poder. De um lado, o discurso consolida realidades, materializa ideologias, altera
ordens estabelecidas; de outro, o poder é um estabilizador das relações sociais, porque dispomos
da afirmação que “o poder não se dá, não se troca, nem se retoma, mas se exerce”
(FOUCAULT, 2017, p. 274), estruturando e moldando o campo de ação possível dos sujeitos.
Segundo o autor, o poder, até o século XVII, atuava como o “poder do soberano”, com o
poder de decisão de vida ou de morte de seus súditos; após o século XVII, o poder assume sua
face disciplinar, incitando e organizando o controle das forças subalternas, coordenando e
fortalecendo essas forças ao invés de reprimi-las. O poder não é uma substância, mas,
sobretudo, uma relação de forças muito mais ligada às complexidades sociais do que às
capacidades individuais dos atores em jogo. É por meio da estabilização das relações que, de
acordo com Foucault (2017), os estados de dominação ganham cada vez mais espaço, sejam
eles velados ou explícitos.
Assim, pode-se afirmar que o poder tem por base uma relação de forças estabelecida em
um momento historicamente determinado. Essa lógica permite que a concepção primeira de
poder – um direito originário que se cede – seja revista não como um “produto”, mas sim como
um “processo” de guerra e de repressão pela manutenção de um abuso, de uma dominação,
manifestada nas lutas políticas. Até mesmo em gestos que se pretendem de paz, o poder atua,
por meio da repressão e gera uma sensação equívoca de equilíbrio: o que parece estar resolvido,
pacificado, na realidade, mascara uma relação de dominância contínua e processual, aceita pela
maior parte da população.
Pergunta-se: como essa relação degradante atinge tantos indivíduos? Para Foucault
(2017), isso acontece porque o poder não pesa apenas como “[...] uma força que diz não, mas
de fato ele [o poder] permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”
(2017, p. 44) – atuando, por hipótese, como um “entorpecente” social: quanto mais se tem, mais
desigual se sente, mais enganado fica; quanto menos se tem, mais desigual se sente, mais
enganado fica. Analogamente, é o poder do mérito, poder que promove as ilusões da liberdade
e da igualdade, que ilude os indivíduos a ponto de fazê-los aceitar que recebem exatamente o
que merecem, nem mais nem menos. Se antes o poder do soberano era algo que se cedia, ou
seja, há uma dinâmica hereditária, agora criam-se duas imagens concomitantes: primeiro, que
47

o poder não é mais de base hereditária (o que é facilmente rebatido pela permanências das
mesmas classes no poder); segundo, que a luta pelo poder é justa, pois há oportunidades
disponíveis, todos podem tentar, mas, de fato, poucos estão em igualdade de competir pelos
espaços disponíveis.
Historicamente, o exercício do poder mostra-se também, em inúmeros casos, como um
exercício de mérito. Na Idade Média, o poder apresentava-se em uma relação de exterioridade
ao príncipe, tendo em vista que ele “recebe o seu principado por herança, por aquisição, por
conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior” (FOUCAULT, 2017, p. 410). Essa relação foi
construída com a violência da tradição que separa nobres e vassalos, fato que na atualidade
continua a segregar ricos e pobres. Já entre os séculos XVI a XVIII, a ação de governar o Estado
apresentava-se como uma forma de vigilância, de um controle atento, atuando como um “pai
de família”, desenvolvendo não apenas os aparelhos do Estado – a administração local e a
política – como também, para Foucault, uma espécie de “economia do poder”, ou seja,
“procedimentos que permitem fazer circular os efeitos do poder de forma ao mesmo tempo
contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo social” (2017, p. 45).
O exercício do poder em Foucault é material, não por acaso os corpos são mobilizados
para o exercício constante do poder, seja na forma do monarca, na figura dos padres e dos
tiranos, posições expressas nos aparelhos do Estado como escolas, hospitais, entre outros. Mais
importante do que compreender o poder, é procurar caminhos que demonstrem como ele se
apresenta e quais são os mecanismos que mobiliza para atuar incessantemente nos diferentes
níveis da sociedade.
Foucault (2010a) afirma que o poder está sempre associado a uma forma de saber, pois,
para exercer o poder são necessários os conhecimentos que servem como instrumento e também
como justificativa para as práticas autoritárias de segregação. O autor reflete sobre a ideia de
um poder fixo e passa a significá-lo como uma força móvel, capaz de incitar comportamentos.
Para essa dissertação, este ponto é importante: a sociedade mais estimula os sujeitos a produzir
certos padrões de resposta do que a reprimir os sujeitos efetivamente, fato que pode justificar
possíveis manipulações em longo prazo. Assim como dito pelo personagem Ezequiel na série
“3%”, em diversos momentos, “é fundamental fazer com que eles (os candidatos em processo
de seleção para o Maralto) acreditem que realmente merecem o que estão recebendo e nada
mais”, ou seja, o funcionamento do poder, como uma relação de força, produz formas de saber
que moldam os sujeitos em sociedade, conduzindo suas condutas.
Para Foucault, na modernidade, à medida que as relações sociais, políticas e econômicas
foram mudando, também se construíram novas relações de poder, diretamente relacionadas às
48

necessidades do poder dominante cujos graus de eficiência e de complexidade parecem


prescindir dos indivíduos, funcionando independentemente deles. Os aparatos ideológico,
burocrático e bélico permitem que o poder atue e ganhe força, fazendo com que os indivíduos
se submetam, pois, apesar de sua suposta invisibilidade, o poder adquire força e forma na
medida em que os indivíduos se transformam numa espécie de “fio condutor” (e reprodutor) do
poder, promovendo as relações de forças. Essa relação que, aparentemente, apresenta-se como
simples e situada, revela-se como uma atuação complexa e extremamente danosa para as
relações sociais em virtude de sua abrangência, pois esses conhecimentos desenvolvidos
controlam os fenômenos humanos, estabelecendo padrões de fácil reprodução e adestramento.
O poder não é encarado como uma “coisa”, embora tenha existência material, mas sim
como uma relação que sustenta as instâncias de autoridade, que movimenta as engrenagens
sociais da produção, e por isso pode parecer “invisível” e/ou inofensivo. Essa inversão proposta
por Foucault – o poder não age de cima para baixo, mas sim de baixo para cima – permite
pensar que quanto maior o nível do poder, em termos de hierarquia social, menor é a autonomia
do sujeito em alterar suas redes de poder na sociedade, então é fundamental dar atenção para
“as técnicas e táticas de dominação” (FOUCAULT, 2010a, p. 30). De acordo com o autor, as
relações de poder não são externas à sociedade, ou seja, não é o Estado, por exemplo, que detém
o poder e irradia essa força para a população, mas são as relações de força presentes na
sociedade que determinam a existência do Estado.
Ademais, o papel do Estado (seja ele autoritário ou não) importa menos, de acordo com
Foucault, do que analisar os operadores e a dominação que autorizam os sujeitos a fabricarem
a sua própria submissão, isto é, “não perguntar aos sujeitos como, por quê, em nome de que
direito eles podem aceitar deixar-se sujeitar, mas mostrar como são as relações de sujeição
efetivas que fabricam os sujeitos” (2010a, p. 38). Para a tese da meritocracia, essa lógica
apresenta-se como coerente: mais vale analisar os mecanismos de sujeição que fabricam os
sujeitos do que definir como a sociedade determina o que é ter ou não mérito, ou seja, a
população é tanto alvo como instrumento de uma construção social do poder via mérito, que
perpassa todos os campos do corpo social.
Para dar substância ao parecer que situa o poder como uma instância orgânica, o
conceito foucaultiano de biopoder destaca-se. A ideia de biopoder está sustentada na
configuração, estabelecida nas sociedades ocidentais, que assume a vida como um objeto de
regulação do poder, sob a interferência de diversas mutações desde o século XVII. O conceito
de biopoder é definido por Foucault a partir de duas formas: a disciplina do corpo individual e
o controle regulatório da população. A primeira associa-se aos dispositivos disciplinares que
49

retiram do corpo sua força produtiva, controlando o tempo e o espaço desses corpos, isto é,
dociliza-se o corpo para assim controlá-lo. A segunda, chamada também de “tecnologia de
segurança”, direciona-se para a modificação do poder, no final do século XIX e começo do
século XX, cujas práticas disciplinares deixam de governar apenas o indivíduo e passam a ter
como alvo a população como um todo, pois “a população aparece, portanto, mais como fim e
instrumento do governo que como força do soberano” tendo em vista que “os instrumentos que
o governo se dará para obter esses fins [atendimento às necessidades e desejos da população]
são, de algum modo, imanentes ao campo da população, serão essencialmente a população
sobre o qual ele age” (FOUCAULT, 2017, p. 425).
Essa segunda dimensão associa-se ao conceito de biopolítica, já que esta está ligada ao
surgimento das formas liberais de governo, fato que situa o liberalismo como uma arte de
governar seres humanos, produzindo e incentivando a vida para posteriormente abandoná-la,
pois a supremacia do poder está exatamente em sua capacidade de multiplicação: antes o poder
do soberano estava na decisão de vida ou morte do súdito, cabendo a ele decidir a permanência
ou não dessa existência em nome de seu poder; agora os mecanismos de poder, enraizados na
população, não mais tiram a vida – eles produzem vida, produzem respostas sociais
condicionadas na população, agindo incessantemente para multiplicar respostas de submissão.
De acordo com Foucault, “o direito de morte tenderá a se deslocar ou pelo menos a se apoiar
nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função dos seus reclames” (2010b,
p. 178), visto que nessa tutela, a morte de uns justifica a vida de outros, assim como o mérito
de uns justifica o fracasso de outros, ampliando os abismos sociais e o uso de argumentos que
culpa ou valoriza o sujeito por tudo aquilo que ele produz, seja essa produção positiva ou
negativa para os moldes da sociedade.
Esse mecanismo encontra sua razão de existir e de se multiplicar a partir do
desenvolvimento do Estado Liberal, já que, segundo Foucault, a biopolítica somente pode ser
entendida no quadro da racionalidade do liberalismo clássico, apoiada pelas relações de
produção capitalistas, bem como pela combinação entre liberdade, segurança e medo. Talvez
seja por isso que, embora a ideia de “meritocracia” seja muito antiga, remontando às revoluções
burguesas do século XVI, o caminho percorrido pelo termo, até chegar à hipótese de se assumir
a “meritocracia” como uma fórmula discursiva tenha se dado a partir do século XX. A força do
pensamento liberal19 está em dois fatos centrais: primeiramente, a liberdade defendida a todo

19
Embora o liberalismo sofra constantes atualizações e seja revista/nomeado como “neoliberalismo”,
“ultraliberalismo”, entre outros, essa dissertação utiliza o termo “liberalismo”, “liberal”, para refletir sobre essa a
50

custo transforma-se em estratégia de controle das condutas dos sujeitos, pois a liberdade é
artificialmente criada. Em segundo lugar, é nesse momento que há o efeito de rompimento dos
“limites” do campo econômico, sustentados no liberalismo, para a vida cotidiana, ou seja,
conceitos antes analisados dentro do campo econômico agora adjetivam também os indivíduos
em sociedade, materializando o sujeito de direito e sua normatividade. Essa ideia
“empreendedora” liberal20 invade outras instâncias da vida em sociedade, submetendo o sujeito,
tanto em suas relações com outros sujeitos, como em suas relações consigo mesmo, a valores
de competitividade, eficiência, rendimento, entre outros elementos que assumem o mérito como
consequência natural de um sujeito produtivo e bem-sucedido, sempre “livre” para agir, ter
sucesso e fracassar.
Essa liberdade é vista com parcimônia. Os pareceres de Thomas Lemke, pesquisador e
crítico de Foucault, além de professor de sociologia na Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Goethe e na Universidade New South Wales, podem trazer subsídios de apoio
para mostrar como as premissas do liberalismo associam-se à governamentalidade e
posteriormente à meritocracia. Na obra “Foucault, governamentalidade e crítica” (2017),
Lemke afirma que o “liberalismo organiza as condições sob as quais os indivíduos poderiam e
deveriam exercer suas liberdades” (2017, p. 65), isto é, há a criação de liberdades artificiais que
se tornam instrumentos para práticas governamentais, estas nomeadas como
governamentalidade, uma premissa chave para as análises iniciais do funcionamento do mérito.
Para compreender como a governamentalidade se associa a este trabalho, é importante
considerar que Foucault não considera o Estado moderno uma estrutura centralizada, mas sim
“no interior das mesmas estruturas políticas, uma combinação [...] astuciosa das técnicas de
individualização e dos procedimentos de totalização” (FOUCAULT, 1995, p. 279). Esse
processo, que ao mesmo tempo individualiza e totaliza os indivíduos, cria, progressivamente,
uma concepção de mérito que se dissocia do Estado, mesmo que ele seja aquele que governa
os seres humanos. Para o autor, o conceito (governamentalidade) pode ser compreendido como
uma forma complexa de poder, que tem a população como alvo principal, poder este exercido
por dispositivos de segurança, dos quais se acredita a meritocracia ser um deles: é também por
meio da lógica meritocrática que a governamentalidade é exercida, como uma linha de força
que busca controlar as formas de agir, de pensar, de sentir, de viver dos sujeitos.

filosofia política que central para a criação e o fortalecimento da lógica meritocrática. Cf. Anderson (1995); Borón,
(1995).
20
Cf. Souza (1995); Wolff (1989); Harvey (2008).
51

Essa analítica de governo em Foucault, como destaca Lemke, é muito importante pelo
seu deslocamento teórico tripartite, mostrando como a noção de governo contribui para o
aperfeiçoamento teórico da analítica do poder. Os estudos da governamentalidade permitem,
primeiro, a percepção do governo das condutas, isto é, sobre como o poder estrutura e molda
“o campo de ação possível dos sujeitos” (LEMKE, 2017, p. 23), um tipo de “condução de
condutas”, pois a governamentalidade implica necessariamente “em práticas de governo
sistemáticas e reguladas”, uma “maneira pela qual os atores realizam a ação (‘conduta das
condutas’) é o objeto do governo” (LEMKE, 2017, p. 25).
Um segundo ponto é a compreensão, por meio dessa perspectiva abrangente do poder,
que essas relações de poder não são exteriores à sociedade, mas são a sua própria condição de
existência: não é o Estado que emana a energia do poder que controla todos, mas sim o
funcionamento dessas relações de força que permite a manutenção da população e do Estado,
como já mencionado. Esse ponto é relevante, pois mostra que o Estado, por meio da
governamentalidade, sistematiza e estabiliza das relações de poder que podem levar a estados
de dominação, cujo autoritarismo faz-se organicamente situado por meio do cerceamento de
condutas e de dizeres. O terceiro ponto, como destaque Lemke, esclarece que para Foucault “as
relações de poder não são per se boas ou más, mas são ‘perigosas’, uma vez que elas podem
sempre solidificar-se em estados de dominação” (LEMKE, 2017, p. 32).
Nesses três ramos teóricos, a meritocracia encontra espaço produtivo: a lógica do mérito
controla as condutas, justificando as desigualdades; a lógica do mérito normaliza o que é ter
mérito e o que não é (o que é ser vítima, o que é o “coitadismo”, o que é “mimimi”, etc); e a
lógica do mérito permite que a meritocracia, regime de premiação via mérito, funcione como
uma forma de dominação, separando vencedores de perdedores, brancos e negros, esforçados e
fracassados, etc. Uma relação entre mérito e poder, entre Estado e sociedade – uma relação tão
constante que deixa de ser notada na maioria das situações, porém, mesmo assim, deixa um
rastro violento por onde passa. Foucault (2017) descreve processos de poder que produzem
normas para medir, qualificar os indivíduos enquanto população, manifestando-se como
biopoder, o controle da duração da vida (dos corpos, mentes, da longevidade) para exercer a
biopolítica da população. Esse encadeamento apresenta o caminho de violência velada por meio
do poder, percurso figurado constantemente pela lógica da meritocracia.
Sem dúvida, as contribuições de Foucault são fundamentais para as primeiras reflexões
acerca do poder e como essa lógica associa-se ao mérito, promovendo a violência. Esse
encadeamento promissor permite a visualização das relações de poder em suas faces de
disciplina, de controle e de desempenho, todas elas classificadas como violentas. Han (2017)
52

analisa as faces da violência historicamente apresentadas, com destaque para a diferenciação


entre poder e violência, macrofísica (violência exterior que extingue e usurpa a liberdade) e
microfísica (violência que destrói toda a possibilidade de ação, reação, produtividade) da
violência. Na interpretação do autor, a sociedade classificada como “disciplinar” por Foucault
não descreve a sociedade contemporânea, que também sob a tutela de escolas, fábricas e prisões
agora é vista como uma sociedade do desempenho, cujo “sujeito do rendimento” se auto
violenta, gerando um falso sentimento de liberdade.
Para Han, na sociedade do desempenho, ao contrário do sujeito da obediência
(determinado pela sociedade disciplinar), há um sujeito livre, que “não está submetido a
ninguém”, cuja constituição psíquica “não é o dever, mas o poder” – “ele tem que ser senhor
de si”, com a existência determinada não por ordens ou proibições, mas sim pela liberdade e
iniciativa (2017, p. 182). Nesse cenário, de acordo com o autor, “a violência e a liberdade
coincidem”, e esse encontro apresenta-se como justo porque age em nome da liberdade, sem o
poder da decapitação da Idade Média ou das sanções deformadoras de um Estado disciplinador,
já que “o sujeito do desempenho explora a si mesmo até ruir” (2017, p. 182), autorizando
interpretações que vejam nesse esgotamento o mérito ou o fracasso, o locus ideal para a atuação
da lógica meritocrática.
Para aprofundar a análise dessa sociedade pós moderna, Han atenta para os polos da
violência: para ele, o polo positivo é “muito mais prejudicial do que a violência da negatividade,
porque se faz passar por liberdade” (2017, p. 183), ou seja, enquanto a primeira, negativa, é
presente com proibições e delimitações, a segunda, positiva, é agressiva exatamente por ser
vista como “liberdade”, quando, em realidade, não passa de coerção, já que “o novo presídio se
chama liberdade, assemelhando-se a um campo de trabalho onde somos presidiários e vigias
ao mesmo tempo (2017, p. 183). Exemplos de violência negativa são apontados pelo autor,
como na religião (com seus mandamentos e rituais), na patologia dos vírus (com o combate ao
“corpo estranho”, excluindo-o), nos vírus de computador (a luta do “corpo estranho” contra o
antivírus do computador), entre outros.
Entre os exemplos, há um em especial, citado por Han. Ainda sobre violência e seus
polos, ele discute como o positivo e o negativo agem na linguagem. Ele afirma que “aquela
linguagem da violência que se pauta em difamar, no desacreditar, no degradar, em não
autorizar, ou também na coisificação, é uma violência da negatividade; nega-se o outro” (2017,
p. 215), ou seja, o esquema é “amigo x inimigo”, “bom x ruim”, “nós x eles”. Para isso, afirma
que a “nova violência da linguagem não é negativa, mas positiva. Essa violência positiva é
“implosiva”, pois exerce uma força/pressão de dentro do sistema, “que causa tensões e impulsos
53

destrutivos” – ela não se volta contra o outro, mas, ao contrário, parte de uma massa do igual,
de uma massificação do positivo” (2017, p. 215). E essa “massificação do igual” é também um
espaço propício para que a lógica do mérito ganhe força, como uma ferramenta violenta que
naturaliza a desigualdade sob a falsa aparência de igualdade, já que todos têm a oportunidade
sem se importar se há igualdade de condições.
54

CAPÍTULO 3

“MERITOCRACIA”: UMA FÓRMULA

3.1. O estatuto formulaico

A noção de fórmula, de acordo com Krieg-Planque (2010), incide sobre os discursos


políticos, midiáticos e institucionais contemporâneos. Esses discursos são, ao mesmo tempo,
lugar e instrumento da união e da ruptura que fundam o espaço público. Dessa forma, estudar
uma palavra, que é candidata ao estatuto de fórmula, é aspirar a “compreender os discursos por
meio das diferentes formas de cristalização que esses mesmos discursos modelam e fazem
circular” (2010, p. 14).
Para estudar a vida de uma palavra, pode-se considerar uma longa duração, com
momentos particularmente intensos, ou analisar apenas esses momentos intensos, chamados
por Krieg-Planque de “zonas de turbulência”, pois “o acesso de uma palavra à condição de
fórmula é parte integrante da história dos usos dessa palavra” (2010, p. 19). Como forma de
ilustrar essas diferentes durações da vida de um termo, entre outros exemplos, a autora
menciona, para estudos de longo prazo, as obras de Rey, sobre a palavra “revolução” desde seu
surgimento no século XII até seus usos contemporâneos no século XVIII, e de Piguet, sobre o
termo “classe” desde suas primeiras atestações no século XIV até os anos 1840, bem como,
para outros de curto prazo, a pesquisa de Bonnafous, sobre as ocorrências da palavra
“integração” no Jornal Le Monde, entre novembro de 1989 e abril de 1990.
Em comum, essas diferentes durações de pesquisa sobre a vida de um termo é que, em
um dado momento, ele pode ser eleito como objeto que ocupa um lugar privilegiado no espaço
público, tornando-se uma palavra aparentemente consensual nos diferentes campos discursivos,
sem que isso suscite nenhum problema para o contexto. Contudo, as operações metalinguísticas
diversas, como as substituições, a produtividade lexical e/ou as combinações linguísticas,
questionam a própria palavra ou, ao contrário, afirmam a pertinência do seu caráter,
estabelecendo relações polêmicas. Isso é possível porque

A unidade lexical, simples ou complexa, serve como um fio condutor na exploração


do corpus, que se constitui de discursos produzidos no centro do espaço público ou
em sua periferia, quer se trate de uma coleta em todas as direções, visando à apreensão
dos discursos de uma dada época em sua densidade máxima (avisos, tratado,
periódicos, impressos de todos os gêneros, livros, panfletos, relatório policiais,
correspondência manuscrita, petições...), quer se trate de focalizar artigos da imprensa
55

ou falas políticas (debates parlamentares, por exemplo) (KRIEG-PLANQUE, 2010,


p. 25).

Esse lugar privilegiado no espaço público é normalmente promovido por um


determinado acontecimento capaz de impulsionar a imposição de uma palavra. Em Bonnafous,
por exemplo, a palavra “intégration” torna-se rapidamente um consenso na classe política entre
novembro de 1989 e abril de 1990, momento que coincide com o “affaire du collège de Creil”.
Esse acontecimento permitiu que os sentidos de “intégration” se dispersassem, tornando-se um
slogan, uma palavra de ordem ou até mesmo como uma solução para os conflitos do momento
histórico. Com isso, é possível defender que o estudo da fórmula é também o estudo de seus
usos, e, como afirma Krieg-Planque, a tese de “um poder social do discurso” (2010, p. 27) e a
possibilidade de uma palavra ser, de certo modo, uma questão política.
A autora destaca como o termo e a noção de “fórmula” foram propostos por Faye, na
obra Langages totalitaires, sobre a fórmula “Estado total”, cujo objetivo é descobrir, por meio
das supernarrativas, o poder, as condições de produção e de circulação das narrativas. Para o
autor, as supernarrativas são produzidas pelos ideólogos e atores do espaço político entre duas
grandes guerras, na Itália e na Alemanha, com repercussão concreta na escrita. Faye mobiliza
a metalinguagem como os próprios termos da sua linguagem-objeto, já que, como explica
Krieg-Planque (2010), isso “implica a ideia de que a história produz seus próprios conceitos e
de que, por consequência, ela é sua própria metalinguagem” (2010, p. 34).
Um exemplo desse processo de análise de Faye é a palavra “antítese”. Ela é o termo
utilizado pelo autor para designar a expressão “revolução conservadora”, assim como é também
mobilizada pelo fascista Alfred Rocco para qualificar a expressão “revolução conservadora”,
em 1927. O estudo integrado dos regimes de Hitler e de Stalin é possível, segundo Faye, se
“prestar atenção a como eles se nomearam a si mesmos” (1996 apud KRIEG-PLANQUE, 2010,
p. 35) porque não existe metalíngua distinta da língua da própria narrativa.
Inclusive, mesmo sem defini-la explicitamente, Faye mobiliza o termo “fórmula” para
designar “Estado totalitário” em alemão e em italiano, bem como para as diferentes
combinações possíveis do termo, como “guerra total”, “povo total”, “comunidade do povo”.
Essa “flutuação” terminológica não significa que o objeto do autor é impreciso, mesmo porque,
como explica Krieg-Planque, Faye reconhece em seus exemplos que essas fórmulas são “um
objeto lexical, retomável na cadeia, descritível no sistema da língua: é a palavra ‘totalitário’ e
suas diversas traduções” (2010, p. 38).
56

No esforço de separar as principais propriedades da fórmula “Estado total” estudada por


Faye, Krieg-Planque propõe quatro fases fundamentais: a gênese, a circulação, a cristalização
e o processo de aceitabilidade. Para o primeiro, a autora aponta a dupla gênese da fórmula de
Faye: quando ela se torna um objeto de uso político (“stato totalitario” [Mussolini], “totale
stat” [Hitler]) e quando se torna poligenista21, como no uso “totale mobilmachung”
(mobilização total), que diz respeito à mobilização sem limites de todas as forças da sociedade
a serviço do Estado e de sua defesa.
O segundo item mostra o “modo de apreensão” de Faye para estudar a fórmula, pois
esse modo “se liga a um enunciado e [...] o segue em sua circulação” (FAYE, 1972 apud
KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 40). A circulação da fórmula pode se dar de uma língua para
outra, no interior da mesma língua e a partir da produtividade lexicológica, já que esse processo
permite notar a circulação da fórmula de uma formação discursiva para outra, sem que isso
resulte “de uma mecânica do linguístico, mas de práticas linguageiras e de relações de poder e
de opinião que se observam na discursividade” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 43). O estudo da
fórmula é uma prática que envolve, de maneira central, a circulação e a cristalização como itens
importantes para o percurso de uma determinada fórmula que, apoiada em certos usos e em
certos acontecimentos, permite aos locutores recorrerem a ela de uma maneira ou de outra.
O terceiro item – a cristalização – não aparece no trabalho de Faye. Entretanto, o autor
constata que algumas palavras se amalgamam pela “soldadura” que as línguas acolhem, no caso
da alemã, ou não acolhem muito bem, no caso da francesa. Essa capacidade de junção das
palavras, para Faye, dá testemunho da existência da fórmula, pois é pela “cristalização” que a
fórmula adquire um caráter ativo, ou seja, a língua é atuante em virtude de sua cristalização.
O quarto item, por fim, apresenta um caráter da fórmula que, para Faye, é atuante, pois
a história é narrativa e a narrativa é atuante, gerando um processo de aceitabilidade que, por
efeito, permite que algo ou alguma coisa se tornem aceitáveis. No caso da fórmula analisada
pelo autor – “Estado total” –, o efeito gerado pelo processo foi tornar “aceitável” a destruição
dos judeus. Na orelha do livro de Victor Klemperer – “LTI: linguagem do terceiro reich”
(2009), César Benjamim propões uma comparação que pode se relacionar à aceitabilidade de
uma fórmula: “as palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico – são engolidas de
maneira despercebida e aparentam ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se
faz notar”.

