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NÃO SOU UM SERIAL KILLER

Para Rob, que me deu o maior incentivo que um irmão mais novo
pode dar, ser publicado primeiro.
AGRADECIMENTOS

Este livro existe graças a várias pessoas, sendo que a maioria (até
onde eu saiba) não é um serial-killer.
Primeiramente, devo mencionar Brandon Sanderson, que um
dia, no carro, mandou que me calasse e parasse de falar sobre
serial-killers e que simplesmente escrevesse um livro sobre eles.
Acabou sendo uma ótima ideia. Essa ideia foi então desenvolvida e
refinada por uma seria de grupos de escrita e leitores críticos,
incluindo (mas não restrito a) Peter Ahlstrom, Karla Bennion, Steve
Diamond, Nate Goodrich, Nate Hatfield, Alan Layton, Jeanette
Layton, Drew Olds, Bem Olsen, Bryce Moore, Janci Patterson, Emily
Sanderson, Ethan Skarstedt, Isaac Stewart, Eric James Stone, Sandra
Tayler e Kaylynn Zobell.
No âmbito profissional, devo agradecer a meu editor, Moshe
Feder e minha maravilhosa agente, Sarah Crowe. Sem a sua ajuda
este livro talvez fosse aceitável, mas não seria espetacular, e você
não teria ouvido falar dele. Se você o acha espetacular, ou tenha
ouvido falar dele, agradeça-os.
Um agradecimento especial vai à minha esposa, Dawn, que me
apoiou durante a escrita deste livro e não me largou depois de lê-
lo. Outros familiares que não me abandonarem incluem minha irmã
Allison, meu irmã Rob, minha sogra Marta e meus pobres pais,
Robert e Patty. A todos vocês, reitero que este livro não é
autobiográfico. Juro.
1.

A senhora Anderson estava morta.


Nada extraordinário, apenas a velhice – foi para cama um dia e
nunca acordou. Dizem que foi uma forma tranquila, digna, de
morrer, o que suponho que seja verdade, mas os três dias que que
levaram para que se dessem conta que não a viam há algum tempo
tiraram a maior parte da dignidade da situação. Sua filha
finalmente passou para verificar como ela estava e encontrou seu
cadáver de três dias apodrecido e fedendo como um animal morto.
A pior parte não foi a podridão, foram os três dias – três dias
inteiros até que alguém se importou o bastante para dizer “Pera aí,
onde está a velhinha que mora perto do canal?” Não há muita
dignidade nisso.
Mas tranquilo? Certamente. Ela morreu silenciosamente durante
o sono no dia 30 de agosto, segundo o legista, o que significa que
ela morreu dois dias antes de alguém arrancar as entranhas de Jeb
Jolley e larga-lo numa poça atrás da lavanderia. Naquela época não
sabíamos, mas a senhora Anderson foi, durante seis meses, a
última pessoa a morrer de causas naturais em Clayton County. O
Assassino de Clayton matou o resto.
Bem, a maior parte. Todos exceto um.
Recebemos o corpo da senhora Anderson no sábado, 2 de
setembro, depois que o legista terminou seu trabalho – ou, devo
dizer, minha mãe e tia Margaret receberam o corpo, não eu. São
elas que se encarregam da funerária; eu só tenho quinze anos.
Estive na cidade a maior parte do dia, assistindo a polícia limpar a
sujeira do Jeb, e voltei assim que o sol começou a se pôr. Entrei pela
porta dos fundos, no caso de minha mãe estar na frente da casa. Eu
realmente não queria vê-la.
Ninguém estava lá atrás ainda, apenas eu e o corpo da senhora
Anderson. Ele estava completamente imóvel em cima da mesa,
debaixo de um lençol azul. Fedia a carne podre e spray de inseto e o
único ventilador girando no alto não ajudava muito. Lavei minhas
mãos na pia, e, gentilmente, toquei o corpo. Pele de velhos era
minha preferida – seca e enrugada, com uma textura similar a papel
antigo. O legista não fez muito para limpar o corpo, provavelmente
por estar ocupado com o Jeb, mas o cheiro me fez acreditar que
pelo menos ele pensou nos insetos. Após três dias no calor de fim
de verão, deveria haver vários deles.
Uma mulher abriu a porta de trás da funerária e entrou,
parecendo uma cirurgiã com seu uniforme verde e sua máscara.
Congelei, pensando que era minha mãe, mas a mulher apenas me
olhou e se dirigiu ao balcão.
“Oi, Jonh”, ela falou, reunindo alguns panos esterilizados, não
era minha mãe, era sua irmã Margaret – eram gêmeas, e quando
usavam máscara eu mal podia notar a diferença. A voz da Margaret
era um pouco mais baixa, porém um pouco mais... enérgica. Eu
pensava que era por nunca ter se casado.
“Oi, Margaret.” Dei um passo para trás.
“Ron está ficando mais preguiçoso”, ela disse, pegando um
borrifador Dis-Spray. “Ele nem a limpou, só decretou causas naturas
e a transportou pra cá. A senhora Anderson merece mais que isso.”
Ela se virou para me olhar. “Vai ficar aí parado ou vai me ajudar?”
“Desculpa.”
“Lave-se.”
Arregacei as mangas ansiosamente e voltei à pia.
“De verdade”, ela continuou, “não sei o que fazem no necrotério.
Não é como se estivessem ocupados. Nós mal nos mantemos
abertos aqui.”
“Jeb Jolley morreu”, eu disse, secando as mãos, “eles o
encontraram hoje de manhã atrás do Wash-n-Dry.”
“O mecânico?” Perguntou Margaret, a voz ficando mais baixa.
“Que horror. Ele é mais novo que eu. O que aconteceu?”
“Assassinado”, eu disse, e peguei uma máscara e um avental no
gancho da parede. “Eles pensavam que poderia ter sido um cão
selvagem, mas suas entranhas estavam meio que empilhadas.”
“Que horror.” Margaret repetiu.
“Bem, é você que estava preocupada em falir”, eu disse, “dois
corpos em uma semana é dinheiro no caixa.”
“Nem brinque com isso, John”, ela falou, olhando-me
severamente. “A morte é triste, mesmo que pague sua hipoteca.
Está pronto?”
“Sim.”
“Segure o braço dela estendido.”
“Eu agarrei o braço direito e o estendi. O rigor mortis deixa o
corpo tão rígido que você mal pode movê-lo, mas só dura um dia e
meio e este aqui estava morto há tanto tempo que os músculos
estão todos relaxados novamente. Mesmo que a pele fosse como
papel, a carne por baixo era macia, como massa. Margaret borrifou
desinfetante no braço e enxugou com um pano cuidadosamente.
Mesmo quando o legista faz seu trabalho e limpa o corpo, nós
sempre o limpamos antes de começar. O embalsamento é um
processo longo, com muito trabalho minucioso, e você precisa de
um corpo limpo para isso.
“isso fede bastante”, eu disse.
“Ela”
“Ela fede bastante”, eu disse. Mamãe e Margaret eram inflexíveis
quanto ao respeito pelo falecido, mas parecia um pouco tarde para
isso. Não era mais uma pessoa, era apenas um corpo. Uma coisa.
“Ela fede mesmo” Margaret disse. “Coitada. Queria que a
tivessem encontrado antes.” Ela olhou para o ventilador girando
atrás da sua grade no teto. “Vamos torcer para que o motor não
nos falhe esta noite.” Margaret dizia a mesma coisa antes de todos
os embalsamentos, era como um ritual sagrado. O ventilador
continuou a ranger lá em cima.
“Perna”, ela disse. Eu me desloquei até o pé do corpo e estendi a
perna enquanto Margaret a borrifava. “Vire o rosto.” Eu mantive
minhas mãos enluvadas nó pé e me virei para encarar a parede
quando Margaret levantou o lençol para lavar a parte superior das
coxas. “Uma boa coisa que saiu disso,” ela disse, “é que você pode
apostar que toda viúva do país recebeu uma visita hoje, ou
receberá uma amanhã. Todo mundo que souber da senhora
Anderson vai ir direto para suas mães, só para se certificar. A outra
perna.”
Eu queria dizer algo sobre como todos que soubessem do Jeb
iriam direto para seus mecânicos, mas Margaret nunca gostou de
piadas desse tipo.
Nos movemos ao longo do corpo, da perna ao braço, do braço ao
torso, do torso à cabeça, até que tudo fosse esfregado e
desinfectado. O cômodo cheirava a morte e sabão. Margaret jogou
handos panos na cesta da lavanderia e começou a reunir os
verdadeiros produtos de embalsamento.
Eu vinha ajudando mamão e Margaret desde que era um
garotinho, antes de papai nos abandonar. Meu primeiro trabalho foi
limpar a capela: recolhendo os folhetos, esvaziando cinzeiros,
aspirando o chão, e outros serviços diferentes que um menino de
seis anos poderia fazer sozinho. Ganhei outros serviços ao
envelhecer, mas não ajudei nas coisas maneiras – embalsamento –
até completar doze anos. O embalsamento era... não sei como
descrevê-lo. É como brincar com uma boneca gigante, vestindo-a e
banhando-a e abrindo-a para ver seu interior. Observei a mamãe
quando tinha oito anos, espiando pela porta para ver qual era o
grande segredo. Quando eu retalhei meu ursinho de pelúcia na
semana seguinte, acho que ela não fez a conexão.
Margaret me passou um chumaço de algodão que eu mantinha
ao alcance da mão enquanto ela enfiava uns tufos com cuidado
debaixo das pálpebras do cadáver. Os olhos começavam a afundar,
murchando ao perder a umidade e o algodão ajudava a manter o
formato correto para o velório. Também ajudava a manter as
pálpebras fechadas, mas Margaret sempre colocava um pouco de
creme selante, por precaução, para manter a umidade e a pálpebra
fechada.
“Passe-me o fuzil de agulhas, por favor, John.” ela pediu, e eu
corri para largar o algodão e pegar o fuzil numa placa de metal na
parede. O fuzil é um longo tubo de metal com dois apoios de dedos
nos lados, como uma seringa hipodérmica.
“Posso fazer desta vez?”
“Claro”, ela disse, puxando para trás as bochechas e o lábio
superior. “Bem aqui.”
Posicionei o fuzil cuidadosamente sobre a gengiva e apertei,
inserindo uma pequena agulha no osso. Os dentes eram longos e
amarelados. Pusemos mais uma agulha na parte inferior da
mandíbula e trançamos um fio através delas, enrolando
firmemente para manter a boca fechada. Margaret espalhou um
pouco de creme selante num suporte de plástico pequeno, como
uma fatia de laranja, e colocou-o dentro da boca para manter tudo
fechado.
Assim que cuidamos do rosto, posicionamos o corpo
cuidadosamente, estirando as pernas e cruzando os braços na
frente do peito, na clássica “pose de morto”. Após o formaldeído
entrar nos músculos eles contraem e se enrijecem. Primeiro você
coloca tudo no lugar, para que a família não tenha um corpo
deformado no velório.
“Segure sua cabeça”, disse Margaret, e eu imediatamente
coloquei uma mão de cada lado da cabeça do cadáver para mantê-
lo estabilizado. Margaret apalpou com os dedos acima da clavícula
direita, então fez um corte longo e superficial na concavidade do
pescoço da senhora. Quando você corta um corpo quase não há
sangue. Já que o coração não está batendo, não há pressão
sanguínea, e a gravidade puxa todo o sangue para a parte de trás
do corpo. Como este estava morto há mais tempo que o normal, o
tórax estava flácido e seco, enquanto as costas estavam quase
roxas, como um enorme hematoma. Margaret penetrou o buraco
com um pequeno gancho de metal e retirou duas veias grandes –
tecnicamente uma veia e uma artéria – e enlaçou uma corda ao
redor de cada uma. Eram roxas e escorregadias, dois laços alguns
centímetros fora do corpo, que depois foram recolocados dentro.
Margaret se virou para preparar o bombeamento.
A maioria das pessoas não sabe quantos produtos químicos
diferentes um embalsamador utiliza, mas a primeira coisa que você
percebe não são quantos há, mas todas as cores diferentes que
possuem. Cada garrafa – o formaldeído, os anticoagulantes, o
cauterizante, os germicidas, os amaciadores, entre outros – tem sua
própria cor viva, como suco de frutas. A fila de fluidos
embalsamantes parece os sabores de xarope da barraca de
raspadinhas. Margaret escolheu os produtos químicos
cuidadosamente, como se estivesse preparando uma sopa. Nem
todo corpo precisava de todos os produtos e encontrar a receita
certa para cada corpo era tanto uma arte como uma ciência.
Enquanto ela lidava com isso, soltei a cabeça e peguei o bisturi.
Nem sempre elas me deixavam fazer incisões, mas se eu fizesse
quando não estivessem olhando conseguia me safar. Eu era bom
nisso também, o que ajudava.
A artéria puxada por Margaret seria usada para bombear o corpo
todo pelo coquetel que ela preparava; ao penetrar o corpo, os
fluidos anteriores, como o sangue e a água, seriam expelidos
através da veia exposta em direção a um tubo de drenagem e dali
ao chão. Fiquei surpreso ao descobrir que tudo isso ia direto pro
esgoto, mas bem – para onde mais iria? Não é pior que qualquer
outra coisa lá embaixo. Quando o buraco estava pronto, eu apanhei
a cânula – um tubo curvo de metal – e enfiei a ponta estreita na
abertura. A artéria era borrachuda, como uma mangueira fina, e
coberta com minúsculas fibras de músculo e capilares. Pousei o
tubo de metal cuidadosamente no peito e fiz um corte similar na
veia, desta vez inserindo um tubo de drenagem conectado a um
longo tubo espiral de plástico transparente que serpenteava em
direção ao ralo no chão. Puxei com força os fios que Margaret
amarrou em cada veia, selando-os.
“Parece bom”, Margaret disse, empurrando a bomba para a
mesa. Era de rodinhas para não atrapalhar, mas agora estava no
lugar de honra no meio do cômodo enquanto Margaret conectava a
mangueira principal à cânula que eu inseri na artéria. Conferiu a
selagem rapidamente, acenou para mim em aprovação e despejou
o primeiro produto químico - um anticoagulante laranja berrante
para desfazer os coágulos – dentro do recipiente em cima da
bomba. Pressionou um botão e a bomba sacudiu preguiçosamente
ao ligar, no ritmo de um coração de verdade, e ela observou com
atenção enquanto mexia nos botões que controlavam a pressão e
velocidade. A pressão do corpo se normalizou rapidamente e logo
um sangue viscoso e escuro fluiu em direção ao esgoto.
“Como vai a escola?” Margaret perguntou, removendo uma luva
para coçar a cabeça.
“Só passaram alguns dias”, eu disse. “Não acontece muito na
primeira semana.”
“Mas é a primeira semana escolar”, disse Margaret. “É
empolgante, certo?”
“Não especificamente”, eu disse.
O anticoagulante tinha quase acabado, então Margaret
derramou um condicionador azul na bomba para preparar as veias
para receberem o formaldeído. Ela sentou-se. “Fez novos amigos?”
“Sim”, eu disse. Uma escola inteira se mudou para a cidade no
verão, então por um milagre não estou preso às mesmas pessoas
que conheço desde o jardim de infância. E, obviamente, todos
queriam fazer amizade com o garoto esquisito. Foi fofo.
“Você não devia zombar de si mesmo dessa forma.” Ela disse.
“Na verdade, eu estava te zoando.”
“Você não deveria fazer isso também”, Margaret disse, e eu via
em seus olhos que ela sorria disfarçadamente. Ela se levantou para
pôr mais produtos químicos na bomba. Agora que os dois primeiros
produtos já estavam quase terminados, ela começou a misturar os
fluidos de embalsamento – um amaciante e um emoliente de água
para evitar que os tecidos inchassem, preservativos e germicidas
para manter o corpo em boas condições (tão boas quanto possíveis
nesse estágio) e tintura para dar-lhe uma aparência rosada e viva. A
chave de tudo é, claro, o formaldeído, um veneno poderoso que
mata tudo dentro do corpo, enrijece os músculos, conserva os
órgãos e faz o embalsamento propriamente dito. Margaret
adicionou uma quantidade considerável de formaldeído,
juntamente com um forte perfume verde para encobrir o cheiro
acre. O tanque da bomba era como um caldeirão de uma gosma
colorida, como a máquina de raspadinha do posto de gasolina.
Margaret prendeu a tampa e me conduziu à porta dos fundos; o
ventilador não era bom o suficiente para arriscarmos ficar no
cômodo com aquela quantidade de formaldeído. Estava
completamente escuro lá fora e a cidade estava quase silenciosa.
Sentei nos degraus e Margaret se encostou na parede, observando
através na porta no caso de algo dar errado.
“Já tem lição de casa?” ela perguntou.
“Tenho que ler a introdução dos meus livros escolares no final de
semana, o que claro que todo mundo faz, e escrever uma redação
para a aula de história.”
Margaret me olhou, tentando se fazer de indiferente, mas seus
lábios estavam firmemente apertados e ela começou a piscar. Eu
sabia, graças ao longo convívio, que algo a estava incomodando.
“Atribuíram um tema?” ela perguntou.
Mantive o rosto impassível. “Grandes figuras da história
americana.”
“Então... George Washington? Talvez o Lincoln.”
“Já escrevi.”
“Ótimo”, ela disse, sem convicção. Parou por um longo momento
e abandonou o fingimento. “Tenho que adivinhar ou você vai me
contar sobre qual dos seus psicopatas escreveu?”
“Não são ‘meus’ psicopatas.”
“John...”
“Dennis Raider”, eu disse, olhando a rua. “Eles o prenderam
apenas alguns anos atrás, então eu pensei que tinha um ar de
‘evento atual’.
“John, o Dennis Raider é o BTK. É um assassino. Eles pediram
grandes figuras, não um...”
“O professor pediu uma grande figura, não uma boa, então os
malvados também valem.” Eu disse. “Ele até sugeriu o John Wilkes
Booth como uma opção.”
“Há uma diferença enorme entre um assassino e um serial-
killer.”
“Eu sei”, eu disse, observando-a. “Por isso que escrevi isso.”
“Você é uma criança muito esperta”, Margaret disse, “de
verdade. Você é provavelmente o único aluno que terminou a
redação. Mas você não pode... não é normal. John, eu esperava que
você superasse essa obsessão com assassinos.”
“Assassinos não”, eu disse, “serial-killers.”
“Essa é a diferença entre você e o resto do mundo, John. Nós
não sabemos a diferença entre eles.” Ela voltou para dentro e
começou a trabalhar com a cavidade do corpo, sugando toda a bílis
e o veneno até o corpo estar purificado e limpo. Parado lá fora no
escuro, olhei para o céu e esperei.
Não sei o que esperava.
2.

