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TAMARA
BENAKOUCHE
T A M A R A B E N A K O U C H E é professora
do Programa de
Pós-Graduação em
Sociologia Política da
Universidade Federal
de Santa Catarina
(UFSC).

Redes técnicas/
redes sociais:
a pré-história da
Internet no Brasil
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o
sucesso da rede eletrônica Internet A expansão do uso da Internet no Brasil
aparece cada vez mais como um só está sendo possível, inicialmente, graças
fato incontestável: com efeito, à implementação de uma série de medidas
além das suas já confirmadas comandadas pelo poder público no setor
possibilidades no campo da co- das telecomunicações. Essas medidas,
municação, ampliam-se os usos contrariamente ao que se pode pensar, não
dos serviços educativos, comerciais são todas recentes; algumas delas datam,
e de lazer, dentre outros que oferece. O su- na verdade, de pelo menos vinte anos. A
cesso é tanto que não tem sido possível intervenção estatal no setor, nessa época,
determinar, com precisão, o número de seus além de visar superar o enorme atraso em
usuários, tanto no Brasil, como no mundo. que se encontravam os serviços de
No país, dependendo de quem fala, as esti- telecomunicações nacionais – em especial
mativas variam de 450 mil a 1 milhão. Esta os serviços de telefonia – buscava atender
incerteza, porém, não parece ser um pro- ainda a duas grandes finalidades, cujos
blema; acredita-se que a constituição da conteúdos contribuem para explicar o
clientela da rede – também chamada “co- caráter precoce de muitas das medidas então
munidade virtual” – está apenas começan- propostas. De um lado, estavam as
do e que, portanto, estes números só ten- finalidades de ordem estratégico-militar;
dem a crescer num ritmo cada vez mais com efeito, num período em que as ações
rápido. do governo se inspiravam na ideologia da
A rapidez tem sido justamente o traço segurança nacional, na qual as consi-
mais evocado para caracterizar a expansão derações de ordem geopolíticas eram
da Internet e, por extensão, das centrais, a necessidade de implantar no país
transformações que seu uso vem causando as então emergentes redes de transmissão
nas práticas sociais contemporâneas. Esta, de dados não passou despercebida. De outro
no entanto, é uma visão que não resiste a lado, estavam as motivações de ordem
uma análise mais cuidadosa da questão, e econômica, partilhadas sobretudo pela ala
isso é o que se pretende discutir aqui. Com nacionalista do governo, que sonhava com
base na reconstituição das ações que um “Brasil, Grande Potência”; seus
precederam a implantação da Internet no representantes viam nas inovações
Brasil, o artigo tem por objetivo demonstrar tecnológicas incorporadas àquelas redes
que, como em toda inovação tecnológica, oportunidades para o desenvolvimento da
sua expansão/apropriação é o resultado de então inexpressiva indústria local de
um processo mais longo do que transparece telecomunicações e para a criação de uma
para o grande público. estrutura nacional de Pesquisa e
Com efeito, o processo de expansão/ Desenvolvimento (P&D) (1).
apropriação de uma inovação envolve
sempre uma grande complexidade. Seu OS PRIMEIROS PASSOS
dinamismo não se deve a nenhuma pretensa
“característica intrínseca” da inovação em Já em 1975, com a intensificação do uso
1 Ilustram essa afirmação me- si, mas da combinação de variáveis de equipamentos de informática no país, o
didas do Ministério das Co- econômicas, políticas, sociais e culturais – Ministério das Comunicações (Minicom)
municações (criado em
1967), tais como as Portarias além das técnicas – agindo no sentido de começou a se ocupar com a questão da
661/75 e 622/78 – que den-
tre outras questões definiam estabelecer compromissos constantemente transmissão eletrônica de dados, também
o que era indústria nacional e renovados, na busca pela realização dos chamada na época de teleinformática ou
estabeleciam mecanismos de
transferência tecnológica mais variados interesses dos atores envolvidos telemática.
