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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

À conquista do Estreito – A Batalha do Salado como


catalisador da projeção marítima portuguesa

Trabalho realizado no contexto do seminário de História Medieval


Peninsular lecionada pela Professora Doutora Julieta Araújo, para o Curso
de Especialização em Estudos Medievais

2021
Índice

Introdução ......................................................................... 1
O despertar marítimo dos séculos XI-XIV........................ 2
O renascimento marítimo: ......................................................................... 2
Portugal na encruzilhada atlântica: .......................................................... 7
A Batalha pelo Estreito ................................................... 10
As instituições navais e seus objetivos no Mar das Éguas: ..................... 10
A Batalha do Salado e o domínio cristão: ............................................... 14
Consequências: ........................................................................................ 19
Conclusão ....................................................................... 20
Bibliografia ..................................................................... 21
Fontes: ...................................................................................................... 21
Bibliografia consultada: ........................................................................... 21
Anexos ............................................................................ 23
Introdução
No dealbar do século XIV, a Europa estava a sofrer aquilo a que podemos chamar
de um «Despertar Comercial», o que catalisou o surgimento de uma miríade de novas
instituições marítimo-comerciais e tecnologias navais. Isto resultou numa melhoria dos
meios de navegação, o que potenciou a criação de uma vasta rede de comunicação entre
os diferentes reinos e repúblicas marítimas europeias, conectando os seus interesses
político-económicos e militares.
À medida que isto ocorria, os reinos cristãos ibéricos preparavam-se para se lançar
sobre a costa Sul da Península Ibérica, pelo que se deparam com uma nova fronteira: o
mar, no qual irão desenvolver um novo objetivo centrado sobre o domínio do Atlântico e
o Estreito de Gibraltar, servindo-se destas áreas para a projeção do seu poder. Apesar de
estes desdobramentos disporem de um saldo positivo inicial, eles são travados pelas
forças coligadas entre a dinastia Nasrida, de Granada, e os marroquinos Merínidas, que
ambicionam restaurar o domínio muçulmano sobre o Al-Andaluz. Estes últimos,
detentores de um vasto exército e de uma poderosa marinha, obrigará os reinos de Castela,
Portugal e Aragão a rapidamente desenvolver uma estratégia para concretizar o bloqueio
total ao Estreito de Gibraltar, o que impediria a chegada de novos reforços magrebinos e
a destruição dos meios navais inimigos. Porém, a tarefa não se demonstrará fácil, pois a
coligação cristã sofrerá diversos reveses nas suas campanhas, pelo que terão de obrigar
as forças do Sultão a pôr batalha junto do arroio do Salado. Foi neste recinto, onde Afonso
XI, de Castela, e D. Afonso IV, de Portugal, darão um golpe decisivo contra as ambições
muçulmanas, o que resultou na demolição das suas forças terrestres, tal como aprimorou
a resposta marítima cristã, ao ponto de eclipsarem a presença naval muçulmana no Mar
das Éguas, garantindo a segurança das suas comunidades marítimas e das suas navegações
comerciais, possibilitando a expansão de ambas e um futuro virado para o mar.
O trabalho será centrado no estudo da Batalha do Salado como o catalisador da
projeção marítima ibérica, nomeadamente a de Portugal, analisando o seu contexto
político-económico; e as razões e desdobramentos militares antes e após a batalha, de
modo a podermos construir uma imagem mais completa das suas consequências.
Esta análise detém como sua fonte principal, o manuscrito alcobacense: «De
Victoria Christianorum», um documento contemporâneo da Batalha do Salado, escrita
com o propósito de celebrar a vitória cristã. A análise do mesmo será centrada sobre os
acontecimentos que descreve antes e durante a batalha, relacionando a sua descrição com
1
pontos importantes de compreensão sobre as consequências da mesma. É importante
salientar que não existe uma fonte direta a referir todas as consequências da batalha, muito
menos quanto à sua importância para a projeção marítima portuguesa, portanto, a fonte
teve de ser complementada com outra documentação política relevante, como as
«Chancelarias» de D. Afonso IV, as «Siete Partidas» de Afonso X, como também as
crónicas refentes à época. Para além destas fontes, a base bibliográfica encontra-se
centrada sobre o estudo do contexto da época de Trezentos, quer político-económico,
como militar, sendo esta última centrada sobre a temática de «Política e Poder Naval».
Para a descrição dos eventos que levam à batalha usámos os trabalhos de Miguel Gomes
Martins, «De Ourique a Aljubarrota – A Guerra na Idade Média»; e Joseph O’Callaghan,
«The Gibraltar Crusade – Castile and the Battle for the Strait», que transmitem
informações detalhadas sobre os desdobramentos militares e decisões políticas tomadas
quanto à disputa pelo controlo marítimo sobre o Estreito; Já sobre o contexto económico
e de Poder Naval utilizámos obras de referência como o «War at Sea in the Middle Ages
and Renaissance», de John B. Hattendorf e de Richard W. Unger; «D. Afonso IV», de
Bernardo Vasconcelos Sousa; «A importância do Mar para Portugal», de Virgílio de
Carvalho; e «Nova História de Portugal – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV», de
A. H. Oliveira Marques. Referimos ainda, que foram utilizadas outras obras para fornecer
um enquadramento mais conciso sobre tudo o que seja relevante para a concretização do
objetivo deste estudo.