Não recebemos o corpo de Jeb Jolley naquela noite, nem pouco


tempo depois e eu passei a semana seguinte em uma expectativa
ansiosa, correndo da escola para casa para ver se ele já tinha
chegado. Parecia natal. O legista ficou com o corpo por um tempo
mais longo que o normal para realizar uma autópsia completa. O
Clayton Daily publicava artigos sobre a morte todo o dia,
confirmando, finalmente, na terça-feira, que a polícia suspeitava
que se tratava de um assassinato. A primeira impressão havia sido
que Jeb havia sido morto por um animal selvagem, mas,
aparentemente, havia inúmeras pistas que havia sido algo mais
elaborado. A natureza dessas pistas, claro, não foi revelada. Foi a
coisa mais sensacional que aconteceu em Clayton County na minha
vida inteira.
Na terça, rebemos nossas redações. Tirei 10 e havia “escolha
interessante!” escrito na margem. O garoto com quem eu andava,
Maxwell, perdeu dois pontos pela extensão e dois pela ortografia;
ele escreveu meia página sobre Albert Einstein, sendo que cada vez
ele escreveu Einstein de uma forma diferente.
“Não é como se houvesse muita coisa a ser dita sobre o
Einstein”, Maxwell disse, enquanto sentávamo-nos numa mesa no
canto da cantina da escola. “Ele descobriu que e=mc², as bombas
nucleares, e só. Tive sorte de conseguir meia página.
Eu não gostava do Maxwell, o que era uma das coisas mais
normais, socialmente falando, sobre mim – ninguém gostava dele
de verdade. Ele era baixo e meio gordo, usava óculos e uma
bombinha de asma e tinha um guarda-roupa cheio de roupas de
segunda mão. Mais do que isso, ele tinha uma atitude insolente e
irritante, falando muito alto e com autoridade sobre tópicos dos
quais não entendia quase nada. Resumindo, ele agia como os
bullies, sem a força e o carisma que eles tinham. Isso servia pra
mim, porque ele tinha a qualidade que eu mais desejava em um
colega de escola – gostava de falar e não ligava muito se eu lhe
desse ou não atenção. Era parte do meu plano passar
despercebido: separados, éramos apenas um garoto esquisito que
falava sozinho e um garoto esquisito que não falava com ninguém;
juntos, éramos dois garotos esquisitos tendo algo semelhante a
uma conversa. Não era muito, mas no fazia parecer mais normais.
Dois erros faziam um acerto.
A Clayton High School era velha e caía aos pedaços, como o resto
da cidade. Os alunos vinham de ônibus de todas as partes do
município, e creio que pelo menos um terço vinha de fazendas e
vilarejos além dos limites da cidade. Havia alguns garotos que eu
não conhecia – algumas famílias distantes educavam os filhos em
casa até o ensino médio – mas a maior parte era formada por
pessoas com as quais eu tinha crescido desde o jardim de infância.
Ninguém visitava Clayton, eles só atravessavam a rodovia e davam
um olhar de relance ao passar. A cidade ficava ao lado da rodovia e
apodrecia, como um animal morto.
“Sobre quem você escreveu?” disse Max.
“Quê?” eu não estava prestando atenção.
“Perguntei sobre quem você escreveu na redação”, disse Max,
“aposto que foi sobre o John Wayne.”
“Por que eu escreveria sobre o John Wayne?”
“Porque seu nome é em homenagem a ele.
Ele estava certo; meu nome é John Wayne Cleaver. O nome da
minha irmã é Lauren Bacall Cleaver. Meu pai era fã de filmes de
caubói.
“Ter o nome de alguém nãos os torna interessantes.” Eu disse,
olhando para a multidão. “Por que você não escreveu sobre
Maxwell House?”
“Ele é um cara?” Max perguntou. “Pensei que fosse uma
empresa de café.”
“Escrevei sobre o Dennis Raider.” Eu disse. “Ele era o BTK.”
“O que é BTK?”
“Atar, torturar e matar (bind, torture, kill),” eu disse, “BTK é como
o Dennis Raider assinava suas cartas para os jornais.
“Maneiro, cara,” Max disse. “Quantas pessoas ele matou?” Ele
claramente não estava perturbado com isso.
“Dez, talvez,” eu disse. “A polícia ainda não ter certeza.”
“Só dez?” Max perguntou. “Você poderia matar mais pessoas
que isso ao roubar um banco. Aquele cara do seu trabalho ano
passado era muito melhor.”
“Não importa quantas pessoas eles matam,” eu disse. “E não é
maneiro, é errado.”
“Então por que você fala sobre eles o tempo todo?” Max
perguntou.
“Porque o errado é interessante.” Eu só estava parcialmente
envolvido na conversa, pensava em como seria legal ver um corpo
depois de ser completamente desmontado após uma autópsia.
“Você é estranho, cara,” Max disse, dando outra mordida no
sanduíche. “É tudo que tenho a dizer. Um dia você vai matar um
monte de gente – provavelmente mais que dez, já que é um
perfeccionista – e então vão me chamar para a TV e perguntar se
eu imaginava isso acontecendo e eu vou dizer, “Com certeza,
aquele cara era completamente perturbado.”
“Então acho que tenho que te matar primeiro,” eu disse.
“Boa tentativa,” Max disse, rindo e tirando a bombinha de asma
do bolso. “Eu sou, tipo, seu único amigo no mundo – você não me
mataria.” Deu uma tragada na bombinha e a pôs de volta no bolso.
“Além disso, meu pai foi do exército e você é um emo magrelo.
Queria ver você tentar.”
“Jeffrey Dahmer,” eu disse, escutando só metade do que ele
falava.
“Quê?”
“O trabalho que eu fiz ano passado foi sobre o Jeffrey Dahmer,”
eu disse. “Ele era um canibal que mantinha cabeças cortadas no
freezer.”
“Agora eu lembro,” Max disse, seus olhos escurecendo. “Seus
cartazes me deram pesadelos. Foi fantástico.”
“Pesadelos não são nada,” eu disse. “Aqueles cartazes me deram
um psicólogo.”

“Eu estava fascinado – tentei não usar a palavra obcecado – com


serial-killers há um longo tempo, mas foi só com o meu trabalho
sobre o Jeffrey Dahmer na última semana do ensino fundamental
que minha mãe e meus professores se preocuparam o suficiente
para me mandar para a terapia. Meu psicólogo se chamava Dr. Ben
Neblin e, durante o verão, eu tive uma consulta com ele toda
quarta-feira de manhã. Falávamos sobre várias coisas – sobre meu
pai ter desaparecido, a aparência de um cadáver, como o fogo é
bonito – mas conversávamos, na maior parte, sobre serial-killers.
Ele me dizia que não gostava do assunto, que o deixava
desconfortável, mas isso não me impedia. Mamãe pagava pelas
sessões e eu não tinha mais ninguém com quem falar sobre isso,
então Neblin ouvia tudo.
Depois que as aulas voltaram no outono, nossas sessões
passaram às tardes de quinta-feira, então, quando as aulas
terminavam, eu colocava aquela quantidade excessiva de livros na
mochila e pedalava seis quarteirões até o escritório do Neblin. No
meio do caminho eu virei na esquina do antigo cinema e peguei um
atalho – o Wash-N-Dry ficava a apenas dois quarteirões e eu queria
ir até o local onde o Jeb Jolley foi assassinado.
A faixa da polícia havia sido finalmente retirada e a lavanderia
estava aberta, mas vazia. A parede dos fundos só tinha uma
pequena janela com grade que eu imaginava ser do banheiro. A
área dos fundos era quase totalmente isolada, o que os jornais
diziam que tornava a investigação policial bem complicada –
ninguém havia visto ou ouvido o ataque, mesmo que supusessem
que houvesse ocorrida às dez horas da noite, quando a maioria dos
bares ainda estavam abertos. Jeb estava voltando de um rumo a
casa quando morreu.
Eu esperava encontrar grandes marcas de giz no asfalto – uma
do corpo e outra, próxima, da grande pilha de entranhas. Em vez
disso, toda a área havia sido limpa por uma mangueira de alta
pressão, o sangue e o cascalho varridos.
Encostei minha bicicleta na parede e caminhei lentamente para
verificar se havia algo, qualquer coisa, a ser visto. O asfalto estava
sombreado e frio. Parte da parede havia sido esfregada também,
quase até o teto, não era difícil saber onde o corpo havia estado.
Ajoelhei-me e investiguei o chão, notando aqui e ali umas manchas
roxas no asfalto onde o sangue havia resistido à água.
Depois de um minuto, encontrei, lá perto, uma mancha mais
escura – uma mancha do tamanho de uma mão, mais viscosa e
escura que sangue. Cutuquei com a unha e saíram alguns
pedacinhos parecidos com cinzas oleosas, como carvão de
churrasco. Limpei as mãos nas calças e me levantei.
Era estranho estar num local onde alguém foi assassinado. O
rumor dos carros na rua chegava abafado pelas paredes e pela
distância. Tentei imaginar o que havia ocorrido aqui – de onde Jeb
vinha, para onde ia, por que tomou um atalho pelos fundos e onde
estava quando o assassino atacou. Talvez estivesse atrasado para
algo e se apressou, talvez estivesse zanzando bêbado sem saber
onde estava. Na minha mente eu o via corado e sorridente, sem
ideia de que a morte o seguia.
Imaginei o agressor também, pensando – por um momento –
onde eu me esconderia se fosse matar alguém aqui. Havia muitas
sombras na área, ângulos peculiares de cerca, parede e chão. Talvez
o assassino houvesse se deitado atrás de um carro, ou se agachado
atrás de um poste telefônico. Visualizei-o espreitando no escuro,
olhos perscrutadores, enquanto Jeb bambeava, bêbado e indefeso.
Estava com raiva? Com fome? As diversas teorias da polícia eram
sinistras e atormentadoras – o que poderia atacar de uma forma
tão brutal, mas tão minuciosamente, para que as pistas
apontassem tanto para um homem quanto uma besta? Imaginei
garras ligeiras e dentes brilhantes rasgando através do luar e da
carne, jatos de sangue espirrando na parede.
Permaneci mais um instante, absorvendo tudo com muita culpa.
O Dr. Neblin me perguntaria onde estive e me recriminaria se lhe
contasse aonde tinha ido, mas não era isso que me incomodava. Ao
vir aqui, estava escavando algo maior e mais fundo, fazendo
pequenas riscas numa parede que não me atreveria violar. Havia
um monstro atrás daquela parede, e eu a construí fortificada para
mantê-lo à distância. Agora ele havia se agitado e esticado, inquieto
no seu sono. Aparentemente havia um novo monstro na cidade –
sua presença traria à tona aquele que escondi dentro de mim?
Chegou a hora de partir. Subi na bicicleta e pedalei os últimos
quarteirões até o escritório do Neblin.
“Quebrei uma das minhas regras hoje,” eu disse, observando,
através das persianas do escritório, a rua abaixo. Carros luminosos
passavam em uma procissão irregular. Podia sentir os olhos do
Neblin na minha nuca, estudando-me.
“Uma de suas regras?” ele perguntou. Sua voz estava regular e
firme. Era uma das pessoas mais calmas que eu conhecia, se bem
que eu passava a maior parte do tempo com a mamão, tia
Margaret e Lauren. Sua calma era uma das razões para eu vir de
bom grado.
“Tenho regras,” eu disse, “para me impedir de fazer coisas...
erradas.”
“Que tipo?”
“Que tipo de coisas erradas?” perguntei. “Ou que tipo de
regras?”
“Gostaria de saber os dois, mas pode começar com qual você
preferir.”
“Então melhor começarmos com as coisas que tento evitar,” eu
disse. “As regras não farão sentido se você não souber quais são.”
“Certo,” ele disse e me virei em sua direção. Era um homem
baixo, quase inteiramente careca e usava pequenos óculos
redondos de armação preta e fina. Sempre carregava um bloco de
notas e ocasionalmente anotava enquanto conversávamos. Isso
costumava me deixar nervoso, mas ele ofereceu mostrar-me
sempre que eu quisesse. Nunca escrevia coisas como “que maluco”
ou “esse garoto é doido”, apenas notas simples para lembra-lo do
que falávamos. Tenho certeza que ele tinha um livro onde escrevia
“que maluco” e essas coisas, mas o mantinha escondido.
E se ainda não tinha, teria depois disso.
“Acho,” eu disse, perscrutando seu rosto atrás de uma reação,
“que o destino quer que eu me torne um serial-killer.”
Ele levantou uma sobrancelha, só isso. Falei que ele era calmo.
“Bem,” ele disse, “você é obviamente fascinado por eles – já leu
mais desse assunto do que qualquer outra pessoa nesta cidade, até
mesmo que eu. Você quer se tornar um serial-killer?”
“Claro que não,” eu disse. “Mais especificamente, quero evitar
tornar-me um. Só não sei é possível.”
“Então as coisas que você quer evitar são – matar pessoas?” Ele
me olhou torto, um sinal que estava brincando. Ele sempre dizia
algo sarcástico quando entrávamos em assuntos pesados. Acho que
era sua forma de lidar com ansiedade. Quando eu lhe contei que
havia dissecado um esquilo vivo, camada por camada, ele contou
três piadas seguidas e quase gargalhou. “Se você quebrou uma
regra tão importante,” ele continuou, “sou obrigado a ir à polícia,
com ou sem sigilo.”
Aprendi sobre o sigilo do paciente nas primeiras sessões, quando
falei sobre começar incêndios. Se ele pensasse que eu havia
cometido um crime, ou estava prestes a cometer um, ou se
pensasse que eu era um risco a outras pessoas, a lei o obrigava a
reportar às autoridades. Também estava livre, por lei, a discutir com
minha mãe qualquer coisa que eu dissesse, tendo, ou não, uma boa
razão. Os dois tiveram várias conversas durante o verão e ela me fez
sentir péssimo por causa delas.
“As coisas que quero evitar são bem menores que assassinato,”
eu disse. “Serial-killers são normalmente, - quase sempre, de fato, -
escravos de suas compulsões.” Eles matam porque devem e não
podem impedi-lo. Não quero chega a esse ponto, então fiz regras
sobre coisas pequenas – tipo, como eu gosto de observar pessoas,
não me permito observá-las por muito tempo. Se não consigo,
forço-me a não olhar pra essa pessoa por uma semana, nem pensar
nela.”
“Então você tem regras para impedi-lo de cometer pequenos
atos de serial-killers,” Neblin disse, “de forma a se manter distante
de coisas mais graves.”
“Exatamente.”
“Acho interessante,” ele disse, “que você usou a palavra
‘compulsões’. Isso meio que exclui a questão da responsabilidade.”
“Mas estou responsabilizando-me,” eu disse. “Estou tentando
parar.”
“Está,” ele disse, “e é admirável, mas você começou a conversa
afirmando que o destino quer que se torne um serial-killer. Se você
se convencer que seu destino é se tornar um serial-killer, então
você não estaria esquivando-se da responsabilidade ao transferir a
culpa ao destino?”
“Eu disse ‘destino’, expliquei, porque isso vai além de
peculiaridades de comportamento. Há alguns aspectos da minha
vida que não posso controlar, que só podem ser explicados como
destino.”
“Por exemplo?”
“Meu nome é o mesmo de um serial-killer,” eu disse. “John
Wayne Gacy matou trinta e três pessoas em Chicago e enterrou-as
no subsolo da sua casa.”
“Seus pais não te deram esse nome em homenagem ao John
Wayne Gacy.” Neblin disse, “Acredite ou não, perguntei à sua mãe
sobre isso.
“Perguntou?”
“Sou mais inteligente do que pareço,” ele disse. “Mas você deve
lembrar que uma ligação casual com um serial-killer não é destino.”
“O nome do meu pai é Sam,” eu disse. “Isso me torna O Filho de
Sam – um serial-killer de New York que afirmou que seu cachorro
lhe mandou matar pessoas.”
“Então você tem ligações casuais com dois serial-killers,” ele
disse. “É meio estranho, admito, mas ainda não vejo uma
conspiração cósmica contra você.”
“Meu sobrenome é Cleaver1, eu disse. “Quantas pessoas você
conhece com o nome de um serial-killer e uma arma?”
Dr. Neblin se mexeu na cadeira, batendo a caneta no papel. Isso,
eu sabia, significava que estava tentando pensar. “John,” ele disse
após um momento, “eu gostaria de saber que coisas te assustam,
mais especificamente, voltando ao que você disso mais cedo. Quais
são suas regras?”
“Eu contei sobre observar pessoas,” eu disse. “Essa é uma. Adoro
observar pessoas, mas sei que se fizer isso por muito tempo eu fico
muito interessado – vou segui-las, ver aonde vão, saber com quem
falam e o que as motiva. Alguns anos atrás, percebi que estava
seguindo uma garota da escola – literalmente seguindo-a a todas as
partes. Isso pode, rapidamente, ir longe demais, então criei a regra:
se eu observar uma pessoa por muito tempo, devo evita-la por uma
semana.
Neblin acenou, mas não interrompeu. Fiquei satisfeito em não
ter perguntado o nome da garota, porque só em falar nela me fez
sentir como se quebrasse uma das regras.
“Tenho a regra com os animais,” eu disse. “Você lembra o que eu
fiz com o esquilo.”