favoráveis ao país do que os
até então existentes – bem
nos acontecimentos. Recorrendo a uma Essas novas denominações procura-
como a criação do grupo Exe- expressão bastante usada por Lévy (1993), vam dar conta da convergência que estava
cutivo Interministerial de
Componentes e Materiais entender esse processo supõe, sobretudo, ocorrendo, nos países centrais, desde o
(Geicom), em 1975, e do apreender os agenciamentos sociotécnicos início nos anos 60, entre as tecnologias de
Centro de Pesquisa (CPqD)
da Telebrás, em 1976. que o atravessam. telecomunicação e a informática. Com

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efeito, em face da necessidade de julho de 1980, através da portaria 006,
rentabilizar os custos então muito eleva- criou a Comissão Especial n o 14/
dos dos computadores, constatou-se a via- Teleinformática. Seu objetivo era o de
bilidade de se ampliar o número de usuá- examinar a situação da teleinformática
rios de uma unidade central, através da nacional e orientar a SEI e o Minicom no
disseminação de terminais ligados a uma estabelecimento das grandes linhas de uma
mesma unidade. Isso era possível graças à política global para o desenvolvimento do
utilização das redes de telefonia ou de te- serviço. Essa política deveria estar inte-
lex, que passaram, assim, a também trans- grada no quadro mais geral da política
mitir dados. A demanda por esse tipo de nacional de informática.
serviço aumentou consideravelmente nos Os trabalhos dessa comissão –
anos 70, devido, sobretudo, à emergência constituída por 13 membros, dos quais
e à difusão da microinformática. Diante apenas dois pertenciam ao Minicom –
das limitações das redes clássicas (telefo- desenvolveram-se entre julho e setembro
nia, principalmente) em garantir um ser- de 1980 e foram concluídos com a redação
viço de qualidade, os órgãos responsáveis de um relatório publicado pela SEI em 1981.
pela administração do setor de telecomu- Esse relatório fazia uma síntese da situação
nicações, em vários países, viram-se obri- da teleinformática no país, insistindo
gados a providenciar a instalação de no- particularmente no estado da oferta de
vas redes destinadas exclusivamente à serviços. Esse balanço revelou uma situação
transmissão de dados. No início, foram decepcionante: constatava-se que o país
providenciadas ligações – chamadas encontrava-se ainda numa etapa muito
especializadas – para atender aos grandes inicial do desenvolvimento da telein-
usuários, mas, em seguida, foram implan- formática, etapa talvez comparável àquela
tadas redes públicas, acessíveis a qualquer do final dos anos 60 nos países
assinante do novo serviço. desenvolvidos (Maciel, 1983). O relatório
No Brasil, desde 1970, a teleinformática avançava também algumas hipóteses de
era objeto de discussão e de estudos, mas caráter prospectivo a partir de informações
somente em abril da 1975, pelo decreto 301, sobre a situação de outros países, mas
a Empresa Brasileira de Telecomunicações sobretudo – e esta foi a sua contribuição
(Embratel) recebeu a incumbência de mais importante – fazia uma série de
instalar e explorar uma rede nacional de recomendações com vistas ao desen-
transmissão de dados (2). Esse decreto, volvimento do setor. Essas recomendações,
porém, era bastante vago em vários sempre precedidas por uma exposição de
aspectos, e não explicitava, por exemplo, o motivos, foram reunidas em 34 grupos e
papel das empresas do sistema Telebrás na diziam respeito seja à ação do governo, seja
operação do serviço, ou os meios que à ação dos fabricantes de equipamentos,
deveriam ser colocados à disposição da dos fornecedores de serviços e dos usuários.
