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Para Rob, que me deu o maior incentivo que um irmão mais novo
pode dar, ser publicado primeiro.
AGRADECIMENTOS
Este livro existe graças a várias pessoas, sendo que a maioria (até
onde eu saiba) não é um serial-killer.
Primeiramente, devo mencionar Brandon Sanderson, que um
dia, no carro, mandou que me calasse e parasse de falar sobre
serial-killers e que simplesmente escrevesse um livro sobre eles.
Acabou sendo uma ótima ideia. Essa ideia foi então desenvolvida e
refinada por uma seria de grupos de escrita e leitores críticos,
incluindo (mas não restrito a) Peter Ahlstrom, Karla Bennion, Steve
Diamond, Nate Goodrich, Nate Hatfield, Alan Layton, Jeanette
Layton, Drew Olds, Bem Olsen, Bryce Moore, Janci Patterson, Emily
Sanderson, Ethan Skarstedt, Isaac Stewart, Eric James Stone, Sandra
Tayler e Kaylynn Zobell.
No âmbito profissional, devo agradecer a meu editor, Moshe
Feder e minha maravilhosa agente, Sarah Crowe. Sem a sua ajuda
este livro talvez fosse aceitável, mas não seria espetacular, e você
não teria ouvido falar dele. Se você o acha espetacular, ou tenha
ouvido falar dele, agradeça-os.
Um agradecimento especial vai à minha esposa, Dawn, que me
apoiou durante a escrita deste livro e não me largou depois de lê-
lo. Outros familiares que não me abandonarem incluem minha irmã
Allison, meu irmã Rob, minha sogra Marta e meus pobres pais,
Robert e Patty. A todos vocês, reitero que este livro não é
autobiográfico. Juro.
1.
1
Cutelo
Ned sorriu, nervosamente. “O esquilo certamente não lembra.”
Suas piadas nervosas estavam ficando mais caretas.
“Não foi a única vez,” eu disse. “Papai costumava colocar
armadilhas no jardim para esquilos, toupeiras, etc., e era meu
dever verificá-las todas as manhãs e esmagar qualquer coisa que
não estivesse morta com uma pá. Quando tinha sete anos, comecei
a abri-los e ver como eram por dentro, mas depois que comecei a
estudar sobre serial-killers parei com isso. Já ouviu falar sobre a
tríade de MacDonald?”
“Três traços compartilhados por 95% dos serial-killers,” Dr.
Neblin disse. “Enurese, piromania e crueldade com animais. Você
possui, admito, todos os três.”
“Descobri isso aos oito anos,” eu disse. “O que me pegou não foi
o fato de que a crueldade com animais pode prever
comportamento violento, - foi que, até ler aquilo, eu não achasse
errado. Eu matava animais e os dissecava como uma criança
brincando de Lego. Eles não eram reais para mim – eram apenas
brinquedos com os quais brincava. Coisas.”
“Se você não achava errado,” perguntou Neblin, “por que
parou?”
“Porque foi a primeira vez que percebi que não era como os
demais,” eu disse. “Aqui está algo que eu faço o tempo todo, sem
ligar muito, e o resto do mundo acha condenável. Foi aí que percebi
que deveria mudar, então comecei a inventar as regras. A primeira
foi: não mexa com animais.”
“Não os mate?”
“Não faça nada com eles,” eu disse. “Eu não tenho cachorro, não
brinco com cachorros na rua e nem gosto de ir à casa de alguém
que tem animais. Evito qualquer circunstância que possa me levar a
fazer algo que eu não deveria.”
Neblin me olhou por um momento. “Tem mais?” perguntou.
“Se eu penso em machucar alguém,” eu disse, “eu os elogio. Se
alguém me chateia ao ponto que eu o odeie e me imagine
matando-o, eu digo algo gentil e dou um grande sorriso. Isso me
força a ter bons pensamentos ao contrário dos maus, o que
normalmente os faz sumir.”
Neblin pensou por um momento antes de responder. “É por isso
que você lê tanto sobre serial-killers,” ele disse. “Você não
diferencia o certo do errado como as outras pessoas, então lê para
descobrir o que deve evitar.”
Assenti. “E claro que ajuda o fato que é maneiro ler sobre isso.”