1
Cutelo
Ned sorriu, nervosamente. “O esquilo certamente não lembra.”
Suas piadas nervosas estavam ficando mais caretas.
“Não foi a única vez,” eu disse. “Papai costumava colocar
armadilhas no jardim para esquilos, toupeiras, etc., e era meu
dever verificá-las todas as manhãs e esmagar qualquer coisa que
não estivesse morta com uma pá. Quando tinha sete anos, comecei
a abri-los e ver como eram por dentro, mas depois que comecei a
estudar sobre serial-killers parei com isso. Já ouviu falar sobre a
tríade de MacDonald?”
“Três traços compartilhados por 95% dos serial-killers,” Dr.
Neblin disse. “Enurese, piromania e crueldade com animais. Você
possui, admito, todos os três.”
“Descobri isso aos oito anos,” eu disse. “O que me pegou não foi
o fato de que a crueldade com animais pode prever
comportamento violento, - foi que, até ler aquilo, eu não achasse
errado. Eu matava animais e os dissecava como uma criança
brincando de Lego. Eles não eram reais para mim – eram apenas
brinquedos com os quais brincava. Coisas.”
“Se você não achava errado,” perguntou Neblin, “por que
parou?”
“Porque foi a primeira vez que percebi que não era como os
demais,” eu disse. “Aqui está algo que eu faço o tempo todo, sem
ligar muito, e o resto do mundo acha condenável. Foi aí que percebi
que deveria mudar, então comecei a inventar as regras. A primeira
foi: não mexa com animais.”
“Não os mate?”
“Não faça nada com eles,” eu disse. “Eu não tenho cachorro, não
brinco com cachorros na rua e nem gosto de ir à casa de alguém
que tem animais. Evito qualquer circunstância que possa me levar a
fazer algo que eu não deveria.”
Neblin me olhou por um momento. “Tem mais?” perguntou.
“Se eu penso em machucar alguém,” eu disse, “eu os elogio. Se
alguém me chateia ao ponto que eu o odeie e me imagine
matando-o, eu digo algo gentil e dou um grande sorriso. Isso me
força a ter bons pensamentos ao contrário dos maus, o que
normalmente os faz sumir.”
Neblin pensou por um momento antes de responder. “É por isso
que você lê tanto sobre serial-killers,” ele disse. “Você não
diferencia o certo do errado como as outras pessoas, então lê para
descobrir o que deve evitar.”
Assenti. “E claro que ajuda o fato que é maneiro ler sobre isso.”
Ele escreveu algumas anotações no bloco.
“Então, qual regra você violou hoje?” ele perguntou.
“Eu fui ao local onde encontraram o cadáver do Jeb Jolley,” eu
disse.
“Estava me perguntando por que você não o tinha mencionado
antes,” ele disse. “Você tem uma regra sobre se manter afastado de
cenas de crimes?”
“Na verdade, não,” eu disse. “Por isso consegui justifica-lo a mim
mesmo. Eu não estava violando uma regra específica, só a ideia de
uma.”
“E por que você foi até lá?”
“Porque alguém foi morto lá,” eu disse. “Eu tinha que... ver.”
“Você foi escravo da sua compulsão?” ele perguntou.
“Você não deve usar isso contra mim.”
“Eu meio que devo,” disse Neblin. “Sou um terapeuta.”
“Vejo cadáveres o tempo todo no necrotério,” eu disse, “e acho
que não há problema – mamãe e Margaret trabalham lá há anos e
não são serial-killers. Eu vejo várias pessoas vivas e várias pessoas
mortas, mas nunca vi uma pessoa viva se tornar morta. Tenho...
curiosidade.”
“E a cena de um crime é o mais próximo disso sem que você
mesmo cometa o assassinato.”
“Sim,” eu disse.
“John, escuta,” Neblin disse, aproximando-se, “você tem vários
traços comportamentais de um serial-killer, eu sei – de fato, acho
que você é a pessoa com mais traços que eu conheço. Mas você
deve se lembrar que traços são só isso – eles preveem o que pode
acontecer, não profetizam o que irá acontecer. 95% dos serial-killers
molham a cama, acendem fogos e machucam animais, mas isso não
significa que 95% das crianças que fazem isso se tornarão um. Você
está sempre no controle do seu destino e você é quem toma suas
próprias decisões – ninguém mais. O fato de você possuir essas
regras e segui-las diz muito sobre seu caráter. Você é uma boa
pessoa, John.”
“Eu sou uma boa pessoa,” eu disse, “porque sei como boas
pessoas se comportam e as imito.”
“Se você é tão rigoroso como diz,” Neblin disse, “ninguém vai
notar a diferença.”
“Mas não sou rigoroso o suficiente,” eu disse, olhando pela
janela, “quem sabe o que pode acontecer?”
3.

Mamãe e eu vivíamos em um apartamento de um andar em


cima da funerária; as janelas da sala davam para o portão de
entrada e a única porta dava para uma escadaria estreita que levava
à garagem lateral. As pessoas sempre acham que é arrepiante
morar numa funerária, mas na verdade é como qualquer outra
casa. Claro, temos cadáveres no porão, mas também temos uma
capela, então é um empate, certo?
Na noite de sábado ainda não havíamos recebido o cadáver do
Jeb. Mamãe e eu jantamos silenciosamente, deixando que a pizza e
o barulho da TV substituíssem a camaradagem e conversa de um
relacionamento de verdade. Os Simpsons estava no ar, mas eu não
estava realmente assistindo – eu queria aquele corpo. Se a polícia o
mantivesse por mais tempo, não poderíamos embalsama-lo,
apenas coloca-lo num saco e fazer um funeral com caixão fechado.
Mamãe e eu sempre discordávamos sobre sabor de pizza, então
havíamos pedido metade-metade: minha metade tinha calabresa e
cogumelos e o seu pepperoni. Até mesmo Os Simpsons era uma
concessão – passava depois do jornal e como mudar de canal era
um risco de briga, nós deixávamos de lado.
Durante o primeiro intervalo, mamãe pegou o controle remoto,
o que significava que ela poria a TV no mudo e começaria uma
conversa, o que significava que começaríamos uma discussão. Pôs o
dedo em cima do botão do mudo e esperou, sem pressioná-lo. Se
hesitava tanto, era porque o assunto era pesado. Depois de um
momento, afastou a mão e pegou outro pedaço de pizza,
mordendo-o.
Sentamos tensos durante o seguimento seguinte, sabendo o que
nos esperava e planejando nossas jogadas. Pensei em levantar e
sair, escapando antes do próximo intervalo, mas isso só iria
contrariá-la. Mastiguei devagar, assistindo entorpecido enquanto o
Homer pulava e gritava e corria pela tela.
Outro intervalo começou e a mão da mamãe pairou acima do
controle – brevemente desta vez – antes de pressionar o botão de
mudo. Ela mastigou, engoliu e falou.
“Falei com o Dr. Neblin hoje,” ela falou.
Pensei que tinha alguma coisa a ver com isso...
“Ele disse... bom, ele disse muitas coisas interessantes, John.” Ela
manteve os olhos na TV, e na parede, e no teto. Menos em mim.
“Tem algo a dizer em sua defesa?”
“Obrigada por me levar a um terapeuta e desculpa por eu
precisar de um terapeuta?”
“Não comece com impertinências, John. Temos muito a discutir
e espero que demore até chegarmos a ser impertinentes.”
Respirei fundo, assistindo à TV. Os Simpsons tinha voltado, nem
um pouco menos caótico com o som desligado. “O que ele disse?”
“Ele me disse que você...” Ela me observou. Tinha cerca de
quarenta anos, o que ela dizia que na verdade era bem jovem, mas
numa noite como aquela, discutindo à luz mortiça da televisão, seu
cabelo preto puxado para trás, os olhos verdes cobertos de
preocupação, ela parecia abatida e desgastada. “Ele me disse que
você pensa que irá matar alguém.” Ela não deveria ter olhado para
mim. Ela não podia dizer uma coisa dessas enquanto me olhava
sem que uma enxurrada de emoções viesse à tona. Vi sua face
corar e seus olhos se tornarem amargos.
“Isso é interessante,” eu disse, “já que não foi o que eu lhe disse.
Tem certeza que ele usou essas palavras?”
“O problema aqui não são as palavras,” ela disse. “Isso não é
uma brincadeira, John, é sério. O... não sei. É assim que vamos
terminar? Você é tudo que tenho, John.”
“As palavras exatas que usei,” eu disse, “foram que eu tinha
regras rígidas para evitar fazer algo de errado. Você deveria estar
satisfeita com isso, e não gritando comigo. É por isso que eu preciso
de terapia.”
“’Satisfeita’ seria um filho que não precisa seguir regras para
evitar matar pessoas,” ela revidou. “’Satisfeita’ não é um psicólogo
me dizendo que meu filho é um sociopata. ‘Satisfeita’...”
“Ele falou que eu sou um sociopata?” Isso era meio que maneiro.
Sempre suspeitei, mas era bom ter um diagnóstico oficial.
“Personalidade antissocial,” ela disse, elevando a voz. “Eu
pesquisei. É uma psicose.” Ela se virou. “Meu filho é um psicopata.”
“TPAS2 é definido como carência de empatia,” eu disse. Eu
também pesquisei há alguns meses. Empatia é o que permite
alguém a interpretar emoções, da mesma forma que os ouvidos
interpretam sons; sem ela você se torna emocionalmente surdo.
“Significa que eu não me conecto emocionalmente com outras
pessoas. Questionei se ele perceberia isso.”
“Como que você sabe?” ela disse. “Pelo amor de Deus, você tem
quinze anos, deveria estar... não sei, correndo atrás de garotas ou
jogando vídeo games.”
“Está dizendo a um sociopata para correr atrás de garotas?”
“Estou lhe dizendo para não ser um sociopata,” ela disse. “Só
porque você se lamenta o tempo todo não quer dizer que tenha um
problema mental – significa, talvez, que você é um adolescente,
não um psicopata. O negócio é, John, que você não pode ter um
atestado médico pra se livrar da vida. Você vive no mesmo mundo
que nós e deve lidar com isso do mesmo modo que todos nós.”