21
Poligenismo é uma teoria sobre as origens dos humanos que postula a existência de diferentes linhagens para as
raças humanas.
57

Assim como as palavras na LTI no período nazista foram se enraizando na sociedade


sem que ninguém notasse sua efetiva periculosidade, controlando os pensamentos e os modelos
de vida das pessoas, o processo de aceitabilidade de uma fórmula, tanto na pesquisa de Faye
(1972) como em outras, pode seguir o mesmo rumo e agir como um veneno. O funcionamento
da linguagem foi utilizado pelos nazistas como parte de uma sórdida política de Estado que
permitiu a cristalização de determinados usos, bem como desenvolveu níveis de aceitação de
determinados termos que camuflaram, de certa forma, o aspecto polêmico dos funcionamentos
discursivos da época, sem deixar, porém, que essa face morresse por completo, pois “utilizar a
fórmula não significa que alguém se acomode a ela: esse uso significa que a fórmula se tornou
uma passagem obrigatória” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 42).
A aceitabilidade de uma fórmula, nos termos de Faye, pode se dar também pela sua
circulação, tendo em vista que “circular” é mudar de língua, de formação discursiva, e, assim,
produzir efeitos mais ou menos cristalizados na sociedade. Nessa perspectiva, dois elementos
caros às pesquisas de Krieg-Planque – “circulação” e “cristalização” – são constantemente
retomados pela autora, mesmo que dentro de uma perspectiva diferente do autor: enquanto pra
Faye a “perspectiva histórica” está a seu favor, pois a narrativa histórica sobre as guerras já
estava majoritariamente apresentada, para a autora, sua pesquisa de doutorado, por exemplo,
foi contemporânea dos discursos que analisava.
Segundo Krieg-Planque (2010), na esteira de Faye, na Suíça, Fiala e Ebel tem como
objetivo de analisar, para além da diversidade das práticas linguageiras, as fórmulas
“Überfremdrung” (influência e superpopulação estrangeiras) e “xenofobia”. Com materiais de
análise muito diversos, como artigos, cartas de leitor, entre outros, os autores dão especial
atenção para três plebiscitos (1970, 1974 e 1977), que pedem respostas “sim” ou “não” sobre a
proposta de limitação de imigração no país. Entretanto, diferentemente de Faye, que se utilizou
da palavra “fórmula” sem defini-la, Fiala e Ebel não apenas utilizam como definem a noção.
As “fórmulas”, de acordo com os autores, assemelham-se a um referente social que
circula em uma data sociedade e em um determinado momento histórico. A noção de referente
social, por exemplo, é explorada por meio das paráfrases, do modo como a fórmula circula e
possibilita produtividade lexical, já que “dizer que as fórmulas circulam é dizer que as pessoas
falam delas, que seus lugares de surgimento se diversificam, que se tornam um objeto partilhado
de debate” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 54). Essa definição de Fiala e Ebel, então, situa a
fórmula como um elemento que impõe a todos um sentido que é determinado por outros e
invalida a ideia na qual os discursos seriam, hipoteticamente, fechados em si.
58

Além disso, Fiala e Ebel caracterizam fórmula como um referente social sem que para
isso ela obtenha unanimidade, ou seja, significar algo para todos não significa significar a
mesma coisa para todos, mas sim que a fórmula constitui, em um dado momento, uma parada
obrigatória de concordância ou oposição, de letargia ou militância. Uma das formas encontrada
para defender o funcionamento polêmico do conceito é a classificação de enunciados como
tendo valores de re ou de dicto, pois para os autores esses valores se relacionam diretamente
com a possibilidade de existência das fórmulas. Segundo Krieg-Planque (2010), esse recurso
“abre uma pista interessante” para a pesquisa, porque os valores podem se relacionar ao caráter
de referente social (de re) e de conflito (de dicto) das fórmulas, mas que não é suficiente para
uma descrição fina do que dizem os locutores sobre uma determinada palavra ou expressão.
Após essa contextualização, que permite observar como as pesquisas de Jean-Pierre
Faye, Marianne Ebel e Pierre Fiala, entre outras, são parte integrante do percurso de Alice
Krieg-Planque, pode-se afirmar que a fórmula permite um número significativo de
transformações e de variações, por isso seu caráter linguístico-discursivo pode ser apreensível
em um conjunto de usos. Ao estudar vocabulários sociopolíticos, como a “meritocracia”, a
noção de fórmula apresenta-se produtiva por “descrever o funcionamento e as implicações de
certas expressões que, geralmente, as pessoas sentem intuitivamente como portadoras de um
papel estruturante” (KRIEG-PLANQUE, 2018, p. 128), ou seja, as entradas lexicais são, ao
mesmo tempo, partes componentes das unidades fraseológicas e produtoras de formas mais ou
menos estabilizadas, dando voz aos discursos e oferecendo condições de análises das relações
de poder e de opinião envolvidas.
Nessa lógica, o discurso é “tanto o instrumento quanto o lugar de relações de opinião”
(KRIEG-PLANQUE, 2018, p. 130), pois é por meio dele que os atores mobilizam tanto o
consenso quanto o conflito por meio de palavras e seus respectivos valores mobilizados,
elementos capazes de oferecer indícios das posições que esses sujeitos ocupam e rejeitam em
suas formações discursivas. A noção de fórmula remete primeiramente ao discurso e depois ao
linguístico, já que não é possível afirmar que existem “fórmulas” por si só, como se afirma que
existem adjetivos e/ou substantivos, tendo em vista que as fórmulas são uma categoria
discursiva.
Para a apreensão do objeto de análise – “meritocracia” –, as quatro propriedades da
fórmula são apresentadas: ter um caráter cristalizado, inscrever-se em uma dimensão discursiva,
funcionar como referente social e comportar um aspecto polêmico. Elas são importantes para
dar certa “densidade temporal que permita apreender a fórmula em sua historicidade discursiva”
(KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 61). Nas análises realizadas nessa pesquisa, essas propriedades
59

podem ser verificadas mesmo que a propriedade “comportar um aspecto polêmico” seja o item
que se destaca na leitura e na análise do corpus selecionado.

3.2. As quatro propriedades da fórmula

3.2.1. O caráter cristalizado

É possível identificar o caráter cristalizado de uma fórmula porque ela “é sustentada por
uma forma significante relativamente estável” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 61), localizável
na cadeia do enunciado e linguisticamente descritível, sendo essa forma uma unidade lexical
simples – como “meritocracia” – cujo caráter de cristalização é tautológico, uma unidade lexical
complexa, uma unidade léxico-sintática ou uma sequência autônoma.
Esse traço é muito importante para a estabilidade formal da fórmula, por deixar “rastros”
no fio do discurso e por se identificar “com uma materialidade linguística particular” (KRIEG-
PLANQUE, 2010, p. 67), o que permite que o item lexical seja reconhecível e, portanto,
passível de julgamentos, positivos ou negativos, para os enunciados que mobilizam o termo.
No entanto, essa propriedade não pode ser confundida com imobilidade, em virtude da
instabilidade fundamental dos significados e dos significantes, por isso o caráter cristalizado da
fórmula deve ser encarado.
O trabalho de Achard e Fiala, mencionados por Krieg-Planque (2010), mostra que o viés
cristalizado de uma fórmula pode se dar para certos interpretantes em um dado contexto,
enquanto outros não a reconhecem como tal nesse mesmo contexto, o que associa este item a
outra característica da fórmula – seu aspecto polêmico. Isso pode acontecer, segundo a autora,
quando uma fórmula ocupa um espaço técnico privilegiado, como o sintagma “princípio ativo”,
que pode apresentar caráter cristalizado para alguns farmacêuticos (e outros não), como pode
não carregar essa característica para enfermeiros, por exemplo. Por isso, analisar o caráter
cristalizado das fórmulas demanda uma extensa leitura de textos para que se apreenda os efeitos
produzidos pela unidade lexical em análise, além da identificação de sua existência enquanto
fórmula e não apenas como item lexical.
As ferramentas digitais auxiliam a identificar, quantitativamente, o percurso das
fórmulas na mídia, já que “não são poucas as vozes que consideram as mídias como
responsáveis pela promoção, amplificação, circulação – leia-se criação – de palavras do
vocabulário dominante, expressões de sucesso, pequenas frases e fórmulas que tomam as
pessoas (isto é, que as fazem debater e falar)” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 117). Por isso, os
60

dados abaixo, limitados em abrangência (apenas dois jornais e uma revista nacionais), estão
aqui apenas para registrar o diálogo com a perspectiva da autora e também com o capítulo 2,
que analisou as ferramentas digitais como dispositivo que auxilia na estruturação do corpus de
pesquisa.

Jornal: O Estado de S. Paulo


No gráfico abaixo, produzido a partir acervo digital do jornal “O Estado de S. Paulo”,
há o primeiro registro em 1969 e um primeiro aumento na frequência de uso do termo
“meritocracia” nos anos 2000, que segundo a página salta de 17 ocorrências22 na década de 90,
para 161 ocorrências23 nos anos 2000. Na primeira década do século XXI, há 668 ocorrências24,
com média de 60 ocorrências a cada ano e pico de procura nos anos 2016 (97 ocorrências25) e
2017 (98 ocorrências26), voltando à média anterior em 2018 e 2019, com 60 ocorrências.

Jornal: Folha de S. Paulo


Os dados do jornal Folha de S. Paulo apresentam 551 ocorrências, indicando aumento
na circulação do termo “meritocracia”. Há apenas uma ocorrência em 1930 e outra em 1960.
Ao longo das décadas do século XX, as ocorrências saltam para 20, em 1990. Na década de
200, 76 ocorrências, até atingir 429 ocorrências na década de 2010. Como a segunda década do
século XXI apresenta a maior quantidade de ocorrências, o próximo gráfico mostra o aumento
progressivo dos usos, com um pico de 75 ocorrências no ano de 201827.

Revista: Veja
Segundo os dados do acervo da revista Veja28, a primeira ocorrência do termo foi em
28/11/1973. Na década de 80, duas ocorrências; na década de 90, três ocorrências; nos anos
2000, 40 ocorrências; e na primeira década do ano 2000, 108 ocorrências. No ano de 2020,
temos duas ocorrências registradas.

22
O Estado de S. Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/33jYTmN>. Acesso em: 02 fev. 2020.
23
O Estado de S. Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/2SmYrxz>. Acesso em: 02 fev. 2020.
24
O Estado de S. Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/34d41bD>. Acesso em: 02 fev. 2020.
25
O Estado de S. Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/2HDC9FN>. Acesso em: 02 fev. 2020.
26
O Estado de S. Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/3cM0AfG>. Acesso em: 02 fev. 2020.
27
Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/2EPsX02>. Acesso em: 01 out. 2020.
28
Revista Veja. Disponível em: <https://bit.ly/33p1EmZ>. Acesso em: 04 fev. 2020.
62

e “depuração étnica” como variantes da mesma fórmula, estudada minuciosamente em sua tese
de doutorado29.

3.2.2. O caráter discursivo

Krieg-Planque (2010) destaca que a fórmula é sustentada por uma “materialidade


linguística relativamente estável, localizável na cadeia do enunciado e linguisticamente
descritível” (2010, p. 81). Entretanto, a noção de fórmula não é linguística, mas sim discursiva,
já que sua dimensão discursiva se apoia em determinados acontecimentos e usos, estes
predominantemente conflituosos, que motivam mais ou menos sua utilização. Esse movimento
discursivo permite que a fórmula ocupe espaços nas relações sociais e circule por diferentes
campos. Por isso, “a consequência do caráter discursivo das fórmulas é que elas só podem ser
analisadas se estiverem apoiadas em um corpus saturado de enunciados atestados” (2010, p.
89). As fórmulas, por esse motivo, não existem sem os usos que as classificam como tais.
O escopo que o estatuto da fórmula oferece ao analista, na testagem desse mecanismo
como válido ou não para uma determinada unidade ou fragmento linguístico, é muito
importante para que o primado do interdiscurso seja o conceito que valida o processo de análise.
Essa ideia relaciona-se ao fato que todo discurso é atravessado pela interdiscursividade, ou seja,
os discursos não existem previamente para depois serem postos em relação – de aliança ou não
– com outros discursos, pois se propõe que os discursos nascem nos “intervalos” dessa rede
interdiscursiva. Essa perspectiva permite uma maior valorização da heterogeneidade ao analisar
o interdiscurso não apenas como um elemento anterior, mas também constitutivo do discurso.
De acordo com Krieg-Planque (2018), “a noção discursiva de uma fórmula é a base de
sua relação com uma temporalidade e com atores sociais: uma fórmula não existe por si mesma,
mas em relação com os atores que a mobilizam e os acontecimentos que a favorecem” (2018,
p. 132). Analisar como os usos de “meritocracia” (e suas respectivas substituições, paráfrases,
metáforas, entre outros) contribui para autorizar ou não autorizar essa expressão como fórmula
em um dado corpus é mais relevante do que simplesmente afirmar que “meritocracia” é uma
fórmula discursiva.
Essa preocupação é relevante para autora que considera problemática a confusão entre
a existência de uma palavra na língua e sua classificação como fórmula. Dito de outra forma,
em alguns casos, “o acesso da sequência ao status de fórmula coincide com suas primeiras

29
Cf. KRIEG-PLANQUE (2003).
63

aparições materiais” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 81). Isso pode ser dito não apenas pelas
ocorrências, mas porque em pesquisas de caráter discursivo, direciona-se a análise não para a
busca por uma forma lexical “nova”, seja ela pelo número de inscrições ou pelo ineditismo
lexical em circulação, mas sim pelo “um uso particular, ou uma série de usos particulares, por
meio dos quais a sequência assume um movimento, torna-se um jogo de posições, é retomada”
(KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 82). É como se o termo, que já existe na língua, deixasse de
funcionar de forma corriqueira, cotidiana e assumisse outros funcionamentos mais particulares,
que cristalizam/deslocam sentidos, além de serem mais ou menos aceitos socialmente.
Sobre isso, ilustra Krieg-Planque, com as palavras “concentração”, “negociação” e
“diálogo”. O ano de 1995 foi marcado por greves e manifestações – em especial os meses de
novembro e dezembro – provocadas, inicialmente, pela apresentação de um plano de reforma
da Seguridade Social pelo primeiro-ministro Alain Juppé. Os comentaristas chamaram essa fase
da vida pública de diversas formas, como “a greve de dezembro”, “o movimento de dezembro”,
“a cólera monossêmica”. Antes desse período, os três termos mencionados funcionavam
“regularmente” no vocabulário sociopolítico, mas após esse momento, elas foram inseridas no
centro do universo discursivo e entrara em uma fase polêmica, pois seus sentidos se deslocaram.
Os sindicalistas esperavam, em vão, que alguns membros do Estado utilizassem a palavra
“negociação”, porém apenas “diálogo” e “concentração” foram utilizados.
Isso também pode ser notado no Brasil, com o uso da palavra “meritocracia” em dois
momentos do campo político: em 2014, com o segundo turno da eleição para presidente entre
Dilma Rousseff e Aécio Neves; e em 2019, com o discurso de posse do presidente Jair
Bolsonaro. Tanto um quanto o outro exemplificam como um termo, cuja existência na língua
portuguesa antecede 2014, pode assumir outro funcionamento discursivo e chamar atenção para
um funcionamento inclinada ao status de fórmula.
No primeiro caso, a análise se dá a partir da leitura de uma matéria da Folha de S. Paulo.
O texto está estruturado em tópicos e sub-tópicos, apresentando o que os candidatos disseram
e qual é a validade das afirmações que fazem com o comentário “é bem assim” – para
afirmações verdadeiras – e “não é bem assim” – para as falaciosas. Em um dos tópicos, sobre
a meritocracia, o rótulo que acompanha “é bem assim” descreve:

01. Ao falar da meritocracia implantada por Aécio em Minas, Dilma, como


contestação, cita a inclusão, em 2007, de 98 mil servidores nos quadros da educação
65

No segundo caso, analisa-se um trecho do discurso de posse do presidente Jair


Bolsonaro, em janeiro de 2019.

02. O brasileiro pode e deve sonhar. Sonhar com uma vida melhor, com melhores
condições para usufruir do fruto do seu trabalho pela meritocracia. E ao governo
cabe ser honesto e eficiente. Apoiando e pavimentando o caminho que nos levará a
um futuro melhor, ao invés de criar pedágios e barreiras31.

Diferentemente do fragmento (1), que foi selecionado a partir de uma pesquisa no


dispositivo digital Google Trends, o segundo é um indício de que a dimensão discursiva de
“meritocracia” se apoia em determinados acontecimentos – a vitória de Bolsonaro nas eleições
de 2018 – e usos – o discurso de posse do presidente da república. Esse tipo de ritual oficial
marca a nova gestão presidencial, reforçando pautas de campanha a serem cumpridas em quatro
anos. Quando a fórmula específica é mobilizada, ela passa a circular no campo político e
promove efeitos de sentido diversos nos diferentes campos, pois “meritocracia” é um meio para
a população ter “melhores condições para usufruir do fruto do trabalho”, assim como está em
oposição a “pedágios e barreiras”, que podem ser interpretados como políticas públicas de
acesso a certos direitos que, historicamente, permanecem nas mãos dos mesmos poucos. Ou
seja, para ser usufruir do mérito, o indivíduo deve trabalhar (e sonhar), sem que para isso acesse
“pedágios ou “barreiras”. Caso acesse, isso não o levará para “um futuro melhor” e também
não terá mérito no usufruto do seu trabalho.
Como é possível verificar, a fórmula “meritocracia” circula no campo político sem que
isso resulte “de uma mecânica de linguagem, mas de práticas linguageiras e de relações de
poder e de opinião que se observam na discursividade” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 43), ou
seja, mobilizar a fórmula “meritocracia” é prática produtiva linguisticamente, pois ela como tal
já significa algo para todas as pessoas. Entretanto, para compreender os efeitos de sentido no
funcionamento do discurso, é preciso investigar mais de perto as suas ocorrências, de forma
bastante metódica, como afirma a autora.

3.2.3. O caráter de referente social

Krieg-Planque (2010) emprestou o termo “referente social” das pesquisas de Fiala e


Ebel para mostrar como “a fórmula é um signo que evoca alguma coisa para todos num dado
momento” (2010, p. 92). Essa propriedade traduz o aspecto dominante das fórmulas em um

31
Leia a íntegra dos dois primeiros discursos do presidente Jair Bolsonaro. Revista Veja, 01 jan. 2019. Disponível
em: <https://bit.ly/31hmBPf>. Acesso em: 10 abr. 2019.
66

momento e espaço sociopolítico determinados. O fato de a fórmula ser um denominador


comum em variados discursos é constitutivo de seu caráter de referente social. As fórmulas
tendem a circular, trocando de formação discursiva, e tendem também a serem postas “no
cadinho comum do universo discursivo para entrar em conflito com o sentido que ela tem
alhures ou com outros termos” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 96). Por isso, elas impõem uma
função de enquadramento no debate.
A Análise do discurso não separa o texto de sua relação com o contexto sócio-histórico
tendo em vista que “nós nos situaremos no lugar em que vêm se articular um funcionamento
discursivo e sua inscrição histórica, procurando pensar as condições de uma ‘enunciabilidade’
passível de ser historicamente circunscrita” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 17). Com essa
afirmação, o autor consegue representar a dualidade da linguagem, que é diretamente
atravessada pelo formal e pelos embates históricos. Além disso, Krieg-Planque (2010) afirma
que a constituição de uma fórmula como um referente social depende de sua circulação, isto é,
ser posta em circulação no espaço público, por isso as mídias são “uma passagem obrigatória
em uma análise que visa precisamente atestar a existência da fórmula como referente social”
(2010, p. 116-117).
Para identificar se existe um significado partilhado, Krieg-Planque sugere algumas
verificações, tendo em vista que, para essa existência formulaica, é preciso que o signo tenha
notoriedade, como já mencionado, característica que pode ser encontrada no aumento de
frequência de uso do termo, na sua produtividade lexicológica, na testagem desse signo em
variados tipos de discursos, bem como que a notoriedade do signo permite que a fórmula seja
um ponto de passagem obrigatório nos discursos. Além disso, há outra verificação importante:
“a fórmula refere - ela remete ao mundo” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 98). Esse valor é
chamado de re e pode ser verificado pelas formas de pressupostos e nas marcas de remissão.
As análises que se seguem se interessam pelo modo como as interpretações são feitas a
partir das hipóteses construídas pela articulação linguística entre as formações discursivas e a
história, com especial atenção para o modo como a argumentação da linguagem se sustenta, em
grande medida, pelos implícitos.
A noção de implícito não se resume às categorias de pressupostos e subentendidos, mas,
considerando os exemplos dos discursos midiáticos, esses dois tipos de implícitos são
produtivos para expor efeitos de sentido identificáveis do aspecto de referente social de uma
fórmula. De acordo com Ducrot, “a significação de certas frases contém instruções que
determinam a intenção argumentativa a ser atribuída a seus enunciados: a frase indica como se
pode, e como não se pode argumentar a partir de seus enunciados” (1989, p. 18), bem como
67

que o potencial argumentativo dos enunciados está no conjunto de conclusões que se pode
chegar a partir deles.
Apesar de não ser a proposta desse tópico estudar a semântica argumentativa, ela será
mencionada para contextualizar o percurso de Oswald Ducrot (1987) no estudo dos implícitos.
O autor apresenta a descrição semântica de uma língua L como “um conjunto de conhecimentos
que permitem prever, frente a um enunciado [frase] A de L, produzido em circunstâncias X, o
sentido que esta ocorrência de A tomou neste contexto” (1987, p. 14). Para isso, o autor parte
do princípio de que o conjunto de conhecimentos mobilizados para compreender as ocorrências
são formados por dois componentes de naturezas distintas: o componente linguístico – conjunto
de conhecimentos da língua L que atribui uma determinada significação para cada frase,
independentemente do contexto; e o componente retórico, responsável por precisar a
significação de A na circunstância X. De um lado os pressupostos, que atuam na significação
da frase (componente linguístico); de outro os subentendidos, que têm origem na enunciação
(componente retórico).
Essa teoria de Ducrot separa “posto” e “pressuposto”, que, de acordo com Krieg-
Planque (2018, p. 140-141) é, respectivamente, “aquilo sobre o que o enunciado fala
explicitamente, aquilo que justifica, a princípio e aparentemente, o dizer” e, em oposição,
“aquilo que é considerado como já conhecido pelo destinatário, sobre o que o locutor se apoia
pra veicular a nova informação”. O uso de um determinado enunciado com pressupostos já está
imposto ao destinatário pelo discurso (ou a imagem do discurso) do locutor, enquanto o
subentendido é o resultado que o interlocutor chega a partir do efeito da imagem que o locutor
deu ao seu discurso.
De forma abrangente, a língua possui um valor argumentativo essencial, que é regido
por princípios específicos, o que faz das teorias linguísticas da argumentação relevantes para
esse trabalho porque elas “questionam o enunciador e o co-enunciador” (MAINGUENEAU,
1997, p. 160) e manifestam o fato de a própria organização da língua ser condicionada pela
necessidade de agir sobre o outro. Em virtude da constatação que “a argumentação da
linguagem se apoia frequentemente sobre o implícito” (1997, p. 160), Maingueneau define os
implícitos não como “uma lacuna presente em uma alocução que, de direito, deveria ser
explicitável, mas constitui uma dimensão essencial para a atividade discursiva” (1997, p. 160),
já que “é constitutivo do sentido de um enunciado pretender orientar a sequência do discurso
em uma certa direção, reivindicar um certo limite que se impõe ao destinatário através de sua
própria enunciação” (1997, p. 160).
68

O estudo dos encadeamentos argumentativos, para o autor, é dividido em dois grupos:


os conectivos, descritos como elementos que ligam dois ou vários enunciados; e os operadores,
que se aplicam em um único enunciado, ao qual confere uma potência argumentativa
determinada. Essa divisão permite ao analista do discurso uma verificação proveitosa do
processo de análise sistemática do corpus.

03. O economista Márcio Pochmann criticou os discursos de posse dos ministros do


governo Jair Bolsonaro. "Ausência de qualquer tipo de menção ao combate à brutal
desigualdade brasileira no discurso de membros do governo Bolsonaro não indica
mero esquecimento, mas confirma que para a ideologia da extrema direita, a
desigualdade é fundamental para estimular a meritocracia", escreveu o estudioso
no Twitter32

De acordo com Maingueneau (1997), os linguistas distinguem dois tipos de “mas”: um


tem efeito de retificação e outro de argumentação, como no fragmento (03) – que liga dois atos
distintos, o que Ducrot traduziu como “P mas Q”. Ou seja, P é verdadeiro (“Ausência de
qualquer tipo de menção ao combate à brutal desigualdade brasileira no discurso de membros
do governo Bolsonaro não indica mero esquecimento”), o que leva o interlocutor a uma
conclusão R, mas essa conclusão é questionada, pois Q (“mas confirma que para a ideologia da
extrema direita, a desigualdade é fundamental para estimular a meritocracia”) é um argumento
mais forte do que a conclusão R, isto é, Q é mais forte que R. Para Maingueneau, essas relações
de força entre as variáveis P, R, Q não estão inscritas na natureza das coisas, definidas a priori
– esse movimento argumentativo acontece porque o texto em si institui a própria oposição e
relaciona-se à ideologia, já que as posições de P e de Q poderiam ser invertidas, o que produz
outro discurso.
O ponto em comum desses dois efeitos de sentido para o “mas” está na capacidade da
conjunção em “instituir um afrontamento entre o locutor e um destinatário”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 166), tendo em vista que não são dois conteúdos que se opõem –
são dois interlocutores em conflito, em oposição. Isso acontece na recusa que deslegitima a
fala/pensamento do destinatário (03) ou que questiona a interpretação argumentativa de P, na
fórmula “P mas Q”. Ducrot, posteriormente, sugere uma correção para variável R: em termos
de “força argumentativa”, anteriormente, dizia-se que a conjunção “mas” definia Q como o
argumento mais forte; com a reformulação, a conjunção “mas” não estabelece, de forma direta
a relação entre P e Q, o que coloca P como “negligenciável” e Q, por efeito, com maior força.

32
‘Para a extrema direita, a desigualdade tem que estimular a meritocracia’. Portal Brasil 247, 3 jan. 2019.
Disponível em: <https://bit.ly/3n3VP69>. Acesso em: 10 ago. 2019.
69

Essa lógica está materializada no quadro proposto por Maingueneau e também nas análises dos
fragmentos (04) e (05).