Embratel para que pudesse cumprir suas Em conformidade com a orientação
novas tarefas. Em janeiro de 1979, o geral da SEI, essas recomendações foram
Ministério decidiu explicitar melhor suas marcadas sobretudo pela preocupação de
intenções a respeito da questão, recorrendo assegurar o controle permanente do Estado
novamente à edição de um decreto que sobre o setor e de apoiar a indústria nacional
reafirmou a concessão do serviço à de microeletrônica. Com relação ao
Embratel e regulamentou seu funcio- mercado, considerava-se especialmente a
2 Uma das idéias que surgiram
namento (Hering, 1979). existência de uma demanda potencial na fase inicial de discussão do
problema foi criar uma nova
Nessa época, a então toda-poderosa representada pelos grandes usuários, e foi empresa associada à Telebrás
Secretaria Especial de Informática (SEI), justamente para atender às necessidades – a Teletel – que seria encar-
regada de explorar este novo
considerando a importância da informática dessa clientela que se dirigiram as primeiras tipo de serviço. Essa idéia,
na implantação da nova rede, resolveu ações governamentais no domínio da porém, não vingou. Cf.
Maculan (1981, p. 86) e
intervir também na questão. Assim, em teleinformática. Embratel (1983, p. 89).

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AS PRIMEIRAS REDES TÉCNICAS: demandantes de serviços de transmissão de
TRANSDATA E RENPAC dados a rede Transdata. Criada oficialmen-
te pelo decreto 104 de maio de 1980, essa
Antes da intervenção estatal no setor, rede era constituída por circuitos privados
as instituições que já precisavam utilizar- do tipo ponto-a-ponto (não comutados,
se da teleinformática – seja em função da portanto), alugados pela Embratel a preços
natureza das suas atividades, seja em função fixos, calculados com base na distância que
de sua ligações com o exterior – eram separava os correspondentes e na veloci-
obrigadas a recorrer a soluções próprias, dade da transmissão (medida em bites por
usando as redes telefônica e de telex. Era o segundo/bts).
caso, por exemplo, dos bancos, das No final de 1985, havia 33 centros de
companhias de aviação, de muitas empresas transmissão em funcionamento e 9.854
multinacionais e de alguns órgãos do circuitos estavam alugados; em 1987, esse
governo federal (3). Por outro lado, a número já se elevava a 16.169, o que
possibilidade de comercializar informações representava um crescimento de 65,3% no
era quase impensável e, nesse sentido, período. De fato, a Embratel recebia em
serviços com essa finalidade eram prati- média, na época, 300 pedidos mensais de
camente inexistentes. Os poucos bancos de aluguel de novos circuitos. Uma parte desse
dados que se haviam constituído pertenciam sucesso devia-se certamente ao índice de
a instituições governamentais (IBGE, confiabilidade do serviço, situado em torno
Prodasen, Prodesp, etc.) e só podiam ser de 98% (Embratel, 1987).
acessados por um público interno. No que diz respeito às comunicações com
3 O Serpro, por exemplo, liga-
do à Receita Federal, montou Com o objetivo de corrigir essas insu- o exterior, a Embratel passou a oferecer os
um serviço pioneiro de con-
ficiências, o governo brasileiro colocou serviços das redes Interdata e Findata (esta
sulta a bases de dados, cha-
mado Aruanda. inicialmente à disposição dos grandes em acordo com a agência Reuters), de cará-

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ter público, e das redes Airdata (usada pelas gia no sentido de se buscar um equilíbrio
companhias de aviação) e Interbank (asso- regional na implantação dos equipamentos
ciada à rede Swift), de caráter privado. (Benakouche, 1995).