2
Transtorno de personalidade antissocial
Ela tinha razão, eu conseguia ver os benefícios em ser declarado
oficialmente como sociopata. Nada de trabalhos em grupo na
escola, por exemplo.
“Acho que é minha culpa,” ela disse. “Te arrastei á funerária
quando era apenas uma criança e isso te afetou pra vida inteira. O
que eu estava pensando?”
“Não é a funerária,” eu disse. Arrepiei-me com a sua menção –
ela não podia tirá-la de mim. “Você e Margaret trabalham lá há
quanto tempo? E nunca mataram ninguém ainda.”
“Não somos psicóticas também.”
“Você está mudando de história,” eu disse. “Acabou de dizer que
a funerária me afetou e agora diz que me afetou porque eu já era
transtornado? Se vai ser assim, eu não vou vencer de qualquer
forma, né?”
“Há muito que pode ser feito, John, e você sabe. Pode parar de
escrever trabalhos de casa sobre serial killers, por exemplo –
Margaret me contou que você fez isso de novo.”
Margaret, sua dedo-duro. “Tirei dez naquele trabalho,” eu disse.
“O professor adorou.”
“Ser muito bom em algo que você não deveria fazer não torna as
coisas melhores,” ela disse.
“É aula de história,” eu disse, “e serial killers são parte da
história. Assim como as guerras, o racismo e o genocídio. Acho que
esqueci de me matricular na aula de “história das coisas boas”, foi
mal.”
“Só queria saber por quê,” ela disse.
“Por que o quê?”
“Por que você é obcecado por serial killers.”
“Todo mundo precisa de um hobby,” eu disse.
“John, bem brinque com isso.”
“Você conhece o John Wayne Gacy?” perguntei.
“Agora eu conheço,” ela disse, jogando as mãos para o alto,
“graças ao Dr. Neblin. Queria ter lhe dado outro nome.”
“John Wayne Gacy foi o primeiro serial killer que eu conheci,” eu
disse. “Quando tinha oito anos, vi meu nome numa revista ao lado
da imagem de um palhaço.”
“Dez segundos atrás eu lhe pedi para parar de ser obcecado por
serial killers,” ela disse. “Por que estamos falando disto?”
“Porque eu quero que você saiba o porquê,” eu disse, “e estou
tentando te falar. Vi aquela imagem e pensei que era um filme de
palhaço com o John Wayne – o papai costumava me mostrar os
filmes de caubói dele o tempo todo. Acontece que o John Wayne
Gacy era um serial killer que se vestia de palhaço para as festas da
vizinhança.”
“Não aonde você quer chegar,” mamãe disse.
Não conseguia explicar o que eu queria dizer; sociopatia não era
apenas ser emocionalmente surdo, era ser emocionalmente mudo
também. Sentia-me como os personagens na TV muda, balançando
as mãos e gritando, sem dizer uma palavra em voz alta. Parecia que
eu e mamão falávamos línguas distintas e a comunicação em
impossível.
“Pense em um filme de caubóis,” eu disse, agarrando-me a
qualquer esperança. “São todos iguais – um caubói de chapéu
branco cavalga por aí disparando contra caubóis de chapéus pretos.
Você sabe quem são os mocinhos e os vilões e sabe o que vai
acontecer.”
“E?”
“Então quando um caubói mata alguém você nem pisca, porque
acontece todo dia. Mas quando um palhaço mata alguém, isso é
uma novidade – algo que nunca tinha visto. Aqui está alguém que
você pensava ser bonzinho e ele está fazendo algo tão terrível com
o qual emoções humanas não podem lidar – aí, logo mais, ele faz
algo de bom novamente. É fascinante, mamãe. Não é esquisito ser
obcecado por isso, é esquisito não ser.”
Mamãe me fitou por um momento.
“Então serial killers são como heróis de um filme?” Ela
perguntou.
“Não tem nada a ver com o que eu disse,” eu falei. “Eles são
doentes e perversos e fazem coisas terríveis. Só não penso que seja
doentio e perverso querer conhecê-los melhor.”
“Há uma grande diferença entre conhecê-los melhor e pensar
que se tornará um deles,” ela disse. “Não estou te culpando, não fui
uma boa mãe - e Deus sabe que seu pai foi ainda pior. O Dr. Neblin
disse que você cria umas regras para se distanciar de más
influências.”
“Sim,” eu disse. Finalmente ela estava me escutando – vendo o
lado positivo em vez do negativo.
“Quero ajuda,” ela disse, “aqui vai outra regra: nada de ajudar na
funerária.”
“Quê!”
“Não é um bom lugar para crianças,” ela disse, “eu nunca deveria
ter permitido que você ajudasse na sala dos fundos.”
“Mas eu” – mas o quê? O quê eu poderia dizer para chocá-la
ainda mais? Preciso da funerária porque ela me conecta à morte de
uma forma segura? Preciso da funerária porque necessito ver os
corpos se abrirem como flores e conversarem comigo e me dizerem
o que sabem? Ela me expulsaria de casa.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o celular da mamãe
tocou a sua rendição metálica e eletrônica do prelúdio de William
Tell, que mamãe definiu como o toque especial para o necrotério –
uma chamada ao dever. Só havia um razão para o legista ligar às
dez e meia de um sábado e ambos sabíamos qual. Ela suspirou e
vasculhou a bolsa atrás do telefone.
“Oi, Ron,” ela disse. Pausa. “Não, está tudo bem, já estávamos
terminando.” Pausa. “Sim, sabemos. Já esperávamos.” Pausa.
“Desço num instante, quando quiser vir está bom. Sério, não se
preocupe – ambos sabíamos no que nos metíamos.” Pausa. “Você
também, nos falamos logo.”
Desligou o telefone com um suspiro. “Suponho que sabe do que
se trata,” ela disse.
“A polícia finalizou o trabalho com o cadáver do Jeb.”
“Dentro de quinze minutos o entregarão,” ela disse. “Preciso
descer. Eu... terminamos esta conversa mais tarde. Desculpa, John,
por tudo. Poderia ter sido um jantar de família agradável.”
Espiei a TV de novo. Homer estrangulava o Bart.
“Quero te ajudar,” eu disse. “Já passam das dez, você ficará
acordada a noite toda se fizer isso sozinha.”
“Margaret ajudará,” ela disse.
“Então demorará cinco horas em vez de oito, ainda é muito. Se
eu ajudar podemos terminar em três.” Mantive a voz calma e
estável; não poderia deixa-la me tomar tudo, mas não ousaria
deixa-la saber o quão importante era pra mim.”
“O cadáver está em péssimas condições, John. Ele foi
despedaçado. Vai levar muito tempo para arrumá-lo e será muito
perturbador e você é um psicopata.”
“Ai, mãe.”
Ela recolheu a bolsa. “Ou isso te incomoda, caso em que você
não deveria ir, ou não te incomoda, caso em que você deveria ter
parado de ir há muito tempo.”
“Realmente quer me deixar aqui sozinho?”
“Encontrará algo de produtivo para fazer,” ela disse.
“Vamos reconstruir um corpo,” eu disse, “o que é mais produtivo
que isso? Imediatamente estremeci – humor negro não me ajudaria
de forma alguma. Foi um reflexo, aliviar a tensão com uma piada,
como o Dr. Neblin fazia.
“E não gosto da forma como você fala sobre a morte,” ela disse.
“Agentes funerários estão cercados de morte – respiramos isso
todas as horas do dia. Tanto contato pode fazê-lo perder a
reverência que tem por ela. Já percebi isso em mim, e me
incomoda. Se a morte não fosse tão conhecida por você, estaria
melhor.”
“Estou bem, mãe,” eu disse. O quê poderia fazer para convencê-
la? “Você sabe que precisa da ajuda e sabe que não quer me deixar
sozinho.” Mesmo que eu não tivesse empatia, mamãe tinha e eu
poderia usá-la contra ela. Se a lógica falhou, a culpa poderia salvar
o dia.
Ela suspirou e fechou os olhos com força, produzindo imagens
que eu não poderia imaginar. “Tá, mas vamos terminar a pizza
primeiro.”
Minha irmã Lauren saiu de casa há seis anos, dois anos após o
papai. Tinha apenas dezessete anos então e vai saber no que ela se
meteu enquanto estava longe. Havia bem menos gritaria na casa, o
que era agradável, mas o que sobrava de gritaria estava direcionado
a mim. Cerca de seis meses atrás, Lauren voltou a Clayton, pegando
carona sabe-se lá de onde e, arrependida, pediu um trabalho à
mamãe. Elas ainda mal se falavam, e ela nunca nos visitava ou nos
convidava para sua casa, mas trabalhava como recepcionista na
funerária e se dava bem o suficiente com a Margaret.
Todos nos dávamos bem com a Margaret. Ela era o isolante que
evitava uma explosão e um curto-circuito na família.
Mamãe ligou para Margaret quando terminamos a pizza e,
aparentemente, Margaret ligou para Lauren, já que ambas estavam
lá quando descemos ao necrotério – Margaret em seu moletom e
Lauren embonecada para uma noite de sábado na cidade. Eu me
perguntava se havíamos interrompido algo.
“Oi, John,” disse Lauren, parecendo completamente deslocada
na recepção elegante do escritório. Usava uma jaqueta de vinil
brilhosa sobre uma regata vermelha berrante, seu cabelo em um
penteado estilo anos 80. Talvez fosse uma noite temática na boate.
“Oi, Lauren,” eu disse.
“É a papelada?” mamãe perguntou, olhando por cima do meu
ombro na sua direção.
“Quase pronta,” disse Lauren e mamãe se dirigiu aos fundos.
“Já está aqui?” eu perguntei.
“Acabaram de deixa-lo,” ela disse, verificando o maço de papéis
uma última vez. “Margaret está com ele nos fundos.”
Virei-me para sair.
“Sobrevivendo?” ela me perguntou. Estava ansioso para ver o
corpo, mas me voltei na sua direção.
“O suficiente. E você?”
“Não sou eu quem mora com a mamãe,” ela disse. Ficamos em
silêncio mais um momento. “Notícias do papai?”
“Nada desde maio,” eu disse. “E você?”
“Nada desde o natal.” Silêncio. “Nos primeiros dois anos ele me
mandou cartas de dia dos namorados.”
“Ele sabia onde você estava?”
“Pedi-lhe dinheiro algumas vezes.” Abaixou a caneta e se
levantou. Sua saia combinava com a jaqueta, vinil preto. Mamãe
odiaria, razão pela qual ela provavelmente a comprou. Reuniu os
papéis em uma pilha uniforme e caminhou de volta ao cômodo dos
fundos.
Mamãe e Margaret já estavam lá, jogando conversa fora com o
Ron, o legista. Uma sacola azul claro ocupava a mesa de
embalsamento e tive que me segurara não correr e abri-la. Lauren
entregou os papéis à mamãe, que os olhou rapidamente e assinou
algumas folhas, entregando-as a Ron.
“Obrigada, Ron. Tenha uma boa noite.”
“Desculpa jogar isso pra você numa noite de sábado,” ele disse,
falando com a mamãe, mas olhando para Lauren. Era alto, com
cabelo preto penteado para trás.
“Sem problemas,” mamãe disse. Ron pegou os papéis e saiu por
trás.
“Meu trabalho termina aqui,” disse Lauren, sorrindo à Margaret
e acenando educadamente para mamãe. “Divirtam-se.” Voltou ao
escritório e momentos depois ouvi a porta da frente fechar.
O suspense estava me matando, mas eu não ousava dizer nada.
Mamãe já quase não tolerava minha presença aqui, e parecer
superexcitado provavelmente causaria minha expulsão.
Mamãe olhou para Margaret. Quando se arrumavam pareciam
um pouco diferentes uma da outra, mas quando pegas de surpresa
– com roupas de trabalho sem graça e sem maquiagem – mal dava
para distingui-las. “Vamos lá.”
Margaret ligou o ventilador. “Espero que não nos falhe hoje.”
Pusemos aventais e nos lavamos, mamãe abriu o saco. Enquanto a
Senhora Anderson mal foi tocada, Jeb Jolley havia sido esfregado e lavado
e apanhado tantas vezes por Ron e pelos agentes forenses do Estado que
cheirava praticamente apenas a desinfetante. O odor de podre se infiltrava
lentamente ao rolarmos o corpo e o dispormos sobre a mesa. Tinha um
incisão enorme em “Y” que ia de ombro a ombro e abaixo até o meio do
tórax, na maioria das autópsias essa linha ia até a virilha, mas aqui ela se
transformou abaixo das costelas em uma teia irregular de rasgos e fendas
que cobriam quase toda a barriga. As bordas estavam enrugadas e
parcialmente costuradas, apesar de faltarem partes da pele. As beiradas
de um saco plástica eram entrevistas através do buraco no abdômen.
Imediatamente pensei em Jack the Ripper, o primeiro serial killer
registrado. Ele despedaçava as vítimas tão brutalmente que a maioria não
era reconhecida.
Teria Jeb Jolley sido atacado por um serial killer? Era possível, mas
de que tipo? O FBI dividiu os serial killers em duas categoria: organizados e
desorganizados. O organizado era como Ted Bundy – gracioso, charmoso e
inteligente, que planejava seus crimes e os encobria o máximo possível. O
desorganizado era como o Filho de Sam, que se esforçava para controlar
seus demônios interiores e de repente matava brutalmente quando esses
demônios se libertavam. Ele se apelidava de Sr. Monstro. Qual tipo havia
matado Jeb, o sofisticado ou o monstro?
Suspirei e me forcei a descartar esses pensamentos. Não era a
primeira vez que estava empolgado em encontrar um serial killer na minha
cidade. Precisava focar no cadáver e apreciá-lo pelo que era e não pelo
que eu desejava que fosse.
Margaret abriu o abdômen, revelando um grande saco plástico
contendo os órgãos internos. Estes eram normalmente removidos durante
uma autópsia, apesar de no caso do Jeb terem sido removidos durante ou
um pouco antes do momento de sua morte. Mesmo tendo sido
removidos, ainda devíamos embalsama-los – não podíamos simplesmente
jogar partes de seu ente querido fora porque não queríamos lidar com
isso, e não possuíamos um crematório. Margaret pôs o saco em um
carrinho e o empurrou contra a parede para trabalhar nos órgãos; eram
cheios de bílis e outras porcarias, coisas com as quais o fluido de
embalsamento não poderia lidar, então deveriam ser sugados. Num
embalsamento comum isso era feito após a injeção do formaldeído, mas o
bacana de um cadáver de autópsia é que você pode fazer o embalsamento
e trabalhar com os órgãos ao mesmo tempo. Mamãe e Margaret faziam
isso juntos há tanto tempo que nem precisavam conversar para
trabalharem harmoniosamente.
“John, você me ajuda,” disse mamãe, agarrando o desinfetante – era
muito perfeccionista para não limpar o corpo antes de embalsamá-lo,
mesmo um tão limpo como esse. A cavidade corporal era larga e vazia,
apesar de o coração e os pulmões estarem quase intactos e o abdômen de
Jeb parecia um balão sangrento murcho. Mamãe o lavou primeiro e o
cobriu com um lençol.
Um pensamento cruzou minha mente desavisadamente – que os
órgãos estavam organizados em uma pilha na cena do crime. Poucos
assassinos mantinham o corpo após o ato, mas os serial killers sim. Às
vezes os punham em poses, desfiguravam-no ou simplesmente brincavam
com ele como se fosse uma boneca. Isso se chamava ritualização do
assassinato e parecia muito com o que aconteceu com os órgãos do Jeb.
Talvez tenha sido um serial killer. Expulsei o pensamento da cabeça e
segurei o corpo enquanto mamãe o borrifava com Dis-Spray.
Jeb não tinha sido um cara pequeno e seus membros estavam ainda
mais robustos, preenchidos com fluido estagnado. Apertei meus dedos
contra seu pé e a marca durou alguns segundos antes de voltar ao normal.
Era como cutucar um marshmallow.
“Pare de brincar,” disse mamãe. Lavamos o corpo e retiramos o
lençol da cavidade. Suas entranhas estavam infiltradas de gordura. Ainda
havia sistema circulatório o suficiente para usar no bombeamento, mas
diversas feridas e vazamentos fariam o bombeamento perder pressão e
fluidos. Precisávamos fechá-los.
“Passe-me o fio,” disse mamãe. “Uns três centímetros.” Tirei minhas
luvas e as joguei no lixo e então comecei a cortar pedaços do fio. Penetrou
a cavidade e sondou várias artérias, e sempre que encontrava uma eu lhe
passava um pedaço de fio para atá-la. Enquanto trabalhávamos, Margaret
ligou o aspirador e começou a sugar a sujeira dos órgãos, um de cada vez;
ela usava um instrumento chamado trocarte, que era basicamente um
bico de aspirador com uma lâmina na ponta. Ela espetava um órgão,
sugava a sujeira e ia para o outro.
Mamãe deixou uma veia e uma artéria abertas na cavidade peitoral
e começou a conectá-las à bomba e ao tubo de drenagem; não havia
necessidade em cortar os ombros quando o assassino já havia aberto o
peito para nós. O primeiro produto químico na bomba desta vez era um
coagulante, que se introduzia aos poucos pelo corpo para selar os buracos
eram muito pequenos para serem selados manualmente. Um pouco
começou a vazar no torso, mas o fluxo parou imediatamente assim que o
coagulante entrou em contato com o ar, endureceu e selou o corpo.
Costumava me preocupar com que selasse o tubo de saída também, mas a
abertura era larga demais para isso.
Enquanto esperávamos, examinei os cortes no abdômen.
Certamente pareciam animalescos e no lado esquerdo havia um
semelhante a marcas de garras – quatro cortes irregulares distantes cerca
de meio centímetro um do outro, que se estendiam por trinta centímetros
até a barriga. Era obra do demônio, claro, mas não o sabíamos à época.
Como poderíamos? Até então nenhum de nós suspeitávamos que fossem
reais. Coloquei minha mãe sobre as marcas e deduzi que quem quer que
as houvesse feito tinha mãos muito maiores que as minhas. Mamãe
franziu o rosto para mim e estava prestes a dizer algo quando Margaret
resmungou brava.
“Droga, Ron!” ela não respeitava muito o legista. Ignorei-a e voltei a
atenção às marcas de garras.
“O que houve?” mamãe perguntou, dirigindo-se a ela.
“Falta um rim,” disse Margaret, prendendo minha atenção. Serial
killers costumam manter souvenirs de suas mortes, e partes do corpo
eram uma escolha comum. “Olhei o saco duas vezes,” disse Margaret, “e
era de se esperar que Ron nos enviasse todos os órgãos, pelo amor de
Deus.”
“Talvez não houvesse um rim para mandar,” eu disse. Observaram-
me e tentei parecer desinteressado. “Talvez quem o matou tenha levado.”
Mamãe franziu a testa. “Isso é...”
“Completamente possível,” eu disse, interrompendo-a. Como
poderia me explicar sem mencionar serial killers? “Você viu o tamanho
daquela marca de garras, mãe – se foi um animal que atacou suas
entranhas, não é loucura que tenha comido algo lá.” Fazia sentido, mas eu
sabia que não era um animal. Alguns cortes eram muito precisos e
também havia a pilha organizada de órgãos? Talvez um serial killer que
caçava com um cachorro?
“Checarei os papéis,” disse mamãe, arrancando suas luvas e
jogando-as no lixo ao sair para a entrada. Margaret vasculhou o saco mais
um vez, mas balançou a cabeça; o rim não estava lá. Mal podia conter meu
entusiasmo.
Mamãe voltou com uma cópia dos papéis que Lauren dera ao
legista. “Está aqui na seção de comentários: ‘Rim esquerdo desaparecido’.
Não afirma que estão mantendo-o como evidência e testes, só
desaparecido. Talvez ele o tenha removido ou algo assim.”
Margaret levantou o rim que restava, apontando para o tubo que o
conectava ao outro. “É um corte recente,” ela disse. “Não há cicatriz nem
nada.”
“É de se pensar que Lauren houvesse mencionado algo,” mamãe
disse, irada, largando os papéis e puxando outro par de luvas da caixa.
“Vamos ter que conversar.”
Mamãe e Margaret retornaram ao trabalho, mas eu fiquei parado,
uma onda de energia entrando e saindo de mim ao mesmo tempo. Não
era um assassino comum nem um animal.
Jeb Jolley era vítima de um serial killer.
Talvez tenha vindo de outra cidade, talvez fosse sua primeira vítima,
mas era um serial killer de qualquer maneira. Os sinais estavam claros. A
vítima estava indefesa, sem inimigos conhecidos ou parentes ou amigos
próximos. Seus amigos do bar disseram que ele estava calmo e feliz toda a
noite antes de partir, nada de brigas ou discussões, então não era um
crime passional ou de bebedeira. Alguém com o impulso de matar estava
esperando na área traseira do Wash-N-Dry e Jeb era um alvo oportuno, no
lugar errado e na hora errada.
Os jornais e a própria cena do crime contavam uma história confusa
de fúria misturada com simplicidade – violência animal convertida em um
comportamento calmo e racional. O assassino dispôs os órgãos em uma
pilha e, aparentemente, dedicou um tempo após estraçalhar o corpo para
retirar um único órgão.
O assassinato de Jeb Jolley era praticamente um exemplo de manual
de um assassino desorganizado, atacando com ferocidade e
permanecendo no local, desprovido de emoção e empatia, para ritualizar
o corpo – arrumá-lo, pegar um souvenir e deixar o resto para todos verem.
Não era surpresa que a polícia não houvesse mencionado o rim que
faltava. Se a notícia que um serial killer ladrão de órgãos se espalhasse,
causaria um enorme pânico. As pessoas já não se sentiam seguras e essa
era apenas a primeira morte.
Mas não seria a última. Esse era, afinal, o traço característico de
serial killers: eles continuavam matando.
4.