Ele escreveu algumas anotações no bloco.
“Então, qual regra você violou hoje?” ele perguntou.
“Eu fui ao local onde encontraram o cadáver do Jeb Jolley,” eu
disse.
“Estava me perguntando por que você não o tinha mencionado
antes,” ele disse. “Você tem uma regra sobre se manter afastado de
cenas de crimes?”
“Na verdade, não,” eu disse. “Por isso consegui justifica-lo a mim
mesmo. Eu não estava violando uma regra específica, só a ideia de
uma.”
“E por que você foi até lá?”
“Porque alguém foi morto lá,” eu disse. “Eu tinha que... ver.”
“Você foi escravo da sua compulsão?” ele perguntou.
“Você não deve usar isso contra mim.”
“Eu meio que devo,” disse Neblin. “Sou um terapeuta.”
“Vejo cadáveres o tempo todo no necrotério,” eu disse, “e acho
que não há problema – mamãe e Margaret trabalham lá há anos e
não são serial-killers. Eu vejo várias pessoas vivas e várias pessoas
mortas, mas nunca vi uma pessoa viva se tornar morta. Tenho...
curiosidade.”
“E a cena de um crime é o mais próximo disso sem que você
mesmo cometa o assassinato.”
“Sim,” eu disse.
“John, escuta,” Neblin disse, aproximando-se, “você tem vários
traços comportamentais de um serial-killer, eu sei – de fato, acho
que você é a pessoa com mais traços que eu conheço. Mas você
deve se lembrar que traços são só isso – eles preveem o que pode
acontecer, não profetizam o que irá acontecer. 95% dos serial-killers
molham a cama, acendem fogos e machucam animais, mas isso não
significa que 95% das crianças que fazem isso se tornarão um. Você
está sempre no controle do seu destino e você é quem toma suas
próprias decisões – ninguém mais. O fato de você possuir essas
regras e segui-las diz muito sobre seu caráter. Você é uma boa
pessoa, John.”
“Eu sou uma boa pessoa,” eu disse, “porque sei como boas
pessoas se comportam e as imito.”
“Se você é tão rigoroso como diz,” Neblin disse, “ninguém vai
notar a diferença.”
“Mas não sou rigoroso o suficiente,” eu disse, olhando pela
janela, “quem sabe o que pode acontecer?”
3.
2
Transtorno de personalidade antissocial
Ela tinha razão, eu conseguia ver os benefícios em ser declarado
oficialmente como sociopata. Nada de trabalhos em grupo na
escola, por exemplo.
“Acho que é minha culpa,” ela disse. “Te arrastei á funerária
quando era apenas uma criança e isso te afetou pra vida inteira. O
que eu estava pensando?”
“Não é a funerária,” eu disse. Arrepiei-me com a sua menção –
ela não podia tirá-la de mim. “Você e Margaret trabalham lá há
quanto tempo? E nunca mataram ninguém ainda.”
“Não somos psicóticas também.”
“Você está mudando de história,” eu disse. “Acabou de dizer que
a funerária me afetou e agora diz que me afetou porque eu já era
transtornado? Se vai ser assim, eu não vou vencer de qualquer
forma, né?”
“Há muito que pode ser feito, John, e você sabe. Pode parar de
escrever trabalhos de casa sobre serial killers, por exemplo –
Margaret me contou que você fez isso de novo.”
Margaret, sua dedo-duro. “Tirei dez naquele trabalho,” eu disse.
“O professor adorou.”
“Ser muito bom em algo que você não deveria fazer não torna as
coisas melhores,” ela disse.
“É aula de história,” eu disse, “e serial killers são parte da
história. Assim como as guerras, o racismo e o genocídio. Acho que
esqueci de me matricular na aula de “história das coisas boas”, foi
mal.”
“Só queria saber por quê,” ela disse.
“Por que o quê?”
“Por que você é obcecado por serial killers.”
“Todo mundo precisa de um hobby,” eu disse.
“John, bem brinque com isso.”
“Você conhece o John Wayne Gacy?” perguntei.
“Agora eu conheço,” ela disse, jogando as mãos para o alto,
“graças ao Dr. Neblin. Queria ter lhe dado outro nome.”