Paralelamente a essas medidas, os ór- Havia dois tipos de acesso à rede: o
gãos gestores da política nacional de tele- acesso dedicado e o acesso comutado. O
comunicação e de informática também primeiro dava-se por meio de circuitos
voltaram a sua atenção para o mercado urbanos e interurbanos de utilização
constituído pelo chamado “grande exclusiva; o segundo fazia-se através das
público”. Visando atendê-lo é que foi redes públicas de telefonia e de telex. Em
implantada, ainda em 1985, a primeira rede ambos os casos, o usuário deveria provi-
pública de transmissão de dados brasileira, denciar, além do seu equipamento
chamada rede Renpac. (microcomputador, modem, software de
Na verdade, a Embratel dava-se conta acesso, etc.), sua assinatura junto à
do aumento do número de microcom- Embratel. O assinante dispunha de uma
putadores comercializados no país (além gama variada de alternativas em termos de
dos que entravam irregularmente), bem velocidade de transmissão, que ele deveria
como da subutilização dos bancos de dados escolher em função das suas necessidades
organizados por instituições governa- e das características de seu equipamento
mentais e privadas, e apostava na possi- informático.
bilidade de interligá-los, tal como já se Apesar de sua destinação para o “grande
começava a fazer nos países centrais. público”, no final de 1987 a rede Renpac
Os microcomputadores instalados em contava com somente 110 assinantes...
empresas, mesmo as médias e pequenas, (Embratel, 1987). Apenas a disponi-
tinham usos bem definidos: destinavam-se bilização da rede-suporte, ou seja, da rede
sobretudo a facilitar as tarefas de rotina li- técnica, não havia sido capaz de atrair cli-
gadas à gestão do pessoal, ao controle dos entes. Era preciso criar também uma rede-
estoque, à listagem de clientes, dentre serviço capaz de proporcionar à Renpac um
outras. Já os microcomputadores instalados uso efetivo.
nas residências ainda não tinham
finalidades muito claras. Os responsáveis CIRANDA, CIRANDÃO: AS
por sua comercialização, tendo em vista a PRIMEIRAS REDES DE SERVIÇOS
carência de softwares voltados para essa
clientela, referiam-se de modo um tanto De certo modo, os dirigentes da
vago às suas possibilidades educativas e Embratel já esperavam por dificuldades
lúdicas, às suas facilidades no controle do com relação à difusão do uso doméstico da
orçamento familiar, no armazenamento de sua rede pública de transmissão de dados,
informações importantes para a família, etc. isto é, a Renpac. Assim, paralelamente a
Em ambas as situações, o tratamento de sua implantação, resolveram criar um
dados fazia-se localmente e a demanda por serviço de oferta de informações, que
acesso a informações era quase nula. Com contribuiria para viabilizar a mesma rede.
a implantação da rede Renpac, a Embratel O projeto recebeu o nome Cirandão; havia
vai procurar criar essa demanda. nessa escolha uma clara intenção de passar
Utilizando uma tecnologia de ponta uma idéia de jogo compartilhado, de união.
desenvolvida na França – a chamada Na verdade, o Cirandão era a ampliação
comutação “por pacotes” – a rede Renpac de um projeto anterior desenvolvido
dispunha, em 1985, quando de sua entrada também pela Embratel, junto a seus
em operação comercial, de 13 centros de funcionários, chamado projeto Ciranda.
comutação e 13 centros de concentração Esse projeto havia sido implantado em
bem distribuídos pelo território nacional. 1982, com o objetivo de capacitar o corpo
A preocupação dos militares com questões técnico da empresa no uso de computado-
de ordem geopolítica garantia uma estraté- res, na medida em que a introdução de téc-

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nicas digitais nas redes de telecomunica- que era o serviço mais acessado; a um ser-
ções exigia do profissional da área novas viço de pequenos anúncios, chamado “qua-
competências. Assim, a Embratel facilitou dro de avisos”; a algumas listas de discus-
a compra e a instalação de microcom- sões, chamadas “teleconferências”; e, fi-
putadores e modems para os funcionários nalmente, ao acesso a um número muito
interessados em participar da experiência e restrito de bancos de dados e a alguns
criou um banco de dados, de acesso gratuito, poucos jogos destinados às crianças. No
com uma gama variada de informações geral, todas as alternativas disponíveis eram
voltadas para os interesses da clientela-alvo: pouco atualizadas. Diante de tal penúria,
lista de benefícios fornecidos pela empresa, fica fácil compreender por que as taxas de
convênios, agenda de aniversários, jogos, utilização do Cirandão permaneciam tão
guias de compras, catálogos, etc., e ainda baixas.