P MAS Q
<
Conclusão R Conclusão não R
Quadro 2. Quadro Síntese. Maingueneau, 1997, p. 166

04. O medo te acompanha até o final. Os recursos que seus pais te deixaram, inclusive
a herança intelectual, podem te ajudar, mas não garantem que você vai conseguir,
que não cairá em desgraça. Isso gera muita ansiedade33

(P) Os recursos que seus pais te deixaram, MAS (Q) não garantem que você vai conseguir,
inclusive a herança intelectual, podem te que não cairá em desgraça
ajudar

(implica) < (implica)


(R) Estou garantido, vou conseguir (não R) Não estou garantido, não vou
conseguir
Quadro 3. Exemplo do esquema de Maingueneau (1997)

A partir do quadro 3, no qual P implica R e Q implica não R, pode-se obter os seguintes


resultados: “P mas Q”, como afirma o trecho do excerto (04), e “P mas não R”, com sugestão
de versão para a formulação - “Os recursos que seus pais te deixaram, inclusive a herança
intelectual, podem te ajudar, mas você não está garantido”. Os dois caminhos são possíveis: o
primeiro diretamente e o segundo indiretamente, para comprovar como o embate se dá entre
dois interlocutores e não entre dois conteúdos.

05. A ideia que pretendo passar é bem resumida por Talib Kweli: “nenhuma pessoa
branca que vive hoje é responsável pela escravidão, mas todos brancos vivos hoje
colhem os benefícios dela, assim como todos os negros que vivem hoje têm
cicatrizes dela”. A conscientização dos privilégios advindos da branquitude é o
primeiro passo para que reconheçamos a importância das ações afirmativas como
meio de inclusão social e econômica de um povo cujas reivindicações são
sistematicamente ignoradas pela sociedade e pelo Estado. E aqui não tratamos de

33
CARBAJOSA, Ana. ‘Há muita amargura e ressentimento na classe média’. El País Brasil, 7 jul. 2017.
Disponível em: <https://bit.ly/34hHL01>. Acesso em: 27 abr. 2020.
70

dinheiro (negros pobres x negros ricos). Tratamos de representatividade34

(P) nenhuma pessoa branca que vive hoje é MAS (Q) todos brancos vivos hoje colhem os
responsável pela escravidão benefícios dela, assim como todos os
negros que vivem hoje têm cicatrizes dela

(implica) < (implica)


(R) não há culpados brancos pela escravidão (não R) há culpados brancos pela
escravidão

Quadro 4. Exemplo do esquema de Maingueneau (1997)

A partir do quadro 4, no qual P implica R e Q implica não R, pode-se obter os seguintes


resultados: “P mas Q”, como afirma o trecho do excerto (05), ou “P mas não R”, com sugestão
de versão para a formulação “Nenhuma pessoa branca que vive hoje é responsável pela
escravidão, mas é possível dizer que há culpados brancos pela escravidão”. Os dois caminhos
são possíveis: o primeiro diretamente e o segundo indiretamente, para novamente comprovar
como o embate se dá entre dois interlocutores e não entre dois conteúdos.
Nos trechos (04) e (05), a palavra “meritocracia” não aparece explicitamente, mas a
lógica do reconhecimento via mérito está em funcionamento, seja pelo par “herança x mérito”
(04), ou pelo par “raça x mérito”. Embora a meritocracia (a premiação via mérito) tenha
hipoteticamente nascido para combater a lógica da hereditariedade, cujo poder era herdade,
independente dos esforços do herdeiro, no excerto (05), há a ideia de uma herança –financeira
e intelectual – para garantir um futuro certo, mas mesmo com todo esse “capital” em mãos, não
é certo o sucesso, pois ele será ou não confirmado pelo mérito do herdeiro na condução da
herança.
Por inferência, pode-se pensar que é mais fácil ter mérito pela manutenção/ampliação
da herança recebida do que ter mérito sem receber nenhuma herança – financeira e
culturalmente – dos pais. Em (05), o embate entre raça e mérito situa as pessoas brancas como
aquelas que desfrutam do privilégio da cor da pele, embora não sejam, hoje (século XXI)
culpadas pela escravidão. Aos brancos, há “benefícios”, “privilégios advindos da branquitude”;
aos negros, há “cicatrizes” e “reivindicações são sistematicamente ignoradas pela sociedade e
pelo Estado”.

34
ORSOMARZO, Fernanda. Existe meritocracia em uma sociedade desigual? O Estado de S. Paulo, 9 set. 2016.
Disponível em: https://bit.ly/2GnEtQK>. Acesso em: 11 out. 2019.
71

Para Bobbio (1998), “meritocracia” é “o poder da inteligência que, nas sociedades


industriais, estaria substituindo o poder baseado no nascimento ou na riqueza, em virtude da
função exercida pela escola” (1998, p. 747). O termo, de entrada, descreve a possibilidade de
ruptura hereditária do poder – olha-se menos, de acordo com a mesma obra, para o princípio da
ascription (posição social é atribuída pelo privilégio do nascimento) e mais para o princípio do
achievement (posição social é adquirida pela capacidade individual). O verbete proposto por
Lorenzo Fischer também menciona que “a respeito da Meritocracia, o problema é colocado
numa alternativa radical, contrapondo dois tipos claramente antitéticos, de reconhecimento
social, o dos méritos e o das necessidades” (1998, p. 478).
No excerto (05), há o campo das necessidades – “A conscientização dos privilégios
advindos da branquitude é o primeiro passo para que reconheçamos a importância das ações
afirmativas como meio de inclusão social e econômica de um povo cujas reivindicações são
sistematicamente ignoradas pela sociedade e pelo Estado” – e o campo dos méritos – “nenhuma
pessoa branca que vive hoje é responsável pela escravidão, mas todos brancos vivos hoje
colhem os benefícios dela”.

Excerto Recusa do enunciado adverso Oposição entre x e y

(04) “Os recursos que seus pais te deixaram, inclusive


a herança intelectual, NÃO PODEM te ajudar” Herança vs. Mérito

(05) “TODA pessoa branca que vive hoje é


responsável pela escravidão” Privilégio racial vs. Mérito

Quadro 5 – sistematização dos excertos 04 e 05

Além disso, como menciona Krieg-Planque (2010), outra forma de análise dos
pressupostos é apresentada pela estrutura “X:Y”, estudada por Maurice Mouillaud. O autor
afirma que essa estrutura (X:Y) apresenta a parte esquerda (X), como “enunciado referencial”
que remete a um mundo (geográfico, nacional, entre outros), supostamente de conhecimento
do leitor, e a parte direita (Y), como um “enunciado informacional” que adiciona um
conhecimento novo. Enquanto X atua como pressuposto, pois “designa os acontecimentos, os
objetos ou processos exteriores ao jornal, que estão no mundo, e no mundo tal como o leitor
supostamente o representa” (MOUILLAUD, 1982 apud KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 98), Y é
o posto do enunciado, que precisa da remissão de X.
72

Essa categoria, de re (assim como a categoria de dicto), segundo Krieg-Planque, são


“versões medievais da transparência e da opacidade” (2010, p. 57), mas são limitadas, como
perspectivas isoladas, para a perspectiva da análise do discurso, por isso, colocam-se exemplos
possível da categoria de re (X:Y) de forma a agregar sentidos para todas as outras formas de
análise que esse trabalho se propõe a fazer, para não assumir que uma determinada estratégia é
capaz de esgotar as possibilidade de se afirmar que um elemento lexical específico assume (ou
não) o estatuto de referente social.

06. Meritocracia: 3 dicas para sua empresa35


07. Meritocracia: o que as grandes personalidades do mundo pensam sobre?36
08. Meritocracia: o salário como proposta de satisfação37
09. Meritocracia: o que eu vou ser quando crescer?38
10. Meritocracia: o insumo vital para as empresas do agronegócio39
11. Meritocracia: o novo nome da exclusão40

Os exemplos acima ajudam a verificar como o termo “meritocracia” assume o


funcionamento de referente social no espaço público brasileiro, a partir da estrutura “X:Y”,
sendo “X” – “meritocracia” – o valor referencial já conhecido; e “Y” – “3 dicas para sua
empresa”, “o que as grandes personalidades do mundo pensam sobre?”, “o salário como
proposta de satisfação”, “o que eu vou ser quando crescer?”, “o insumo vital para as empresas
do agronegócio” e “o novo nome da exclusão” – a informação nova a ser adicionada. Em poucos
exemplos verifica-se que a “meritocracia”, como X, associa-se a campos da sociedade como o
econômico, a escolha profissional e o aspecto social, entre a inclusão e a exclusão.
Essa característica insere a fórmula como parte integrante e relevante dos problemas
sociais de uma época, tornando-se assim reveladora de questões históricas, tendo em vista que
“as fórmulas constituem um referente social em um espaço público dado e são objeto de debates
porque estão carregadas de questões: nesse sentido, elas têm um caráter histórico” (KRIEG-
PLANQUE, 2010, p. 101). A natureza da fórmula permite que ela funcione discursivamente

35
Meritocracia: 3 dicas para aplica-la em sua empresa. Portal Endeavor, 03 mar. 2015. Disponível em:
<https://bit.ly/3n1U6hw>. Acesso em: 01 fev. 2020.
36
CAMPANTE, Rubens G. Meritocracia: o que as grandes personalidades do mundo pensam sobre? Portal Uai
E+, 14 jul. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2G8tcnP>. Acesso em: 01 fev. 2020.
37
GAMA, Cláudio. Meritocracia: o salário como proposta de satisfação. Portal Administradores.com, 17 abr.
2019. Disponível em: <https://bit.ly/3cPlsmr>. Acesso em: 01 fev. 2020.
38
MARIN, Kleber. Meritocracia: o que eu vou ser quando crescer. Portal Esquerda Diário, 11 set. 2016.
Disponível em: <https://bit.ly/30no9Xt>. Acesso em: 01 fev. 2020.
39
PALAZZO, Ana; FIGUEIREDO, Felipe. Meritocracia: o insumo vital para as empresas do agronegócio.
Plataforma digital Cana Online, 03 ago. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3cLIQB6>. Acesso em: 01 fev.
2020.
40
Meritocracia: o novo nome da exclusão. Portal Inclusive – inclusão e cidadania, 3 mar. 2011. Disponível em:
<https://bit.ly/2ESP5Xu>. Acesso em: 01 fev. 2020.
73

em diferentes áreas, como a política, a educação, a ciência, o que pode explicitar o discurso
como um lugar de divisão e de agrupamento de sentidos. Apesar do objetivo dessa dissertação
não ser uma análise diacrônica do termo “meritocracia”, três fragmentos são apresentados, das
décadas de 70 e 80, para ilustrar como uma fórmula detém, assim como já dito, “um caráter
histórico”, em especial quando o tema/contexto da discussão é o sistema educacional brasileiro.

12. “Se a democracia como regime político tende à meritocracia como dinâmica
social, uma universidade democrática é fatalmente seletiva ou elitista, se quiserdes
admitir a ambiguidade desse termo; mas jamais aristocrática”41

13. “Tão grande o Brasil e tão grandes os seus preconceitos. Tão antipedagógicos. Ao
mesmo tempo em que a escola já coloca de lado milhões de pessoas para as quais
ela sequer chega a existir, expulsa outros tantos, sob a alegação do mito da
meritocracia. No fundo, as pesquisas educacionais incômodas apontam para o fato
de que os pobres, os desnutridos, os negros e os mais brilhantes são os discriminados
na escola. Grande mérito esse, o de consagrar um sistema exclusivista que tenta
legitimar-se através de tímidas e inconscientes professoras ou de professoras
impotentes”42

Os fragmentos textuais acima são, respectivamente, dos anos de 1977 e 1982. O Brasil
vivia o período militar, após o Golpe de 1964, e determinados temas, como a democracia, eram
interditados. Quando as discussões sobre a lógica democrática encontravam espaço para
divulgação, a violência era um componente compulsório no controle daquilo que poderia ou
não circular na sociedade. Não por acaso, os jornais e as revistas foram alvos constantes de
ataques, com o sumiço de jornalistas e outras violências descabidas.
No trecho (12), o termo “meritocracia” associa-se à democracia, descrita como uma
“dinâmica social”, e está em oposição à lógica aristocrática, ou seja, uma organização
sociopolítica formada por nobres com o monopólio do poder por meio de herança – um poder
hereditário – é o oposto do que, pelo menos nos dicionário, define-se por “meritocracia”,
mostrando uma tensão histórica entre o direito à educação superior e pública para todos, e o
aspecto meritocrático do acesso às universidade, dilema que segue até a atualidade: de um lado,
o caráter positivo de se ter instituições de ensino democráticas, com métodos via mérito de
seleção, ação que combate os privilégios aristocráticos; de outro, se de fato a meritocracia alia-
se à democracia, ela fatalmente adjetiva as universidades como “elitistas” ou “seletivas”.

41
Liberdade Cultural, barreira ao autoritarismo. O Estado de S. Paulo, 20 mar. 1977. Disponível em:
<https://bit.ly/33mhwXj>. Acesso em: 05 jan. 2020.
42
CARDOSO, Irede. A pedagogia da participação. Folha de S. Paulo, 26 dez. 1982. Disponível em:
<https://bit.ly/2HOCvtp>. Acesso em: 05 jan. 2020.
74

Oficialmente, a Constituição de 1967, três anos após o Golpe Militar, descreve sobre a
educação: (artigo 168) “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada
a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de
liberdade e de solidariedade humana”43. Ou seja, o Estado diz assegurar, como matriz para uma
educação como direito e não como privilégio, a igualdade de oportunidade que, como já visto,
não era efetivamente realizada. A igualdade de oportunidade é uma das bases para a realização
da meritocracia; sem ela, não há equidade, mas “até agora, os estudantes de renda superior
ocupam a entrada no ensino superior, o maior número de vagas no ensino gratuito superior. O
estudante pobre trabalha e se forma em universidades pagas”44. No fragmento, datado de 28 de
março de 1980, existe a preocupação acerca da fragilidade do sistema educacional e como o
ensino superior público estava, assim como o fragmento, “seletivo e elitizado”.
Já no segundo trecho (13), discute-se que só é possível “democratizar a universidade”
com a participação de toda a comunidade na escolha de seus dirigentes, fato ilustrado com o
processo da Universidade Federal de São Paulo que elegeu o reitor com a participação dos
servidores da instituição. Como mencionado no fragmento de 1977, a universidade democrática
tende a se alinhar ao conceito de meritocracia para quebrar o fio aristocrático, mas, em
contrapartida, tornar-se elitista, conflito também presente no fragmento de 1982, que se associa
ao “mito meritocrático”, ou seja, uma narrativa criada, construída culturalmente, mas com baixa
aplicação na realidade, a atos preconceituosos que excluem tanto “os pobres, os desnutridos, os
negros e os mais brilhantes”, como a categoria “professor”, classificada inclusive como também
“tímida e impotente”.
Além disso, há uma possível interpretação para o conceito de mérito presente no “mito
da meritocracia”: um sistema especialista em exclusão. Novamente, nota-se que o conceito
meritocrático é por si só um termo em constante tensão de sentidos: embora o critério relacione-
se à democracia (e, portanto, seja “útil” para quebrar as cadeias de poder), ele continua a
trabalhar para as elites, pois os sujeitos selecionados “democraticamente”, por meio de
instrumentos da meritocracia, pertencem majoritariamente à mesma elite cujo aspecto
socioeconômico em muito se assemelha aos preceitos aristocráticos. O vilão a ser combatido
muda de nome, mas, na prática, a meritocracia segue atendendo ao mesmo perfil social.

43
Constituição da República Federativa do Brasil. 17 out. 1969. Disponível em: <https://bit.ly/3kXySzw>. Acesso
em: 10 out. 2019.
44
BAHIA, Luiz A. Elitismo e meritocracia. Folha de S. Paulo, 28 mar. 1980. Disponível em:
<https://bit.ly/2SihXLH . Acesso em: 10 out. 2019.
75

Além do uso do sintagma tal qual se apresenta, é possível compreender o caráter de


referente social das fórmulas por meio das paráfrases, já que “a fórmula existe também através
das múltiplas paráfrases de que ela é a cristalização”, tendo em vista que “se uma fórmula existe
também através de suas paráfrases, ela não existe fora de uma sequência cristalizada bem
identificável que as condensa” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 67). O conceito de “paráfrase”,
de acordo com Fuchs (1985), em seu texto “A paráfrase linguística”, é de difícil precisão na
teoria e na prática tendo em vista que é, por vezes, um objeto alvo de caracterizações opostas.
Para justificar essa dificuldade, a autora apresenta as três principais fontes históricas: a
perspectiva lógica da equivalência formal (“equivalência” a partir do valor de verdade), a
perspectiva gramatical da sinonímia (“identidade de sentido” quando em relação de semelhança
e diferença ao significado fonte) e a perspectiva retórica da reformulação (interpretação prévia
do texto fonte, variável de acordo com os sujeitos e as situações), esta última importante para a
análise do discurso, pois permite observar a articulação entre a língua e o discurso.
A descrição do conceito de paráfrase permite que esse termo seja definido de diferentes
formas, como no texto de Pêcheux e Fuchs (1990) – “A propósito da Análise Automática do
Discurso: atualização e perspectivas” – quando no texto descreve que na paráfrase “a produção
de sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrases entre sequências tais que a
família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia chamar de matriz do sentido”
(PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p. 175). Petit (2020) define “paráfrase” como a relação de
equivalência entre dois enunciados, um deles podendo ser ou não a reformulação do outro”,
além de incluir também o fato de a paráfrase exigir “uma continuidade semântica entre os dados
que ela aproxima” (2020, p. 366). Para Maingueneau (1997), a paráfrase “coloca aquele que a
ela recorre em posição de enunciador “autorizado”, capaz de dominar os signos” (1997, p. 97),
como um gesto que não é neutro.
Esse breve conjunto de descrições da “paráfrase” indicam que o sentido de uma palavra
ou expressão é apreendido à medida que a palavra/expressão surge e pode ser trocada em uma
determinada formação discursiva (tomada aqui, de acordo com Maingueneau, como
“posicionamento”), ou seja, a mudança de formação discursiva – manifestada, em grande
medida pelas paráfrases, indica mudança de sentido. Quando um item lexical simples, como a
“meritocracia”, dá indícios de que se comporta como uma fórmula discursiva, inserido em uma
família parafrástica não evidente, isto é, as reformulações e retomadas realizadas são diversas.
Para as análises que se segue, utiliza-se a “paráfrase discursiva” como mote, o que para
Pêcheux e Fuchs (1990) é um processo diferente da paráfrase linguística, já que a primeira
geralmente aparece com diferentes formulações nas materialidades, sem que haja alteração de
76

sentido, pois “o ‘sentido’ de uma sequência só é materialmente concebível na medida em que


se concebe esta sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação
discursiva (o que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentido) (PÊCHEUX; FUCHS,
1990, p. 175). Isso permite afirmar que, quando uma fórmula circula, ela também se cristaliza,
o que não significa que o sentido dela é imutável, mas sim que existe uma relativa estabilização
de sentido a depender da FD em questão. Nos tópicos abaixo, há a identificação de paráfrases
para a fórmula “meritocracia”, com base na estrutura “meritocracia é X”, para posterior análise:

14. A meritocracia é / um mito / que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na
prática45
15. A meritocracia é / uma crença falsa e não muito salutar46
16. Como na Odisséia, de Homero, / a meritocracia é / o canto da sereia, / a melodia
sedutora e inebriante / que atraía os marinheiros encantados com sua beleza para o
fundo do mar, / para a morte47
17. A meritocracia é / um modelo / que se aplica a qualquer segmento da economia e
porte da empresa48
18. A meritocracia é / um tema / que vem sendo bastante discutido nas esferas social,
política e trabalhista49
19. A meritocracia é / um conceito / que se aplica ao interior de organizações50
20. A meritocracia é / uma ideia / que procura explicar e determinar os lugares sociais
ocupados pelos indivíduos na sociedade a partir da concepção do mérito
individual51
21. A meritocracia é / um tipo de gestão / que busca promover e premiar funcionários
que apresentam os melhores índices de desempenho52

A unidade lexical simples – “meritocracia” – é definida e retomada de diferentes


modos, ou seja, o mesmo termo, quando aparece em outra formação discursiva, geralmente
antagônica, é parafraseada de forma distinta e produz “sentidos” diferentes. Pêcheux, inclusive,
designa a paráfrase por seu “efeito de sentido” para tratar das mudanças promovidas por um
mesmo termo, sintagma, entre outros, ao mudar de FD. Dentro dessa perspectiva, os tópicos

45
A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub. Jornal da Unicamp, 07 jun.
2017. Disponível em: <https://bit.ly/36pkCM8>. Acesso em: 12 dez. 2019.
46
MARK, Clifton. A crença na meritocracia não é apenas falsa: é ruim para você. Nexo Jornal, 16 mar. 2019.
Disponível em: <https://bit.ly/3l1YICA>. Acesso em: 12 dez. 2019.
47
BROCKINGTON, Guilherme. A meritocracia é uma balela. Portal Eureka Brasil, 18 fev. 2019. Disponível
em: <https://bit.ly/2ENRlz4>. Acesso em: 12 dez. 2019.
48
Porque não a meritocracia corporativa? Portal A cidade on, 30 abr. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/30pRXCz>. Acesso em: 4 jun. 2020.
49
Meritocracia: o que é, vantagens e como implantar nas empresas? Site da Fundação Instituto de
Administração (FIA), 4 fev. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3ihXnpn>. Acesso em: 10 abr. 2020.
50
FONSECA, Joel P. Não é a meritocracia; é o valor que se cria. Portal Mises, 20 out. 2015. Disponível em:
<https://bit.ly/3imdLFi>. Acesso em: 3 abr. 2020.
51
CAVALCANTI, Maria Clara. Meritocracia. Portal Quero Bolsa, 6 nov. 2018. Disponível em:
<https://bit.ly/2EQpezt>. Acesso em: 10 abr. 2020.
52
Meritocracia. O que é, por que adotar e como implantar. Site SB Coaching, 3 mai. 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/30oDV42>. Acesso em: 10 abr. 2020.
77

acima são exemplos de um processo de substituição de um mesmo referente (“meritocracia”)


que funciona em formações discursivas diferentes e, portanto, produzem efeitos de sentido
diversos. O que se vê a seguir é que mesmo dentro de uma mesma FD, o efeito de sentido pode
ser diferente.
Nos dois primeiros itens, as reformulações indicam uma posição contrária à
meritocracia: a primeira com a palavra “mito” – não qualquer mito, mas “um mito que precisa
ser combatido”, como indica a subordinada adjetiva restritiva; na segunda com as palavras
“crença falsa e não muito salutar”, ou seja, do conjunto de crenças possíveis, há aquelas falsas
e não muito salutares, mas há outras também. Mesmo pertencendo a uma mesma FD – contrária
à meritocracia – o sentido de mito não é o mesmo que o de crença: uma precisa ser combatida;
a outra, não. Além disso, “mito” remete a um relato não só simbólico, uma alegoria construída
culturalmente, criada por terceiros, cuja associação com a realidade das sociedades pode ser
mais ou menos clara; enquanto “crença” descreve o estado, a atitude de quem acredita e, embora
não seja o caso da sentença destacada, há relação entre “crença” e “fé”. A terceira sentença,
com a palavra “canto da sereia”, associa-se mais ao item “mito”, por ser uma lenda, e menos
ao item “crença”, pelo traço de fé. Essas relações são feitas para ressaltar que dentro de uma
mesma FD, a fragmentação de uma suposta unidade de sentido é possível.
As diferenças também ocorrem nas cinco últimas sentenças que retomam “meritocracia”
de forma descritiva, ou seja, com posição mais ou menos favorável à meritocracia. Uma
possível interpretação é analisar os termos a partir do aspecto mais genérico para outro mais
específico, como: ideia > tema > modelo > conceito > tipo de gestão, isto é, “ideia” como a
máxima abstração de uma determinada unidade lexical e “tipo de gestão” como o aspecto mais
específico do termo. Nos dois últimos exemplos, lê-se: “ideia” associada à capacidade
“explicativa” do termo “meritocracia”; “tema” para um assunto que circula em sociedade, está
presente no corpo social, em diferentes campos; “modelo” para algo que se aplica de forma
abrangente (na economia e em empresas de diferentes tamanhos); “conceito” para um item que
se aplica apenas internamente nas corporações; “tipo de gestão” para uma espécie de política
que promove e premia os funcionários, o único dos itens com inclinação clara pró meritocracia.
Desse modo, quando uma palavra circula através de reformulações e retomadas, há um
bom indicativo da existência de uma fórmula discursiva. Essa ideia é proposta por Krieg-
Planque (2010) ao mencionar que as reformulações parafrásticas, quando aliadas à circulação,
são manifestações importantes da propriedade “referente social” da fórmula, o que permite
compreender a paráfrase em sua pluralidade e, o mais importante: notar como o mesmo e o
diferentes se imbricam no fio do discurso.
78

Esse breve percurso, em suma, observa que a propriedade de referente social da fórmula
é potencializada pela mídia por fazer parte das discussões sociais em diferentes períodos, o que
permite afirmar que ela está no centro dos debates históricos de uma sociedade, pois “põe em
jogo a existência das pessoas, porque é portadora de um valor de descrição dos fatos políticos
e sociais” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100). Essa dimensão da fórmula “meritocracia” é
potencializada pela mídia, que faz circular o item pelo universo discursivo, contribuindo para
uma o funcionamento fluido dos discursos, estes jamais fechados ou isolados em si.

3.2.4. O caráter polêmico

As quatro propriedades de uma fórmula são aspectos importantes para que unidades
simples, complexas, entre outras, sejam analisadas segundo parâmetros linguísticos e
discursivos já previamente testados, embora seja possível que cada uma dessas categorias
apresente maior ou menor grau de ocorrência, a depender do corpus selecionado. A questão
polêmica, então, destaca-se porque

“a fórmula põe em jogo os modos de vida, os recursos materiais, a natureza e as decisões do


regime político do qual os indivíduos dependem, seus direitos, seus deveres, as relações de
igualdade e de desigualdade entre cidadãos, a solidariedade entre humanos, a ideia que as pessoas
fazem da nação que se sentem membros” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100).