“John Wayne Gacy foi o primeiro serial killer que eu conheci,” eu
disse. “Quando tinha oito anos, vi meu nome numa revista ao lado
da imagem de um palhaço.”
“Dez segundos atrás eu lhe pedi para parar de ser obcecado por
serial killers,” ela disse. “Por que estamos falando disto?”
“Porque eu quero que você saiba o porquê,” eu disse, “e estou
tentando te falar. Vi aquela imagem e pensei que era um filme de
palhaço com o John Wayne – o papai costumava me mostrar os
filmes de caubói dele o tempo todo. Acontece que o John Wayne
Gacy era um serial killer que se vestia de palhaço para as festas da
vizinhança.”
“Não aonde você quer chegar,” mamãe disse.
Não conseguia explicar o que eu queria dizer; sociopatia não era
apenas ser emocionalmente surdo, era ser emocionalmente mudo
também. Sentia-me como os personagens na TV muda, balançando
as mãos e gritando, sem dizer uma palavra em voz alta. Parecia que
eu e mamão falávamos línguas distintas e a comunicação em
impossível.
“Pense em um filme de caubóis,” eu disse, agarrando-me a
qualquer esperança. “São todos iguais – um caubói de chapéu
branco cavalga por aí disparando contra caubóis de chapéus pretos.
Você sabe quem são os mocinhos e os vilões e sabe o que vai
acontecer.”
“E?”
“Então quando um caubói mata alguém você nem pisca, porque
acontece todo dia. Mas quando um palhaço mata alguém, isso é
uma novidade – algo que nunca tinha visto. Aqui está alguém que
você pensava ser bonzinho e ele está fazendo algo tão terrível com
o qual emoções humanas não podem lidar – aí, logo mais, ele faz
algo de bom novamente. É fascinante, mamãe. Não é esquisito ser
obcecado por isso, é esquisito não ser.”
Mamãe me fitou por um momento.
“Então serial killers são como heróis de um filme?” Ela
perguntou.
“Não tem nada a ver com o que eu disse,” eu falei. “Eles são
doentes e perversos e fazem coisas terríveis. Só não penso que seja
doentio e perverso querer conhecê-los melhor.”
“Há uma grande diferença entre conhecê-los melhor e pensar
que se tornará um deles,” ela disse. “Não estou te culpando, não fui
uma boa mãe - e Deus sabe que seu pai foi ainda pior. O Dr. Neblin
disse que você cria umas regras para se distanciar de más
influências.”
“Sim,” eu disse. Finalmente ela estava me escutando – vendo o
lado positivo em vez do negativo.
“Quero ajuda,” ela disse, “aqui vai outra regra: nada de ajudar na
funerária.”
“Quê!”
“Não é um bom lugar para crianças,” ela disse, “eu nunca deveria
ter permitido que você ajudasse na sala dos fundos.”
“Mas eu” – mas o quê? O quê eu poderia dizer para chocá-la
ainda mais? Preciso da funerária porque ela me conecta à morte de
uma forma segura? Preciso da funerária porque necessito ver os
corpos se abrirem como flores e conversarem comigo e me dizerem
o que sabem? Ela me expulsaria de casa.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o celular da mamãe
tocou a sua rendição metálica e eletrônica do prelúdio de William
Tell, que mamãe definiu como o toque especial para o necrotério –
uma chamada ao dever. Só havia um razão para o legista ligar às
dez e meia de um sábado e ambos sabíamos qual. Ela suspirou e
vasculhou a bolsa atrás do telefone.
“Oi, Ron,” ela disse. Pausa. “Não, está tudo bem, já estávamos
terminando.” Pausa. “Sim, sabemos. Já esperávamos.” Pausa.
“Desço num instante, quando quiser vir está bom. Sério, não se
preocupe – ambos sabíamos no que nos metíamos.” Pausa. “Você
também, nos falamos logo.”
Desligou o telefone com um suspiro. “Suponho que sabe do que
se trata,” ela disse.
“A polícia finalizou o trabalho com o cadáver do Jeb.”
“Dentro de quinze minutos o entregarão,” ela disse. “Preciso
descer. Eu... terminamos esta conversa mais tarde. Desculpa, John,
por tudo. Poderia ter sido um jantar de família agradável.”