um correio eletrônico. Aqueles sem O acesso a bancos de dados, que poderia
condições de comprar um micro- ser um serviço dinamizador, apresentava
computador podiam utilizar, inclusive em muitos problemas. Como a venda de
fins de semana, unidades instaladas nas informações não era uma prática corrente,
sedes regionais da empresa. O projeto foi a idéia inicial da Embratel de integrar os
bem aceito, pois a ele aderiram cerca de bancos de dados já disponíveis no Brasil
2.100 funcionários distribuídos por 104 encontrou uma forte resistência por parte
cidades. Na verdade, esse grupo constituiu- das instituições responsáveis pelos mesmos.
se na primeira comunidade teleinfor- Diante disso, os dirigentes do projeto
matizada do país. procuraram desenvolver uma outra
Diante disso, quando a Embratel come- estratégia. No caso, a empresa resolveu
çou a considerar alternativas para ampliar estabelecer parcerias com algumas
o número de usuários da rede Renpac, a associações profissionais, visando motivá-
solução escolhida foi abrir o projeto Ciranda las a participar do projeto, colocando na
para o público em geral, seu banco de dados rede informações de interesse para seus
(4) devendo ser enriquecido através da associados. Para tanto, a Embratel
integração de outros fornecedores de propunha-se a fornecer gratuitamente todo
informações. o equipamento necessário à constituição de
Assim, em 1985 foi criado o projeto um banco de dados, disponibilizar espaço
Cirandão, oficialmente definido como “um no seu computador e capacitar pessoal
serviço de teleinformática, oferecido pela técnico para desenvolver as atividades
Embratel de forma complementar e previstas. Em contrapartida, as associações
integrada com os serviços de teleco- deveriam atualizar constantemente suas
municações” (Embratel, s/d). informações, além de divulgar o serviço
Em maio 1987, o projeto Cirandão junto a seus associados.
registrava 2.256 assinantes, sendo 1.439 As instituições que se mostraram mais
(63,8%) residenciais e 817 (36,2%) não- receptivas, inicialmente, foram aquelas
residenciais (5). Tratava-se certamente de ligadas ao meio médico. Em maio de 1986,
uma clientela muito reduzida face às dentre os doze bancos de dados mais
expectativas da Embratel. No entanto, a consultados, seis eram de informações
situação era ainda mais decepcionante médicas, no caso, os bancos da Fiocruz, da
quando se verificava o número de assinantes Mudes, da Nimed, da AMB-THM, da L.
que haviam efetivamente utilizado o serviço Renal e da Bireme. O primeiro lugar, porém,
4 Esta expressão, “banco de durante o mesmo mês: apenas 604, ou seja, em termos de taxas de consulta, coube ao
dados”, corresponde ao que
hoje se denomina sites.
26,7% do total. banco da Rodobens, destinado a
O principal fator que explicava esse revendedores de caminhões da Mercedes-
5 Todos os dados sobre o
Cirandão foram obtidos nos desinteresse era, sem dúvida, a reduzida Benz (tratava-se, na verdade, de uma
Relatórios Mensais do Servi- oferta de alternativas aos assinantes. As primeira experiência do Cirandão com um
ço Cirandão, produzidos pela
Embratel. opções limitavam-se ao correio eletrônico, serviço de tipo fechado, ou seja, acessível

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somente àqueles que dispusessem de um ríodo aqui em consideração (1986-87), que
código privado); em segundo lugar, vinha permitam uma caracterização socioeco-
o banco da Embratel, aquele que nômica precisa desses usuários. Uma das
originalmente pertencia ao projeto Ciranda; poucas indicações diz respeito a suas pro-
e, em terceiro lugar, estava o banco da fissões; nesse caso, predominavam os en-
Fiocruz. genheiros: estes correspondiam a 42,4%
Um ano depois, ou seja, em maio de do total de usuários, em 1986, e a 38,7%,
1987, muitos desses bancos desapareceram em 1987. Seguiam-se os médicos, os co-
da lista dos mais acessados, enquanto outros merciantes e os analistas de sistemas (que
viram despencar suas taxas de acesso. Essa foram porém suplantados pelos advoga-
mobilidade tem várias razões, mas dos, em 1987).