A fórmula é “portadora de questões sociopolíticas” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100),


participando da história enquanto se constitui como um problema: “é porque é portadora de um
valor de descrição dos fatos políticos e sociais, que a fórmula é um objeto de polêmicas” (2010,
p. 100). Ela assenta-se em uma materialidade linguística relativamente estável, tem caráter
discursivo, constitui-se como um referente social e é polêmica. No caso do corpus dessa
dissertação, o caráter polêmico da fórmula destaca-se entre as outras três propriedades, pois é
o argumento mais forte na descrição de “meritocracia” como fórmula.
Além disso, observa-se, em especial, as formas com as quais as diferentes formações
discursivas (FDs) monopolizam o termo a partir dos semas53 /obstáculo/ e /justiça/, bem como

53
Palavra ou expressão que funciona como operador de individuação dentro um discurso. O espaço discursivo é
constituído por uma relação polêmica entre dois discursos. Assim, no sistema de restrições semânticas de cada um
dos discursos envolvidos, há dois grupos de semas: um com os semas considerados positivos por aquela prática
discursiva e o outro com os semas contrários, tomados como negativos. Segundo Maingueneau (1984, p. 67): “A
relação polêmica, como vimos, está fundada nesta dupla repartição: cada polo discursivo recusa o outro, como
derivando de seu próprio registro negativo, de maneira a melhor reafirmar a validade de seu registro positivo”.
79

seus respectivos simulacros /privilégio/ e /vitimismo/. Nos fragmentos analisados, os


partidários da “meritocracia” compreendem, de forma geral, esse critério de gestão como justo,
representado pelo sema /justiça/, enquanto outros contrários à “meritocracia” entendem, de
forma geral, esse critério de gestão como algo injusto, portanto, representado pelo sema
/obstáculo/. Para os defensores do termo como uma prática justa, a ideia de meritocracia como
um “obstáculo” é frequentemente interpretada por meio do simulacro /vitimismo/, pois essa
postura é corriqueiramente classificada como “mimimi54”. No entanto, para os defensores do
termo “meritocracia”, a ideia de que ela é “justa” é normalmente interpretada como um
“privilégio”, ou seja, assumir, por exemplo, que todas as conquistas de um sujeito estão restritas
ao empenho individual desconsidera um percurso de privilégios até a determinada conquista.
Como fundamento principal para as análises que se seguem, todos os enunciados são
analisados a partir da noção do primado do interdiscurso, como propõe Maingueneau (2008a).
Essa tese defende que os discursos não se constituem isoladamente, mas sempre já-associados
aos seus outros, separados pela sua negação. Todo discurso, assim, está sempre em relação
interdiscursiva com seu outro, já que essa relação se manifesta quando discursos em oposição
se confrontam em uma relação polêmica. Um exemplo disso é oferecido pelo próprio autor: as
disputas em torno do sentido e da prática cristã por duas correntes religiosas da França do século
XVII – o humanismo devoto e o jansenismo. Cada uma das correntes interpretava a prática
cristã de uma forma, da mesma maneira que detratava seu opositor.
Esse funcionamento polêmico é também constituído pelo conceito de
interincompreensão. Ele permite observar que os discursos se caracterizam como instâncias
que materializam diferentes posturas ideológicas postas em movimentação pelo sujeito em
diferentes cenas enunciativas. Maingueneau (2008a) chama de interincompreensão constitutiva
uma certa interação que se efetua com base na filtragem recíproca, com grades semânticas
distintas. Esse conceito é um desdobramento da semântica global que caracteriza os discursos
sem que haja um lugar para a oposição entre superfície e profundeza, mas sim que exista uma
identidade discursiva disseminada por todos os planos, tanto na ordem do enunciado, na ordem
da enunciação, como nos polos da produção e da recepção:

[...] a enunciação não tem só um ‘acima’, ela tem também um ‘abaixo’, a saber, as
condições de emprego dos textos do discurso. Pode-se mesmo dizer que essa distinção
entre acima e abaixo não opõe realidades independentes: a maneira pela qual o texto
é produzido e pela qual é consumido estão ligadas (MAINGUENEAU, 2008a, p. 134).

54
De acordo com o dicionário informal online, “mimimi” é “reclamação, chororô”, “frescura”, “romantismo”, “blá
blá blá”, “reclamar de barriga cheia”, entre outros. Disponível em: <https://bit.ly/3mgRQlu>. Acesso em: 01 set.
2020.
80

Em consequência dessa relação de produção – entre a recepção e o confronto entre os


discursos –, a identidade discursiva é definida a partir da interdiscursividade, assumindo-se que
o interdiscurso tem primazia sobre os discursos, ou seja, “eles se formam de maneira regulada
no interior do interdiscurso” (2008a, p. 21). Essa é uma das razões pelas quais a relação
interdiscursiva se manifesta como polêmica, uma vez que a própria gênese dos discursos
acontece num processo de incompatibilidade radical, conceitualmente denominado
interincompreensão. É nesse aspecto que se funda a polêmica, pois o Outro é integrado pelo
discurso agente como simulacro, representado pelos semas que definem a grade semântica de
uma determinada FD.
Como fórmula, “meritocracia” luta por uma descrição do real. Essa luta discute fatos
não consensuais por permitir que um fato seja problematizado, que análises sociais, culturais e
políticas sejam feitas, atribuindo à fórmula um caráter de objeto de polêmicas. Também, as
fórmulas produzem diferentes questões em virtude de seu caráter cristalizado, cuja circulação
participa do “peso da história” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100), por ter um funcionamento
vivo no fio dos discursos, por se constituir como um referente social dentro do espaço público
e por ser também um objeto de debate, com caráter histórico. A característica polêmica da
fórmula pode se manifestar de diferentes modos: a injunção do discurso, a recusa de enunciar,
a inconsistência do referente que a fórmula supostamente designa e os tropeços dos
enunciadores, capazes de revelar algumas questões que a fórmula oculta.
Nos exemplos a seguir, “meritocracia” é apresentada como tendo caráter positivo – os
defensores da premiação pelo mérito entendem “meritocracia” como um argumento de
/justiça/– e, na sequência, outro negativo – aqueles contrários à premiação pelo mérito

22. A meritocracia é um tipo de gestão que busca promover e premiar funcionários que
apresentam os melhores índices de desempenho. Ou seja, se trata de um sistema que
almeja valorizar os melhores talentos e permitir que os colaboradores cresçam
dentro da organização. Com essa mentalidade, não é apenas o funcionário que sai
ganhando. A empresa também se beneficia da prática, já que pode levar aos postos
mais altos os profissionais mais qualificados.55

23. A meritocracia se faz importante na gestão de RH por ser um método para


identificar onde estão os melhores talentos e recompensá-los pelo trabalho
desenvolvido. Todas as outras atividades do RH fluem com mais tranquilidade
quando o modelo de gestão segue a meritocracia. Ela constrói a estrutura e,

55
Meritocracia. O que é, por que adotar e como implantar. Site SB Coaching, 3 mai. 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/30oDV42>. Acesso em: 10 abr. 2020
81

consequentemente, tem um efeito no crescimento da empresa, aumentando sua


competitividade.56

No excerto (22), há o reconhecimento da meritocracia como uma forma de “gestão”, um


“sistema”, uma “mentalidade” que promove e premia os melhores índices de desempenho, cuja
ação permite que funcionários e empresas ganhem. Em (23), há também a lógica da “gestão”,
da “mentalidade”, que permite identificar onde estão os melhores candidatos em nome de uma
construção empresarial mais tranquila, com efeito direto no crescimento da empresa e da
competitividade, vista como algo positivo para o processo. Nesses itens, apenas o sema /justiça/
está em funcionamento: a meritocracia é apresentada como uma solução corporativa para o
avanço econômico que oferece aos sujeitos envolvidos a sensação de justiça, pois o empenho e
o talento foram reconhecidos adequadamente.
Em (22) e (23), há também um esforço para expressar como a política meritocrática não
contribui apenas para o indivíduo – que, teoricamente, é o centro dessa ação, pois o “sucesso”
ou a “derrota” dependem restritamente do seu empenho, sua inteligência, de ser ou não “o
melhor” – como também para o coletivo. Os trechos “[...] não é apenas o funcionário que sai
ganhando. A empresa também se beneficia da prática [...]”, em (22), e “[...] todas as outras
atividades do RH fluem com mais tranquilidade quando o modelo de gestão segue a
meritocracia”, em (23), afirmam ser a meritocracia um tipo de gestão que permite aos talentos
em espaço e à empresa, de forma coletiva, um desenvolvimento pautado na seleção e
reconhecimento via mérito.
Em contrapartida, o discurso contrário à meritocracia procura desestabilizar os sentidos
positivos construídos em torno da unidade lexical, enxergando-os como simulacros do que seria
essa “gestão”, esse “método”.

24. “A meritocracia é um mito. Ela só faria sentido se a sociedade promovesse


igualdade de oportunidades educacionais, econômicas e sociais. Não sendo esse o
caso, é um jogo de cartas marcadas. Ganha quem larga na frente: os que estudaram
em boas escolas e tiveram recursos para acessar livros e bens culturais”, diz Sidney
Chalhoub, pesquisador brasileiro e professor de história na Universidade Harvard.57

25. A meritocracia é a grande farsa, a grande justificativa moral do capitalismo. As


pessoas veem o capitalismo como se fosse um sistema de trocas econômicas. O
capitalismo não diz somente o seguinte: “eu sou a forma mais eficiente de se
produzir bens”. Ele diz também: “eu sou a sociedade mais justa”. Essa é sua
dimensão simbólica. Não estou dizendo nada nas nuvens. Estou falando de algo que

56
CARVALHO, Raphael. Meritocracia: o que é e como praticar de maneira inovadora? Portal Edools, 10 jul.
2018. Disponível em: <https://bit.ly/2Suw6pv>. Acesso em: 10 abr. 2020.
57
A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub. Jornal da Unicamp, 07 jun.
2017. Disponível em: <https://bit.ly/36pkCM8>. Acesso em: 12 dez. 2019.
82

gera humilhação, degradação, depressão, doenças e morte para quem está abaixo de
uma linha invisível de distinção social. A meritocracia é uma mentira moral porque
ela faz crer que a sociedade é composta de indivíduos. Como se fosse uma trajetória
individual, enquanto é possível provar que todo mérito individual é socialmente
construído. Ele é fruto de reprodução de privilégios, de injustiças que são
construídas historicamente, além do tempo. Tem a ver com reprodução de injustiça,
portanto.58

Nos excertos apresentados, a posição se manifesta na forma como esses discursos


retomam o sintagma “meritocracia” predicando-o como “farsa”, “mito”, “jogo de cartas
marcadas”, “mentira moral” e “reprodução de injustiças”, isto é, aqueles que concebem a
meritocracia como um critério de equidade parecem cair na armadilha construída pelo
capitalismo. Os semas positivos (reivindicados pelo discurso) e os negativos (rejeitados pelo
discurso) constituem uma grade semântica definidora dos discursos e suas respectivas
formações discursivas. Em ambos os fragmentos está em jogo a associação entre meritocracia
e capitalismo, que, integradamente, criam uma lógica de uma sociedade justa – como mostrado
nos fragmentos “pró-meritocracia” anteriores – constituída por indivíduos e, portanto, o sucesso
de cada um é possível e relevante para o corpo social. Em oposição, é possível notar que o
sucesso individual é construído socialmente, a partir de diferentes oportunidade de acesso à
educação, à saúde, à moradia, todas elas construídas ao longo da vida do sujeito.
Em (24), “meritocracia” é um “mito” porque a premiação pelo mérito, enquanto é lida
pelos partidários desse sistema como uma prática justa, pelo outro lado, essa “justiça” é
interpretada como um privilégio de poucos. Também, “a igualdade de oportunidades” e “o jogo
de cartas marcadas” são obstáculos à realização da meritocracia como instrumento de justiça,
enquanto o recurso para acessar uma educação de qualidade é interpretado como privilégio. Em
(25), o sistema capitalista pode ser associado ao sema /obstáculo/, já que, simbolicamente, ele
produz efeitos de igualdade (“eu sou a sociedade mais justa”) e, portanto, é interpretado pelos
partidários da meritocracia como um sistema justo – já que o livre mercado permite a livre
competição e o livre sucesso – e pela oposição, como uma “farsa”, que cria ilusão de igualdade
quando, em verdade, amplia as desigualdades com um discurso de “oportunidade para todos”.
A expressão “mentira moral” relaciona-se ao que se disse anteriormente e é outro obstáculo à
meritocracia “porque ela faz crer que a sociedade é composta de indivíduos”, embora o conceito
de mérito individual seja comprovadamente uma construção social que reproduz injustiças.

58
MARINGONI, Gilberto. “A noção de nova classe média é ilusória”. Revista desafios do desenvolvimento, 20
jan. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/34i1BIM>. Acesso em: 21 abr. 2020.
83

Inclusive, os pares (22)/(23) e (24)/(25) estão em contextos socialmente conflituosos:


para os dois primeiros, “meritocracia” é um tipo de prática que promove a justiça social; de
outro, ela é vista como um mito ou uma falácia, reforçando as injustiças. Normalmente, o
primeiro grupo assume que os sujeitos são donos de seu destino, dependendo apenas deles
mesmos para o progresso social via mérito, já que colocam no centro de sua concepção um
sujeito normativo, individual, dono do próprio destino59. Já o segundo grupo assume que a
meritocracia não é legítima moralmente, pois não é possível premiar pelo mérito individual
(tendo em vista que ele é uma construção social), a partir da lógica da livre “oportunidade”
enquanto as pessoas partirem de pontos socioeconômicos marcadamente desiguais.
O que está em jogo é o par “direitos vs. privilégios”, pois embora a Constituição Federal
de 1988, em seu artigo quinto, afirme que “todos são iguais perante a lei”, na prática, os direitos
assumem um posto de privilégios para poucos, promovendo a manutenção do poder nas mãos
dos mesmos detentores. Destaca-se que o Poder, como afirma Foucault, não ocorre apenas pela
força, mas sim por uma rede de relações de poder que fabrica consensos e constrói uma lógica
de legitimação social, como acontece com as políticas afirmativas, em especial, as cotas e as
bolsas sociais/de pesquisa para graduação/pós-graduação.
O fragmento (26) relata o percurso de Simone Marasco, 34 anos, até a defesa de
doutorado na UFRJ. Além de mencionar a falta de condições básicas para uma vida digna,
Simone descreve a importância das bolsas de estudo para o processo de pesquisa.

26. Em novembro passado, concluí o doutorado. Somente terminei o mestrado e o


doutorado porque tive bolsas. Não conseguiria essa formação se não fossem esses
auxílios. Não considero que minha história seja exemplo de meritocracia, pois sei
que sou o que sou porque tive acesso a políticas públicas voltadas para a educação.
Existiria meritocracia se todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades e o
mesmo modo de vida. Entre as pessoas que tinham mesmo estilo de vida que o meu,
poucas conseguiram concluir a graduação60.

Em (26), Simone associa a conclusão do doutorado ao fato de ter recebido auxílio de


bolsas de estudo e justifica que outras pessoas com o mesmo histórico de vida mal acessam a
graduação, ou seja, as políticas públicas destinadas à educação são uma forma de justiça, apesar
de serem interpretadas, muitas vezes, como um privilégio dado a grupos socialmente excluídos.
Ela questiona a existência do termo “meritocracia” (valor de dicto) e aponta como obstáculo à
existência dessa política as desigualdades de oportunidade e de modos de vida. Quando a

59
Esse item será ampliado no capítulo 4 quando as questões sobre o Ethos são o foco da análise.
60
LEMOS, Vinícius. ‘Fazia faxinas para poder estudar’: história da ex-empregada doméstica que se tornou
doutora. BBC Brasil, 17 jan. 2020. Disponível em: <https://bbc.in/2SimQEA>. Acesso em: 15 set. 2020.
84

locutora afirma que não considera sua história um exemplo de meritocracia, essa asserção opõe-
se a uma afirmação anterior, não explícita no contexto da reportagem, mas em funcionamento
no cotidiano e recuperada pela memória discursiva, que adjetiva histórias assim como
meritocráticas, ou seja, um mérito é justo porque reconhe o esforço, independente do processo
de vida que conduziu o indivíduo até a “vitória”, e qualquer “reclamação” sobre esse tipo de
ideia é vista como de caráter vitimista.
Esse exemplo veio à baila porque casos como este são normalmente mobilizados para
descrever como a meritocracia é um dispositivo importante para que “todos” acreditem que é
possível “vencer na vida” independentemente do lugar/da condição de nascimento e
desenvolvimento, uma espécie de “romantização do mérito”, pois a fórmula discursiva “pode
recair sobre a realidade ou, ao contrário, sobre a inconsistência do referente que a fórmula
supostamente designa” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 102). Em adição, há também o fragmento
(27) que descreve como os moradores da Maré agiram em prol do coletivo da favela por meio
de aulas improvisadas em casas e “puxadinhos”, formando o Unifavelas, um cursinho gratuito
conduzido por moradores da favela da Maré e alunos da UFRJ e UERJ.

27. Apesar do resultado positivo em meio a um ambiente marcado pela violência e falta de
estrutura, os alunos e professores não acreditam em uma visão meritocrática por trás
das conquistas dos estudantes. “Estudar é uma tarefa extremamente difícil. Se eles
passaram, se a gente passou, não foi meritocracia. Foi porque, de alguma maneira,
a gente conseguiu estudar. Se deixar tudo de lado, todas as preocupações, e sentar
e estudar, é muito complicado”, conclui Daniele.61

Em (27), ao afirmar que “se eles passaram, se a gente passou, não foi meritocracia”,
a jovem Daniele nega uma afirmação anterior não explícita, que classifica aprovações de jovens
negros e periféricos como exemplos de conquista via mérito sem levar em conta o histórico de
vida da cada um, ou seja, ela nega essa lógica que romantiza as conquistas, em caráter
excepcional, das minorias representativas. Na sequência, ela justifica a negação e reforça a
importância de uma análise menos romântica e mais factual do percurso dos sujeitos em uma
sociedade desigual como a brasileira: “...porque de alguma maneira, a gente conseguiu
estudar. Se deixar tudo de lado, todas as preocupações, e sentar e estudar, é muito
complicado”. A violência e a falta de infraestrutura do local de estudo representam o sema
/obstáculo/, pois são um impeditivo ao reconhecimento justo via mérito: ela não nega que teve
mérito, ou seja, que “conseguiu estudar”, mas não aceita que esse “mérito” seja premiado ou

61
PIRES, Raísa. Pré-vestibular comunitário em laje na Maré aprova todos os estudantes em universidades públicas
do Rio. Portal G1, 27 set. 2019. Disponível em: <https://glo.bo/36qKZkS>. Acesso em: 07 mar. 2020.
85

exaltado por meio de uma lógica meritocrática, já que essa conquista – pautada exclusivamente
no empenho individual que promove ascensão social – não é representativa do coletivo
periférico.
Na abertura do fragmento (27), o uso da conjunção concessiva “apesar de” é
acompanhado pela ideia mais fraca do período que será combatida na sequência – apesar do
resultado positivo em meio a um cenário pouquíssimo favorável – isto é, o resultado é positivo,
mas não pode ser tomado com regra geral. Isso é confirmado na sequência, em uma associação
interessante entre “meritocracia” e “condições mínimas de estudo”. O que Daniele coloca em
pauta não é a infraestrutura extremamente desigual entre as escolas no Brasil, tampouco a
remuneração (ou a falta dela) e o acesso a livros: ela menciona um item elementar, primário –
conseguir ou não conseguir estudar em virtude do cenário de vida (a fome, o risco de violências,
a necessidade de complementar a renda da casa, entre outras dificuldades que atingem a
juventude/os adultos no Brasil), elemento esquecido quando a perspectiva de análise pretende
“romantizar o mérito”.
Em “se deixar tudo de lado, todas as preocupações, e sentar e estudar, é muito
complicado”, a desigualdade de condições de acesso, desde a qualidade da saúde física e
mental, até estudar em meio à violência, sem silêncio e sem carteiras, é colocada como um
argumento que não aceita a “visão meritocrática” como qualificador desses jovens aprovados,
mesmo quando as minorias representativas conquistam vagas no ensino superior público.

28. “A meritocracia é uma falácia. Eu consegui porque tive ajuda. Não dá para igualar
as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades. Eu me esforcei muito,
sim, mas não consegui só por causa disso, eu tive apoio. E é isso que a gente tem
que dar para quem não tem oportunidade. A gente perde muitos gênios por aí,
inclusive nas favelas porque não podem estudar”62.

Em (28), o reconhecimento e a premiação de uma conquista, que supostamente traz a


ideia de justiça, é interpretada pela locutora como uma falácia, pois ela se esforçou, mas
efetivamente conseguiu porque “teve apoio” e “oportunidade”. A falta de oportunidade é
apresentada pela jovem como um obstáculo; já para a ideia de justiça está em um tipo de ajuda
que oferece oportunidade para quem não a tem. No contexto, a aprovação em primeiro lugar no
curso de Medicina na USP Ribeirão Preto de uma jovem – Bruna Sena, 17 anos – negra, pobre,
estudante de escolha pública e filha de uma senhora que trabalha como caixa de supermercado.

62
Jovem que passou em 1º lugar na USP diz que a “meritocracia é uma falácia”. Pragmatismo Político, 7 fev.
2017. Disponível em: <https://bit.ly/33ipDUB>. Acesso em: 15 abr. 2020.
86

A afirmação inicial – “a meritocracia é uma falácia” – situa a perspectiva da jovem sobre o


termo “meritocracia”: uma crença construída.
De acordo com o dicionário Aulete digital63, o termo “falácia” designa um “raciocínio
ou afirmação falsa ou errônea com aparência de verdade”, um “raciocínio logicamente
plausível, mas enganoso”. Não é difícil assumir que o mérito é um dispositivo transparente, que
pode conduzir à justiça social, tendo em vista que a Constituição de 198864 garante em seu
arquivo quinto que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. No entanto, essa ideia pode apagar
a necessidade de se olhar para a situação histórica e socioeconômica do país, estado, cidade,
empresa, indivíduo em sociedade de forma a compreender, a partir da fala de Bruna Sena (28),
como a meritocracia é construída como uma política real e falaciosa ao mesmo tempo,
reafirmando o caráter polêmica da fórmula discursa em questão.
Ainda em (28), a fala de Bruna Sena é construída a partir de um predomínio de sentenças
negativas – “não dá para igualar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades”,
“eu me esforcei muito, sim, mas não consegui só por causa disso” e “gente perde muitos
gênios por aí, inclusive nas favelas porque não podem estudar – opondo-se às lógicas,
sucessivamente, de ser possível igualar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades,
de esforçar-me muito como medida única para conseguir algo que se deseja ou necessita e de
ser irrelevante considerar o local de moradia para analisar se um jovem consegue ou não
estudar. Essas construções linguísticas oferecem condições para afirmar que a jovem Bruna
Sena nega as ideologias apoiadas em pressupostos, que se apresentam como “senso comum”,
ou seja, compartilhadas pela maioria da sociedade.
O ponto comum entre os trechos (26), (27) e (28) é a menção a uma espécie de “apoio”,
“auxílio”, “ajuda” para que esses sujeitos fossem capazes de lidar e superar os intensos entraves
sociais, que levam a desigualdades na formação, nas oportunidades e nas condições de disputa,
para pleitear lugares entre os privilegiados. Essa lógica de “auxílio pra superar os obstáculos”
é representada pelas políticas afirmativas nacionais atacadas por um grupo da sociedade que
apoia incisivamente o funcionamento produtivo da meritocracia, como sustentam Possenti e
Bittar (2016). O texto analisa como a mídia impressa brasileira se posicionou diante da Lei
12.711/2012, a chamada “lei de cotas”, sancionada em 29 de agosto de 2012, garantindo 50%

63
Dicionário Aulete Digital. Disponível em: <https://bit.ly/3indpyc>. Acesso em: 10 fev. 2020.
64
Constituição da República Federativa do Brasil. 17 out. 1969. Disponível em: <https://bit.ly/3kXySzw>. Acesso
em: 10 out. 2019.
87

das matrículas por curso e turno nas universidades e institutos federais para alunos oriundos do
Ensino Médio público, sendo parte dessas vagas destinadas para alunos autodeclarados negros,
pardos ou indígenas.
Nesse estudo, um dos temas recorrentes no corpus é caracterizado pela utilização do
argumento meritocrático como contrário às políticas de cotas, com a mobilização de
justificativas que a política de cotas invalida o mérito e/ou esvazia os candidatos de mérito, bem
como que os cotistas são incapazes de dar conta das demandas técnicas ao conquistarem as
vagas e que não merecem ocupar os espaços educacionais porque foram beneficiados por uma
política que promove o “preconceito reverso”, ou seja, ao invés de contribuir para a diminuição
dos abismos sociais, essa política acentua o preconceito. Como já mencionado na introdução
dessa dissertação, as teses de Bobbio também foram citadas pelos autores no percurso das cotas,
delimitando essa discussão entre “apoiadores” vs. “opositores” às cotas com o mesmo
funcionamento, proposto por Bobbio, para “esquerda” e “direita”: do lado esquerdo, as cotas
representam a reparação das desigualdades, em nome de uma competição igualitária que
promove justiça social; do lado direito, as cotas ferem o princípio da meritocracia, acirrando as
discriminações, em especial a racial.
Outro ponto interessante da análise de Possenti e Bittar (2016) é o fato de outras políticas
afirmativas, como as cotas para alunos de escola pública, serem consideradas em perspectiva,
como a Lei 8.213/91 (artigo 93), que estabeleceu a obrigatoriedade de as empresas com 100 ou
mais empregados preencherem uma parcela das vagas com pessoas portadoras de deficiência,
assim como a escolha da ex-presidente Dilma Roussef, que em 2012 preencheu 30% das vagas
no primeiro escalão dos ministérios. A partir da divisão proposta por Bobbio, o autor afirma
que o lado igualitário – representado pela esquerda – parte da convicção de que a maior parte
das desigualdades que o indignam devem ser resolvidas, pois são uma construção social,
enquanto o outro lado, em oposição, assume as desigualdades são naturais e, por isso, não
requerem combate.
Nesse contexto, o trabalho de Possenti e Bittar concluiu que enquanto os negros e pobres
são alvo de maiores críticas e ataques ao recebimento da política de cotas, os deficientes não
passam pelo mesmo julgamento (já que a deficiência é vista como “natural”), enquanto as
mulheres receberam menos ataques para usufruírem do “benefício” para ocuparem mais cargos
oficiais no executivo federal. Comparativamente, a lei 5.465, de 03 de julho de 196865,
popularmente chamada de “lei do boi”, foi proposta pelo deputado Último de Carvalho

65
Câmara dos Deputados. Lei nº 5.465, 3 jul. 1968. Disponível em: <https://bit.ly/3n5yEIJ>. Acesso em: 10 out.
2019.
88

(PSD/ARENA-MG). A lei, que vigorou no Brasil até 1985, criou uma reserva de vagas nas
escolas técnicas de ensino médio e escolas superiores mantidas pela União, nos cursos de
Agronomia e Medicina Veterinária, a candidatos que comprovassem relação com a
agropecuária, com a justificativa que essa ação conduziria o homem do campo às escolhas
agrícolas de Ensino Médio e Superior.
Infelizmente, os indivíduos que têm direito à terra e à educação pertencem à classe
historicamente dominante, desigualdade que transforma direitos em privilégios. Em 1968, sob
comando do governo militar, a lei 5.465 não despertou questionamentos ou foi chamada de
“polêmica” pelo fato de o texto, em seu artigo 1, mencionar que

“50% (cinquenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes,
proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por
cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades
ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio”.