Espiei a TV de novo. Homer estrangulava o Bart.
“Quero te ajudar,” eu disse. “Já passam das dez, você ficará
acordada a noite toda se fizer isso sozinha.”
“Margaret ajudará,” ela disse.
“Então demorará cinco horas em vez de oito, ainda é muito. Se
eu ajudar podemos terminar em três.” Mantive a voz calma e
estável; não poderia deixa-la me tomar tudo, mas não ousaria
deixa-la saber o quão importante era pra mim.”
“O cadáver está em péssimas condições, John. Ele foi
despedaçado. Vai levar muito tempo para arrumá-lo e será muito
perturbador e você é um psicopata.”
“Ai, mãe.”
Ela recolheu a bolsa. “Ou isso te incomoda, caso em que você
não deveria ir, ou não te incomoda, caso em que você deveria ter
parado de ir há muito tempo.”
“Realmente quer me deixar aqui sozinho?”
“Encontrará algo de produtivo para fazer,” ela disse.
“Vamos reconstruir um corpo,” eu disse, “o que é mais produtivo
que isso? Imediatamente estremeci – humor negro não me ajudaria
de forma alguma. Foi um reflexo, aliviar a tensão com uma piada,
como o Dr. Neblin fazia.
“E não gosto da forma como você fala sobre a morte,” ela disse.
“Agentes funerários estão cercados de morte – respiramos isso
todas as horas do dia. Tanto contato pode fazê-lo perder a
reverência que tem por ela. Já percebi isso em mim, e me
incomoda. Se a morte não fosse tão conhecida por você, estaria
melhor.”
“Estou bem, mãe,” eu disse. O quê poderia fazer para convencê-
la? “Você sabe que precisa da ajuda e sabe que não quer me deixar
sozinho.” Mesmo que eu não tivesse empatia, mamãe tinha e eu
poderia usá-la contra ela. Se a lógica falhou, a culpa poderia salvar
o dia.
Ela suspirou e fechou os olhos com força, produzindo imagens
que eu não poderia imaginar. “Tá, mas vamos terminar a pizza
primeiro.”
Minha irmã Lauren saiu de casa há seis anos, dois anos após o
papai. Tinha apenas dezessete anos então e vai saber no que ela se
meteu enquanto estava longe. Havia bem menos gritaria na casa, o
que era agradável, mas o que sobrava de gritaria estava direcionado
a mim. Cerca de seis meses atrás, Lauren voltou a Clayton, pegando
carona sabe-se lá de onde e, arrependida, pediu um trabalho à
mamãe. Elas ainda mal se falavam, e ela nunca nos visitava ou nos
convidava para sua casa, mas trabalhava como recepcionista na
funerária e se dava bem o suficiente com a Margaret.
Todos nos dávamos bem com a Margaret. Ela era o isolante que
evitava uma explosão e um curto-circuito na família.
Mamãe ligou para Margaret quando terminamos a pizza e,
aparentemente, Margaret ligou para Lauren, já que ambas estavam
lá quando descemos ao necrotério – Margaret em seu moletom e
Lauren embonecada para uma noite de sábado na cidade. Eu me
perguntava se havíamos interrompido algo.
“Oi, John,” disse Lauren, parecendo completamente deslocada
na recepção elegante do escritório. Usava uma jaqueta de vinil
brilhosa sobre uma regata vermelha berrante, seu cabelo em um
penteado estilo anos 80. Talvez fosse uma noite temática na boate.
“Oi, Lauren,” eu disse.
“É a papelada?” mamãe perguntou, olhando por cima do meu
ombro na sua direção.
“Quase pronta,” disse Lauren e mamãe se dirigiu aos fundos.
“Já está aqui?” eu perguntei.
“Acabaram de deixa-lo,” ela disse, verificando o maço de papéis
uma última vez. “Margaret está com ele nos fundos.”
Virei-me para sair.
“Sobrevivendo?” ela me perguntou. Estava ansioso para ver o
corpo, mas me voltei na sua direção.
“O suficiente. E você?”
“Não sou eu quem mora com a mamãe,” ela disse. Ficamos em
silêncio mais um momento. “Notícias do papai?”