provavelmente a mais importante foi mais A formação mais “técnica” dos
uma vez a falta de atualização das engenheiros é provavelmente o fator que
informações. Em contrapartida, novos explica o maior interesse desta categoria
colaboradores se destacaram. Assim, por profissional pela novidade. Já o peso dos
exemplo, aproveitando o momento médicos deve-se, como já se assinalou
histórico nacional, representado pela acima, à oferta significativa de informações
elaboração de uma nova Constituição, a na área da saúde.
Fundação Pró-Memória propôs um serviço Numa perspectiva mais geral, porém,
que podia ser consultado gratuitamente a esta composição do mercado se explica
partir de vários pontos do país, informando sobretudo pelo poder de compra mais
o desenrolar dos trabalhos parlamentares e elevado dessas categorias profissionais.
permitindo a manifestação das pessoas a Considerando-se as exigências mínimas
respeito de pontos polêmicos. A idéia foi para que se pudesse assinar o serviço, ou
bem aceita e logo o serviço tornou-se o mais seja, dispor ao menos de uma linha
consultado. Outro fornecedor que logo telefônica e de um microcomputador – mais
disparou nas estatísticas foi a Bolsa de caros e dispondo de menos facilidades de
Valores do Rio de Janeiro. pagamento do que hoje em dia –, não resta
Mesmo com todas essas alternativas, o dúvida de que só os mais abonados podiam
número de acessos ainda continuou baixo: fazê-lo.
em maio de 1986, o Cirandão registrou Os custos da assinatura, no entanto, não
apenas 1.212 acessos, número que passou eram muito elevados, sobretudo se
para 1.542 em maio do ano seguinte; isso comparados aos valores médios pagos
representava em média, respectivamente, atualmente aos provedores de acesso à
39 e 50 acessos por dia. Considerando, Internet (6). A rigor, uma comparação
porém, que a Embratel partia do nada, a precisa é difícil de ser feita, mas a título de
avaliação feita pela empresa não era ilustração vale lembrar que uma assinatura
totalmente negativa: verificava-se que residencial custava em junho de 1987 a
apesar de tudo uma clientela estava-se quantia de Crz$ 198,45, o que equivalia a
constituindo. Mas, quem eram esses 10,1% do salário mínimo da época. Além
primeiros clientes? dessa tarifa, havia ainda os custos pela
utilização dos serviços, os quais variavam
em função do volume de informações
UMA ELITE COMO PRIMEIRA transmitidas (medido em octetos), do tempo
CLIENTELA de conexão (medido em minutos) e ainda do
tempo de armazenamento de informações
Já foi referido acima que a clientela do na memória do computador da Embratel
Cirandão se dividia em dois grandes grupos: (procedimento necessário para a guarda
6 Estes variam em torno de R$
o residencial e o não-residencial, este último temporária das mensagens, dos “quadros de 30,00 para um acesso men-
sendo mais importante. Lamentavelmente, avisos” e das “teleconferências”). sal de 70 a 120 horas, sendo
de R$ 120,00 o valor do sa-
porém, não existem estatísticas para o pe- Um aspecto que chama a atenção quan- lário mínimo nacional.

