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DAVIS, A. Mulheres, raça e classe.

Capítulo I: O Legado da escravidão: parâmetros para


uma nova condição da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016

Fichamento escrito em: 16/10/2023

Neste capítulo, Davis questiona a insuficiência de uma análise mais realista para a
compreensão do papel da mulher, enquanto negra e escravizada, na família e na comunidade
no sul dos EUA. Para isso, ela começa desbancando o mito do matriarcado no seio das
famílias negras, mencionando um estudo de Guntman, que ela se utiliza para estabelecer essa
refutação como premissa.

Após isso, ela define como o eixo central de análise o sistema escravocrata, que é o principal
elemento que diferencia as mulheres negras das brancas, que é a causa de as mulheres negras
trabalharem mais fora de casa, apesar de também serem responsáveis pelo lar. No trabalho
braçal na plantation, elas estavam submetidas às mesmas ameaças e exigências que os
homens, além de que maus tratos e abuso sexual lhes eram exclusivos, sendo reduzidas à
condição de fêmeas, o que acrescentava maiores penalidades à sua opressão.

Após a abolição, a sua fertilidade passou a ser explorada como reprodução de mão de obra,
embora lhes fosse negada a condição de mãe no significado corrente da época, sendo
sistematicamente separadas de seus filhos. O estupro também era comum, percebido como
expressão de domínio sobre uma propriedade e mão de obra.

As condições de trabalho colocavam mulheres e homens em igualdade de força produtiva, e,


na condição de reprodutoras, muitas vezes se viam obrigadas pelo sistema escravista a
trabalharem grávidas ou com crianças atadas às suas costas, sem qualquer bônus laboral.
Também não podiam amamentar, o que ainda impingia sofrimentos de ordem fisiológica. Os
castigos podiam resultar em homicídio. Eventualmente as grávidas poderiam ser poupadas
para garantir a reprodução.

A industrialização no sul dos EUA não trouxe nenhum avanço nas relações de trabalho, que
contava com mulheres e crianças escravizadas em sua força produtiva. Mineração, metalurgia,
madeireira e obras civis não distinguiam o gênero com relação ao trabalho, e eram
consideradas como um custo menor em relação aos homens. No entanto, a autora vê a
possibilidade de que esta exploração, tão ou mais exigente que a dos homens, possa ter gerado
consciência nessas mulheres negras de sua força. Também no contexto de ascensão da
industrialização, a ideia de feminilidade começava a afastar a mulher branca do mundo
trabalho, deslocando-a para as coisas do lar, o que não correspondia às mulheres da
comunidade escravizada.

Os senhores se recusavam a assumir a paternidade, assim como eram omitidos o nome do pai
das certidões dos recém nascidos que seriam escravizados, de modo que se elaborou a
presunção acadêmica de haver uma família matriarcal gerada nas comunidades de
escravizados. Segundo o relatório Moynihan a comunidade negra sofria opressão pela
ausência de autoridade masculina. Rainwater propunha que a família matrifocal era a razão da
fragilidade da família negra, destruída pela escravidão. Frazier pontuou a insubordinação da
mulher negra à autoridade masculina, subestimando a capacidade de resistência do povo
negro. Guntman, no entanto, superou estas teses ao considerar que os laços familiares
resistiam dentro da comunidade negra, que era desfeita à força. Os escravizados, conclui a
autora, resistiam ao processo desumanizador da escravatura dentro das relações familiares, em
arranjos domésticos e redes de parentesco. No entanto, Guntman não teria definido a posição
das mulheres corretamente.

As mulheres teriam ocupado um papel dominante na família, que era uma extensão da vida na
senzala. A vida familiar enaltecia o papel da mulher em relação aos homens. Elkins e Stampp
enfatizam a proximidade das crianças com a mãe, assim como o homem era apenas um
ajudante dentro do lar. As funções domésticas também não era motivo de diminuir a sua
importância, como ocorria com as mulheres brancas, mas tinha o efeito o oposto. O trabalho
doméstico era o único trabalho realizado em favor da comunidade de escravizados, segundo a
autora, o que a faz afirmar que tanto a mulher e o homem dividiam as tarefas, e que por isso o
homem não era apenas um ajudante, caracterizando uma igualdade sexual. Mencionando
trabalho de Genovese, que apesar de assumir um paternalismo, indica que as mulheres negras
não permitiam a depreciação dos seus maridos, pois era necessário um exemplo forte para os
seus filhos.

A autora aborda, doravante, as ações de resistência das mulheres em relação às opressões e


abusos, sofrendo duras penalidade e ainda mais opressão, o que evidencia uma resposta ativa
e desafiadora destas mulheres à condição de escravizada. Ela elenca muitos exemplos desde
atitudes de confronto, quando elas assumiam posições importantes em rebeliões de escravos,
quanto a formas mais sutis como o ensino e a formação de negros na clandestinidade.
Também aborda o caso de Harriet Tubman como emblemático: a história de uma mulher
negra escravizada que tomou consciência de sua força ao realizar trabalhos com o seu pai, e
aprendeu como sobreviver em áreas selvagens, o que a levou a conduzir tropas de homens
durante a Guerra Civil. A autora afirma que a sua existência revela o espírito do seu povo
como um todo.

Em seguida, a autora aborda o estupro instrumentalizado para a dominação, que buscava


minar o ímpeto de resistência e desmoralizar os companheiros das mulheres negras. Ela
compara o uso terrorista do estupro na Guerra do Vietnã com o mesmo perpetrado pelos
proprietários de escravos. Angela Davis afirma que isso servia para imputar uma condição
inalterável e essencial de fêmea como passiva, frágil e aquiescente. Ela critica o uso
acadêmico do termo “miscigenação” para escamotear a exploração sexual. Ela critica
qualquer leitura humanizadora do processo de miscigenação, como Genovese teria
interpretado, e renegando qualquer chance de afeto ou sentimento positivo que pudesse
derivar do paternalismo do senhor.

A autora também reafirma que há diferenças significativas entre mulheres negras e brancas,
apesar das últimas terem colaborado muito em campanhas antiescravagistas. Ela critica uma
obra de Harriet Stowe, A cabana do Pai Tomás, cuja personagem negra seria uma caricatura
das mulheres escravizadas, sendo uma projeção da mulher branca. Angela Davis faz uma
análise profunda da personagem cristã, negando a verossimilhança de sua negritude, que não
traz consigo o sofrimento e a força das mulheres negras.

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