“Nada desde maio,” eu disse. “E você?”
“Nada desde o natal.” Silêncio. “Nos primeiros dois anos ele me
mandou cartas de dia dos namorados.”
“Ele sabia onde você estava?”
“Pedi-lhe dinheiro algumas vezes.” Abaixou a caneta e se
levantou. Sua saia combinava com a jaqueta, vinil preto. Mamãe
odiaria, razão pela qual ela provavelmente a comprou. Reuniu os
papéis em uma pilha uniforme e caminhou de volta ao cômodo dos
fundos.
Mamãe e Margaret já estavam lá, jogando conversa fora com o
Ron, o legista. Uma sacola azul claro ocupava a mesa de
embalsamento e tive que me segurara não correr e abri-la. Lauren
entregou os papéis à mamãe, que os olhou rapidamente e assinou
algumas folhas, entregando-as a Ron.
“Obrigada, Ron. Tenha uma boa noite.”
“Desculpa jogar isso pra você numa noite de sábado,” ele disse,
falando com a mamãe, mas olhando para Lauren. Era alto, com
cabelo preto penteado para trás.
“Sem problemas,” mamãe disse. Ron pegou os papéis e saiu por
trás.
“Meu trabalho termina aqui,” disse Lauren, sorrindo à Margaret
e acenando educadamente para mamãe. “Divirtam-se.” Voltou ao
escritório e momentos depois ouvi a porta da frente fechar.
O suspense estava me matando, mas eu não ousava dizer nada.
Mamãe já quase não tolerava minha presença aqui, e parecer
superexcitado provavelmente causaria minha expulsão.
Mamãe olhou para Margaret. Quando se arrumavam pareciam
um pouco diferentes uma da outra, mas quando pegas de surpresa
– com roupas de trabalho sem graça e sem maquiagem – mal dava
para distingui-las. “Vamos lá.”
Margaret ligou o ventilador. “Espero que não nos falhe hoje.”
Pusemos aventais e nos lavamos, mamãe abriu o saco. Enquanto a
Senhora Anderson mal foi tocada, Jeb Jolley havia sido esfregado e lavado
e apanhado tantas vezes por Ron e pelos agentes forenses do Estado que
cheirava praticamente apenas a desinfetante. O odor de podre se infiltrava
lentamente ao rolarmos o corpo e o dispormos sobre a mesa. Tinha um
incisão enorme em “Y” que ia de ombro a ombro e abaixo até o meio do
tórax, na maioria das autópsias essa linha ia até a virilha, mas aqui ela se
transformou abaixo das costelas em uma teia irregular de rasgos e fendas
que cobriam quase toda a barriga. As bordas estavam enrugadas e
parcialmente costuradas, apesar de faltarem partes da pele. As beiradas
de um saco plástica eram entrevistas através do buraco no abdômen.
Imediatamente pensei em Jack the Ripper, o primeiro serial killer
registrado. Ele despedaçava as vítimas tão brutalmente que a maioria não
era reconhecida.
Teria Jeb Jolley sido atacado por um serial killer? Era possível, mas
de que tipo? O FBI dividiu os serial killers em duas categoria: organizados e
desorganizados. O organizado era como Ted Bundy – gracioso, charmoso e
inteligente, que planejava seus crimes e os encobria o máximo possível. O
desorganizado era como o Filho de Sam, que se esforçava para controlar
seus demônios interiores e de repente matava brutalmente quando esses
demônios se libertavam. Ele se apelidava de Sr. Monstro. Qual tipo havia
matado Jeb, o sofisticado ou o monstro?
Suspirei e me forcei a descartar esses pensamentos. Não era a
primeira vez que estava empolgado em encontrar um serial killer na minha
cidade. Precisava focar no cadáver e apreciá-lo pelo que era e não pelo
que eu desejava que fosse.