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do se procura reconstituir os fatos desse com que outra pessoa rejeite essas mes-
período – aspecto que parece bastante con- mas técnicas, recuse-se a usá-las?
traditório face a uma evidente determina- Deixando de lado as restrições de or-
ção dos responsáveis pelo setor de teleco- dem econômica (que sem dúvida atingem
municações do país de implantar as novas a grande maioria da população brasilei-
tecnologias disponíveis no mercado – diz ra, mas não é esse o tipo de exclusão de
respeito à timidez, para não dizer a quase que se trata aqui) e para além de algumas
ausência, de marketing em torno do respostas já relativamente difundidas –
Cirandão (que hoje não existe mais). Na em geral, mulheres e pessoas mais velhas
verdade, há para isso uma explicação bas- teriam mais dificuldades para se apropri-
tante precisa: limites de ordem técnica, ar das técnicas, inclusive por razões bio-
especialmente da rede telefônica, que lógicas – pode-se estabelecer aqui algu-
conectava os usuários à Renpac. mas hipóteses. É possível que a aceita-
Subdimensionada para atender até mesmo ção bem como a rejeição ao uso das no-
às finalidades a que se destinava – ou seja, vas tecnologias estejam relacionadas à
a transmissão de voz –, essa rede entraria percepção dos riscos passíveis de serem
em colapso definitivo caso passasse a ser causados pelas mesmas. Essa percepção
mais intensamente utilizada para a trans- é variável, sendo ainda socialmente
missão de dados. construída. No caso, a percepção do ris-
co e também o seu contrário, o estabele-
CONSIDERAÇÕES FINAIS cimento da confiança, constroem-se com
base numa combinação heterogênea de
Assim, não foram poucos os problemas sentimentos inspirados em experiências
– de todas as ordens – que tiveram de ser pessoais anteriores – que configuram um
resolvidos para que, juntamente com a imaginário dado – e de informações qua-
novela Explode Coração, veiculada pela lificadas, obtidas junto a especialistas.
Rede Globo em 1995, explodisse no Brasil No que diz respeito à Internet, o gran-
o uso da Internet (7). de risco percebido, em princípio, é a in-
Apesar de todo o avanço registrado, vasão da privacidade pelos chamados “pi-
porém, observa-se que nem todos os que ratas cibernéticos”, seguida (ou não) da
possuem um computador e uma linha te- destruição ou alteração de arquivos pes-
lefônica estão dispostos a usar a rede, e soais. No mais, há pessoas com medo de
dentre os usuários desta, nem todos con- assumir sua real identidade, em certas cir-
somem todos os serviços disponíveis. cunstâncias; há pais receosos da exposi-
Assim, por exemplo, nem todos os con- ção de seus filhos a imagens violentas ou
tribuintes conectados optaram por fazer pornográficas, sem contar o excesso de
suas declarações de renda através do site tempo dedicado ao meio em si; há quem
criado pela Receita Federal para este fim; pense na saúde, temendo problemas cau-
nem todos os consumidores sentem-se à sados por posturas incorretas ou movi-
vontade de fornecer o número do seu mentos repetitivos, dentre outras restri-
cartão de crédito a um serviço de ções. Não será o caso de avaliar aqui a
televendas na rede; nem todos os pertinência ou não desses riscos, mas de
correntistas usam o home banking. Por considerar até que ponto a percepção dos
que essas restrições, essas resistências? mesmo inibem o uso da rede, atitude que
E por que elas não se aplicam sempre? O certamente se choca com os discursos
que está na origem dessas disposições? entusiastas, ou mesmo temerosos, a res-
7 Nessa novela, o par amoroso
Numa perspectiva mais geral, o que leva peito do rápido, inevitável e iminente
principal conheceu-se através uma pessoa a ser uma entusiasta da ino- domínio dos ciberespaço. Na verdade,
da Internet. Foi certamente a
partir desse momento que o vação tecnológica, a querer se apropriar ainda restam muitos agenciamentos
grande público brasileiro to- das novas técnicas, usá-las, incorporá-las sociotécnicos a serem efetivados a esse
mou conhecimento desta
rede. no seu cotidiano? Em contraste, o que faz respeito.

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