Era começo de outubro – temporada das folhas queimadas. Outono


era minha estação favorita do ano, não devido à escola, ou à colheita de
vegetais ou qualquer razão mundana, mas porque os cidadãos de Clayton
County varriam suas folhas e as queimavam, chamas ardendo alto no ar
fresco do outono. Nosso jardim era pequeno e desprovido de árvores, mas
o velho casal da frente possuía um grande jardim cheio de carvalhos e
bordos e não tinha filhos nem netos para cuidarem dele. Durante o verão,
eu cortava o seu gramado por cinco dólares por semana; no inverno, tirava
neve da calçada por xícaras de chocolate quente; e no outono, varrias suas
folhas pelo simples prazer em vê-las queimar.
O fogo é algo breve, temporário – a definição de temporariedade.
Chega de repente, rugindo à vida quando calor e combustível se juntam e
inflamam, e dança vorazmente enquanto tudo ao seu redor enegrece e
murcha. Quando não resta nada a consumir, desaparece, deixando para
trás apenas cinzas do combustível não utilizado – pedaços de madeira e
papel e folhas demasiado impuros para queimar, indignos a se juntarem à
dança do fogo.
Parece-me que o fogo não deixa nada para trás – as cinzas não são
parte da chama, são parte do combustível. O fogo transforma uma coisa
em outra, retirando energia e a convertendo em... bem, mais fogo. Fogo
não cria nada de novo, simples assim. Se outras coisas devem ser
destruídas para que o fogo exista, tudo bem para ele. Na visão do fogo, é
para isso que essas coisas existem primariamente. Quando acabam,
também o fogo acaba e, apesar de encontrar evidências da sua passagem,
não encontrará nada do fogo em sim – sem luz, sem calor, sem fragmentos
minúsculos de chama vermelha. Ele desaparece, de volta ao lugar de onde
veio, e caso tenha sentimentos ou lembranças não temos como saber.
Às vezes, ao encarar o centro azul luminoso de uma chama,
pergunto-me se ele se recorda de mim. “Já nos vimos antes. Conhecemo-
nos. Lembre-se de mim quando partir.”
O Sr. Crowley, o idoso cujas folhas eu queimava, gostava de sentar
no alpendre e “assistir o mundo passar”, como ele dizia. Se acontecia de
eu estar varrendo seu jardim quando ele estava lá fora, ele se sentava e
me contava sobre sua vida. Havia sido um engenheiro de águas do Estado
quase toda vida, até o ano passado, quando sua saúde declinou e teve que
se aposentar. De qualquer forma, já era velho. Deambulou devagar e
pousou a perna em um tamborete quando se sentou.
“Boa tarde para você, John,” ele disse. “Boa tarde.” Era velho, mas
enorme, de grande porte e forte. Sua saúde se esvaía, mas estava longe de
ser frágil.
“Oi Sr. Crowley.”
“Sabe, pode deixar isso de lado,” disse, gesticulando para o gramado
coberto de folhas. “Ainda há muito a cair antes que isso passe e você só vai
ter que fazer tudo de novo.”
“Desse jeito demora mais,” eu disse, e ele acenou satisfeito.
“É verdade, John, é verdade.”
Varri por mais um tempo, reunindo as folhas com gestos ágeis e
suaves. O outro motivo pelo qual eu queria varrer o gramada aquela tarde
era porque o assassino não havia atacado novamente há quase um mês. A
tensão me deixava nervoso e eu precisava queimar algo. Não contei a
ninguém minha suspeita de que fosse um serial killer, afinal, quem
acreditaria em mim? Eu era obcecado por serial killers, diriam. Claro que
eu pensaria que seria um. Não me importava. Não importa o que os outros
digam quando se está certo.
“Ei, John, venha aqui, rapidinho,” disse o Sr. Crowley. Gesticulou em
direção à cadeira. Estremeci à interrupção, porém me acalmei e fui de
qualquer jeito. Conversar é normal – é o que as pessoas fazem juntas. Eu
precisava do treinamento. “O que você sabe sobre celulares?” perguntou-
me, mostrando-me o seu.
“Sei um pouco,” eu disse.
“Quero mandar um beijo a minha mulher.”
“Quer mandar um beijo?”
“Kay e eu compramos estes ontem,” ele disse, manuseando o celular
desajeitadamente, “e deveríamos poder tirar fotos e as mandar um ao
outro. Então quero enviar um beijo para a Kay.”
“Quer que eu tire uma foto sua fazendo beicinho e lhe envie? Às
vezes não compreendia as pessoas. Ver o Sr. Crowley falar sobre amor era
como o ouvir falar outra língua – eu não fazia ideia do que se tratava.
“Parece que você já fez isso antes,” disse ele, entregando-me o
celular com a mão trêmula. “Mostre-me como se faz.”
O botão da câmera estava claramente assinalado, então lhe mostrei
como fazê-lo e ele tirou uma foto desfocada de seus lábios. Mostrei-lhe
como enviar um foto e voltei à varredura.
A ideia de ser sociopata não me era nova – sabia há um longo tempo
que não me conectava às pessoas. Eu não os entendia, eles não me
entendiam e, seja qual for a linguagem emocional que falavam, parecia-
me impossível de aprender. O transtorno de personalidade antissocial não
podia ser diagnosticado antes dos dezoito anos – antes disso era apenas
“alteração de conduta”. Mas sejamos honestos, alteração de conduta não
é uma forma bacana de contar aos pais que seus filhos possuem
transtorno de personalidade antissocial. Eu era um sociopata e era melhor
lidar com isso já.
Varri a pilha de folhas em direção a uma grande fogueira em torno
da casa. Os Crowleys usavam a fogueira para festas e para fazer hot dogs
no verão, e convidavam toda a vizinhança. Eu vinha sempre – ignorando as
pessoas e focando apenas no fogo – se fogo fosse uma droga, o Sr. Crowley
seria meu maior facilitador.
“Johnny!” o Sr. Crowley gritou da varanda, “ela mandou um beijo de
volta! Venha ver!” Sorri para ele, fingindo uma conexão emocional
inexistente. Queria ser um menino de verdade.
A ausência de conexão emocional com outras pessoas tem o efeito
de fazê-lo sentir-se deslocado e um alienígena – como se estivesse
observando a raça humana de outro lugar, desapegado e indesejável.
Senti-me assim por anos, antes de conhecer Dr. Neblin e muito antes de o
Sr. Crowley mandar mensagens ridículas de amor no seu celular. As
pessoas saem por aí fazendo seus trabalhinhos, formando suas
familiazinhas, escancarando seus emoções sem sentido para o mundo e
enquanto isso você assiste tudo do banco, impressionado. Isso faz com
que alguns sociopatas se sintam superiores, como se toda a humanidade
não passasse de animais a ser caçados e abatidos; outros sentem uma ira
ciumenta, desesperados pelo que não possuem. Eu apenas me sentia
solitário, uma única folha longe de uma imensa pilha.
Empilhei alguns gravetos cuidadosamente na base da pilha de folhas
e acendi um fósforo no seu centro. Chamas arderam e cresceram, pouco
depois a pilha crepitava de calor, o fogo luminoso dançando
maliciosamente acima.
Quando o fogo se extinguisse, o que restaria?

Naquela noite, o assassino atacou novamente.


Vi na TV durante o café da manhã; a primeira morte atraiu um
pouco de atenção além da cidade por sua natureza brutal – mas a
segunda, tão brutal quanto a primeira e bem mais pública – chamou a
atenção de um repórter da cidade e sua equipe de filmagem. Estavam lá,
para a preocupação do delegado de Clayton County, transmitindo imagens
borradas e distantes do corpo estripado para todo o estado. Alguém deve
ter conseguido tirar a foto antes que os policiais cobrissem o corpo e
afastassem os curiosos.
Não havia dúvida agora. Era um serial killer. Mamãe veio do outro
quarto, a maquiagem pela metade; olhei para ela e ela devolveu o olhar.
Não falamos nada.
“Aqui é Ted Rask ao vivo de Clayton, uma cidade normalmente
pacata que é, hoje, cenário de um crime macabro – o segundo dessa
natureza em menos de um mês. Esta é uma reportagem exclusiva da Five
Live News. Estou aqui com o delegado Meier. Diga-me, delegado, o que
sabemos sobre a vítima?
O delegado Meier franzia por trás de seu grande bigode cinza e
olhou com mau humor quando o repórter se aproximou. Rask era famoso
por melodrama sensacionalista e, pela carranca do delegado, até eu
percebia que ele não estava feliz com a presença do repórter.
“Neste momento não desejamos criar estresse desnecessário para a
família da vítima,” disse o delegado, “ou medo às pessoas deste condado.
Apreciamos a colaboração de todos que se mantenham calmos e não
espalhem desinformações e rumores sobre este incidente.”
Ele havia evadido completamente a pergunta do repórter. Pelo
menos não se rendeu a Rask sem lutar.
“Já sabe quem é a vítima?” perguntou o repórter.
“Ele estava com a identidade, mas não desejamos revelar essa
informação agora, antes que a família seja notificada.”
“E o assassino,” disse o repórter, “há qualquer pista de quem seja?”
“Sem comentários no momento.”
“Com esse incidente tão perto do outro, de natureza tão similar,
pensa que estão conectados?”
O delegado fechou os olhos brevemente, um suspiro visual, e
pausou por um momento antes de responder: “Não desejamos discutir a
natureza deste crime no momento para preservar a integridade de nossa
investigação. Como disse antes, apreciamos a discrição de todos e a
atitude de não espalhar rumores sobre o ocorrido.”
“Obrigado, delegado,” disse o repórter, e a câmera se moveu de
volta a seu rosto. “Novamente, se acabou de ligar a TV, estamos em
Clayton County, onde um assassino atacou, possivelmente pela segunda
vez, deixando um cadáver e uma cidade inteira em vigília.”
“Estúpido Ted Rask,” disse mamãe, indo á geladeira. “A última coisa
que esta cidade precisa é pânico por um assassino em massa.”
Assassinato em massa e serial killers são completamente distintos,
mas eu não desejava começar um discussão sobre sua distinção naquele
momento.
“Acho que a última coisa que precisamos é de assassinatos,” eu
disse, cautelosamente. “Pânico pelos assassinatos seria a penúltima.”
“Em uma cidade pequena como esta, pânico pode ser tão ruim
quanto ou até pior,” disse ela, servindo um copo de leite. “O povo se
assusta e vai embora, ou ficam em casa à noite de portas trancadas e, de
repente, os negócios vão mal e a tensão aumenta ainda mais.” Tomou um
gole de leite. “Basta que uma pessoa procure um bode expiatório para que
o pânico se transforme em caos.”
“Não podemos mostrar-lhes o corpo em detalhes, disse Rask na TV,
“porque é uma visão verdadeiramente terrível, grotesca e a polícia não
nos permite aproximar-nos o suficiente, mas temos alguns detalhes.
Aparentemente ninguém testemunhou o assassinato, mas aqueles que
viram o corpo de perto relatam que a cena da morte é muito mais
sangrenta do que o assassinato anterior. Se é o mesmo assassino, pode ser
que esteja ficando mais violento, o que é um sinal preocupante para o que
virá em seguida.”
“Não acredito que ele esteja falando isso,” disse mamãe, cruzando
os braços furiosamente. “Vou escrever uma carta para a delegacia hoje.”
“Há um trecho de óleo ou algo similar próximo ao corpo,” continuou
Rask, possivelmente do motor furado do carro de fuga. Traremos mais
informações assim que as recebermos. Aqui é o Ted Rask com um boletim
exclusivo da Five Night News: A morte ataca o coração da América.”
Lembrei da marca que vi atrás do Wash-N-Dry – preta e oleosa,
como lama rançosa. Seria o trecho de óleo próximo do corpo da nova
vítima a mesma coisa? Havia muita coisa escondida nessa história e eu
estava determinado a solucioná-las.