O despertar marítimo dos séculos XI-XIV


O renascimento marítimo:
Durante o apogeu do Império Romano, as ligações marítimas entre os grandes
portos do Mediterrâneo e do Mar do Norte estavam em pleno funcionamento. Um navio
romano poderia partir de Alexandria, escalar pela Península Ibérica e chegar até ao Canal
da Mancha, podendo espectar o estandarte imperial sempre hasteado. Algo fomentador
destas navegações era a segurança das rotas, garantida pela presença constante da marinha
imperial, pois o Mediterrâneo e as suas dependências serviam de pulmão para a projeção
das ambições de Roma.
Dito isto, não é de espantar que a queda do Império causou uma estagnação das
ligações marítimas estabelecidas por si. Não se quer dizer que não houvesse viagens entre
o Norte e o Sul, mas a verdade é que já não eram de forma tão intensa, nem com uma

2
forte projeção como outrora, passando agora o Atlântico a ser palco de ação para piratas,
corsários muçulmanos e, claro, vikings e normandos. Não obstante, o Mediterrâneo
também sofrera um cenário idêntico, pois já não existia uma potência única a assegurar o
controlo total sobre ele, mas sim uma coletânea de diferentes reinos, que competiam e
guerreavam, chegando a bloquear diferentes acessos marítimos entre si.
É neste período de incerteza e instabilidade constante que certas populações
começam a unir-se junto ao mar, acabando por fundar novos polos urbanos no
Mediterrâneo. Uma destas primeiras é a cidade de Veneza, que sob proteção do Império
Bizantino e com acesso às suas rotas, portos e bases, começa a sofrer um crescimento
acentuado no século VIII até ao século XI1. Porém, a mesma vê-se aferrada numa forte
competição com outras urbes marítimas ascendentes como Génova, Pisa e Amalfi, que
acompanharam Veneza no aproveitamento dos seus meios navais e exploração de novas
rotas comerciais, no entanto, nota-se ainda, que estas cidades, por vezes, aliavam-se
contra um inimigo em comum, tal como é visível na expulsão dos muçulmanos do Mar
Tirreno e no apoio de abastecimento das hostes dos cruzados2.
O sucesso destas cidades advinha do seu uso extensivo do mar como palco de
criação de novas linhas de comunicação, pois esta sua utilidade é também a sua maior
virtude, porque o transporte marítimo consegue ser mais rápido e barato que o terrestre,
bem como mais seguro3. É devido a isto, que se atesta a partir do séc. XI, uma forte
expansão territorial veneziana, mas também de projeção das suas relações internacionais,
ao estabelecer fábricas nas costas do Levante e Norte de África, nomeadamente, em Ceuta
e Lajazzo, na Cilícia4. Para além disto, Veneza ainda conseguiu obter o controlo total
sobre o Adriático - «Senhorio do Golfo» - em 1177, resultado da paz alcançada com o
Imperador Frederico I, do Sacro Império Romano-Germano5; mas também iniciou uma
robusta política de expansão sobre o Leste do Mediterrâneo, ao conquistar a rica cidade
de Constantinopla durante a Quarta Cruzada, como também uma miríade de novos