No artigo 1 da lei em questão não há menção para raça, ou seja, as cotas beneficiam os
filhos de fazendeiros e agricultores, mas, como já mencionado, sabe-se quem são os filhos de
fazendeiros/agricultores que ocupam os espaços educacionais, na tentativa governamental de
promover “inovações” no campo. Como o conceito de meritocracia está em questão no tocante
às cotas para negros, mulheres e deficientes, ele também está para a “lei do boi”: se o primeiro
grupo é constantemente questionado, atacado, como aqueles que “recebem o peixe, mas não
aprendem a pescar”, que se “beneficiam” da lei para ter vantagem sob os demais, entre outras,
essa operação não ocorre com o outro grupo, chamados aqui de “herdeiros”, que normalmente
interpretam-se como “filhos da justiça”. A meritocracia, aparentemente, não é mobilizada
quando o “desempenho”, “esforço” é medido também pela linhagem (filhos de fazendeiros),
mas é muito utilizada quando o “desempenho”, “esforço” deve desconsiderar a linhagem e olhar
apenas para o indivíduo. Dois pesos e duas medidas diferentes.
Ainda, o conflito entre o funcionamento do par “direitos vs. privilégios” segue em curso.
O trecho (29) destaca a importância das ações afirmativas como mecanismo de reparação e
promoção de justiça social, contestando os argumentos que defendem a preservação da
meritocracia. Quando questionado pelo jornal a respeito das correntes contrárias às cotas, que
entendem essa ação afirmativa como algo que desconsidera a meritocracia e, portanto, gera
injustiça, Chalhoub responde:

29. “Então, a ideia da meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e
históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução
eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade.
89

Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto
na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista66, que é
a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de
setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar.”67

A face “mítica” da meritocracia, como uma narrativa fantasiosa, já apareceu


anteriormente. Ela é mobilizada por aqueles que compreendem o mérito como um valor
subjetivo, de difícil quantificação para mensurar quem ocupa ou não postos em universidades,
no mercado de trabalho, entre outros. Em (29), o sema /obstáculo/ está representado pela
perspectiva que assume a ideia de meritocracia como um valor universal, que reproduz
desigualdades e é injusta. Embora os dicionários tenham limitações no que se refere a palavras
com conotação política, em virtude da diversidade de deslizamentos de sentido possíveis,
observa-se no dicionário Michaelis Online68, algumas entradas para a palavra “mito”.
O termo pode ser interpretado, de acordo com o dicionário: a) como “uma história
fantástica de transmissão oral”; b) como um “enigma”; c) como “um discurso propositalmente
poético ou narrativo, cujo objetivo é transmitir uma doutrina”; d) como “uma interpretação
ingênua e simplificada do mundo e de sua origem”; e) como “uma crença, geralmente
desprovida de valor moral ou social, desenvolvida por membros de um grupo, que funciona
como suporte para suas ideias ou posições”, entre outros. Enquanto em (9), “falácia” sustenta-
se na ruptura lógica de um enunciado, em (10), “mito” situa-se ao lado de fatos míticos,
narrativas inventadas, definições que podem, em certa medida, sustentar a categorização
“romantização do mérito” sugerida para os fragmentos em análise nessa propriedade – face
polêmica – da fórmula. Também, a ideia de uma “meritocracia darwinista”, em alusão ao
princípio positivista de Charles Darwin, no qual apenas os animais mais fortes sobrevivem, é
negada, pois refuta-se a ideia anterior explícita de uma sociedade, de acordo com Chauhoub,
que usa a meritocracia como valor universal, desconsiderando as condições históricas e sócias
que envolvem o Brasil.

66
“Termo que serve para designar a teoria fundamental do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) segundo
a qual a luta pela vida (struggle for life) e a seleção natural são consideradas como os mecanismos essenciais da
evolução dos seres vivos. A ideia de seleção natural encontra-se no cerne do pensamento biológico de Darwin.
Sua significação é a seguinte: os organismos vivos formam populações denominadas espécies e apresentam
“variações” graças às quais certos indivíduos são melhor “adaptados” a seu meio ambiente e engendram uma
descendência mais numerosa; assim, a “seleção natural” designa o conjunto dos mecanismos que triam (escolhem)
os melhores indivíduos; e, graças à “luta pela vida”, as populações evoluem lentamente, vale dizer, se transformam
e se diversificam produzindo formas cada vez mais complexas (Dicionário Básico de Filosofia, 2001, versão
digital).
67
A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub. Jornal da Unicamp, 07 jun.
2017. Disponível em: <https://bit.ly/36pkCM8>. Acesso em: 12 dez. 2019.
68
Dicionário Michaelis Virtual. Disponível em: <https://bit.ly/3ihqqt7>. Acesso em: 5 mar. 2020.
90

O fragmento (29) contém uma sentença negativa que estabelece, de acordo com
Maingueneau, “laços privilegiados com a metalinguagem” (1997, p. 85). Ao mencionar os
estudos de J. Milner para a estrutura per ne... en rien (em nada, não...de forma alguma),
Maingueneau afirma que esta operação não apenas contesta uma enunciação anterior, como já
mencionado nas outras formas de negativa, como também avalia sua legitimidade, avaliando
“a adequação entre as palavras utilizadas e o estado de coisas descrito” (1997, p. 85). Quando
Chauhoud diz que “não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista”, significa
que não é legítimo enunciar a frase – “existe algo que justifique essa meritocracia darwinista”,
pois a legitimidade questionada está situada na pertinência da expressão linguística.
O trecho seguinte é parte de uma notícia da página Valor Econômico, de 04 de setembro
de 2019, cujo contexto é a cerimônia “Destaques na Educação”, para premiar alunos e diretores
de escolas públicas, de educação básica, de todas as regiões do Brasil. O discurso do ministro
da educação Abraham Weintraub é direcionado para crianças e adolescentes premiados,
situando-os em um espaço onde apenas existem os “melhores”.

30. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendeu que o país “só tem espaço
para os melhores” ao dirigir-se a crianças e adolescentes homenageados na
cerimônia Destaques na Educação, na tarde desta quarta-feira. Em um discurso de
forte apelo meritocrático, Weintraub disse aos estudantes que eles "não
representam alunos do Brasil inteiro", pois o país "não tem espaço para todos, só
para os melhores". "Parabéns. Isso se chama mérito e quem tem mérito tem que ser
premiado", afirmou.

Embora a expressão – “os melhores” – não se relacione explicitamente ao termo central


dessa pesquisa (“meritocracia”), é possível inferir que há o funcionamento do discurso
meritocrático em pleno curso: partindo-se da premissa que a meritocracia é a premiação por
meio do mérito, seja esse mérito o esforço, as inteligências, entre outros, então os “melhores”
estudantes do Ensino Fundamental II são premiados pelas suas notas no Ideb (índice de
desenvolvimento da educação básica); para os outros (que podem ser ou não esforçados, que
podem ser ou não inteligentes), não há espaço para reconhecimento disponível no país. Esse
processo, que se utiliza de uma porção para construir sentidos coletivos toma a parte “os
melhores” como um conjunto representativo dos alunos da rede pública de educação básica. O
total de alunos a serem premiados não parece representar o quadro de educação nacional tendo
em vista o pequeno número de jovens premiados dentro do enorme universo de estudantes que
frequentam a escola pública básica no Brasil.
O jornalista adjetiva a fala de Weintraub, classificando-a como “de forte apelo
meritocrático”, o que indica, de acordo com Fiala e Ebel, outro elemento potencial das
91

fórmulas: a produtividade lexicológica – o substantivo “meritocracia” produz “(apelo)


meritocrático” para adjetivar o discurso do ministro, um indício que a produtividade na
circulação da fórmula possibilita verificar não apenas o caráter cristalizado do termo
(“meritocracia”), como também o seu funcionamento como um referente social.
Ademais, a expressão “em um discurso de forte apelo meritocrático” é uma avaliação
do articulista do texto e relaciona-se ao período anterior, ou seja, está em funcionamento a
lógica formulaica da “meritocracia” (com sentidos mais ou menos cristalizados, devido ao seu
caráter polêmico), mesmo que a palavra em si não esteja presente, bem como a teoria do pré-
construído, que, de acordo com Courtine (2009), situa o pré-construído como elemento do
interdiscurso.

[...] esse espaço interdiscursivo [...] constitui a exterioridade do enunciável para o


sujeito enunciador na formação dos enunciados ‘preconstruídos’, de que sua
enunciação se apropria. [...] nesse interdiscurso, o sujeito não tem nenhum lugar que
lhe seja assinalável, que ressoa no domínio de memória somente uma voz sem nome.
(COURTINE, 2009, p. 18-19).

Os pré-construídos representam elementos da exterioridade que estão presentes no


discurso, tal qual acontece no fragmento (30). Quando o locutor (Weintraub) apropria-se desse
conceito para produzir o discurso, ele insere elementos da exterioridade, como discursos
produzidos por outros, em outros espaços e em outras condições de produção. E, nessa
apropriação entre aquilo que já foi dito (a visão neoliberal do sujeito, por exemplo) e aquilo que
se diz, estabelece-se a relação entre pré-construído e discurso atual. Um exemplo daquilo que
é externo e retorna ao discurso atual é a ideia de “fracasso”, pois se existem “os melhores”, há,
na outra ponta, uma legião de “fracassados”.
De acordo com Castellano (2015), nos Estados Unidos, as designações para winner
(vencedor) e loser (perdedor) são amplamente utilizadas em todos os campos da sociedade,
mas, no início da circulação dos termos, elas eram mobilizadas por instituições burocráticas de
crédito, por exemplo, para classificar as pessoas de acordo com a demanda, ou seja, expressões
ligadas às finanças passaram a integrar o léxico cotidiano. O verbo fail é utilizado para “falir”
e para “fracassar”, integrando um aspecto econômico – falir uma empresa, falir um fundo de
investimento – a outro relacionado à identidade pessoal – fracassar em uma prova, fracassar em
um relacionamento, entre outros. Nesse contexto, o “fracasso” é um aspecto interno ao
indivíduo e é, em grande medida, fortalecido pelos processos de management empresarial e as
lógicas de metas, lucro, concorrência, desempenho.
92

Para a autora, esse imaginário sobre o fracasso faz com que o sentimento de derrota
encontre espaço para a formação mítica do vencedor, “sujeito que constrói seu próprio caminho,
e, independentemente do contexto social que o cerca, prospera” (CASTELLANO, 2015, p.
170). No Brasil, esse funcionamento também é construído, com a importação dos mesmos
conceitos de management, e pela necessidade de progresso e modernização do país, com a
adoção de modelos de desenvolvimento capitalista próximo ao que marcou o crescimento da
economia nos Estados Unidos. De acordo com Castellano, essa influência “é fortemente
baseada no consumo e cada mais impregnada pela mentalidade neoliberal e suas correlatas
concepções de autonomia e responsabilidade individual” (2015, p. 170).
Essa sociedade, com base em perdedores e vencedores, é o espaço perfeito para a
meritocracia e seus dispositivos ganharem espaço no cotidiano não apenas pelo forte apelo
econômico nas relações sociais, como também pelo estabelecimento de campos semânticos
atrelados ao que é ser um vencedor ou um perdedor. Os defensores da meritocracia
compreendem a premiação pelo mérito um critério justo para gestões diversas no corpo social,
decidindo, como disse Weintraub, que “só há espaço para os melhores”, e, dessa forma,
assumindo como evidente a igualdade de condições para uma determinada disputa – já que
todos podem disputar uma vaga na universidade –, mas apagam o fato que as oportunidades,
desde o nascimento, não são as mesmas.
A lógica social baseada no par “vencedores vs. perdedores” permite que os semas e
simulacros destacados nesse trabalho funcionem: para quem interpreta “meritocracia” como
“justiça”, que permite aos sujeitos o reconhecimento de sua superação individual aos
“obstáculos” da vida, compreende essa superação como própria de um winner (vencedor,
sujeito meritocrático exemplar), enquanto os outros que se “vitimizam”, que se apoiam na
própria dificuldade sem “dar o seu melhor”, “sem mudar o mindset”, “sem inovar”, não
superam os “obstáculos” da vida e são losers (perdedores).

31. "Tem que haver uma dinâmica para aumentar a competição e mostrar que quem vai
melhor recebe mais, que quem melhora mais recebe. É um critério de gestão. Você
introduz a competição não para punir quem ficou para trás, mas para estimular que
todos melhorem sua performance", afirmou o ministro.

Esse tipo de funcionamento discursivo, que está presente na fala do ex-ministro da


Educação, é frequentemente legitimado pelo discurso do empreendedorismo, já que situa a
competição como um “critério de gestão” eficiente para medir a capacidade das pessoas
envolvidas e fabricar consensos há muito tempo presentes em nossa sociedade. Essa competição
é um sintoma da lógica neoliberal econômica, que pensa os sujeitos como microempresas,
93

sustentando uma memória complexa, tanto no campo discursivo político, econômico, como
também no institucional acadêmico, com as avaliações da CAPES e do CNPQ, que se utilizam
de critérios específicos, que envolvem produtividade acadêmica, para liberação de verbas,
bolsas e outros tipos de fomento à pesquisa.
Embora o fragmento (31) seja típico do discurso corporativo, com suas metas e
diretrizes monetárias, parece relevante associá-lo ao conceito de memória, com temporalidades
mais ou menos antigas, como exemplificado mais adiante. Para elucidar esse ponto,
contextualiza-se brevemente o percurso histórico da noção de memória, a partir de Courtine
(2009), quem introduziu o conceito de memória que articulação os trabalhos de Foucault e
Pêcheux. De acordo com o autor, o conceito de “memória discursiva” situa-se em oposição a
toda memorização psicológica e está em estreita relação com a “existência histórica do
enunciado” no interior de práticas discursivas que são reguladas por aparelhos ideológicos, ou
seja, os textos se inscrevem em uma determinada FD em função de uma memória discursiva
que o texto retoma e é parte integrante.
No entanto, a noção de memória discursiva, de acordo com Paveau (2007), sofreu
algumas transformações classificadas como “evoluções e enfraquecimentos”, como a
aproximação direta entre conceito/indivíduo ou conceito/texto de forma restrita, distanciando a
noção teórica de seu condicionamento histórico e ideológico. A autora destaca três grandes
alterações no conceito de “memória discursiva”, a saber, um processo de desistorização, que
desconsidera o condicionamento do tempo histórico no funcionamento da memória; um
processo de psicologização, que limita a memória à mente e, por efeito, apaga outras
dimensões, como a social, a coletiva e a histórica; e, por fim, um processo de evolução do
discurso, que promove mudanças nas condições de produção dos discursos.
É nesse contexto de transformações que Paveau, a partir da noção de memória discursiva
de Courtine, situa o conceito em uma perspectiva cognitivo-discursiva, redefinindo-o, na obra
Linguagem e Moral, como “uma tecnologia discursiva ao mesmo tempo interna (memória
humana) e externa (instrumentos linguísticos e discursivos, mas também vestígios materiais da
memória no conjunto do ambiente)” (2015, p. 234). Essa teorização da memória discursiva
elucida o fato de a memória ser constituída de forma dupla: há uma capacidade “interna” do
“agente-falante”, pois não se fala apenas a partir das competências internas e também há uma
capacidade distribuída nos diversos ambientes sociais, como os monumentos e os
computadores, por exemplo, já que há diferentes competências envolvidas no processo, sejam
elas, como indica Paveau, humanas ou não humanas.
94

Com isso em mente, associa-se o conceito de memória discursiva aos fragmentos (30)
e (31), que pertencem a uma mesma notícia (cujo contexto já foi mencionado anteriormente) e
apresentam a lógica da “competição” como um tema diretamente relacionado à meritocracia.
A expressão “critério de gestão” é uma possível paráfrase utilizada para “competição”, tendo
em vista que, de acordo com o ministro, a competição via “mérito” é introduzida – e ela seria
um critério de gestão – para premiar quem “vai melhor”, ou seja, busca-se um dispositivo
quantitativo para medir a capacidade de uma pessoa, pois, para esse tipo de “gestão”
meritocrática, colocar em disputa é uma ação utilizada “não para punir, mas para estimular que
todos melhorem sua performance”.
A utilização do termo negativo possibilita dizer que – “não para punir quem ficou pra
trás” – rebate a circulação de um saber mais ou menos comum que situa “quem fica para trás”
como aquele que é alvo de punição (a derrota é uma punição), justificando, em oposição, que
perder não é “ruim”, não é um castigo, mas a ressignificação da derrota como um impulso para
desenvolver uma performance mais apurada. Essa perspectiva não dialoga com a forma como
as competições, especialmente nas sociedades ocidentais, são vistas: nelas, quem perde não
recebe “a honra pelo mérito” e é automaticamente visto como um perdedor – isto é, apenas um
é gratificado enquanto todos os outros não são. Ficar para trás pode ser um impulso para o
sucesso ou pode ser a confirmação de uma situação que não tem perspectiva de mudança,
melhoria. Novamente, o par losers e winners está em funcionamento.
No fragmento (30), o ministro afirma que “não tem espaço para todos, só para os
melhores”, mas em (31) ele menciona que a competição vai “estimular que todos melhorem
suas performances”. Há uma contradição em funcionamento. O primeiro uso do pronome
indefinido “todos” se refere aos excluídos, pois apenas “alguns” poucos podem ocupar os
melhores espaços e nunca “todos”. O segundo uso do pronome indefinido “todos”,
aparentemente, inclui “todos os estudantes (inclusive “quem ficou para trás”) e não apenas os
melhores”. Na sintaxe do português, a conjunção adversativa “mas” funciona de forma que a
segunda sentença (após “mas”) tem mais força que a primeira.
Interpretando: “introduzir a competição não para punir quem ficou para trás” tem valor
argumentativo semântico inferior a “estimular que todos melhorem suas performances”. Além
disso, de acordo com o locutor, quando se afirma que a competição estimula que “todos” suas
performances, entram em cena saberes compartilhados por uma comunidade específica, em um
contexto histórico específico, com a evocação de uma memória antiga: em competições, há
mais perdedores do que vencedores. Essa afirmação pode, por um lado, justificar a derrota como
parte “da regra do jogo” – portanto não é uma punição – como também pode reafirmar que a
95

vitória de poucos justifica a perda de todos os outros, normalizando o abismo entre


“ganhadores” e “perdedores”, entre “ricos” e “pobres”. E quem será premiado: todos os
melhores ou todos estimulados pela competição? “Todos” os brasileiros ou “todos” os
melhores?
Por outro lado, há os defensores do funcionamento meritocrático que acreditam no
argumento de justiça como primeiro quando se trata de “meritocracia”, como nos fragmentos
(32) e (33). No texto, há relatos de professores e coordenadores sobre os benefícios da
meritocracia, como no trecho abaixo.

32. O problema não está na meritocracia em si, mas num sistema de


aprendizagem/avaliação de competências unificante, ultrapassado e, a bem da
verdade, altamente frustrante69

33. Meritocracia não é a causa das desigualdades econômicas que existem atualmente
em muitos países, o que pode e deve ser resolvido pelo sistema de taxação das
grandes fortunas70

Ainda na perspectiva das negações polêmicas, as declarações feitas refutam que a


meritocracia é um problema (32) e a causa das desigualdades (33), como também refutam uma
afirmação implícita anterior que, em (32), afirma ser a meritocracia o problema central dos
processos seletivos escolares, e em (33), afirma que a meritocracia é a causa das desigualdades
econômicas. Em (32), o professor de filosofia da Universidade Federal de Uberlândia – Dennys
Xavier – que o problema está no sistema de aprendizagem/avaliação, que frustra os jovens
estudantes, tendo em vista que assume a meritocracia como “a celebração do esforço, do
empenho focado na superação de si e do outro, o desejo de romper limites, de ser melhor”; em
(33), o também professor e membro da Academia Brasileira de Letras – José Goldemberg –
entende que o problema da desigualdade social está nas características do capitalismo do século
XXI, como a tecnologia moderna. Os dois trechos tentam “retirar” da meritocracia a carga
semântica de “problema social”, de obstáculo
O trecho (34) apresenta um experimento com desempregados capaz de mostrar como a
falta de emprego pode romper a confiança na recompensa pelo esforço. O economista Luis
Miller, da Universidade do País Basco (UPV), pesquisa como o desemprego afeta os
condicionantes morais e defende que “nós estamos dispostos a aceitar desigualdades justas”,
como por exemplo um salário maior que depende do esforço, do mérito e da produtividade, mas

69
CORDEIRO, Tiago. Celebração do esforço, meritocracia na educação ainda enfrenta resistências. Jornal
Gazeta do povo, 09 set. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/33mGky4>. Acesso em: 10 jun. 2020.
70
GOLDEMBERG, José. Meritocracia e desigualdades sociais. Portal Brasil Agro, 12 dez. 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/2EOQT3A>. Acesso em: 15 jan. 2020.
96

esse sentimento desaparece com o desemprego, pois “os desempregados parecem perder esses
‘valores meritocráticos’”.

34. “Não fale sobre meritocracia ao desempregado”71

O contexto anterior, que situa a pesquisa de Miller, ao pretender proibir que se fale sobre
meritocracia com um desempregado, refuta também uma afirmativa implícita anterior que
apresenta o argumento meritocrático ao desempregado como uma possibilidade de solução,
consolo, motivação para a mudança de cenário social. Esse jogo discursivo associa-se aos
conceitos de Foucault, de biopoder e de biopolítica, pois há a necessidade de fazer viver para a
manutenção do corpo saudável para o trabalho, o que permite ao Estado controlar os corpos e
a vida dos indivíduos, agindo como um poder disciplinador que, em instâncias limite, fabrica e
legitima processos consensuais de extrema violência. Como nota Miller, quando a pessoa está
empregada, ela é capaz de exercitar as premissas da meritocracia, aceitando a ideia paradoxal
de “desigualdades justas”, pois reconhece que uma determinada função laboral exige menos
requisitos técnicos/conceituais que outra, porém, quando o indivíduo está desempregado, não
há empatia com os valores meritocráticos, por isso a sentença – “não fale sobre meritocracia ao
desempregado” – é possível discursivamente.
O que se pode observar em (34) é refletir como, de fato, a meritocracia permite com o
seu funcionamento a substituição de uma racionalidade baseada em valores humanitários para
outra de base instrumental. É dessa forma que a complexidade humana, uma realidade de difícil
quantificação material, entra em disputa com a objetividade do desempenho, baseada na
adequação dos meios aos resultados esperados, que, ao se utilizar de instrumentos
meritocráticos – como índices de produtividade, pontuação para volume de trabalho, ranking
de desempenho, titulação para plano de carreira, entre outros, autorizam que dominados e
dominadores concordem com os termos da dominação. Esses postos – quem domina e quem é
dominado – são dificilmente intercambiáveis, mas, quando isso ocorre, rapidamente o
dominado veste-se do poder que permite a dominação do outro, em um ciclo que, por meio do
fundamento da meritocracia, que premia os “melhores”, autoriza o acesso a posições de poder,
moldáveis de acordo com os interesses das classes dominantes.

71
SALAS, Javier. Não fale sobre meritocracia ao desempregado. El País Brasil, 11 abr. 2016. Disponível em:
<https://bit.ly/30q75QF>. Acesso em: 9 mai. 2019.
97

35. Entrevistadora (Vera Magalhães): O professor Marcelo Medeiros, um dos


principais especialistas brasileiros na questão da desigualdade, professor visitante
em Princeton, ele pergunta se dentro dessa perspectiva é possível falar sobre
meritocracia em um país como o Brasil.
Sílvio Almeida: Não acho, não acho possível, não acho possível porque ela é feita
por instrumentos meritocráticos. Então, quando você tem uma sociedade
profundamente desigual, como é que você vai medir meritocracia? Se sabe que hoje,
isso é bom mencionar, eu estava conversando com alguns jovens, né? Alguns
meninos que são rapazes que vêm de favelas, que vêm das quebradas, como se
costuma dizer, que são pessoas absolutamente geniais, fantásticas. Você fica se
perguntando que país é esse que desperdiça esse tipo de energia? Estão vendo o que
nós estamos fazendo. O racismo azeitado pelas condições econômicas, sociais,
políticas e também as condições do imaginário social, que coloca sempre os negros
nessa condição, vai destruindo o futuro do Brasil. Então, pessoas absolutamente
brilhantes não conseguem justamente ter o seu reconhecimento. Então, veja, mas
como é que a gente pode falar de meritocracia num país que mata, por exemplo,
um menino de 14 anos que só queria estudar dentro de casa?72

Em (35), a noção de meritocracia está em xeque, pois os obstáculos a sua existência são
profundos e estruturais: desigualdade, local de moradia (favelas) e racismo são barreiras que
autorizam o desperdício de energias juvenis e o não reconhecimento do potencial de jovens
periféricos, impossibilitando, de acordo com Almeida, que seja possível pensar e/ou aplicar a
meritocracia no Brasil. A concepção institucional de racismo é considerada por Almeida (2018)
como um avanço para os estudos das relações raciais, pois amplia a ideia existente de racismo
como comportamento individual. Para o autor, as instituições estabelecem e regulamentam as
normas e os padrões que devem conduzir as práticas dos sujeitos, controlando o
comportamento, o modo de pensar, as concepções e preferências, bem como criar um lugar de
“conformismo” diante das desigualdades.
Essas relações de poder são intrínsecas às instituições e contribuem para a manutenção
dos interesses sociais, políticos e econômicos de determinados grupos, definindo regras e
condutas que são naturalizadas. O domínio que esses grupos exercem é produzido através de
princípios discriminatórios pautados, sem dúvida, na raça, componente que estabelece normas
culturais e sociais que são transformadas numa única perspectiva civilizatória de sociedade.
Enquanto a cor da pele preta associa-se ao sema /obstáculo/, a cor da pele branca associa-se a
/privilégio/ para que o sujeito tenha seu valor reconhecido e seja um exemplo de meritocracia.
Considerando-se a primeira propriedade da fórmula, há temas que parecem contribuir
para a cristalização de determinadas fórmulas. Com “meritocracia”, a desigualdade é um deles.
A questão racial e o local de nascimento parecem condicionados ao “guarda-chuva” da

72
PROGRAMA RODA VIVA. Entrevista com Sílvio Almeida. 2020. (1:30:57). Disponível em:
<https://bit.ly/2T6zUNH>. Acesso em: 10 ago. 2020.
98

desigualdade, isto é, ao nascer preto e em locais periféricos, as diferentes desigualdades – de


classe, de raça, de moradia, educacionais, entre outras, são, no cotidiano, obstáculos para o
acesso a oportunidades de ascensão social, necessitando, na maioria dos casos, de ações
públicas que fomentem a ocupação dos espaços predominantemente elitizados – como as
universidade públicas – pelas minorias representativas.
Entretanto, quando há um catalisador para a promoção de grupos historicamente
excluídos, os sujeitos que acessam novos espaços não são filhos do mérito, pois se utilizaram
de “muletas” para conquistar seus espaços. Novamente, como já mencionado no fragmento
(26), um dos grandes obstáculos à meritocracia capaz de promover justiça social, em um país
desigual como o Brasil, é o fato de o mérito ser visto como uma “missão individual” enquanto
se apaga o fato de que essa lógica é uma ideia socialmente construída. Imersos nessa lógica, os
sujeitos passam a acreditar que todas as suas conquistas são estritamente parte de empenho e
esforço individuais, anulando os privilégios componentes dessa caminhada.
Por fim, considera-se que a análise do vocabulário específico “meritocracia” articula-se
linguisticamente dentro do corpus e também com o contexto que envolve as situações de
produção, pois “não apenas são as estruturas sintático-enunciativas que definem o objeto de
estudo, mas ainda a análise está constantemente apoiada na interdiscursividade”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 142). Para os dados em questão, a pesquisa considera como a
formação discursiva constrói seu espaço próprio através da língua e da imposição do
interdiscurso, “que força estreitamente a interação entre o linguístico e o discursivo”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 152).
99