“A questão central dos perfis psicológicos,” eu disse, encarando Max


intensamente enquanto comia seu almoço, “não é ‘o que o assassino está
fazendo’, mas ‘o que o assassino está fazendo que não é necessário.”
“Mano,” disse Max, “acho que foi um lobisomem.”
“Não é um lobisomem,” eu disse.
“Você assistiu ao jornal hoje, o assassino tem ‘a inteligência de um
homem e a ferocidade de um animal’. O que mais poderia ser?
“Lobisomens nem existem.”
“Diga isso ao Jeb Jolley e ao cara da rodovia 12,” disse Max, dando
outra mordida e continuando de boca cheia. “Algo os estraçalhou pra valer
e não foi um serial killer maricas.”
“As lendas de lobisomens provavelmente começaram graças aos
serial killers, eu disse. “Vampiros também – são homens que caçam e
matam a outros homens, isso me soa como um serial killer. Não havia
psicologia nessa época, então criaram monstro para explicá-los.
“De onde você tira essas coisas?”
“Crimelibrary.com,” eu disse, mas estou tentando provar um ponto
aqui. Se quer entrar na mente de um serial killer deve se questionar ‘O
que ele faz que não necessita?”
“Por que eu iria querer entrar na mente de um serial killer?”
“Quê?” perguntei; “Por que você não – tá bom, escuta, precisamos
descobrir por que ele faz o que faz.”
“Não precisamos não,” disse Max, “isso é o trabalho da polícia.
Estamos no ensino médio, o que precisamos é descobri a cor do sutiã da
Marci.”
Por que desperdiço meu tempo com esse garoto?
“Pense assim,” eu disse. “Digamos que seja um grande fã de... do
que você é fã?”
“Marci Jensen,” disse ele, “e Halo, e Lanterna Verde, e-”
“Lanterna Verde,” eu disse. “Quadrinhos. “Você é um grande fã de
quadrinhos e digamos que um novo escritor de quadrinhos se muda para
sua cidade.”
“Legal,” disse Max.
“Certo,” eu disse, “e ele está trabalhando em um novo quadrinho e
você quer descobrir qual é. Não seria legal?”
“Eu disse que serial legal,” disse Max.
“Você pensaria nisso o tempo todo, tentaria adivinhar o que ele está
fazendo, compararia suas teorias com as de outras pessoas e amaria isso.”
“Claro.”
“É assim que me sinto,” eu disse. “Um novo serial killer é como um
novo autor, trabalhando em um novo projeto e ele está bem aqui na nossa
cidade e estou tentando sacar a dele.”
“Você é maluco, cara,” disse Max. “Você é completamente pirado,
doido de manicômio.”
“Meu terapeuta acha que estou bem,” eu disse.
“Tanto faz,” disse Max. “Qual a nossa grande questão?”
“O que o assassino está fazendo que não deveria.”
“Como sabemos o que ele deveria fazer?”
“Tudo que, tecnicamente, deve fazer,” eu disse, “se o objetivo é
matar alguém, então seria atirar. É a forma mais fácil.”
“Mas ele está destroçando-as,” disse Max.
“Esse é o primeiro item: ele se aproxima delas pessoalmente e as
ataca.” Peguei um caderno e anotei. “Isso provavelmente quer dizer que
quer ver suas vítimas de perto.”
“Por quê?”
“Não sei. O que mais?”
“Ele as ataca à noite, no escuro,” disse Max. Estava começando a
entender. “Ele então as agarra quando não há ninguém por perto.”
“Isso provavelmente se encaixa na categoria de coisas que deve
fazer,” eu disse, “especialmente se quer vê-las de perto – não quer que
ninguém mais o veja.”
“Isso não conta para nossa lista?”
“Acho que sim, mas ninguém que mata quer ser visto, então não é
uma característica pessoal.”
“Ponha-o na lista,” disse Max, “a lista não deve ser só de ideias
suas.”
“Tá,” eu disse, anotando, “está na lista: ele não quer ser visto; ele
não quer que ninguém saiba quem é.”
“Ou o que ele é.”
“Ou o que ele é,” eu disse, “tanto faz. Vamos em frente.”
“Ele remove os as tripas das vítimas,” disse Max, “e as põe numa
pilha. Isso é maneiro. Deveríamos chamá-lo de Empilhador de Tripas.”
“Por que ele faria isso?” eu perguntei. Uma garota passou por nossa
mesa e nos dirigiu um olhar estranho, então abaixei a voz. “Talvez queira
passar um tempo com as vítimas e desfrutar do assassinato.”
“Acha que as destripa ainda vivas?” perguntou ele.
“Não acho que seja possível,” eu disse. “Quero dizer que ele quer
desfrutar do assassinato depois da ocorrência. Há uma frase famosa do
Ted Bundy-”
“Quem?”
“Ted Bundy,” eu disse. “Ele matou umas trinta pessoas no país
durante os anos oitenta – foi por causa dele que inventaram o termo
‘serial killer’”
“Você sabe de uns bagulhos esquisitos, John.”
“Enfim,” eu disse, “antes de ser executado ele disse em uma
entrevista que, depois de matar alguém, se tivesse tempo suficiente, você
poderia ser quem quisesse.”
Max ficou calado por um instante.
“Não sei se quero continuar falando disso,” disse ele.
“Como assim? Não estava incomodado há um minuto.”
“Um minuto atrás estávamos falando de tripas expostas,” disse ele,
“isso só é nojento, não assustador. Esse negócio é meio perturbador.”
“Mas acabamos de começar,” eu disse. “Nem nos aprofundamos. É o
perfil de um serial killer, claro que vai ser perturbador.”
“Isso tá meio que me deixando histérico, ok?” disse Max. “Não sei.
Preciso ir ao banheiro.” Ele levantou-se e saiu, mas deixou sua comida para
trás. Pelo menos não estava indo embora. Não que eu ligasse.
Por que eu não podia simplesmente ter uma conversa normal com
alguém? Sobre algo que eu quisesse discutir? Eu era tão perturbado
assim?
Sim, eu era.

5.

Há um lago na fronteira da cidade, alguns quilômetros depois de


nossa casa. Seu nome de verdade é Clayton Lake, como era de se esperar,
já que tudo no condado é chamado de Clayton, mas eu gosto de chama-lo
de Lago dos Malucos. Tinha 1,5km de largura e alguns quilômetros de
distância, mas não havia marina nem nada; as praias eram pantanosas e
cheias de caniços e a água se enchia de algas todo verão, então ninguém
realmente nadava lá. Dentro de um ou dois meses congelaria e as pessoas
iriam patinar e pescar no gelo, mas isso era tudo – nas demais estações do
ano não havia motivo para ir lá e ninguém o usava para nada.
Pelo menos foi o que pensava antes de encontrar os malucos.
Não sei se realmente eram malucos, mas devo assumir que havia
algo de errado com eles. Descobri-os no ano passado, quando não
aguentava mais ficar sozinho com mamãe em casa, então pulei na bicicleta
e pedalei rumo a lugar nenhum. Não estava indo ao lago, só pedalava e o
lago calhou de estar naquela direção. Passei por um carro com um cara
dentro, sentado lá, estacionado do lado da estrada, observando o lago.
Então cruzei com outro. Um quilômetro depois me deparei com uma
caminhonete abandonada – não sei onde estava o motorista. Cem metros
depois havia uma mulher fora de seu carro, encostada no capô – olhando
para o nada, falando com ninguém, só encostada.
Por que estavam todos ali? O lago não era uma grande visão. Não
havia nada a fazer. Meus pensamentos se voltaram imediatamente para
atividades ilícitas – venda de drogas, casos amorosos, pessoas despejando
corpos – mas acho que não era isso. Acho que estavam lá pelo mesmo
motivo que eu: Precisavam se distanciar de todo o resto. Eram malucos.
Depois disso fui ao Lago dos Malucos sempre que desejava estar
sozinho, o que acontecia com cada vez mais frequência. Os malucos
estavam lá, às vezes pessoas diferentes, às vezes as mesmas, dispostos ao
lado da estrada como um cordão de pérolas rejeitadas. Nunca
conversamos – não nos encaixávamos em nenhum outro lugar, então era
ingênuo pensar que nos encaixaríamos uns com os outros. Só íamos,
ficávamos, pensávamos e saíamos.
Após o desabafo do Max no almoço, ele se manteve distante de mim
pelo resto do dia e, depois da escola, pedalei ao Lago dos Malucos para
pensar. As folhas já passavam da fase laranja e desbotavam para um
marrom e a grama ao lado da estrada estava dura e morta.
“O que o assassino fez que não deveria?” pensei em voz alta,
largando a bicicleta na terra e posicionando-me em uma área ensolarada.
Podia ver carros, mas nenhum estava próximo o bastante para que as
pessoas dentro me ouvissem. Os malucos respeitavam a privacidade. “Ele
roubou um rim do primeiro, mas o que tomou do segundo?” A polícia não
falava, mas em breve receberíamos o corpo na funerária. Peguei uma
pedra e a lancei no lago.
Olhei a estrada até o carro mais próximo, a algumas centenas de
metros de distância; era branco e velho, o motorista encarava a água.
“É você o assassino?” sussurrei. Havia cinco ou seis pessoas aqui
hoje, em vários pontos da estrada. Quanto tempo até que a previsão da
mamãe se tornasse realidade e as pessoas começassem a culpar umas às
outras? As pessoas temiam o diferente e quem fosse o mais diferente
ganharia a loteria da caça às bruxas. Seria um dos malucos que fugiam ao
lago? O que fariam com ele?
Todos sabiam que eu era maluco. Culpariam-me?

O segundo corpo chegou à funerária oito dias mais tarde. Mamãe e


eu pouco falamos sobre minha sociopatia, mas fiz questão de sair-me
melhor na escola para despistá-la – fazê-la pensar em meus traços bons
em vez dos maus. Aparentemente havia funcionado porque, quando
cheguei à funerária após a escola e encontrei-as trabalhando no corpo da
segunda vítima, mamãe não me impediu de pegar um avental e uma
máscara e ajudá-las.
“O que falta?” perguntei, segurando frascos para mamãe enquanto
ela punha formaldeído na bomba. Magaret tinha só alguns órgãos na
bancada, ocupada perfurando-os com o trocarte e sugando sua sujeira.
Pensei que o resto dos órgãos estivesse dentro do corpo. Mamãe havia
coberto o corpo com um lençol e eu não queria arriscar olhar por baixo
enquanto ela estivesse ali perto.
“Quê?” perguntou mamãe, observando as marcações ao lado da
bomba enquanto despejava.
“Da última vez faltava um rim, eu disse. “O que é desta vez?”
“Os órgãos estavam todos lá,” disse ela, rindo. “Deixe o Ron em paz
– ele não vai perder tudo o tempo todo. Falei com sua irmã sobre a
papelada e como ela precisa ser mais meticulosa na leitura e contar-me
quaisquer anormalidades que encontrar. Às vezes não sei o que fazer com
aquela garota.”
“Mas... tem certeza?” perguntei. O assassino tinha que levar algo.
“Talvez a vesícula e Ron achou que o cara já a tivesse removido antes,
então não percebeu.”
“John, Ron e a polícia – e o FBI, pra deixar bem claro – ficaram com
este cadáver por mais de semana. Especialistas forenses passaram um
pente fino para encontrar algo que os ajudasse a capturar esse depravado.
Se um órgão estivesse faltando, eles notariam.”
“Tá vazando,” eu disse, apontando para o ombro esquerdo. Um
produto químico azul brilhante escorria por baixo do lençol, junto a
espirais de sangue coagulado.
“Pensei que houvesse remendado bem,” disse mamãe, tampando o
formaldeído e me entregando-o. Puxou o lençol para revelar o toco do
ombro esquerdo, firmemente enfaixado, a parte inferior encharcada com
uma gosma azul arroxeada. Não havia um braço. “Que inconveniente,”
disse ela, procurando por mais bandagens.
“Ele não tem um braço?” olhei para mamãe. “Perguntei se algo
estava faltando e você esqueceu de mencioná-lo?”
“Que?” perguntou Margaret.
“O assassino levou o braço,” eu disse, aproximando-me e
removendo o lençol do corpo. O abdômen estava destroçado, como da
outra vez, mas nem de perto tão ferozmente; os cortes eram menores e
havia menos deles. O fazendeiro morto – Dave Bird, de acordo com a
etiqueta – não havia sido estripado. “A evisceração e o empilhamento dos
órgãos – ele não fez isso desta vez.”
“O que você está fazendo?” disse mamãe, rudemente, arrancando o
lençol da minha mão e recobrindo o corpo. “Mostre um pouco de
respeito!”
Eu falava demais e sabia que não deveria falar tanto, mas não
consegui parar. Era como se meu cérebro tivesse sido aberto e todos meus
pensamentos escoassem para fora.
“Pensei que ele estivesse fazendo algo com os órgãos,” eu disse,
“mas só estava esquadrinhando-os para encontrar o que procurava. Não
estava organizando-os ou brincando com eles-”
“John Wayne Cleaver!” disse mamãe, severamente. “Que diabo de
devaneio é esse?”
“Isso muda totalmente o perfil,” eu disse, esforçando-me para calar-
me, mas minha boca não obedecia. Minha nova descoberta era fascinante.
“Não é o que ele faz com os corpos, mas o que leva deles. Remover as
tripas era só um meio de chegar à vesícula, não um ritual de morte-”
“Um ritual de morte?” perguntou mamãe. Margaret largou o
trocarte e olhou para mim. Conseguia sentir seus olhos penetrando-me e
sabia que estava em apuros. Falei demais. “Gostaria de explicar-se?”
perguntou mamãe.
Precisava sair dessa de alguma forma, mas já tinha ido longe
demais. “Só estava dizendo que o assassino não estava brincando com os
corpos,” eu disse. “Isso é bom, né?”
“Você estava empolgado,” acusou-me mamãe. “Estava encantado
com o cadáver deste homem e pela forma que foi dilacerado.”
“Mas-”
“Eu vi felicidade em seu rosto, John, acho que nunca vi antes, e foi
por causa de um cadáver – uma pessoal real, com uma família real e uma
vida real e você não consegue se conter.”
“Não, não é-”
“Fora,” disse mamãe, a voz carregada de decisão.
“Você não pode fazer isso!” gritei.
“Sou a dona e sua mãe,” disse ela, você está muito agitado por isso e
não gosto da forma que está agindo e das coisas que está falando.”
“Mas-”
“Eu deveria ter feito isso há um longo tempo,” disse, pondo a mão
na cintura. “Está proibido de vir aos fundos – Margaret não o deixará
entrar também, vou comunicar Lauren. Está na hora de arranjar hobbies
normais e amigos também e não vou aceitar discussão.”
“Mãe!”
“Nem uma palavra,” disse ela, “vá!”
Queria bater nela. Queria socar as paredes, as bancadas e o
fazendeiro morto na mesa e pegar o trocarte e enfiá-lo na cara da mamãe
e sugar fora seu cérebro –
Não
Acalme-se
Fechei os olhos. Estava quebrando muitas regras. Não podia pensar
assim; não podia permitir que a ira me dominasse. Mantive os olhos
fechados e lentamente tirei as luvas e a máscara.
“Desculpa,” eu disse. “Eu-” Não podia simplesmente ir embora e
nunca mais voltar, precisava lutar por isso e
...
Não. Acalme-se
“Desculpa,” repeti. “Retirei o avental e saí pela porta dos fundos.
Lidaria com isso depois. Neste momento minhas regras eram mais
importantes.
Precisava manter o monstro atrás do muro.