1
Vide. DOTSON, John, «Venice, Genoa and Control of the Seas in the Thirteenth and Fourteenth
Centuries», in HATTENDORF, John B. et UNGER, Richard W. (ed.), War at Sea in the Middle Ages and
the Renaissance, 1ª edição, Woodbridge, The Boydell Press, 2003, p. 119;
2
Idem. ibidem, pp. 119-120;
3
Vide. CARVALHO, Virgílio, A Importância do Mar para Portugal, 1ª edição, Lisboa, Bertrand Editora,
1995, p. 40;
4
Vide. DOUMERC, Bernard, «An Exemplary Maritime Republic: Venice at the end of the Middle Ages»,
in HATTENDORF, John B. et UNGER, Richard W., op. cit. p. 151;
5
Idem. Ibidem, pp. 151-152;

3
territórios como: Creta, o Ducado de Naxos, Eubeia e Corona, denominando estes
territórios como «Stato da Mar6»7.
Face a estas movimentações de Veneza, seria um erro ao aferir que os seus
políticos não tinham noção de «Poder Naval», pois o domínio do mar foi, tanto na
Antiguidade como na Idade Média, um objetivo natural das talassocracias, que
procuravam abranger o seu controlo sobre as vias de comunicação marítimas, tal como a
conservação da riqueza comercial das suas rotas, supervisionadas constantemente pelas
suas forças navais8. De acordo com Jourdin, a História Marítima encontra-se repleta de
repetições, podendo-se invocar a disputa de Atenas contra o Império Persa e, na Idade
Média, particularmente nos séculos XI e XIV, as guerras entre as cidades de Génova,
Pisa, Amalfi e Veneza, em que ambos os exemplos detinham o objetivo central de garantir
o monopólio das linhas comerciais de longa distância9.
O estudo do «Poder Naval» foi fomentado pelo pensamento de Alfred Thayer
Mahan, oficial da marinha americana do século XIX, que estudou a relação dos grandes
impérios marítimos com o Mar, contudo, era mais exclusivo às épocas Moderna e
Contemporânea. Todavia, existem cada vez mais pessoas a associar este conceito com
períodos que ele nunca acabou por estudar. Temos também, graças aos avanços da
historiografia, cada vez mais historiadores a desafiarem o seu pensamento e a
questionarem o seu trabalho10. Um destes é o historiador Jon Sumida, que sumariza as
ideias de Mahan em três aspetos importantes: Em primeiro lugar, destacam-se os
«Elementos Marítimo-económicos», especificamente a produção, transporte marítimo e
colónias, que ele observou como elementos chave para a prosperidade e motivadores
principais para as políticas de estados costeiros; Segundo, ele considerou, que a
«Supremacia Marítima» era chave para garantir a proteção dos seus elementos
económicos; e Terceiro, o «Poder Naval», a combinação total entre todos estes fatores
económicos navais e marítimos. Ele afirma, que para se atingir o «Poder Naval» era
necessário concretizar seis condições: Uma posição geográfica marítima; conformidade
física entre recursos naturais e clima; extensão territorial; dimensão da população; cultura

6
Ver anexo 1
7
Idem. ibidem, p. 152;
8
Vide. JOURDIN, Michel Mollat, A Europa e o Mar, 1ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1995, pp. 41-
42;
9
Idem. ibidem, p. 42;
10
Vide. HATTENDORF, John B., «Theories o Naval Power: A. T. Mahan and the Naval History of
Medieval and Renaissance Europe», in HATTENDORF, John B. et UNGER, Richard W., op. cit. p. 8;