CAPÍTULO 4

“MERITOCRACIA” EM CIRCULAÇÃO

4.1. O contexto discursivo

A busca pelo sentido das palavras é uma constante nos estudos da linguagem e, para a
AD, interessa especialmente como a linguagem em funcionamento produz os sentidos, já que,
como indica Pêcheux (2014), eles se constituem a partir das posições ocupadas – determinadas
pelas condições históricas e ideológicas – pelo sujeito do discurso. Krieg-Planque (2018),
apoiando-se em Pêcheux, considera que “as palavras podem mudar de sentido em função do
posicionamento dos locutores que recorrem a elas” (2018, p. 105), para que as associações e os
deslizamentos de sentido possam ser observados.
Na linguística, a categoria “palavra” é de difícil definição, pois ela é considerada em
suas dimensões sintática, morfológica e semântica. Para análises discursivas como se pretende,
“cada categoria é suscetível de manipulações específicas e reage de maneiras diversas aos
constituintes ao seu redor” (2018, p. 101), por isso, a pesquisa deve observar não apenas a
posição da palavra na sentença, como também seu funcionamento discursivo, isto é, como o
sentido da palavra muda conforme o seu uso.
Além de explicitar as quatro propriedades constitutivas da fórmula, Krieg-Planque
(2012) também analisa a natureza paradoxal dos contextos discursivos da lógica formulaica,
que se apresenta como constituída e constituinte das fórmulas. De acordo com a autora, os
contextos discursivos aparecem como textos-chave, em nomes próprios de acontecimentos; em
citações de autoridades; em slogans e pequenas frases; e também em imagens.
Esses elementos têm uma relação de proximidade com o traço de referente social da
fórmula, já que ela pretende significar do mesmo modo para todos, além de ocupar um espaço
como objeto de variadas polêmicas, por ser frequentemente citada, contestada (ou não) e
reformulada em diferentes textos. No caso da unidade lexical simples “meritocracia”, a
pesquisa destaca alguns desses contextos discursivos, sem a intenção de esgotar as ocorrências:
100

a) Textos-chave:

Leis e decretos
- Decreto Estadual nº 7.291/2011, do Governo de Goiás73, com o objetivo de profissionalizar o
serviço público, com reflexo na melhoria dos serviços e atendimentos prestados à população;
- Lei Estadual nº 12.483, de 03/08/1995, do Governo do Ceará74, determina que o Plano de
Cargos e Carreiras (PCC) do Poder Judiciário cearense. Ao descrever a forma como esta
valorização será garantida, a lei determina que seja adotado o princípio do mérito para ingresso
e progressão na carreira;
- Lei Estadual nº 2.265, de 31/03/2010, do Governo do Acre75, estabelece os critérios de
promoção por mérito no âmbito da Secretaria de Estado da Fazenda;

b) Nomes próprios de acontecimento

- “Meritocracia – o segredo para reter talentos” (evento online pela Sympla, realizado em
29/09/2016)76;
- “A Meritocracia na Administração Estadual, suas conquistas e desafios” (tema da mesa-
redonda realizada pelo Segplan (Secretaria de Gestão e Planejamento) em 27/06/2013, no 2º
Encontro Geral de Gerentes77;
- WTC Business Coffee: desenvolvendo uma cultura de meritocracia nas empresas (tema da
palestra do co-fundador da Mereo, Marconi Rocha, em junho/201778;
- IBMérito – Instituto Brasileiro de Meritocracia79;

73
Governo do Estado de Goiás. Secretaria da Casa Civil, 11 abr. 2011. Disponível em: <https://bit.ly/33EUjiX>.
Acesso em: 10 mar. 2020.
74
Lei nº12.483. Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, 03 ago. 1995. Disponível em:
<https://bit.ly/2FahmZA>. Acesso em: 10 mar. 2020.
75
Lei nº 2.265. Secretaria de Estado da Fazendo do Acre, 31 mar. 2010. Disponível em: <https://bit.ly/36QbQXL>.
Acesso em: 10 mar. 2020.
76
Meritocracia – o segredo para reter talentos. Portal Sympla, 29 set. 2016. Disponível em:
<https://bit.ly/36KRUFm>. Acesso em: 10 mar. 2020.
77
Meritocracia é tema de mesa-redonda no Encontro de Gerentes. Site do Governo de Goiás, 28 jun. 2013.
Disponível em: <https://bit.ly/2SzG4FW>. Acesso em: 10 mar. 2020.
78
Gestão por meritocracia nas empresas: uma realidade. Blog Mereo, 14 jul. 2017. Disponível em:
<https://bit.ly/2SzO9dI>. Acesso em: 10 mar. 2020.
79
Instituto Brasileiro de Meritocracia (IBMérito). Disponível em: <https://bit.ly/3noibiK>. Acesso em: 10 mar.
2020.
101

c) Citação de autoridade:

- “A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades” – Sidney Chalhoub, historiador da


Unicamp80;
- “É um juiz símbolo da probidade e da competência. Escolha por genuína meritocracia” –
Ministro do STF, Luiz Fux81;
- “Não existe indicação por x, y e z; será por meritocracia” – Pedro Guimarães, presidente da
Caixa Econômica Federal82;
- “O brasileiro pode e deve sonhar. Sonhar com uma vida melhor, com melhores condições para
usufruir do fruto do seu trabalho pela meritocracia” – Jair Messias Bolsonaro83;
- “E se nada der certo. Para além de ser de péssimo gosto a festa temática do colégio Marista,
esta esconde o que há de mais perverso no Brasil: o mito da meritocracia, a crença do "quem
quer consegue", o que faz com que grupos privilegiados não percebam as opressões estruturais
e julguem que seus "direitos" foram providencialmente fixados e não fruto de uma sociedade
desigual” – Djamila Ribeiro84;

- “Só podemos falar em meritocracia se for algo em que as pessoas partem do mesmo lugar” –
Maria Sérgio Cortella85;

- "Rejeitamos o assistencialismo sem restrição fiscal e a meritocracia só dos mais ricos. A ideia
é premiar o esforço" – Arnaldo Lima, secretário da educação superior do MEC86;

d) Slogans e pequenas frases:

A categoria de slogans e pequenas frases, na qual os provérbios estão inseridos, são


representativas da cultura de um povo. Para Maingueneau (2013), as propriedades linguísticas

80
A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub. Jornal da Unicamp, 07 jun.
2017. Disponível em: <https://bit.ly/36pkCM8>. Acesso em: 12 dez. 2019.
81
Luiz Fux diz que Moro é ‘excelente nome’ para o Ministério da Justiça: ‘símbolo de competência’. Portal G1,
11 nov. 2018. Disponível em: <https://glo.bo/3llbqwc>. Acesso em: 05 nov. 2019.
82
BRONZATI, Aline; TOMAZELI, Idiana. Guimarães: promoções na Caixa serão feitas por critérios de
meritocracia. UOL Economia, 07 jan. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3db74Fp>. Acesso em: 10 jan. 2020.
83
Leia a íntegra do discurso de Bolsonaro após receber a faixa presidencial. Folha de S. Paulo, 01 jan. 2019.
Disponível em: <https://bit.ly/33DPaI1>. Acesso em: 10 jan. 2020.
84
VALENTE, Fernanda. Dia do “se nada der certo” acende debate sobre meritocracia e privilégio. Justificando,
06 jun. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/3d8kEsQ>. Acesso em: 10 jan. 2020.
85
‘Só podemos falar em meritocracia se for algo em que as pessoas partem do mesmo lugar’. CBN, 05 set. 2019.
Disponível em: <https://glo.bo/3jHrEzx>. Acesso em: 10 jan. 2020.
86
MEC libera R$ 125 milhões em recursos extras para universidades federais. Enfoque MS, 29 nov. 2019.
Disponível em: <https://bit.ly/3nuOA7l>. Acesso de 10 jan. 2020.
102

desse tipo de enunciado permitem que eles sejam facilmente memorizados. Essa característica
dá aos provérbios uma carga de “herança”, de um tipo de saber para se transmitir culturalmente
e, assim, associar-se a estereótipos e ideias, que se encaixam em diferentes situações genéricas.
Para o autor, os provérbios são “generalizações que não se ancoram numa situação de
enunciação particular e cuja fonte enunciativa é apagada. Portanto, o provérbio não pode se
referir a indivíduos ou a eventos únicos” (MAINGUENEAU, 2013, p. 170).
A partir dessas considerações, observou-se como a fórmula “meritocracia” funciona
discursivamente mesmo quando ela não aparece de forma explícita. Por exemplo, no provérbio
– “Deus ajuda quem cedo madruga”: mede-se o mérito pela ação de acordar cedo, de
“madrugar”, e essa ação terá como recompensa a ajuda de Deus. Se quem “madruga” é digno
de mérito, quem não madruga deixa de ser reconhecido como um sujeito empenhado e não
recebe ajuda divina. Ter mérito é acordar cedo e, por isso, ser reconhecido por Deus, que
bonifica o indivíduo que madruga; para os outros, Deus não os reconhece como sujeitos do
mérito, então não os ajuda. Acordar cedo é interpretado como empenho/esforço: “Deus ajuda
aqueles que se esforçam bastante”, ou seja, quem se esforça vai ser bem sucedido
(meritocracia).
Outro provérbio – “a sorte de quem trabalha é diretamente proporcional ao azar do
preguiçoso” – associa “sorte e trabalho” a “azar e preguiça”. Por generalização, como é típico
nos provérbios, quem trabalha tem sorte e quem é preguiçoso tem azar. Ou seja, a “sorte” é uma
bonificação, é um tipo de reconhecimento pelo mérito do trabalho, enquanto o “azar” é uma
punição para a preguiça. Assim como no primeiro provérbio, há uma relação entre
reconhecimento e punição: quem acorda cedo e trabalha é bonificado pela ajuda de Deus e pela
sorte; quem não acorda cedo e é preguiçoso não recebe ajuda divina e é azarado. Ter mérito é
uma recompensa, assim como não ter é uma punição.
Dessa forma, a meritocracia tem uma relação mais ou menos direta com a fé. De um
lado, ter fé em uma figura divina é acreditar que os homens são recompensados e castigados de
acordo com o mérito de cada um – acordar cedo ou não, trabalhar ou não – e não de forma
arbitrária. Inclusive, a própria presença de Deus na vida de um sujeito é uma conquista de
mérito, pois o indivíduo mereceu a ajuda de Deus. Por outro, pode-se levar em conta que a fé
em uma figura divina significa aceitar a grandiosidade de Deus, por exemplo, não esperando
que Ele (ou outra entidade divina) dispense recompensas e castigos com base no merecimento
de cada um. A combinação entre esforço humano e sanção divina impulsiona a meritocracia.
Em adição, esse tipo de raciocínio meritocrático dialoga com outro provérbio – “cada
um tem a sorte que merece”. Para se ter sorte, é preciso que essa sorte seja reconhecida por
103

algo ou alguém de outro plano, já que há um caráter imprevisível sobre ter ou não sorte, ter ou
não azar. Se cada um tem a sorte que merece, então, por suposição, cada um tem o azar que
merece. Essas duas posições situam o sujeito como senhor de sua vida, responsável por tudo
que acontece ou deixa de acontecer em seu percurso, o que pode criar condutas, como a
arrogante – se sou um sujeito de sorte, se tenho todos esses bens, se sou tão prestigiado é porque
realmente mereço todos esses benefícios, ou a punitiva – se sou um sujeito azarado, se não
tenho todos os bens que almejo, se sou invisível para a sociedade é porque eu mereço todo esse
mal.
Outra expressão contemporânea, típica de livros de autoajuda – “o universo conspira
a seu favor” – cristaliza no senso comum um efeito de sentido “místico” sobre o esforço e a
recompensa pelo mérito. Isso permite, de certa forma, que alguns provérbios sejam
frequentemente mencionados para justificar, em virtude de seu caráter genérico, o sucesso de
alguns e também o fracasso de outros. Enquanto os três primeiros exemplos (provérbios)
distinguem as pessoas em “aqueles que acordam cedo, aqueles que trabalham e aqueles que têm
sorte” de outras que “não acordam cedo, não trabalham e são azarados”, no slogan de autoajuda
isso não acontece, pois a sorte é o elemento associado a qualquer pessoa que acreditar na
movimentação do universo para reconhecer o mérito de uma determinada pessoa.
Independentemente do que ela faz para isso, existe uma movimentação celestial que existe para
me ajudar.
Oliveira (2018), estuda a proposta de Krieg-Planque (2010) sobre as quatro
propriedades da fórmula, sugerindo uma quinta propriedade, que torna a fórmula um “lugar de
memória”, no sentido discursivo do termo, ou seja, “uma maneira de explicitar seu caráter
histórico e de demonstrar como ela participa da história de uma comunidade” (2018, p. 111).
Para o funcionamento da fórmula “meritocracia”, os provérbios e os slogans contribuem para a
identificação dessa quinta propriedade da fórmula “meritocracia”, pois eles permitem a
identificação de diferentes temporalidades.
Como afirma Courtine (2009), é papel dos analistas do discurso explicitar, em relação
aos discursos em análise, em qual tipo de periodização histórica eles estão relacionados. Isso
quer dizer que a análise do discurso meritocrático, por exemplo, associa-se a diferentes
durações, como nos possíveis exemplos:

• Memória muito antiga: um antigo enunciado bíblico (Mateus 25:29) chamado de


Parábola dos Talentos – “Pois a quem tem, mais lhe será dado, e possuirá em
104

abundância. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado” e uma máxima de
Aristóteles – “as melhores flautas para os melhores flautistas”;
• Memória de “médio prazo”: os provérbios;
• Memória mais recente: o discurso corporativo/empresarial e os discursos/slogans
de autoajuda.

e) Imagens:

Figura 8. Printscreen de imagem ilustrativa de um texto sobre a diferença de meritocracia e


meritoriedade87

Figura 9. Printscreen de imagem ilustrativa de um texto sobre meritocracia em empresas88

87
Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. Paróquia da Saúde. Disponível em: <https://bit.ly/3m7Otx8>. Acesso
em: 22 mai. 2020.
88
Por que a meritocracia nas empresas funciona: 4 ferramentas da gestão por meritocracia. Portal Placcar.
Disponível em: <https://bit.ly/3kpY4yG>. Acesso em: 22 mai. 2020.
106

inscrição histórica, procurando pensar as condições de uma ‘enunciabilidade’ passível de ser


historicamente circunscrita” (2008a, p. 17).

4.2. A noção de campo

No capítulo 1, o conceito de interdiscurso foi apresentado. Para explicar o conceito,


Maingueneau (2008a) utiliza-se da tríade universo discursivo, campo discursivo e espaço
discursivo para defender o primado do interdiscurso. Nessa discussão, o autor empresta, para
os estudos discursivos, a noção de “campo”, de Bourdieu (1989), para verificar em que medida
eles incluem formações discursivas em concorrência e podem ser um objeto de interesse da
análise do discurso.
De acordo com Lahire (2017), “campo” é “um microcosmo no macrocosmo constituído
pelo espaço social global” (2017, p. 67), com regras, leis, desafios específicos e internos ao
campo. Esses espaços, que podem ser também chamados de sistemas, têm autonomia relativa
e são ocupados por diferentes agentes cujas práticas e estratégias precisam ser analisadas em
relação às respectivas posições ocupadas nos diferentes campos. A posição dos agentes no
campo é, de certo modo, um posto de poder, já que ele pode mobilizar estratégias de
conservação – normalmente utilizadas pelos “dominadores” – e de subversão – normalmente
utilizadas pelos “dominados”, tendo em vista que esses lugares são obtidos por meio da disputa
de capitais, o que, para Bourdieu, significa capital cultural e social: os agentes possuem
diferentes níveis de capital e essas diferenças são responsáveis pelas hierarquias nos espaços.
Além disso, o conceito de campo é determinado pelas lutas concorrenciais, ou seja, o
confronto, a tomada de posição, poder, etc., pois, segundo Bourdieu (2004), todo campo “é um
campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças”
(2004, p. 22-23). Essas constantes disputas pelo poder são determinadas pela necessidade de
controle e de legitimação dos bens produzidos, fato que permite afirmar que o poder transforma
a visão e a ação dos agentes sociais sobre o mundo.
Para Maingueneau (2008a), o campo discursivo é o lugar que reúne um conjunto de
formações discursivas que estão em concorrência – “confronto aberto, aliança ou neutralidade
aparente” – entre discursos que possuem a mesma função social. Para o autor, é no interior dos
campos que se constitui o discurso, e essa constituição é heterogênea e inscreve-se por meio de
operações regulares sobre formações discursivas já existentes, o que opões discursos
dominantes e dominados, situados necessariamente no mesmo plano.
107

Nesse contexto, considera-se que “meritocracia” circula em diferentes campos, como a


publicidade e o humor. Com efeito, essa seleção pode revelar, no caso da publicidade, uma
ideologia de mercado, uma visão de público alvo, bem como, no caso do humor, como descreve
Possenti (2018), revelar sintomas mal resolvidos e impregnados na sociedade, que mostram
características internas ao campo e também externas a ele em virtude do modo como funcionam
na sociedade. A teoria dos “campos” é importante para situar os espaços escolhidos
(publicidade e humor) como lugares potenciais para analisar o percurso da fórmula
“meritocracia”.

4.2.1. “Meritocracia” no campo publicitário

A publicidade participa ativamente na construção e na circulação dos contextos da


fórmula em estudo porque é capaz de sintetizar, cristalizar e refletir as práticas sociais de uma
sociedade. Hoje, o papel da publicidade é importante por permitir, como afirma Maingueneau
(2008b, p. 72), um acesso mais amplo, sobretudo de formas audiovisuais, aos estereótipos de
comportamento, antes acessíveis às elites de maneira privilegiada, por meio da leitura dos textos
literários.
No dia 04 de maio de 2020, o Ministério da Educação lançou a campanha publicitária
para as inscrições do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em virtude do cenário
pandêmico, as aulas foram suspensas em março de 2020 e o processo de aprendizagem tornou-
se remoto, fatos que salientaram os problemas da educação básica nacional, em especial da rede
pública, como a falta de gestão ordenada entre escola, professores e alunos, as dificuldades de
acesso aos conteúdos digitais por parte dos discentes, a falta de capacitação docente para a
condução de aulas a distância, entre outros.
Essa problemática é antiga e antecede o contexto da Covid-19, mas o convívio diário
presencial, de certa forma, amenizava os abismos educacionais entre os documentos oficiais e
a prática de ensino em si. Com a mudança na dinâmica educacional, enquanto as falhas do
sistema ficaram mais evidentes, essa compreensão permitiu a mobilização de alunos das séries
finais do Ensino Médio para exigir o adiamento da prova do Enem, tendo em vista as precárias
condições de ensino da rede pública, que ampliam as já enormes desvantagens entre os
candidatos. O movimento #adiaenem ganhou as redes sociais e atingiu alunos das redes pública
e privada, todos aparentemente preocupados com as condições de participação dos estudantes
em uma das maiores provas de seleção do Brasil.
108

A partir desse engajamento social, comandado por estudantes e professores, por


sindicatos e por cursinhos populares, o ex-Ministro da Educação Abraham Weintraub, alinhado
com o chefe do executivo federal que, até a data da campanha, chamava a pandemia de
“gripezinha”, reafirmou a necessidade de ocorrência da prova do Enem na data prevista. A
propaganda foi muito questionada91, gerou movimentação social, o que levou, semanas depois,
o MEC a anunciar o cancelamento da data anteriormente programada e a abertura de consulta
pública para a escolha da nova data92 para o exame. A campanha foi amplamente divulgada em
canais abertos e nas redes sociais do Ministério da Educação (Facebook, Instagram e Twitter),
bem como no canal institucional no Youtube.
Para a análise dessa campanha, mobilizam-se dois conceitos importantes sob a
perspectiva da AD: as noções de ethos discursivo e a de cena da enunciação. De acordo com
Maingueneau (2015), a retórica aristotélica tinha por objetivo que o locutor oferecesse uma
imagem de si capaz de ganhar a confiança da plateia, causando uma boa impressão e, por efeito,
persuadia o público, fato que situa o ethos como um elemento ligado à enunciação, sem a
necessidade de ser efetivamente enunciado. Essa noção dialoga com outra moderna de Ducrot,
que também situa o ethos em segundo plano, ou seja, ele deve ser percebido, mas não é objeto
do discurso, pois para Ducrot, o ethos se mostra no ato da enunciação, já que ele não é dito no
enunciado.
Esse conceito, como proposto por Maingueneau (2015), distancia-se daquele clássico
aristotélico, atrelado diretamente à eloquência, à oralidade em situação de fala pública, e
aproxima-se de outras características pertinentes à análise do discurso, como o fato de o ethos:
a) ser uma noção discursiva, que se constrói mediante o discurso e não externo a ele; b) estar
vinculado a “um processo interativo de influência de outros” (2015, p. 17); e c) ser uma noção
híbrida (sócio discursiva).
Para além da persuasão por meio de argumentos, “a noção de ethos permite refletir sobre
a adesão dos sujeitos ao universo configurado pelo locutor” (MAINGUENEAU, 2020, p. 14),
pois é possível mobilizar um ethos de forma conveniente para conquistar um público que ainda
não comprou uma determinada causa. Isto é, para que a causa – inscrição para o vestibular
ENEM 2020 – um ethos específico foi construído e organizado discursivamente por meio de

91
Estudantes criticam propaganda do MEC sobre o Enem 2020. Brasil Escola, 04 mai. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/30LogMK>. Acesso em: 10 mai. 2020.
92
Enquete sobre nova data do Enem vai até 30 de junho. Site do Governo Federal, 19 jun. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/36Nusr8>. Acesso em: 15 jul. 2020.
109

uma cena da enunciação específica. Assim, destaca-se que o conceito de ethos não é o dito
explícito, mas a imagem e o tom que se formam com base na cena enunciativa.
Esse contexto situa a noção de ethos, concorde Maingueneau (2015), no quadro da AD
por tomar esse conceito como um elemento reflexivo do processo abrangente de adesão (ou
não) dos sujeitos a um determinado discurso, considerando-o como “uma ‘voz’ indissociável
de um corpo enunciante historicamente especificado” (2015, p. 17), pois cada momento
histórico se caracteriza por um funcionamento específico de ethos e, dessa forma, permite a
ligação privilegiada entre o discurso publicitário e o conceito. Por isso, é possível afirmar que
a campanha Enem 2020 apresenta uma noção “encarnada” de ethos, chamada de “fiador”, que
integra a dimensão verbal a outras determinações físicas e psíquicas ligadas a representações
coletivas estereotípicas. O fiador está sempre inserido em um “mundo ético”, que é ativado por
um certo número de situações estereotípicas associadas aos comportamentos, relação que
permite ao intérprete (leitor ou audiência) “incorporar” o ethos em vigor e toda sua
dinamicidade em associação a uma cena genérica ou a uma cenografia.
Essa relação entre ethos e cena da enunciação possibilita que a noção de “situação de
comunicação” não seja um limite para o analista. Muitas vezes, essa noção é insuficiente para
as análises, pois ela se reserva a descrever apenas o ponto de vista sociológico, o que indica,
para Maingueneau (2010), um valor apenas operacional. O autor, então, propõe o conceito de
“cena da enunciação” porque “apreender uma situação de discurso como cena da enunciação é
considerá-la [...] através do quadro da situação que a fala pretende definir, o quadro que ela
mostra (no sentido pragmático) no movimento mesmo de seu desdobramento”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 205).
A cena da enunciação é dividida em três dimensões concomitante: a cena englobante,
que corresponde ao tipo do discurso; a cena genérica, que diz respeito ao gênero do discurso; e
a cenografia, definida como a enunciação em si e construída no fio do discurso que, ao se
desenvolver, “esforça-se para construir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala”
(MAINGUENEAU, 2013, p. 98). A cenografia é o aspecto em destaque na análise da campanha
do Enem, já que ela permite a organização do ethos, sustentando a situação que o enunciador
pretende desenvolver por meio de sua enunciação e fazendo dela um mecanismo que engendra
o discurso e é engendrado por ele.
A primeira peça da campanha apresenta um jovem branco, em um quarto/escritório
muito confortável, que diz:
111

momento de vida (pré-vestibular). O espectador/leitor não se depara diretamente com as cenas


englobante e genérica, mas sim com a cenografia.
O fiador é um jovem branco, eloquente, com traços de um sujeito seguro de si e que
teme pelo futuro dos jovens de sua geração e, portanto, considera a coletividade, valendo-se de
sua determinação para convencer os outros a não abandonar seus projetos – no caso a prova do
Enem – por causa da pandemia da Covid-19. É desse tom firme e assertivo que deriva sua
autoridade de fiador, atestando a legitimidade daquilo que enuncia, denunciando um ethos
determinado, que manifesta o “mundo ético” do fiador, que é ativado por meio de determinados
estereótipos e comportamentos, como o estereótipo de “aluno/candidato ideal” – aquele que
está seguro sobre a realização da prova independentemente do contexto pandêmico e da
situação da educação brasileira com o ensino a distância94 e é contrário ao discurso que
considera o cenário atual um impeditivo para a realização do exame.
Essa imagem veiculada pela campanha pretende gerar identificação por parte da
audiência, o que, em grande medida, qualifica o sucesso ou fracasso de uma determinada ação
publicitária, já que, segundo Maingueneau, o processo de incorporação “vai além de uma
simples identificação com um enunciador fiador” (2020, p. 15): ele implica “uma constelação
de representações agregadora de certo número de situações estereotípicas associadas a
comportamentos” (2020, p. 15). A campanha estabelece uma ligação com estereótipos
privilegiados, como o mundo ético do jovem que está seguro de si, que se reinventar e estudar
são as formas legítimas de conquistar a vaga na universidade, acreditando que o futuro está em
suas mãos e, por isso, sucesso ou fracasso também são responsabilidades individuais, de cada
um dos inscritos na prova.
Ao afirmar que “a vida não pode parar”, a campanha refuta outro enunciado implícito –
“a vida está parada” porque, dentro de um cenário de isolamento social em virtude da pandemia
da Covid-19, as políticas de isolamento foram usadas, especialmente nos meses de abril e maio,
para coibir o avanço da doença. Enquanto a Covid-19 é um obstáculo que deve ser vencido com
coragem, com esforço de todos os grupos de estudantes que pretendem prestar o ENEM/2020,
a campanha deixa de mencionar que esse enfrentamento é facilitado por uma série de privilégios
acessíveis a poucos, ou seja, esse enfrentamento não pode ser uma questão de mérito, pois o
esforço precisa dos bens materiais, que atuam como privilégios, para vencer o obstáculo
pandêmico.