Eu odiava o Halloween. Era tão idiota - ninguém se assustava de


verdade e todo mundo andava por aí coberto de sangue falso ou com
luvas de borracha ou, o pior de tudo, com fantasias que nem davam medo.
Halloween deveria ser a noite em que os espíritos malignos caminhavam
pela Terra - a noite em que os druidas queimavam crianças em gaiolas de
palha. O que isso tinha a ver com se vestir de Homem Aranha?
Parei de ligar para o Halloween quando tinha oito anos, mais ou
menos na mesma época em que comecei a aprender sobre serial killers.
Não significa que parei de me fantasiar, apenas que parei de escolher
minhas próprias fantasias - todo ano mamãe escolheria algo e eu o vestiria
e o ignoraria e esqueceria disso até o ano seguinte. Algum dia deveria
contar-lhe sobre o Ed Gein, cuja mãe o vestia como uma menina durante
grande parte de sua infância. Ele passou a maior parte de sua vida adulta
matando mulheres e fazendo roupas com suas peles.
Este ano, era de se pensar que o Halloween seria bem maneiro -
afinal, tínhamos um demônio de verdade na cidade, com presas e garras e
tudo mais. Deve valer algo. Mas nenhum de nós sabia disso ainda, ele só
havia matado duas pessoas até agora, então em vez de esconder-nos no
porão, rezando por uma salvação, acabamos na quadra da escola, fingindo
nos divertir em um baile de Halloween. Não tenho certeza do que é pior.
Os bailes escolares do ensino fundamental haviam sido péssimos e
mamãe me fazia ir a todos. Como ela não tinha a intenção de mudar sua
regra quando entrei no ensino médio, esperei que ao menos os bailes se
tornassem melhores. Não se tornaram. O baile de Halloween acabou
sendo particularmente estúpido - um momento para que todos os
esquisitos, desengonçados e mutantes semi-desenvolvidos da escola se
reunissem, fantasiados, e ficassem encostados nas paredes da quadra
enquanto luzes coloridas brilhavam anemicamente e o vice-diretor tocasse
canções antigas pelos alto falantes. Como parte da iniciativa "faça amigos
de verdade" da mamãe ela me forçava, como sempre, a ir, mas, como
gesto de boa vontade, permitia-me escolher minha própria fantasia.
Escolhi uma de palhaço porque sabia que a deixaria furiosa.
Max era um tipo de comandante de exército, vestindo uma jaqueta
camuflada de seu pai e uma maquiagem marrom na face. Também havia
trazido uma arma de brinquedo apesar dos repetidos avisos da escola
sobre não trazer armas, então obviamente o diretor a recolheu na entrada.
"Que saco," disse Max, socando a mãe e espiando o diretor do outro
lado da quadra. "Vou pegá-la de volta, mano, vou sim." "Acha que ele vai
devolver?"
"Você me chamou de mano?" Perguntei.
"Cara, juro que vou pegar minha arma de volta e ele nem vai notar.
Papai me ensinou uns macetes - ele nem vai reparar que estive lá."
"Está vestindo a camuflagem errada," eu disse. Estávamos na nossa
posição habitual, espreitando no canto, e eu assistia ao fluxo de pessoas
em volta dos refrescos e pelas paredes.
"Papai ganhou essa jaqueta no Iraque," disse Max, "é o mais real
possível."
"Então será estupendo quando o Sr. Layton esconder sua arma no
Iraque," eu disse, "mas estamos em um baile escolar no meio-oeste
americano. Se não quer que ele lhe veja, precisa se vestir como uma
vítima de acidente de carro. Tem várias hoje. Ou precisa de um buraco de
bala na testa." Ferimentos prostéticos baratos eram o pedido do dia para
mais de metade dos garotos do baile. É de se imaginar que dois
assassinatos macabros na comunidade tornariam as pessoas mais
sensíveis a isso, mas vai saber. Pelo menos ninguém se vestiu de mecânico
eviscerado.
"Teria sido maneiro," disse Max, olhando para um buraco de bala
feito de plástico que passava. "É o que farei amanhã quando sair para
brincar de doces ou travessuras - vai assustá-los pra caramba."
"Vai brincar de doces ou travessuras?" uma voz gargalhou. Era Rob
Anders, passando com dois amigos. Odiavam-me desde o terceiro ano.
"Bando de criancinhas brincando de doces ou travessuras–isso é para
crianças!" Foram embora rindo.
"Só vou por causa minha irmãzinha," resmungou Max, encarando
suas costas. "Vou pegar minha arma; essa fantasia é muito mais maneira
com uma arma." Saiu em direção à porta mais distante, deixando-me
sozinho no escuro. Decide pegar uma bebida.
A mesa de bebidas era esparsa - uma bandeja de vegetais murchos,
alguns donuts pela metade e uma tigela cheia de suco de maçã com
Sprite. Servi-me um copo e derrubei em seguida quando alguém me
esbarrou pelas costas. O suco caiu de volta à tigela, junto do copo,
espirrando e molhando minha mão e meu braço. Rob Anders e seus
colegas davam risadas ao sair.
Eu costumava ter uma lista de pessoas que mataria um dia. Era
contra minhas regras hoje, mas às vezes sentia falta dela.
"Você é a coisa?" perguntou uma voz de garota. Virei-me e vi Brooke
Watson, uma garota da minha rua. Vestia-se um pouco como minha irmã
na outra noite, com roupas dos anos oitenta.
"Que coisa?" Perguntei, pescando meu copo da tigela. "O palhaço
de A coisa, aquele livro do Stephen King," disse Brooke.
"Não," eu disse, torcendo minha manga no copo resgatado e
cobrindo-a de guardanapos. "E acho que aquele palhaço se chamava
Pennywise."
"Não sei, nunca li," disse ela, baixando os olhos. "Estava na
prateleira dos meus pais, então eu vi a capa e pensei que talvez você
estava vestido como - sei lá."
Estava agindo de forma estranha, como se estivesse... Não sei dizer.
Treinei-me para ler sinais visuais das pessoas que conhecia bem, assim
poderia saber o que sentiam, mas alguém como Brooke era ilegível para
mim.
Disse a única coisa em que pensei. "Você é uma punk?" "Quê?"
"Como se chamam as pessoas dos anos oitenta?" Perguntei.
"Ah," ela gargalhou. Era uma risada bonita. "Sou a minha mãe, quer
dizer - são suas roupas dos tempos de escola. Acho que deveria dizer às
pessoas que sou Cyndi Lauper ou algo assim, porque se fantasiar de mãe é
bem careta."
"Quase me vesti como minha mãe," eu disse, "mas fiquei
preocupado com o que meu terapeuta diria."
Ela riu novamente e percebi que pensava que eu estava brincando.
Era melhor assim, já que contar que a segunda parte da fantasia da
mamãe - uma faca falsa gigante enterrada na cabeça - provavelmente a
assustaria. Ela tinha um lindo - longo cabelo loiro, olhos luminosos e um
amplo sorriso com covinhas. Sorri de volta.
"Ei Brooke," disse Rob Anders, aproximando-se com um sorriso
malicioso. "Por que está falando com essa criancinha?" Ele ainda brinca de
gostosuras e travessuras.
"Sério?" disse Brooke, olhando para mim. "Eu também ia, mas não
estava convencida - ainda parece divertido, mesmo que agora estejamos
no ensino médio."
Talvez eu não entendesse que tipo de emoção Brooke transmitia,
mas eu era bem família com a vergonha e Rob Anders a exalava.
"Eu... pois é," disse Rob. "Acho que parece meio divertido. Talvez te
veja por lá." Senti um desejo súbito de esfaqueá-lo.
"E esse traje de palhaço, John?" disse ele, voltando sua atenção para
mim. "Vai fazer malabarismo ou enfiar vários de você dentro de um carro?
Gargalhou e olhou para trás para se certificar se seus amigos também
riam, mas eles tinham saído para falar com Marci Jensen - estava vestida
de gatinha, em uma fantasia que deixava claro o motivo pelo qual Max era
obcecado com seu sutiã. Rob espiou por um momento e se voltou
rapidamente. "Como é que vai ser, palhaço? Por que está com esse
sorriso?"
"Você é um cara incrível, Rob," eu disse. Olhou para mim de maneira
estranha. "Quê?" perguntou.
"Você é um cara incrível," eu disse. "Essa fantasia é muito bacana,
gosto principalmente do buraco de bala na sua testa." Torci para que fosse
embora logo. Dizer coisas gentis sobre as pessoas quando eu me irritava
era uma de minhas regras para evitar que os sentimentos se
intensificassem, mas eu não sabia por quanto tempo mais aguentaria.
"Tá fazendo graça comigo?" perguntou, encarando-me.
Não havia um regra para o caso de a pessoa que eu elogiei não fosse
embora.
"Não," eu disse. Tentei improvisar, mas já tinha perdido o controle.
Não sabia o que dizer.
"Acho que está sorrindo porque é retardado," disse ele,
aproximando-se, "'Dãã, sou um palhaço feliz.'"
Ele estava me enfurecendo. "Você é..." Precisava de um elogio.
"Ouvi dizer que se saiu bem na prova de matemática de ontem. Bom
trabalho." Foi tudo que pude pensar. Deveria ter saído, mas... Queria falar
com a Brooke.
"Escuta, esquisitão," disse Rob, "esta festa é para pessoas normais. A
festa das aberrações é no fim do corredor, no banheiro com os góticos. Por
que não se manda?"
Estava agindo como um durão, mas era só cena - típica postura de
machão de quinze anos. Estava tão irritado que poderia tê-lo matado ali
mesmo, mas me forcei a acalmar-me. Eu era melhor do que isso - era
melhor do que ele. Ele queria se fazer de assustador? Eu lhe mostraria o
que é assustador.
"Estou sorrindo ao pensar em como suas entranhas devem ser."
"Quê?" perguntou Rob e sorriu. "Ah, garotão, tá tentando me
ameaçar. Acha que pode me assustar, seu bebezão?"
"Fui diagnosticado clinicamente com sociopatia," eu disse. "Sabe o
que significa?" "Significa que você é uma aberração," disse ele.
"Significa que você é tão importante para mim quanto uma caixa de
papelão," eu disse. "Você é só uma coisa - um pedaço de lixo que ainda
não descartaram. É isso que quer que eu diga?"
"Cale-se," disse Rob. Estava se fazendo de durão, mas eu conseguia
perceber sua bravata começando a ruir - ele não sabia o que dizer.
"O negócio com as caixas," eu disse, "é que você pode abri-las.
Mesmo que sejam entediantes por fora, pode haver algo interessante no
seu interior. Então, enquanto você fala todas essas coisas estúpidas e sem
graça, eu imagino como seria te abrir e ver o que tem aí dentro."
Pausei, encarando-o, e ele me encarou de volta. Estava assustado.
Deixei que sentisse medo mais um pouco e então recomecei.
"O negócio é, Rob, que eu não quero te abrir. Não é quem eu quero
ser. Então criei uma regra: sempre que sinto vontade de machucar alguém,
eu os elogio. Por isso digo, Rob Anders do número 232 da Carnation
Street, que você é uma cara incrível.
A boca de Rob pendia aberta como se estivesse prester a falar, ele a
fechou e retrocedeu. Sentou numa cadeira, ainda me olhando, ficou de pé
novamente e saiu da quadra. Eu o observei até o final.
"Eu..." disse Brooke. Tinha esquecido que ela estava lá. "Que
maneira engraçada de fazer com que ele parasse de te encher."

Eu não sabia o que dizer - ela não deveria ter ouvido aquilo. Por que
eu era tão idiota?
"São só coisas," eu disse, rapidamente, "que eu... ouvi em um filme,
acho. Quem pensaria que ele se assustaria tanto?
"É," disse Brooke. "Tenho que... foi legal conversar com você, John."
Sorriu hesitantemente e foi embora.
"Cara, aquilo foi sensacional," disse Max.
Virei-me, surpreso. "Quando que você chegou aqui?"
"Estive aqui quase o tempo inteiro," disse ele, aproximando-se da
mesa de refrescos, "e foi sensacional. O Anders quase faz cocô nas calças."
"A Brooke também," eu disse, olhando para onde ela tinha ido. Só
via uma massa humana na escuridão.
"Foi hilário!" disse Max, servindo um pouco do ponche. "Ela tava tão
na sua." "Na minha?"
"Você - você não reparou? Você é cego, cara. Ela ia te convidar pra
dançar." "Por que ela me convidaria pra dançar?"
"Porque estamos num baile de dança," disse Max, "e porque você é
um caldeirão de amor de palhaço.
Eu ficaria surpreso se ela falar com você novamente; aquilo foi
sensacional."

Na noite seguinte, eu e Max fomos brincar de doces ou travessuras


com suas irmãzinha Audrey. Começamos por seu bairro, acompanhados
por sua mãe com uma lanterna e spray de pimenta. Quando acabamos por
lá ela nos levou a minha vizinhança e o Sr. Crowley balançou a cabeça
quando visitamos sua casa.
"Não deveriam estar fora tão tarde," disse ele, carrancudo. "Não é
seguro com um assassino à solta."
"Todos os postes de iluminação estão acesos," eu disse, "e estamos
com um adulto. Até mencionaram no jornal que colocaram reforços
policiais. Estamos mais seguros esta noite que muita gente."
O Sr. Crowley se escondeu atrás da porta para tossir e se voltou para
nós. "Não fiquem fora por muito tempo, estão me ouvindo?"
"Teremos cuidado," eu disse, e o Sr. Crowley distribuiu os doces.
"Não quero que esta cidade seja dominada pelo medo," ele disse,
com tristeza, "aqui era tão feliz antes." Tossiu novamente e fechou a porta.
Coisas que pareciam bobas à luz do dia - sangue falso e próteses -
tinham o ar mais sombrio agora, na escuridão da noite. Mais aterrorizante.
O assassino estava na mente de todos e eles estavam nervosos - todos os
tolos enfeites de Halloween comprados nas lojas foram substituídos por
um terror real de vida ou morte. Era o melhor Halloween de todos.

6.
"Aqui é o Ted Rask com uma reportagem exclusiva da Five Live News
direto de Clayton, uma cidade pacata sob o domínio de uma crise
crescente chamado por alguns de O Assassino de Clayton. Muitos cidadãos
têm medo de deixar suas casas à noite e alguns até mesmo durante a luz
do dia. Apesar do sentimento geral de medo, há esperanças. A polícia e o
FBI fizeram uma descoberta surpreendente em suas investigações."
Eram seis da noite e eu assistia à TV. Mamãe dizia que era estranho
que um garoto de quinze anos fosse tão interessados nas notícias, mas já
que não tínhamos a Court TV, as notícias locais eram a única coisa que me
interessavam. Além disso, o serial killer ainda era o assunto do momento e
a cobertura do Ted Rask havia se tornado o programa mais popular da
cidade - apesar de, ou por causa de, seu espírito melodramático. Uma
tempestade de neve de novembro assolava o exterior, mas dentro de casa
nos aquecíamos com o fogo do delírio midiático.
"Como se lembram da minha primeira reportagem sobre a morte do
fazendeiro David Bird," disse Rask, "havia uma substância oleosa perto do
local; inicialmente a suspeita era tratar-se de resíduos deixados por algum
carro de fuga, mas testes forenses verificaram que sua origem é de
natureza biológica. De acordo com uma fonte secreta por dentro da
investigação, o FBI foi capaz de encontrar uma pequena amostra de DNA
em avançado estado de degradação na substância. Mais cedo nesta
manhã, identificou-se que o DNA tem origem humana, mas, infelizmente,
o rastro termina aí. O DNA não é compatível com nenhuma das vítimas,
nem com nenhum dos atuais suspeitos, pessoas desaparecidas das
redondezas ou qualquer pessoa nos registro de DNA do estado. Devo
saliente que o banco de dados com o qual contamos aqui é bem limitado -
a tecnologia é nova e há poucos relatórios de mais de cinco anos em
qualquer cidade. Sem um amplo repertório de DNA comparável à base de
dados nacional de digitais, é possível que essa assinatura de DNA jamais
seja identificada."
Ele era tão frio e sério, como se fosse capaz de ganhar um prêmio
jornalístico por puro carisma. Mamãe ainda o odiava e se recusava a
assistir - é só questão de tempo, disse ela, antes que ele comece a fazer
acusação e alguém seja linchado. As tensões estavam em alta na cidade e
a possibilidade de um terceiro assassinato pairava sobre nós como uma
nuvem.
"Enquanto a polícia vem testando as evidências da cena do crime,"
disse Rask, "a equipe da Five Live News vem fazendo uma investigação
própria e encontramos algo bem interessante: um caso não resolvido há
mais de quarenta anos envolvendo uma substância bastante semelhante à
deste caso mais recente. Ajudaria a capturar o assassino? Falaremos mais
sobre isso às dez. Aqui é Ted Rask, Five Live News. De volta a você, Sarah."
Mas Ted Rask não retornou às dez. O Assassino de Clayton o pegou.
Seu operador de câmera o encontrou logo depois das oito e meia em um
beco atrás do hotel, eviscerado e sem uma perna. Havia um enorme
borrão de lama preta esfregado em sua cara. Deveria ser quente, já que o
deixou vermelho como uma lagosta.