Margaret abriu o abdômen, revelando um grande saco plástico
contendo os órgãos internos. Estes eram normalmente removidos durante
uma autópsia, apesar de no caso do Jeb terem sido removidos durante ou
um pouco antes do momento de sua morte. Mesmo tendo sido
removidos, ainda devíamos embalsama-los – não podíamos simplesmente
jogar partes de seu ente querido fora porque não queríamos lidar com
isso, e não possuíamos um crematório. Margaret pôs o saco em um
carrinho e o empurrou contra a parede para trabalhar nos órgãos; eram
cheios de bílis e outras porcarias, coisas com as quais o fluido de
embalsamento não poderia lidar, então deveriam ser sugados. Num
embalsamento comum isso era feito após a injeção do formaldeído, mas o
bacana de um cadáver de autópsia é que você pode fazer o embalsamento
e trabalhar com os órgãos ao mesmo tempo. Mamãe e Margaret faziam
isso juntos há tanto tempo que nem precisavam conversar para
trabalharem harmoniosamente.
“John, você me ajuda,” disse mamãe, agarrando o desinfetante – era
muito perfeccionista para não limpar o corpo antes de embalsamá-lo,
mesmo um tão limpo como esse. A cavidade corporal era larga e vazia,
apesar de o coração e os pulmões estarem quase intactos e o abdômen de
Jeb parecia um balão sangrento murcho. Mamãe o lavou primeiro e o
cobriu com um lençol.
Um pensamento cruzou minha mente desavisadamente – que os
órgãos estavam organizados em uma pilha na cena do crime. Poucos
assassinos mantinham o corpo após o ato, mas os serial killers sim. Às
vezes os punham em poses, desfiguravam-no ou simplesmente brincavam
com ele como se fosse uma boneca. Isso se chamava ritualização do
assassinato e parecia muito com o que aconteceu com os órgãos do Jeb.
Talvez tenha sido um serial killer. Expulsei o pensamento da cabeça e
segurei o corpo enquanto mamãe o borrifava com Dis-Spray.
Jeb não tinha sido um cara pequeno e seus membros estavam ainda
mais robustos, preenchidos com fluido estagnado. Apertei meus dedos
contra seu pé e a marca durou alguns segundos antes de voltar ao normal.
Era como cutucar um marshmallow.
“Pare de brincar,” disse mamãe. Lavamos o corpo e retiramos o
lençol da cavidade. Suas entranhas estavam infiltradas de gordura. Ainda
havia sistema circulatório o suficiente para usar no bombeamento, mas
diversas feridas e vazamentos fariam o bombeamento perder pressão e
fluidos. Precisávamos fechá-los.
“Passe-me o fio,” disse mamãe. “Uns três centímetros.” Tirei minhas
luvas e as joguei no lixo e então comecei a cortar pedaços do fio. Penetrou
a cavidade e sondou várias artérias, e sempre que encontrava uma eu lhe
passava um pedaço de fio para atá-la. Enquanto trabalhávamos, Margaret
ligou o aspirador e começou a sugar a sujeira dos órgãos, um de cada vez;
ela usava um instrumento chamado trocarte, que era basicamente um
bico de aspirador com uma lâmina na ponta. Ela espetava um órgão,
sugava a sujeira e ia para o outro.
Mamãe deixou uma veia e uma artéria abertas na cavidade peitoral
e começou a conectá-las à bomba e ao tubo de drenagem; não havia
necessidade em cortar os ombros quando o assassino já havia aberto o
peito para nós. O primeiro produto químico na bomba desta vez era um
coagulante, que se introduzia aos poucos pelo corpo para selar os buracos
eram muito pequenos para serem selados manualmente. Um pouco
começou a vazar no torso, mas o fluxo parou imediatamente assim que o
coagulante entrou em contato com o ar, endureceu e selou o corpo.
Costumava me preocupar com que selasse o tubo de saída também, mas a
abertura era larga demais para isso.
Enquanto esperávamos, examinei os cortes no abdômen.
Certamente pareciam animalescos e no lado esquerdo havia um
semelhante a marcas de garras – quatro cortes irregulares distantes cerca
de meio centímetro um do outro, que se estendiam por trinta centímetros
até a barriga. Era obra do demônio, claro, mas não o sabíamos à época.
Como poderíamos? Até então nenhum de nós suspeitávamos que fossem
reais. Coloquei minha mãe sobre as marcas e deduzi que quem quer que
as houvesse feito tinha mãos muito maiores que as minhas. Mamãe
franziu o rosto para mim e estava prestes a dizer algo quando Margaret
resmungou brava.