94
TENENTE, Luiza. Sem internet, merenda e lugar para estudar: veja obstáculos do ensino à distância na rede
pública durante a pandemia de Covid-19. Portal G1, 05 mai. 2020. Disponível em: <https://glo.bo/3d7h2Y1>.
Acesso em: 14 mai. 2020.
112

A palavra “vida”, em “a vida não pode parar”, representa muitas esferas sociais, como
o comércio, as escolas, as academias, as consultas médicas presenciais, os bares, as repartições
públicas, os bancos, entre outros, o que também inclui uma prova nacional como o Enem.
“Parar” significa, para a campanha, mudar a data da prova e, portanto, deixar de lutar,
acomodar-se, não superar as diferentes dificuldades educacionais vigentes. Contudo, “parar”
não é uma exigência popular para cancelar o Enem 2020 definitivamente, pelo contrário, a ideia
é postergar a data na tentativa de criar meios para que a realização da prova seja possível para
todos os candidatos (ou a maioria deles) que desejam o acesso ao Ensino Superior.
O fato de a campanha ter sido questionada por grande parte da sociedade é relevante: o
mundo, em maio de 2020, enfrentava (e ainda enfrenta) diversos problemas em virtude da
pandemia. A “perda de uma geração”, como mencionada pela campanha, pode acontecer mais
facilmente pelas mortes relacionadas à doença e menos pela transferência da data do Enem para
os primeiros meses de 2021, por exemplo. De um lado, um perfil excluído da campanha, de um
aluno/candidato ao vestibular que está com medo, pois enfrenta dificuldades como não ter
espaço adequado para estudar, conexão de internet e utensílios tecnológicos como meios para
essa prática; de outro, um grupo corajoso e confiante, contemplado pela campanha, de
estudantes privilegiados e determinados fazer a prova e lutar contra as ameaças de
cancelamento/adiamento dela.
Um dos enunciados que fazem parte da campanha afirma que as “dificuldades” podem
ser “reinventadas e superadas” com a luta individual, que se mostra superior às
problemáticas/desafios do coletivo, reforçando a separação entre os grupos que
majoritariamente acessam o Ensino Superior e outros que ficam à margem desse direito. Para
confirmar essa hipótese, uma outra foto circulou pelas redes sociais logo após a publicação da
campanha, como uma crítica à construção equivocada do estereótipo típico do aluno que presta
Enem e para quem a campanha se dirige diretamente: os utensílios eletrônicos e os móveis são
identificados pela marca e pelo valor, que, de certa forma, identifica o “mundo ético” do fiador
que luta, reinventa-se e supera-se como um sujeito privilegiado (pela cor, pela classe, pelos
benefícios que esses itens geram).
114

37. E por isso eu quero fazer o Enem este ano. Para entrar em uma universidade.
Estude, de qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, internet, com a ajuda
a distância dos professores;

Nesse quadro, há a manutenção da mesma cenografia: o diálogo entre jovens que


partilham um momento comum de vida (vestibular), o que esconde, de certa forma, a
desigualdade de condições entre os estudantes, e chama atenção para a construção de uma
imagem de aluno ideal brasileiro que existe apenas para uma minoria. A jovem está em um
quarto/escritório confortável, com dispositivo eletrônico de qualidade (notebook), mesa para
estudo, livros, cadernos, canetas, etc, elementos que são básicos na vida de qualquer estudante,
mas que no Brasil transformam-se em privilégios para poucos.
Em termos linguísticos, a forma verbal da sentença – “estude, de qualquer lugar, de
diferentes formas, pelos livros, internet, com a ajuda a distância dos professores” – instiga o
ouvinte a não desistir de realizar a prova na data marcada. Além disso, a função apelativa da
linguagem de propagandas, com foco o interlocutor, contribui para esse apelo. Nesse caso,
também retoma a lógica da primeira cena: “estude”, pois, a vida não pode parar; “estude”, para
que uma geração inteira de profissionais não seja comprometida; “estude”, pois é preciso se
reinventar. O ethos determinado segue seu curso, com tom destemido, empreendedor, que
supera as próprias dificuldades – independentemente do tipo ou da característica dessas desses
obstáculos – para atingir seus objetivos.
A ideologia materializada na propaganda, especialmente pelo ethos determinado,
pretende criar um engajamento ao discurso da meritocracia, que assume a conduta individual
em detrimento do coletivo, escondendo, inclusive, o fato que não há diferenças nas dificuldades
enfrentadas pelo grupo heterogêneo de candidatos que presta uma prova continental como o
Enem96. Isso mostra qual é o perfil de “aluno/candidato ideal” relevante para o governo federal,
que ignora a predominante parcela social que não se enquadra nesse perfil.
Outro aspecto dessa análise é a cena validada, que, para Maingueneau (2008b),
apresenta-se como uma fala ou uma cena de fala do cotidiano já instalada no imaginário social,
“local” onde a cenografia se apoia. No caso dos quadros anteriormente mencionados, apresenta-
se um estudante médio brasileiro, que por hipótese representa o imaginário governamental dos
candidatos da prova Enem: os jovens gravam de forma aparentemente espontânea as mensagens
em seus confortáveis quartos/escritórios, com recursos tecnológico e/ou didáticos (como livros,
cadernos, canetas, etc.). Isso mostra que o investimento da campanha está em validar essa

96
THOMPSON, Miguel. Pandemia amplia abismo entre escolas públicas e privadas no brasil. Folha de S. Paulo,
30 mai. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/33RZaO6>. Acesso em: 10 set. 2020.
116

Além disso, essa cenografia é a única que não apresenta, de forma explícita, objetos
eletrônicos caros (e por isso não há uma imagem que indique os valores dos itens, como feito
para as outras figuras). O que se vê é um ambiente também confortável, com mesa para estudos,
livros, mas os equipamentos eletrônicos estão ausentes. Para esse quadro, o jovem negro dá
simples informações, como a data da inscrição, o site para o acesso, assim como as opções de
prova (papel ou digital).

Figura 16. Printscreen do vídeo do Ministério da Educação99

39. As provas serão no final do ano. Até lá, estude! Seu futuro já está aí!

Na última cena da campanha para as inscrições Enem/2020, o ethos determinado e


confiante retorna: há uma jovem branca, novamente em ambiente confortável, convidando ao
engajamento todos os vestibulandos, para que estudem (em qualquer lugar, de qualquer forma,
reinventando-se), pois o futuro já está aí, ou seja, o candidato ao Enem tem o futuro em suas
mãos, um futuro promissor, na universidade pública, por isso basta apenas estudar para
conquistar seu lugar. Na última imagem desse quadro aparecem os aparelhos eletrônicos e,
novamente, há a indicação do valor e da marca dos itens selecionados.
O ethos determinado e confiante organiza-se na cenografia das peças de publicidade.
Assim, para defender essa afirmação e justificar sua presença, leva-se em conta as três
dimensões do ethos – categorial, experiencial e ideológica – são apresentadas. A primeira diz
respeito aos papéis discursivos – há um narrador – e também ao estatuto extradiscursivo – há
um aluno/candidato ao Enem 2020; a segunda apresenta-se a partir da caracterização

99
Foto de um post da página do Facebook @PatriaDaDepressao. Disponível em: <https://bit.ly/35oFxwI>. Acesso
em: 18 mai. 2020.
117

sociopsicológica estereotípicas – a crença na prova do Enem, a criatividade dos candidatos; e a


terceira remete ao posicionamento que, na análise, é político, apresentando-se como
determinado e privilegiado, o que pode se associar ao aspecto político liberal, porque o tom do
discurso apoia uma posição que acredita em um sujeito plenamente livre e, portanto, o centro
de seu sucesso. Essas três dimensões interagem de forma intensa e ganham força ao
materializarem uma maneira de habitar o mundo, pois, como defende Maingueneau (2015), “as
‘ideias’ suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de
ser” (2015, p. 29).
A campanha, por fim, por meio das escolhas lexicais apontadas, define o ethos
determinado característico, construído pela lógica do sujeito meritocrático. Todo esse esforço
publicitário, no entanto, não evitou o adiamento da prova do Enem: em julho de 2020, após a
abertura de consulta aos candidatos para a escolha da melhor data para a realização da prova
(dezembro, janeiro ou maio de 2021), o Inep, em diálogo com as universidades federais, decidiu
que a aplicação do Enem ocorrerá nos dias 17 e 24 de janeiro/2021 (prova impressa); 31 de
janeiro e 07 de fevereiro/2021 (prova digital).

4.2.2 “Meritocracia” no campo humorístico

“O humor não é resignado, mas rebelde”. Essa afirmação de Freud permite sugerir que
o humor pode ser um meio para que a mente humana desvie do sofrimento ou da ofensa e/ou
revele o caráter sórdido do piadista. De qualquer modo, humor depende da linguagem para
promover sentidos e, como é um campo, isso pressupõe confronto, disputa de sentidos e
posições, pois o interior dos campos é formado por agentes (pessoas e/ou instituições)
condicionados às regras do “campo” determinado, autorizando ou censurando sentidos. A
posição ocupada por esses agentes indica tomadas de posição, estas sempre em disputa por
controle e legitimação.
Entende-se que o humor é próprio do ser humano, “é um fenômeno de descarga da
excitação mental e uma prova que o emprego psíquico dessa excitação tropeça repentinamente
contra um obstáculo” (FREUD, 1977, p. 170). No campo humorístico, normalmente e
equivocadamente visto como menor frente a outros de maior “capital simbólico”, o
funcionamento linguístico não é gratuito ou sem importância, já que a linguística, por exemplo,
fortalece suas bases quando recorre aos mecanismos que promovem as análises humorísticas.
Assim, compreender o humor é se tornar um leitor mais proficiente (e mais atento), já que para
118

se entender o texto humorístico é preciso conhecer as questões culturais e ideológicas


complexas da sociedade, sem as quais esses textos humorísticos não teriam razão de ser.
Para Lewis (2014), há apresenta três grandes teses sobre o humor: a maximalista (o
humor é revolucionário), a minimalista (o humor é uma forma de aliviar alguma
pressão/demanda social) e a negadora (o humor pode gerar uma falsa sensação de resistência/
de luta contra o sistema). No cenário brasileiro, a partir das análises dos textos humorísticos
nesse capítulo, observa-se que as duas primeiras teses de Lewis parecem atuar integradamente.
Sobre os mecanismos semânticos do humor, Raskin (1985) considera que o humor é a
súbita percepção da incongruência entre conceito e objeto real, uma espécie de jogo de relações
paradoxais e dissimilaridades. Para ele, um texto de humor pode ser elaborado se for compatível
a dois princípios gerais – o primeiro, que o texto deve ser compatível a dois scripts diferentes;
o segundo, que o texto deve apresentar uma relação de oposição entre os dois scripts, como
possível/impossível, esperado/inesperado, etc. Segundo o autor, o termo script refere-se a um
conjunto de informações sobre algo, um tipo de roteiro de como as coisas são organizadas,
normalmente ativados por itens lexicais.

Figura 17. Printscreen de imagem da internet100

Na montagem publicada da internet – “Passa no débito ou no crédito? No mérito,


porque eu mereço” – há uma figura feminina, com bobes na cabeça, que está em uma feira
popular, tendo em vista as barracas de rua e as sacolas de compras. Chamada de Dona Hermínia,
ela é a personagem mais famosa do ator Paulo Gustavo, que se popularizou nos filmes “Minha

100
Post de divulgação do filme “Minha mãe é uma peça, 3”, da página do Facebook @Paulo.Gustavo.oficial, em
10 jul. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/2HoPr97>. Acesso em: 21 jul. 2020.
119

mãe é uma peça” 1, 2 e 3. O humor dessa montagem pode ser observado pela teoria de Raskin:
há dois scripts diferentes em oposição e, em determinado momento, há uma troca de scripts,
gerando o riso.
Esse “riso” pode ser, inicialmente, compreendido como incoerente, pois a mudança de
scripts pode parecer uma violação de coerência, mas, na sequência, restaura-se essa violação
por meio de um insight do leitor para que seja possível compreender o efeito humorístico em
questão. Em termos gerais, como defende Possenti (2014), pode-se dizer que essa “incoerência”
é uma das condições dos desfechos surpreendentes dos textos humorísticos, qualificando-os
como um gênero específico de textos.
O script inicial da montagem pertence ao tema econômico, mais precisamente das
operações de compra e venda via máquinas de cartão, ou seja, a pergunta diz respeito ao modo
de – se no débito ou no crédito. Até esse ponto, nenhuma novidade, pois esse tipo de ação faz
parte do cotidiano. Há, então, uma mudança de script, isto é, de formas de pagamento para a
questão do merecimento. A palavra “mérito” é mobilizada como uma moeda de pagamento que
pode ser interpretada de diferentes formas, como: a) o mérito é uma moeda de troca, pois, em
sociedade desiguais como a brasileira, quanto maior o poder aquisitivo, maior será também as
chances de conquistas o mérito das conquistas individuais; b) basta acreditar no mérito, na
crença do mérito, para que ele seja utilizado como uma ferramenta que permite ou não a
“compra” de produtos.
As duas possibilidades de interpretação podem gerar o humor já que o uso do “mérito”
como moeda de pagamento não é usualmente autorizado, especialmente pelos defensores da
meritocracia. Isso acontece porque não é interessante assumir o mérito como moeda de troca,
pois isso pode associar poder aquisitivo a chances de “sucesso” na vida, enfraquecendo a lógica
do sujeito empreendedor, que basta desejar e empenhar-se para, enfim, realizar e conquistar
seus objetivos. No entanto, o humor cumpre com uma de suas funções já mencionadas: permitir
que temas polêmicos sejam discutidos mesmo que de forma despretensiosa.
Para Maingueneau (2008a), o discurso é uma prática que implica suportes semióticos
distintos. Desse modo, quanto à possibilidade de analisar textos não verbais (charges e tirinhas),
leva-se em conta que os textos verbais e não verbais do campo humorístico estão submetidos
ao mesmo conjunto de restrições semânticas globais, conforme as reflexões do autor sobre o
funcionamento do discurso. As charges, nesse contexto, têm como objetivo criticar e/ou
satirizar por meio de um texto não-verbal, que pode ou não vir acompanhado de um texto verbal,
ironizando e exagerando algumas características caricaturais.
120

Embora a charge seja comumente vinculada a temas atuais, para Ferraz (2012), “alguns
temas podem ser considerados atemporais, devido à recorrência com a qual são veiculados em
nossa sociedade” (2012, p. 111). Para os textos mobilizados a seguir, o critério “atemporal” foi
levado em consideração porque as discussões sobre meritocracia estão em constante
funcionamento. Elas podem, vez ou outras, serem destacadas em virtude de um acontecimento
específico, mas, de forma geral, circulam por diferentes campos e em diferentes temas.
Assim como o jornalismo, o humor não é isento, tampouco neutro ou inocente. Pelo
contrário, as atitudes sociais e discursivas mobilizadas pelo humor implicam necessariamente
uma tomada de posicionamento, capaz de refletir, no geral, as relações de poder presentes na
sociedade. Por hipótese, quando um autor se propõe a produzir uma charge, pode-se supor que
ao mesmo tempo em que essa peça humorística promove uma “revolução” no pensamento de
quem a lê, o artista também utiliza o texto para tratar de assuntos socialmente polêmicos, com
constantes disputas de sentido, como um tipo de “válvula de escape” no interior de uma
sociedade como a brasileira.
Como mencionado nos capítulos 1 e 3, a semântica global também rege o campo
humorístico no corpus selecionado. Essa teoria é particularmente relevante para a análise por
considerar, no domínio do discurso, que todos os planos do discurso são relevantes, como a
intertextualidade, o vocabulário, o tema, incluindo nesse grupo outras semioses, como o
desenho, as cores, etc.

A semântica global não consiste em privilegiar um plano e excluir outro; a noção de


global envolve o encontro entre todos os planos como intrínsecos à construção da cena
enunciativa; categoria essa de que trataremos na terceira seção (MAINGUENEAU,
2008a, p. 96)

Com base em Maingueneau (2008a), a semântica global não visa distinguir os aspectos
fundamentais de outros superficiais que constituem os domínios de uma FD, mas sim apreender
a significância discursiva de modo abrangente, funcionando como um sistema de restrições,
regulando todos os níveis do discurso e também os espaços institucionais por onde esse discurso
circula. Nas charges sobre “meritocracria” propõe-se considerar as imagens como
representantes simbólicas dos semas /obstáculo/ e /privilégio/, que aparecem de diferentes
maneiras, nos diferentes textos. De um corpus mais extenso, sete charges foram selecionadas
como amostras significativas para ilustrar a circulação desse discurso.
121

Figura 18. Charge do cartunista Vini (2017)101

Na figura acima, há uma cenografia escolar: de um lado, um livro aberto, colorido, onde
uma criança branca está deitada em uma das páginas, lendo uma história; do outro, a capa do
livro é desenhada como se fosse um muro de tijolos, que representa um limite para a criança
negra que, de mochila nas costas, não tem outra visão a não ser a barreira e alguns rabiscos que
fazem alusão às marcas em paredes de presídios. Enquanto de um lado, o livro está aberto, do
outro, a capa é um bloqueio que impede o acesso da outra criança. Na charge, há uma disputa
entre os efeitos que o acesso ou não a uma educação de qualidade (representada pelo livro)
pode gerar – se a educação será um livro aberto, cheio de possibilidades e sonhos futuros, ou
se a educação de qualidade será inacessível, pois há um obstáculo intransponível que determina,
em grande medida, a posição do sujeito na sociedade.
Nessa charge, o sema /obstáculo/ é representado pelo muro, que impede que negros
acessem um outro lugar, como se esses elementos agissem como bloqueio ao acesso ao direito
constitucional à educação; já o sema /privilégio/ pode ser representado pela cor da pele branca
e pelo livro aberto, ou melhor, pelo acesso ao livro, à educação. A descrição da charge permite
observar que os dois leitores não estão na mesma situação, o que implica uma crise à tese da
meritocracia – todos são capazes porque têm as mesmas oportunidades. Enquanto houver um
“muro” que separa as crianças, que liberta um lado e aprisiona o outro no abismo educacional
entre as classes, a mobilização da meritocracia para justificar tanto a ascensão de um, como o
fracasso do outro parece incoerente.

101
Sorocaba, 18 mai. 2020. Facebook: Acesso Educação Popular. Disponível em: <https://bit.ly/3kqA12D>.
122

Figura 19. Charge do cartunista Toni102

A charge de Toni leva em conta a cenografia de uma competição. No quadrado, há dois


corredores e no final uma linha de chegada. Os caminhos dos dois competidores, no entanto,
há vias diferentes: do lado esquerdo, um caminho cheio de obstáculos, representado pelo
labirinto; do outro, um caminho livre. Apesar de o cenário ser de uma disputa, de uma corrida,
eles farão provas diferentes: ao mesmo tempo que o homem branco terá uma corrida mais fácil,
curta e sem obstáculos, o homem negro terá uma corrida mais difícil, longa e com obstáculos.
Ambos podem chegar ao final da corrida, mas para que cheguem juntos, o homem negro terá
que superar mais obstáculos e demonstrar muito mais habilidade que o homem branco,
impedindo que os resultados sejam avaliados pelos efeitos do mérito.
Uma das características do humor é o exagero, aqui representada pela grande diferença
entre os percursos: um completamente livre e outro com muitos obstáculos. Contudo, essa
oposição não é acidental no cenário brasileiro. De acordo com o Atlas da Violência de 2020103,
75,7% das vítimas de homicídio eram negras e, entre 2008 e 2018, houve uma redução de
homicídios para não negros (-12,9%), enquanto houve um aumento para negros (+11,5%). Isso
permite afirmar que o desenho do labirinto na charge ilustra, imageticamente, as dificuldades
enfrentadas pelos negros, como a violência, a criminalidade, a escolaridade, a renda, entre
outros. A população periférica branca também vive com dificuldades, mas alguns problemas –
em especial a violência e a criminalidade – atingem a população negra com mais recorrência.

102
Sorocaba, 28 ago. 2020. Instagram: @tonidagostinho. Disponível em: <https://bit.ly/35yasH0>.
103
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Atlas da Violência 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/3iKKZhP>. Acesso em: 05 set. 2020.
123

O discurso de meritocracia apoia-se na lógica que o indivíduo é responsável pelo


sucesso ou fracasso das suas escolhas, pois ele tem potencial para superar todos os obstáculos
e “vencer na vida”. Mesmo com obstáculos, se o indivíduo realmente se empenhar, ele
conseguirá atingir a linha de chegada e terá mérito, assim como terá mérito um indivíduo com
pista livre para o sucesso, cujo obstáculo é superar a si mesmo, ou seja, para um, a medida do
mérito exige a superação de inúmeras barreiras, enquanto para o outro, exige a autossuperação.
Então, como discutir justiça nessa forma?

Figura 20. Charge do cartunista Duke104

O contexto da figura 20 associa-se ao caso Rafaela da Silva, a judoca brasileira que foi
medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos de verão/2016. A atleta, nascida na favela Cidade de
Deus, no Rio de Janeiro, teve sua trajetória descrita, de acordo com Burgos105, como
“encarnação do discurso salvacionista, que reafirma a fábula do mérito individual e o fatalismo
da desigualdade social”, segundo Izquierdo106, “ao contrário do que apregoam os meritocratas,
o ouro de Rafaela só mostra o quanto nossa noção de meritocracia é uma balela… das mais
rasas!”, como menciona Fernandes-Ferreira107, “não há problema em falar sobre meritocracia

104
MORAES, Roberto. O caso Rafaela da Silva é fruto de políticas públicas e não da meritocracia. Blog Roberto
Moraes, 9 ago. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/2TilslM>. Acesso em: 3 abr. 2020.
105
O ouro de Rafaela Silva e a fábula da meritocracia. Carta Capital, 10 ago. 2016. Disponível em:
<https://bit.ly/3e3JgDT>. Acesso em: 10 set. 2020.
106
IZQUIERDO, Tatiana. Judoca Rafaela Silva não venceu o racismo. Veja São Paulo, 26 fev. 2017. Disponível
em: <https://bit.ly/37ADqsn>. Acesso em: 10 set. 2020.
107
FERNANDES-FERREIRA, Hugo. O mérito de Rafaela Silva e o chorume dos ultraconservadores. Portal
Huffpost, 10 ago. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/3mjxqrM>. Acesso em: 10 set. 2020.
124

esportiva, desde que se entenda antes que ela só funciona isoladamente quando houver
isonomia”.
Esses fragmentos selecionados combateram uma outra discursividade, que, de forma
geral, pode ser representada por – "viu que beleza? Se esforçou e ganhou ouro. E veio da favela!
Que seja um exemplo pra esse povo. Trabalhem!"108 – que, de certa forma, tenta elogiar o mérito
de Rafaela enquanto apaga o abismo entre as classes, tratando os grupos periféricos como
“preguiçoso”, que reclamam, mas não trabalham. Esse gesto, além de romantizar a conquista,
parece confundir mérito e meritocracia: o primeiro todos podem ter por meio do esforço, da
dedicação, sem que isso signifique reconhecimento; já a segunda, recompensa determinados
indivíduos e não outros, atribuindo a eles o mérito pela conquista realizada de forma individual,
desconsiderando o percurso – seja ele em caminho tortuoso ou privilegiado.
Nesse contexto, a charge de Duke foi produzida. Ela mostra duas cegonhas, cada uma
carregando uma criança, que é uma imagem conhecida, remetendo a uma memória sobre bebês
serem trazidos por esses animais, que romantiza o nascimento: elas voam lado a lado, mas em
um “pacote” está um menino e, no outro, uma menina. Nesse caso, a cenografia se vale de uma
cena já instalada na memória cultural coletiva, a cena validada (MAINGUENEAU, 2008b), já
que as cenografias se apoiam em cenas estereotipadas e já instaladas na memória coletiva, que
normalmente não precisam ser explicadas. O sema /obstáculo/ pode ser representado pelo
nascimento geograficamente desfavorável e o sema /privilégio/ pelo nascimento
geograficamente favorável.
O bebê pergunta para a bebê o motivo de ela nascer em um palácio real na Inglaterra,
enquanto ele nascerá em uma comunidade miserável no Brasil. A menina diz não saber o
motivo das diferenças, mas supõe que há pessoas que chamam isso de meritocracia. Por
hipótese, e apoiando-se na lógica meritocrática, uma interpretação possível é que embora o
local de nascimento não diga respeito ao mérito de cada um deles, ascender socialmente,
independente da geografia de nascimento, é responsabilidade individual, independentemente se
um deles nascer em um palácio real na Inglaterra e o outro em uma comunidade miserável no
Brasil.
Uma outra interpretação possível é considerar “tem gente que chama isso de
meritocracia” como uma frase irônica. Mesmo que para o discurso de meritocracia o local de
nascimento seja irrelevante para a avaliação do sucesso e/ou fracasso de um sujeito, na prática,
a posição geográfica e a condição socioeconômica do local podem ser determinantes para o

108
BARROS, Maurício. Quem é você para celebrar esse ouro da Rafaela? Portal ESPN Brasil, 9 ago. 2016.
Disponível em: <https://bit.ly/3kovU7v>. Acesso em: 10 out. 2020.
125

percurso dos indivíduos na sociedade, se com mais ou menos dificuldades, se com mais ou
menos violência, se com mais ou menos educação e saúde de qualidade, entre outros. Se há
uma herança de riquezas, há também outra, de pobreza e dificuldades sociais, mesmo que seja
possível encontrar exemplos contingenciais, que superam as dificuldades do local de
nascimento, por exemplo.
A crítica de Duke extrapola os limites do humor gráfico e dialoga com outro campo – o
jornalístico. O economista Joel Pinheiro da Fonseca, em um artigo para o portal Mises Brasil,
aborda a temática de forma semelhante a Duke:

40. O ideal da meritocracia tem o seu apelo, mas ele depende de meias-verdades: a
ideia do mérito que é só meu e de mais ninguém, a de que meu suor justifica o que
eu ganhei. Sem suor ou inteligência, o ganho é sujo, indevido. Mas o outro lado
dessa moeda é feio: implica dizer que quem não chegou lá não teve mérito; que a
pobreza é culpa do pobre109

Analogamente, embora nenhum dos bebês entenda o motivo de tamanha discrepância


para suas respectivas condições de nascimento, a sociedade, de forma geral, já tem os
mecanismos para justificar esse fato: bonifica-se aquele nascido em “berço de ouro” enquanto
rotula-se o pobre como culpado pela sua condição, assim como indica Fonseca em seu texto.
Também, Fonseca menciona que o “apelo” do ideal meritocrático tem uma aparência de
verdade muito atraente, já que acreditar no fato de o empenho ser o componente crucial para as
conquistas, para o mérito, preenche o ser humano de esperança, mesmo em uma sociedade com
baixa mobilidade de classes como a brasileira, estabilizando, de alguma maneira, os ânimos
que circulam em países com desigualdade social acentuada, como a brasileira.
De acordo com Foucault (2014), as relações de poder orientam e moldam o campo de
ação dos sujeitos, fabricando consensos que são, em grande medida, os pré-requisitos para a
governamentalidade, ou seja, as relações de poder apresentam-se como um elemento que
“conduz as condutas” por meio das formas de saber, das práticas institucionais e das
experiências corporais. A fórmula “meritocracia”, assim, permite um perigoso lugar “comum”
no debate: enquanto é um objeto de desejo para todas as classes, pois é relevante ser um sujeito
com mérito, naturaliza a desigualdade, fazendo a aceitável, fato que pode justificar os abismos
sociais como uma questão de empenho, de dedicação individual.