"Ouvi que você tem aterrorizado as crianças na escola," disse o Dr.


Neblin.
Ignorei-o e olhei pela janela, pensando no corpo do Rask. Algo sobre
ele estava...
errado.
"Não quero que use meu diagnóstico como uma arma para assustar
pessoas," disse Neblin. "Fazemos isso para que você se desenvolva, não
para que jogue sua patologia no rosto de outras pessoas."
Rostos. O rosto de Rask havia sido lambuzado com lama - por quê?
Parecia humilhante - algo que o assassino não demonstrou antes. O que
estava acontecendo?
"Está me ignorando, John," disse Neblin. "Está pensando no novo
assassinato de ontem à noite?" "Não foi assassinato," eu disse, "foi obra
de um serial killer."
"Há diferenças?"
"Claro que há," eu disse, girando-me para encará-lo. Senti-me
quase... traído por sua ignorância. "Você é psicólogo, deveria saber.
Assassinato é... diferente. Assassinos são os bêbados e os maridos
ciumentos - eles têm justificativas pelo que fazem.
"Serial killers não têm?"
"O assassinato é a própria razão," eu disse. "Há algo no interior do
seral killer que está faminto, ou vazio, e eles o preenchem ao matar.
Chamar de assassinato o torna... vulgar. Faz com que soe estúpido."
"E você não quer que um serial killer soe estúpido."
"Não é o que... Não sei explicar." Virei-me de volta para a janela.
"Parece errado."
"Talvez você queira tornar os serial killers algo que não são," disse
Neblin. "Quer que eles possuam um significado especial."
Ignorei-o, mal humorado. Os carros lá fora rodavam lentamente
sobre o lençol preto de gelo que cobria a rua. Torcia para que um
atropelasse um pedestre.
"Viu o jornal ontem à noite?" perguntou Neblin. Estava tentando me
atrair a falar ao trazer à tona meu assunto favorito. Permaneci calado e
olhei pela janela.
"Parece meio suspeito," disse ele. "Aquele repórter anunciou a pista
que tinha sobre o assassino e uma hora e meia depois morreu antes de ter
a chance de revelá-la ao mundo. Parece-me que ele estava no caminho
certo."
Bela dedução, Sherlock. O jornal das dez tirou a mesma conclusão.
"Não quero mesmo falar nisso," eu disse.
"Então talvez possamos falar sobre Rob Anders," disse ele.
Virei-me para ele. "Quero lhe perguntar quem lhe contou isso."
"Recebi um telefonema do conselheiro escolar ontem," disse Neblin.
"Até onde eu sei, ela e eu somos os únicos que sabem disso. Você lhe deu
pesadelos.
Sorri.
"Não é engraçado, John, é um sinal de agressão."
"Rob é um bully," eu disse. "Desde o terceiro ano. Se quer saber de
sinais de agressão, siga-o por algumas horas."
"Agressão é normal em meninos de quinze anos," disse Neblin,
"bully ou não. O que me preocupa é quando a agressão parte de um
garoto sociopata de quinze anos obcecado com a morte - especialmente
quando, até agora, você foi um modelo de comportamento não agressivo.
O que mudou recentemente, John?"
"Bom, há um serial killer roubando partes humanas na cidade. Deve
ter ouvido falar; apareceu no jornal."
"A presença do assassino na cidade lhe afetou?" O monstro atrás da
porta se agitou.
"É muito próximo," eu disse, "o mais próximo que já estive de um
dos assassinos que estudo. Confiro livros e leio sobre serial killers online
por - bom, não por diversão, você sabe o que quero dizer - mas estão
todos tão distantes. São reais e sua realidade é a parte fascinante, mas...
aqui é Lugar Nenhum, EUA. Eles devem ser verdadeiros em outro lugar,
não aqui."
"Está com medo do assassino?"
"Não tenho medo de ser morto," eu disse. "Todas as três vítimas até
agora foram homens adultos, então presumo que ele seguirá esse padrão -
quer dizer que estou seguro e mamãe, Margaret e Lauren também.
"E seu pai?"
"Papai não está aqui," eu disse. "Eu nem sei onde ele está." "Mas
você tem medo dele?"
"Não," eu disse, vagarosamente. Era verdade, mas havia algo que eu
omitia e tinha certeza que ele sabia.
"Algo mais?" "Deveria ter?" Perguntei.
"Se não quer conversar, não falaremos," disse Neblin. "Mas e se for
necessário?" Perguntei.
"Então conversaremos."
Psicólogos eram tão mente aberta às vezes que era um milagre que
houvesse algo lá dentro. Encarei-o por um momento, pesando os prós e
contras da conversa que viria, eventualmente decidi que não faria mal.
"Sonhei, semana passada, que o assassino era meu pai," eu disse.
Neblin não reagiu. "O que ele fez?"
"Não sei, ele nem veio me ver."
"Você queria que ele te levasse quando matava?" perguntou Neblin.
"Não," eu disse, desconfortável na cadeira. "Eu... queria levá-lo
aonde ele não pudesse mais matar."
"O que aconteceu em seguida?"
De repente, eu não queria falar sobre o que acontecia depois,
mesmo que tenha sido eu quem mencionou isso. Era contraditório, eu sei,
mas sonhos sobre matar o seu pai fazem isso com você. "Podemos falar de
outra coisa?"
"Claro que podemos," disse ele, e fez uma anotação no papel.
"Posso ver essa anotação?" Perguntei.
"Claro." "Neblin me passou o bloco de notas."
Primeira razão: assassino na cidade.
Não quer falar sobre seu pai
"Por que escreveu 'primeira razão'?" Perguntei.
"A primeira razão por que você assustou o Rob Anders. Há mais?"
"Não sei," eu disse.
"Se não quer falar sobre seu pai, que tal sobre sua mãe?"
O monstro atrás da porta se agitou. Eu cheguei a chamá-lo de
monstro, mas era apenas eu. Ou a parte mais sombria de mim, no mínimo.
Você provavelmente acharia horripilante ter um monstro de verdade
escondido dentro de você, mas acredite - é muito, muito pior, quando o
monstro é na verdade sua própria mente. Chamá-lo de monstro parecia
distanciá-lo um pouco, o que me fazia sentir-me melhor sobre isso. Não
muito, mas é o que dava.
"Mamãe é uma idiota," eu disse, "e não me deixa mais entrar nos
fundos da funerária. Já faz quase um mês."
"Até a noite passado, ninguém havia morrido por um mês," disse
ele, "Por que queria ir ao cômodo dos fundos se não havia trabalho algum
lá?"
"Eu costumava ir muito lá para pensar," eu disse. "Eu gostava." "Há
outro lugar aonde possa ir para pensar?" "Vou ao Lago dos Malucos," eu
disse, "mas está muito frio agora." "Lago dos malucos?"
"Lago Clayton," eu disse. "Há várias pessoas estranhas por lá. Mas
eu cresci praticamente dentro daquela funerária - ela não pode tirá-la de
mim."
"Você me disse antes que tinha estado ajudando nos fundos há
apenas poucos anos," disse o Dr. Neblin. "Há outras partes da funerária
que te atraem?"
"Aquele repórter morreu na noite passada," eu disse, ignorando-o,
"e talvez nos mandem ele - vão levá-lo para casa para o funeral, claro, mas
precisam nos mandá-lo antes para o embalsamento. Preciso ver aquele
corpo e ela não me permite."
Neblin pausou.
"Por que você precisa ver o corpo?" perguntou.
"Para saber como ele pensa," eu disse, olhando através da janela.
"Estou tentando entendê-lo." "O assassino."
"Há algo de errado com ele e não consigo decifrar."
"Bem," disse Neblin, "podemos falar sobre o assassino, se é o que
deseja." "Sério?"
"Sério, mas quando acabar, você precisa responder qualquer
pergunta que eu faça. "Que pergunta?"
"Descobrirá quando eu perguntar.," disse Neblin, sorrindo. "Então, o
que sabe sobre o assassino?" "Sabia que ele roubou um rim do primeiro
cadáver?"
Neblin levantou a cabeça. "Não tinha ouvido isso."
"Ninguém tinha," eu disse, "então me mantive calado. Quando o
corpo chegou à funerária o rim estava faltando - todo o resto parecia haver
sido destroçado, mas o rim foi removido com destreza."
"E o segundo cadáver?"
"Ele levou o braço," eu disse, "e o abdômen só estava rasgado, não
eviscerado - a maior parte de suas entranhas estavam dentro."
"E uma perna do terceiro," disse Neblin. "Interessante. Então os
órgãos empilhados eram apenas acessórios - ele não ritualiza os
assassinatos, só rouba partes do corpo."
"Eu disse exatamente isso à mamãe," eu disse, levantando as mãos.
"Bem antes de ela te botar pra fora da sala dos fundos?"
Dei de ombros. "Acho que é algo bem bizarro de se falar."
"O que me parece interessante," disse Neblin, "é como ele deixa os
corpos - ele não os carrega ou esconde, só os deixa para que outras
pessoas os encontrem. Normalmente, isso significa que o serial killer quer
transmitir um comunicado, de forma que, ao vermos o corpo, entendamos
a mensagem que ele quer passar. Mas se o que vcocê diz é verdade, então
ele não está expondo os corpos - só ataca rapidamente e some, passando
o mínimo de tempo possível na cena do crime."
"E o que isso significa?" Perguntei.
"Por um lado," disse Neblin, "ele provavelmente odeia o que faz."
"Faz bastante sentido," eu disse, acenando. "Não tinha pensado
nisso." Senti-me estúpido por não ter pensado nisso. Por que não me
ocorreu que o assassino talvez não desfrutasse dos assassinatos? "Porém,
ele desfigurou o rosto do repórter," eu disse, "logo, ele tinha outro motivo
além de só acabar com sua vida."
"Com serial killers," disse Neblin, "o motivo é muito provavelmente
emocional: estava enfurecido, ou frustrado ou confuso. Não caia no erro
de que sociopatas não sentem nada - eles sentem intensamente, só não
sabem como lidar com suas emoções."
"Você disse que ele não desfrutava dos assassinatos," eu disse,
"mas, até agora, ele levou um souvenir de todos os três. Não faz sentido -
por que levar algo de uma ocasião da qual não quer se recordar?"
"É uma boa pergunta," disse Neblin, anotando em seu bloco, "mas
agora é a minha vez de perguntar."
"Certo," eu disse, suspirando e olhando pela janela." "Vamos acabar
com isso." "Diga-me o que Rob Anders estava fazendo antes de você
ameaçar matá-lo."
"Não ameacei matá-lo."
"Falou sobre sua morte de forma ameaçadora," disse Neblin. "Não
vamos discutir minúcias."
"Estávamos na quadra da escola para o baile de Halloween," eu
disse, "e ele estava me enchendo o saco - gozando e derrubando minha
bebida, coisas assim. Então, quando eu estava conversando com alguém,
ele chegou e começou a zombar de mim e eu sabia que as duas únicas
opções para me livrar dele eram socá-lo ou assustá-lo. Tenho uma regra
sobre não machucar pessoas, então o assustei."
"Não tem uma regra sobre ameaçar pessoas de morte?" "Não até
aquele momento," eu disse. "Agora eu tenho."
"Com quem estava conversando?" "Por que isso importa?"
"Só estou curioso sobre com quem conversava." "Uma garota."
O monstro atrás da parede rugiu, baixo e queixosamente. O Dr
Neblin levantou a cabeça; "Ela tem um nome?"
"Brooke," eu disse, desconfortável de repente." "Não é ninguém.
Mora na minha rua há anos." "É gatinha?"
"É um pouco nova demais para você, doutor."
"Deixe-me reformular a frase," ele disse, sorrindo. "Sente-se atraído
por ela?" "Pensei que estivéssemos falando do Rob Anders," eu disse.
"Só curiosidade," disse ele, anotando em seu bloco. "Já acabamos
por hoje de qualquer maneira. Há algo mais que queira discutir?"
"Acho que não." Olhei através da janela; os carros passavam
cuidadosamente entre os prédios, como besouros em um labirinto. A van
da Five Live News rodou em direção ao oeste - para fora da cidade.

"Parece que ele os assustou," disse Neblin, seguindo meu olhar.


Ele estava correto... pera. Era isso. Era a peça que faltava. O
assassino os assustou.
"Não é um serial killer," eu disse, repentinamente. "Não é?"
perguntou Neblin.
"Está tudo errado," eu disse, "não pode ser. Ele não fugiu depois -
ele expôs o corpo, como você disse, lambuzando-o todo de lama. Não
estava tentando disfarçar as notícias, estava tentando assustá-los. Não vê?
Tinha um motivo!"
"E você acha que serial killers não têm motivos."
"Não têm," eu disse. "Pesquise todas as fichas criminais que existem
e nunca encontrará um serial killer que mata alguém só porque estão se
aproximando da verdade - a maioria deles faz de tudo para atrair mais
atenção da mídia, não menos. Eles adoram. Metade escreve cartas para a
imprensa."
"A fama não conta como razão?”
"Não é a mesma coisa", eu disse. "Eles não matam porque querem
atenção, querem atenção porque matam. Querem que as pessoas vejam o
que estão fazendo. Matar continua a ser a razão fundamental—a
necessidade básica que os assassinos buscam satisfazer. E esse cara tem
algo a mais. Não sei o que é, mas está lá.”
"E quanto ao John Wayne Gacy?" perguntou Neblin. "Ele matava
homens gays porque queria puni-los. Esse é um motivo."
"Muitos poucos dos homens que ele matou eram realmente gays",
eu disse. "Quanto sobre ele você realmente leu? A questão gay não era um
motivo, era uma desculpa—ele precisava matar alguma coisa, e alegar que
estava punindo pecadores o permitia se sentir menos culpado por isso.”
"Você está ficando um pouco exaltado, John", disse Neblin. "Talvez
devêssemos parar agora.”
"Os serial killers não têm tempo para matar jornalistas intrometidos
porque estão demasiado ocupados matando pessoas que se enquadram
no seu perfil de vítima: velhos, crianças pequenas, estudantes
universitários loiros, o que quer que seja", eu disse. "Por que este é
diferente?”
"John", disse Neblin.
Senti-me tonto, como se estivesse hiperventilando. O Dr. Neblin
tinha razão; era hora de parar. Respirei fundo e fechei os olhos. Haveria
tempo para isso mais tarde. Ainda assim, senti um toque de energia, como
o som de água correndo em meus ouvidos. Este assassino era algo
diferente, algo novo.
O monstro atrás da parede cheirava rudemente o ar. Cheirava
sangue.

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