“Droga, Ron!” ela não respeitava muito o legista. Ignorei-a e voltei a
atenção às marcas de garras.
“O que houve?” mamãe perguntou, dirigindo-se a ela.
“Falta um rim,” disse Margaret, prendendo minha atenção. Serial
killers costumam manter souvenirs de suas mortes, e partes do corpo
eram uma escolha comum. “Olhei o saco duas vezes,” disse Margaret, “e
era de se esperar que Ron nos enviasse todos os órgãos, pelo amor de
Deus.”
“Talvez não houvesse um rim para mandar,” eu disse. Observaram-
me e tentei parecer desinteressado. “Talvez quem o matou tenha levado.”
Mamãe franziu a testa. “Isso é...”
“Completamente possível,” eu disse, interrompendo-a. Como
poderia me explicar sem mencionar serial killers? “Você viu o tamanho
daquela marca de garras, mãe – se foi um animal que atacou suas
entranhas, não é loucura que tenha comido algo lá.” Fazia sentido, mas eu
sabia que não era um animal. Alguns cortes eram muito precisos e
também havia a pilha organizada de órgãos? Talvez um serial killer que
caçava com um cachorro?
“Checarei os papéis,” disse mamãe, arrancando suas luvas e
jogando-as no lixo ao sair para a entrada. Margaret vasculhou o saco mais
um vez, mas balançou a cabeça; o rim não estava lá. Mal podia conter meu
entusiasmo.
Mamãe voltou com uma cópia dos papéis que Lauren dera ao
legista. “Está aqui na seção de comentários: ‘Rim esquerdo desaparecido’.
Não afirma que estão mantendo-o como evidência e testes, só
desaparecido. Talvez ele o tenha removido ou algo assim.”
Margaret levantou o rim que restava, apontando para o tubo que o
conectava ao outro. “É um corte recente,” ela disse. “Não há cicatriz nem
nada.”
“É de se pensar que Lauren houvesse mencionado algo,” mamãe
disse, irada, largando os papéis e puxando outro par de luvas da caixa.
“Vamos ter que conversar.”
Mamãe e Margaret retornaram ao trabalho, mas eu fiquei parado,
uma onda de energia entrando e saindo de mim ao mesmo tempo. Não
era um assassino comum nem um animal.
Jeb Jolley era vítima de um serial killer.
Talvez tenha vindo de outra cidade, talvez fosse sua primeira vítima,
mas era um serial killer de qualquer maneira. Os sinais estavam claros. A
vítima estava indefesa, sem inimigos conhecidos ou parentes ou amigos
próximos. Seus amigos do bar disseram que ele estava calmo e feliz toda a
noite antes de partir, nada de brigas ou discussões, então não era um
crime passional ou de bebedeira. Alguém com o impulso de matar estava
esperando na área traseira do Wash-N-Dry e Jeb era um alvo oportuno, no
lugar errado e na hora errada.
Os jornais e a própria cena do crime contavam uma história confusa
de fúria misturada com simplicidade – violência animal convertida em um
comportamento calmo e racional. O assassino dispôs os órgãos em uma
pilha e, aparentemente, dedicou um tempo após estraçalhar o corpo para
retirar um único órgão.
O assassinato de Jeb Jolley era praticamente um exemplo de manual
de um assassino desorganizado, atacando com ferocidade e
permanecendo no local, desprovido de emoção e empatia, para ritualizar
o corpo – arrumá-lo, pegar um souvenir e deixar o resto para todos verem.
Não era surpresa que a polícia não houvesse mencionado o rim que
faltava. Se a notícia que um serial killer ladrão de órgãos se espalhasse,
causaria um enorme pânico. As pessoas já não se sentiam seguras e essa
era apenas a primeira morte.
Mas não seria a última. Esse era, afinal, o traço característico de
serial killers: eles continuavam matando.
4.
5.
Eu não sabia o que dizer - ela não deveria ter ouvido aquilo. Por que
eu era tão idiota?
"São só coisas," eu disse, rapidamente, "que eu... ouvi em um filme,
acho. Quem pensaria que ele se assustaria tanto?
"É," disse Brooke. "Tenho que... foi legal conversar com você, John."