109
FONSECA, Joel Pinheiro da. Não é meritocracia; é o valor que se cria. Mises Brasil, 20 out. 2015. Disponível
em: <https://bit.ly/3llDBeM>. Acesso em: 10 fev. 2020.
126

O administrador de empresas João Luiz Mauad, por outro lado, escreve em seu texto
na página do Instituto Liberal, uma outra perspectiva sobre o ideal do mérito apresentado por
Joel Pinheiro da Fonseca:

41. Joel está corretíssimo. No entanto, gostaria de pontuar que, quando nós liberais
nos referimos a uma sociedade meritocrática, estamos falando de um conceito de
mérito diferente do usual. Um conceito ligado muito mais à isonomia (igualdade
perante a lei), à ausência de privilégios de qualquer tipo. Não por acaso, é bom
lembrar, a ideia de meritocracia disseminou-se inicialmente na Europa, durante o
iluminismo, como uma alternativa ao ‘Ancien Régime’.110

A aparente concordância de Mauad – “Joel está corretíssimo” – expressa pelo jogo


linguístico feito pela conjunção adversativa “no entanto”, logo perde espaço para outra: o
tradicional combate entre “nós” e “eles”, que funciona nesses dois pequenos trechos e promove
efeitos de sentido cristalizados. Nesse fragmento em específico, o “nós” é preenchido pelos
liberais apoiadores da premiação pelo mérito, que entendem o conceito meritocrático como
diretamente ligado à isonomia da lei e à ausência de privilégios, enquanto o “eles”, por
oposição, é preenchido por aqueles que entendem o mérito como algo dissociado da lei e que
concebe benefícios de qualquer tipo.
Primeiramente, a lei é, pelo menos em teoria, aplicada para todos em um Estado
Democrático, independentemente se o sujeito é liberal, neoliberal, neopentecostal, entre outros.
Posteriormente, para se assumir como um grupo (“nós liberais) que defende a ausência de
privilégios de qualquer tipo, é preciso reconhecer minimamente os próprios privilégios,
principalmente àqueles do ‘Ancien Régime’ francês: em nome do poder (e de sua manutenção
nas mesmas mãos), os privilégios antes exclusivos da monarquia foram então compartilhados
com a burguesia, esta que, em defesa da liberdade do indivíduo, aprisionou corpos
historicamente subalternizados, como o corpo preto, o corpo feminino, o corpo servil. Há defesa
da liberdade desde que seja permitido que outros sejam prisioneiros, ou melhor, uma liberdade
que premia o mérito de uns enquanto outros, naturalmente, fracassam e são culpabilizados
direta e/ou indiretamente.

110
MAUAD, João Luiz. O que significa meritocracia numa sociedade liberal. Instituto Liberal, 22 out. 2015.
Disponível em: <https://bit.ly/3dcO0Xi>. Acesso em: 01 mar. 2020.
128

O sema /obstáculo/ é representado pela escada íngreme, com degraus profundos durante
o trajeto, ou seja, a tarefa, teoricamente, é difícil para todos. Contudo, o estudante do lado direito
da charge é beneficiado com uma escada adicional, desenhada com degraus de dinheiro, o que
simbolicamente pode ser interpretado de duas formas: como “justiça” – quem tem mais
dinheiro, tem mais condições – ou como “privilégio” – quem tem mais dinheiro, tem também
uma ampla vantagem, embora essa situação possa ser apagada e significada como mérito
individual.
Novamente, há uma associação entre “condição” e “oportunidade”. Os dois jovens
podem subir os degraus da escada, porém, o jovem à esquerda que, por hipótese, não tem
recursos financeiros para facilitar seu percurso estudantil, sofre para acessar o degrau superior.
Mesmo com muito esforço, ele dificilmente terá condições de competir com o outro, que é
movido também pelas facilidades do poder aquisitivo, ou seja, pelas “oportunidades”
(traduzidas pela escada com degraus formados por notas), como textualiza a charge. Os
defensores do funcionamento meritocrático interpretam a ascensão do jovem à direita como
uma conquista individual, movida pelo próprio empenho, bem como leem as dificuldades do
jovem à esquerda, muitas vezes, como sem mérito, ou, no extremo, como alguém que precisa
da ajuda do Estado para progredir socialmente, já que, individualmente, supõe-se que falta
empenho e trabalho.
Embora não esteja apresentado de forma explícita na charge, é possível associar que o
jovem de mochila rosa é oriundo de escolas públicas de educação básica, enquanto o outro, de
mochila azul, de escolas particulares de educação básica. A crítica da charge não está, sem
dúvida, situada nos contrastes entre as esferas pública e privada de ensino, apesar de ser notável,
de forma geral, a diferença entre elas114. Mais uma vez, o que está em confronto são os efeitos
da lógica meritocrática, transformando direitos constitucionais em privilégios.
Em comum, as charges analisadas contextualizam como a relação entre esforço e
oportunidade não é evidente, bem como, de forma indireta, como as políticas públicas podem
ser o elo que permite o encontro entre talento, esforço e maiores chances de ascensão social.
Inclusive, as primeiras charges analisadas, dos cartunista Vini e Toni, podem suscitar a reflexão
sobre a importância social das políticas públicas, definidas dentro de uma esfera étnico-racial,
mas que cabem também para outros grupos, como “políticas públicas que visam corrigir uma
história de desigualdades e desvantagens sofridas por um grupo racial (ou étnico), em geral
frente a um Estado nacional que o discriminou negativamente” (CARVALHO, 2004, p. 51).

114
CAPOMACCIO, Sandra. Resultados do Enem aprofundam diferenças entre escolas públicas e privadas, diz
especialista. Jornal da Usp, 17 out. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/3iUVD5Y>. Acesso em: 07 set. 2020.
129

Essas medidas de base compensatória concentram suas forças na tentativa de correção


de uma situação de desvantagem histórica e também de prevenção a novas ocorrências de
discriminação por meio da punição dos transgressores. O exercício dessas políticas, para
deficientes, para mulheres, para negros, para pardos e para indígenas direcionam-se, em seu
limite, para a promoção de uma sociedade mais democrática e, portanto, mais igualitária. A
ação dessas políticas, sem dúvida, direciona-se com maior força e intensidade para as questões
raciais – assumindo-se que o racismo estrutural governa a sociedade brasileira (e outras ao redor
do mundo) e está em amplo funcionamento no Brasil – mas o mesmo raciocínio, da importância
dessas políticas, pode beneficiar outras minorias representativas.
Vieira (2003)115 condensa algumas discussões apresentadas no XI Congresso da
Sociedade Brasileira de Sociologia, em 2003. Uma delas em especial destaca a diferença entre
as políticas de ação afirmativa, deliberadas e aplicadas legalmente pelo Estado e as diversas
instâncias governamentais, e as iniciativas de ação afirmativa, criadas pelas diversas
organizações da sociedade civil. Essa divisão, de acordo com a autora, marca a dicotomia na
relação Estado/sociedade, tendo em vista que “nas últimas décadas, as ações afirmativas
tomaram corpo no seio da sociedade civil, com recursos próprios e à margem do controle
estatal” (2003, p. 90). Infelizmente, esse tipo de raciocínio está se distanciando cada vez mais
das práticas sociais brasileiras.
No Brasil, a partir de 2018, com a gestão do atual presidente da república, as políticas
públicas, em especial relacionadas à inclusão de minorias representativas, sofre constantes
ameaças de extermínio. Em 2018, de acordo com o IBGE116, enquanto 36,1% dos jovens
brasileiros brancos, entre 18 e 24 anos, estavam cursando ou já tinham terminado os estudos no
ensino superior, a porcentagem de negros, com o mesmo perfil, cai para 18,3%. Além disso,
em junho de 2020, o MEC117 revogou a portaria, criada em 2016, sobre políticas de inclusão na
pós-graduação para o acesso de negros, indígenas e pessoas com deficiência, em defesa do
Estatuto da Igualdade Racial e da constitucionalidade das ações afirmativas. Embora a
revogação não afete as regras internas de cada instituição federal de ensino, ela prejudica e

115
Esse artigo é parte do dossiê “Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica”,
organizado e publicado pelo Inep/MEC, em 2003, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (presidente da república),
Cristovam Buarque (MEC) e Raimundo Luiz Silva Araújo (INEP).
116
MORENO, Ana Carolina. Taxa de jovens negros no ensino superior avança, mas ainda é metade da taxa dos
brancos. Portal G1, 06 nov. 2016. Disponível em: <https://glo.bo/372Qy9a>. Acesso em: 02 out. 2020.
117
MEC revoga portaria sobre políticas de inclusão na pós-graduação que incluíam acesso de negros, indígenas e
pessoas com deficiência. Portal G1, 18 jun. 2020. Disponível em: <https://glo.bo/3lFoJYE>. Acesso em: 02 out.
2020.
130

dificulta, por exemplo, os novos processos de inclusão da política de cotas nas instituições ainda
não participantes.

Figura 22. Charge de autor desconhecido118

Em (22), há uma versão traduzida do texto em português, mas a decisão pela língua
inglesa na imagem se deu porque o contexto norte-americano da produção do texto diz respeito
tanto ao regime educacional, como, principalmente, aos deficientes e como a sociedade lida
com essa população. Uma página em especial – Disability Arts Online119 – apresenta charges
que refletem diferentes pontos de vista sobre a deficiência, permitindo que as impressões sobre
o tema sejam grafadas e discutidas.
Na charge, há novamente uma cenografia de competição, assim como no texto de Toni.
Em fileira, um pássaro, um macaco, um pinguim, um elefante, um peixe no aquário, uma foca
e um cachorro ouvem as instruções de um homem que diz: “Para que a seleção seja justa,
todos passarão por uma prova. Subam na árvore!”. Embora seja dito que a seleção é justa,
pois todos os animais podem participar da prova, sabe-se, a partir do conhecimento de mundo
disponível, que alguns animais estão mais aptos a ganhar essa competição que outros: sem
dúvida, o pássaro e o macaco estão mais preparados para vencer a tarefa do que os outros que

118
GEORGE, Roshin. Determined to succeed. The Gulf Indians, 17 jul. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/34qc323>. Acesso em: 20 jul. 2020.
119
The social model: understanding the language of disability from cartoonists point of view, 4 set. 2019.
Disponível em: <https://bit.ly/3jsLDkm>. Acesso em: 20 jul. 2020.
131

não têm a habilidade ou a condição de escalar uma árvore. A crítica gerada pela charge leva em
conta o par “condição” vs. “oportunidade”.
A premiação meritocrática está simbolicamente associado à espécie porque pertencer a
uma determinada espécie é um privilégio para a realização da tarefa, enquanto pertencer a outra
determinada espécie é um impeditivo para realização da mesma tarefa. Entre seres humanos,
isso também acontece. Embora sejam todos da mesma espécie – Homo sapiens – há seres
humanos mais preparados que outros para a realização de determinadas tarefas, e isso vale tanto
para um vestibular concorrido quanto para um cadeirante que tenta, por exemplo, andar pelas
ruas de uma grande cidade. Se a seleção é efetivamente justa, como é mencionado no texto,
esse conceito de justiça, em grande medida apoiado pela meritocracia, é arbitrário na charge e
na vida: dá-se a oportunidade, mas a tarefa escolhida é injusta, pois apenas alguns animais têm
efetiva condição de realizar a proposição, já que o que se solicita é de impossível realização
para a maioria dos candidatos.
O elefante, o peixe e a foca não conseguem, mesmo com muito esforço, realizar a tarefa
proposta. O cachorro, por hipótese, tem chances reduzidas, mesmo com muito esforço e
inúmeras tentativas. Já o pinguim, pássaro e o macaco têm condições de realizar essa tarefa. A
suposta “justiça” no processo de seleção relaciona-se mais à igualdade de oportunidade e menos
às condições de disputa da prova. O sema /justiça/ permite a interpretação da prova como
possível para todos e, assim, assumir como possível que os resultados sejam meritocráticos e,
quem eventualmente não conseguir realizar a atividade não pode reclamar porque a ele foi
concedido o direito de tentar, enquanto o sema /obstáculo/ autoriza uma interpretação da
política meritocrática como um obstáculo, que oferece barreiras para uns e privilégios para
outros.
132

Figura 23. Charge do cartunista Vitor Teixeira

O contexto da charge de Teixeira em 2014 foi uma fala de Marina Silva (na época,
candidata à presidência pelo PSB)120 no Rio Janeiro, quando visitou a CUFA (Central única das
favelas) e disse: “Não é correto o governo, de quem quer que seja, se apropriar do esforço das
pessoas e tentar passar a ideia de que tudo o que você conquistou foi porque o governo te deu”.
A repercussão dessa afirmação foi negativa para a campanha da candidata. O chargista desenha
a placa “meritocracia” no alto da escada porque a porta “política pública” foi interpretada como
uma “ajuda” que defende o esforço individual mesmo que todas as portas para acesso a
diferentes lugares estejam fechadas. Se há ajuda do Estado, então não há meritocracia, de
acordo com a charge.
Nesse contexto, a escada é uma representação imagética para o sema /obstáculo/, assim
como é a deficiência física em uma sociedade que não preza pela acessibilidade. A deficiência
representa, de certo modo, os negros, as mulheres e outros grupos minoritários. Na charge, há
uma pessoa sentada em sua cadeira de rodas, em um cenário medieval, o que pode indicar o
retrocesso de um país que não investe em políticas públicas para deficientes, com um muro
instransponível para alguém que não anda: de um lado, uma escada que leva ao topo da parede
– lá estão uma bandeira (típica das chegadas de competições automobilísticas) e a inscrição
“meritocracia” em uma placa. Ou seja, a meritocracia aplica-se para quem consegue, por suas
“próprias pernas”, subir os degraus da escada.

120
STHEPHANOWITZ, Helena. Marina desdenha da luta dos mais pobres por políticas públicas governamentais.
Rede Brasil Atual, 27 set. 2014. Disponível em: <https://bit.ly/34nvEQv>. Acesso em: 21 jul. 2020.
133

Já o sema /privilégio/ poderia ser representado pela porta térrea chamada de “política
pública”, mas que, teoricamente, é um direito em vigor dentro de um Estado Democrático, ou
seja, um direito é interpretado, pelo viés meritocrático, como um privilégio, um auxílio para
quem efetivamente “não se esforça”, “não se supera”, entre outros. Embora a política pública
para deficientes contribua para a acessibilidade de um cadeirante e seja vista como uma forma
de justiça, ela ainda permite interpretações que situam os deficientes como pessoas que se
aproveitam da sua própria limitação e, portanto, não são sujeitos meritocráticos.
Essa lógica pode ser vista no artigo já mencionado, de Possenti e Bittar (2016), sobre
como as mídias nacionais reagiram após a aprovação da Lei de Cotas para o Ensino Superior e
para o mercado de trabalho. A lei 8.213, de 24 de julho de 1991, define cotas para a contratação
de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. No artigo 93, há a descrição da relação
entre número de funcionários e a quantidade de vagas PCD (pessoa com deficiência): até 200
funcionário, 2%; de 201 a 500 funcionários, 3%; de 501 a 1000 funcionários, 4%; e de 1001
em diante, 5%. Em 2019, no entanto, o projeto de lei 6159/19, do Poder executivo, altera as
políticas de habilitação e reabilitação profissional e as medidas de inclusão de pessoas com
deficiência no mercado de trabalho. Com a medida provisória 905/19, o texto compõe um
pacote de medidas do governo Bolsonaro para tentar reduzir o desemprego no país. A situação
da MP, de acordo com dados do site da Câmara121, é “aguardando Constituição de Comissão
Temporária pela Mesa”.
Contudo, o ministro da economia, Paulo Guedes, afirmou122 que “a definição de cotas
de forma ampla alcançando igualdade todos os setores, todas as localidades e todas as
ocupações representa uma obrigação que, em muitos casos, não pode ser cumprida”. As cotas
são retomadas por Guedes como uma “obrigação”, ou seja, se há uma lei aprovada, então, deve-
se cumpri-la. Contudo, na sequência, o ministro afirma que “em muitos casos, não pode ser
cumprida”, sem justificar os motivos desse nesse cumprido ou mesmo levar em conta que tal
afirmação compromete o entendimento daquilo que é legal, ou seja, um direito, de outra coisa
que é um privilégio, aplicado apenas para aqueles que acessam de forma mais ampla os
diferentes setores da sociedade, como educação, moradia, entre outros. A perspectiva
apresentada pelo parlamentar associa-se à ideia já desenvolvida de que, no Brasil, direitos são

121
PL 6159/2019. Câmara dos Deputados, 26 nov. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3dbdlRt>. Acesso em: 5
jan. 2020.
122
Proposta altera regras para reabilitação profissional e contratação de pessoa com deficiência. Câmara dos
deputados, 02 dez. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/34BEvgb>. Acesso em: 05 jan. 2020.
139

Todo o percurso de vida de Richard e Paula, que inclui local de nascimento, moradia,
alimentação, tipo de educação formal, expectativas, entre outras, construiu um perfil que
continua a ser validado ou não por instituições de crédito, na aprovação de empréstimos, por
exemplo, ou mesmo para a conquista de um emprego. Esse perfil também é importante para
determinar o modo como o chefe de cada um deles cuidará de seu subordinado: de um lado,
Roger, o pai de Richard, é conhecido pelo chefe. Este, por sua vez, para supervisionar Richard,
“ficará de olho”, como uma forma de dizer “ficarei atento ao seu talento, pois ouvi coisas boas
sobre você”; de outro, Paula é supervisionada pelo chefe com desconfiança – “eu estou lhe
vigiando”, ou seja, a jovem é apenas mais uma funcionária, sem nenhum tipo de recomendação
relevante.

42. Richard começa a acreditar que ele merece estar no topo, que é tudo fruto do
trabalho dele. E talvez Paula comece a se acomodar, a saber reconhecer “o seu
lugar”.

Em (42), os privilégios históricos de Richard deixam de ser vistos dessa forma e passam
a ser encarados como merecimento, pois ele estudou e trabalhou duro para chegar onde chegou,
e os efeitos disso, quando essa lógica individual assumem um posto na coletividade, esvazia os
sujeitos de empatia e solidariedade, amplificando as disputas entre “vencedores” e
“perdedores”. Já as dificuldades históricas de Paula cristalizam-se, fazendo-a acreditar que
talvez ela esteja onde merece, que tenha exatamente o que merece e que isso é justo. Assim
como acontece com Richard, com Paula, quando essa ideia se espalha pela sociedade, há um
ressentimento brutal contra os “vencedores” e uma recorrente falta de autoconfiança – talvez
os ricos sejam ricos porque merecem ser ricos; e talvez os pobres sejam pobres porque merecem
ser pobres.
141

Autor/ano /obstáculo/ /privilégio/


Vini, 2017 Ser preto Ser branco
Muro (bloqueio à educação) Livro (acesso à educação)
Toni, 2020 Ser negro Ser branco
Caminho labirinto Caminho livre
Duke, 2018 Nascer em uma comunidade Nascer em um palácio real na
miserável no Brasil Inglaterra
Autor Espécie (classe mamífero [elefante, Espécie (classe aves [pinguim e
desconhecido, cachorro e foca], classe peixes pássaro] e mamíferos [macaco])
2020 cartilaginosos)
Autor Degraus altos e de difícil acesso Dinheiro (escada feita
desconhecido, simbolicamente com cédulas de
2020 dinheiro)
Victor Cadeirante/escada Políticas públicas
Teixeira, 2014
On a plate, • Mulher • Homem
Toby Morris • Moradia precária: • Moradia digna: “húmida”,
“confortável”, “seca” “barulhenta”
• (-) condição familiar: pais • (+) condição familiar: pais
presentes; ausentes
• Escola com baixa qualidade
(supostamente pública) • Escola com boa qualidade
• Expectativa familiar baixa (supostamente particular)
• Ensino técnico bancado por • Expectativa familiar alta
ela + trabalho • Ensino superior bancado
pelos pais, sem precisar
• (-) mercado de trabalho trabalhar
• Empréstimo reprovado • (+) mercado de trabalho
• Aspira desconfiança • Empréstimo aprovado
• (-) meritocracia • Aspira confiança
• (+) meritocracia
Quadro 6. Tabela descritiva dos semas e de suas representações imagéticas
142

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A depender da hipótese desse trabalho, que “meritocracia” é uma fórmula, essa pesquisa
cumpriu esse propósito, utilizando-se das análises do corpus selecionado para comprovar essa
suposição. O termo é uma fórmula porque tem caráter cristalizado, funciona discursivamente,
é um referente social e, especialmente, é polêmico. Ainda assim, afirmar que a palavra em
questão é uma fórmula é menos relevante do que foi analisar como os usos de “meritocracia”
(suas respectivas substituições, paráfrases, entre outros) contribuem para autorizar ou não essa
expressão como fórmula em um dado corpus.
Sem dúvida, ao final dessa dissertação de mestrado, e parafraseando Maingueneau, o
sentido é fronteira e subversão da fronteira, principalmente quando os sentidos estão em disputa
para dar ou não existência aos sujeitos em sociedade: ser um sujeito da meritocracia, de certa
forma, é ter existência. O discurso meritocrático brasileiro abre-se como um campo de trabalho
promissor para pesquisas incentivadas pela recente obra de Michael J. Sandel129 – “A tirania
do mérito” – que investiga o mérito na perspectiva norte-americana. Como o livro foi lançado
em outubro de 2020, ele, infelizmente, ficou de fora das reflexões dessa dissertação de
mestrado, mas atua como um ponto congruência temático.
Contudo, se a pesquisa fosse iniciada hoje, ela partiria das conclusões oferecidas pelo
corpus e aprofundaria a reflexões como o fato de “meritocracia” ser disputada por dois semas
principais /obstáculo/ (interpretado mais comumente como “dificuldade”) e /justiça/, e seus
respectivos simulacros, /privilégio/ e /vitimização/. Do primeiro ao último texto do corpus,
essas duplas de semas e de simulacros funcionam recorrentemente, permitindo que os sentidos
sobre “meritocracia” se revelem.
“Meritocracia” pode ser vista como um obstáculo para que algumas demandas sociais –
como a igualdade racial, de gênero e de acessibilidade – sejam encaradas em suas gêneses,
rompendo com os processos de naturalização de preconceitos, desigualdades e violências, na
tentativa de construir uma sociedade mais justa, bem como uma lógica que impõe obstáculos
sociais. Ou seja, a cor da pele, o gênero, o local de nascimento, a escolarização, entre tantos
outros, são obstáculos que impedem que os resultados sejam avaliados pelos efeitos do mérito,
ampliando os abismos sociais. Inclusive, esse tipo de ideia contribui para que os obstáculos
sejam vistos, primeiramente, como transponíveis – basta apenas esforço – e, em um segundo
momento, mas não menos relevante, como uma “desculpa” utilizada pelas pessoas que se

129
SANDEL, Michael J. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020.
143

colocam na posição de vítima e não se empenham para usufruir, sem merecer, de políticas
assistencialistas do Estado.
“Meritocracia” pode ser vista como uma forma justa de gestão do corpo social, que cria
dispositivos meritocráticos, como os processos seletivos, por exemplo, para quantificar o mérito
e separar vencedores de perdedores. Essa separação cria um ambiente social hostil e violento,
já que os vencedores são autorizados a julgar os supostos “perdedores” como pessoas que não
podem desistir, que precisam se reinventar, trabalhar mais, sem reclamar dos obstáculos
cotidianos. A própria separação, importada dos Estados Unidos, entre winner e loser, traz
efeitos de sentido como o fato de o sucesso ter uma justificativa moral, isto é, os sujeitos
privilegiados não enxergam seus próprios privilégios e assumem que suas conquistas são fruto
de suas trajetórias individuais, de seus talentos e de seu empenho, criando sujeitos
extremamente competitivos e sem empatia, que não reconhecem os lugares sociais e as
consequências concretas dessa posição para o fluxo da vida.
“Meritocracia” pode ter também um funcionamento tão atraente quanto perigoso: se de
um lado ela é vendida como um modo de gestão inspirador, que cria novos mindsets para
sujeitos empreendedores, donos de seus próprios destinos, ela também autoriza a humilhação,
o silenciamento e o apagamento da maioria da população que apenas encontra portas fechadas
para as oportunidades. Isso pode gerar outro efeito ainda mais nocivo: talvez os pobres sejam
pobres porque merecem esse destino e são corresponsáveis pela sua “má sorte”; talvez os ricos
sejam ricos porque merecem esse destino e são corresponsáveis pela sua “sorte”.
Um ponto que, infelizmente, ficou de fora dessa análise é a relação entre talento e
esforço: se os dispositivos meritocráticos são capazes de medir essa relação e como ela se dá.
Por exemplo: a depender do modo como a relação entre sucesso e fracasso é descrita – se da
ordem da sina, da sorte, do empenho, do talento – há o desenvolvimento de narrativas que
podem fomentar o dogmatismo do “conformismo”, como já mencionado (o rico merece ser rico
e o pobre merece ser pobre), bem como autorizar violências estruturais, como o racismo
institucional.
Outra questão que despertou interessante, mas que não foi desenvolvida: se a circulação
da fórmula “meritocracia” gera mais problemas sociais do que avanços, então, qual seria a
solução para lutar contra uma sociedade profundamente desigual como o Brasil? No corpus
analisado, os discursos carregam traços segundo os quais um possível caminho está no
questionamento do termo em si, ou seja, é relevante questionar o conceito meritocrático para
“desnaturalizar” a concepção na qual as pessoas que estão no topo da sociedade chegaram lá
por conta própria.
144

Em termos conclusivos, é possível afirmar que os principais ganhos deste trabalho


foram:

a) As noções de discurso e poder estão em relação e possibilitam o funcionamento


meritocrático, pois há algo, na meritocracia, que cria a ilusão do controle dos corpos,
das mentes e das realidades, seja este controle uma forma de submissão – a pessoa é
controlada por esse poder – ou uma forma de autoritarismo – a pessoa acredita que é
superior aos demais porque merece esse posto;
b) A noção de fórmula, como método de análise do corpus selecionado, é extremamente
relevante e produtiva por dar operacionalidade às primeiras abordagens analíticas e,
conforme a pesquisa avança, traz segurança para os passos da análise, que segue
balizada pelas propriedades da fórmula;
c) Os conceitos descritos por Maingueneau – “cenas da enunciação”, “semântica global”,
“simulacro”, “interincompreensão”, entre outros – são chaves de análise que permitem
explicar o funcionamento discursivo de “meritocracia” envolvido nas relações
polêmicas entre os diferentes posicionamentos;
d) A articulação entre os conceitos de Krieg-Planque e de Maingueneau possibilitou que
os textos do corpus fossem analisados através de suas relações interdiscursivas e não de
conteúdo, em especial, pelo foco da pesquisa que observou como o termo
“meritocracia” circula por diversos posicionamentos.

Por fim, a riqueza de todo esse debate sobre os efeitos do discurso de “meritocracia”
oferece diversas vias de entrada para a realização de uma análise que toma a língua e seu
funcionamento como as condições necessárias para privilegiar uma abordagem discursiva, que
dirige seu olhar para a relação entre discurso, mídia e poder. Espera-se que, a partir dessa
dissertação, sejam possíveis outras análises que, assim como essa, procurou analisar o discurso
para entender o que se move entre as estruturas.
145

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