Sorriu hesitantemente e foi embora.
"Cara, aquilo foi sensacional," disse Max.
Virei-me, surpreso. "Quando que você chegou aqui?"
"Estive aqui quase o tempo inteiro," disse ele, aproximando-se da
mesa de refrescos, "e foi sensacional. O Anders quase faz cocô nas calças."
"A Brooke também," eu disse, olhando para onde ela tinha ido. Só
via uma massa humana na escuridão.
"Foi hilário!" disse Max, servindo um pouco do ponche. "Ela tava tão
na sua." "Na minha?"
"Você - você não reparou? Você é cego, cara. Ela ia te convidar pra
dançar." "Por que ela me convidaria pra dançar?"
"Porque estamos num baile de dança," disse Max, "e porque você é
um caldeirão de amor de palhaço.
Eu ficaria surpreso se ela falar com você novamente; aquilo foi
sensacional."
6.
"Aqui é o Ted Rask com uma reportagem exclusiva da Five Live News
direto de Clayton, uma cidade pacata sob o domínio de uma crise
crescente chamado por alguns de O Assassino de Clayton. Muitos cidadãos
têm medo de deixar suas casas à noite e alguns até mesmo durante a luz
do dia. Apesar do sentimento geral de medo, há esperanças. A polícia e o
FBI fizeram uma descoberta surpreendente em suas investigações."
Eram seis da noite e eu assistia à TV. Mamãe dizia que era estranho
que um garoto de quinze anos fosse tão interessados nas notícias, mas já
que não tínhamos a Court TV, as notícias locais eram a única coisa que me
interessavam. Além disso, o serial killer ainda era o assunto do momento e
a cobertura do Ted Rask havia se tornado o programa mais popular da
cidade - apesar de, ou por causa de, seu espírito melodramático. Uma
tempestade de neve de novembro assolava o exterior, mas dentro de casa
nos aquecíamos com o fogo do delírio midiático.
"Como se lembram da minha primeira reportagem sobre a morte do
fazendeiro David Bird," disse Rask, "havia uma substância oleosa perto do
local; inicialmente a suspeita era tratar-se de resíduos deixados por algum
carro de fuga, mas testes forenses verificaram que sua origem é de
natureza biológica. De acordo com uma fonte secreta por dentro da
investigação, o FBI foi capaz de encontrar uma pequena amostra de DNA
em avançado estado de degradação na substância. Mais cedo nesta
manhã, identificou-se que o DNA tem origem humana, mas, infelizmente,
o rastro termina aí. O DNA não é compatível com nenhuma das vítimas,
nem com nenhum dos atuais suspeitos, pessoas desaparecidas das
redondezas ou qualquer pessoa nos registro de DNA do estado. Devo
saliente que o banco de dados com o qual contamos aqui é bem limitado -
a tecnologia é nova e há poucos relatórios de mais de cinco anos em
qualquer cidade. Sem um amplo repertório de DNA comparável à base de
dados nacional de digitais, é possível que essa assinatura de DNA jamais
seja identificada."
Ele era tão frio e sério, como se fosse capaz de ganhar um prêmio
jornalístico por puro carisma. Mamãe ainda o odiava e se recusava a
assistir - é só questão de tempo, disse ela, antes que ele comece a fazer
acusação e alguém seja linchado. As tensões estavam em alta na cidade e
a possibilidade de um terceiro assassinato pairava sobre nós como uma
nuvem.
"Enquanto a polícia vem testando as evidências da cena do crime,"
disse Rask, "a equipe da Five Live News vem fazendo uma investigação
própria e encontramos algo bem interessante: um caso não resolvido há
mais de quarenta anos envolvendo uma substância bastante semelhante à
deste caso mais recente. Ajudaria a capturar o assassino? Falaremos mais
sobre isso às dez. Aqui é Ted Rask, Five Live News. De volta a você, Sarah."
Mas Ted Rask não retornou às dez. O Assassino de Clayton o pegou.
Seu operador de câmera o encontrou logo depois das oito e meia em um
beco atrás do hotel, eviscerado e sem uma perna. Havia um enorme
borrão de lama preta esfregado em sua cara. Deveria ser quente, já que o
deixou vermelho como uma lagosta.