4
nacional; e estrutura política11. Já Daniel Baugh destaca, que um dos pontos mais fulcrais
para a concretização do «Poder Naval» é a existência de estruturas administrativas, que
consigam coordenar as atividades marítimas e seus ofícios; gerisse a construção naval, a
sua manutenção e inovação; e, por fim, treinasse novos efetivos marinheiros12.
É com estes pontos em mente, que passamos a observar Génova, cidade marítima
da Ligúria, que a partir do século XI vê-se a travar guerras constantes com Pisa, a Sicília
Angevina e com Veneza, pelo controlo de diversas rotas, portos e territórios, muitos
outrora pertencentes ao Império Bizantino13. A paz conseguida com Veneza em 1297,
garante a existência do seu próprio império marítimo, porque anexa a Córsica, Sardenha
e diferentes portos do Mar Negro14. No entanto, são estas as guerras que vão levar Génova
a reforçar a sua organização e comando militar com a criação da «Credenza», que
conseguia organizar a construção e manutenção de frotas volumosas e eficazes, chegando
até a planear a construção de uma frota de 120 galés. A construção dos seus navios era
efetuada pelas comunas e por privados, que poderia causar alguns constrangimentos
administrativos, mas que facilitava a inovação nas embarcações devido à diversificação
da mão-de-obra. É graças a estas características todas, que vão de acordo com os
parâmetros de Sumida e Baugh, que fez com que Dotson declarasse Génova como «(…)
the most formidable maritime power in the Mediterranean»15, sem esquecer também, que
Veneza constrói o seu ilustre «Arsenale», gerido pelas autoridades comunais, garantindo
também um papel preponderante16.
Estes desenvolvimentos navais contribuíram para o surgimento, nos séculos XIII-
XIV, de uma série de avanços tecnológicos significativos na navegação17, sendo uma das
mais importantes: as cartas-portulano18, que demonstram um avanço importante para a
cartografia, pois apresentam com precisão o mapa do mundo e seus territórios19,

11
Idem. ibidem, pp. 8-9;
12
Idem. ibidem, p. 9;
13
DOTSON, John, op. cit, p. 123;
14
Idem, ibidem, p. 124 – Destacamos a praça-forte de Caffa, na Crimeia;
15
Idem. ibidem, pp. 123-124;
16
DOUMERC, Bernard, op. cit. p. 152 – No entanto, é notado uma ligeira degradação do poder veneziano
a partir da perda de Constantinopla para a dinastia Paleóloga, que a conseguiu com apoio de Génova;
17
Vide. MARQUES, A. H. Oliveira, Nova História de Portugal – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV,
Vol. IV, 1ª edição, Editorial Presença, Lisboa, 1987, pp. 62-63 - «A introdução do leme central fixado ao
cadaste da popa, a invenção da bússola e a generalização da carta de marear.»; «A arte de navegar e na
construção naval, a utilização da vela latina e o processo de navegar à bolina, o tamanho das naves e as
alterações na pregadura das tábuas formativas do casco, o aparecimento e a evolução constante da chamada
caravela, as conquistas na astronomia prática com o uso sistemático do astrolábio e do quadrante, etc.»
18
Ver anexo 2;
19
Vide. BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), História da Expansão Portuguesa – A
Formação do Império (1415-1570), 1ª edição, Vol. I, Navarra, Círculo de Leitores, 1998, p. 34;

5
erradicando a conceção do mapa «T-O20», que refletia uma noção teológica do universo
terrestre, apresentando os continentes e mares de forma simétricos e desproporcionados21.
Estas inovações vão permitir uma redução exponencial do tempo de viagem, tal como
permitirá as viagens no Outono e Inverno, resultando numa dinamização da navegação
por todo o Mediterrâneo.
Em simultâneo, atesta-se também a uma série de desenvolvimentos e inovações
nos mares a Norte da Europa, nomeadamente no Canal da Mancha e no Báltico, onde se
observa, a partir de 1304, o aparecimento de um novo tipo de navio mercante, a coca,
navio de alto bordo, mais fundo, alto e económico, com grande capacidade de
armazenamento, que mais tarde será adotado pelos genoveses, venezianos, portugueses,
castelhanos e catalães22. Existirá também a urca, adaptado aos grandes carregamentos de
uma economia conquistadora, sem eliminar os pequenos navios de cabotagem locais23.
O dinamismo comercial do norte europeu foi catalisado, a partir do século XII,
com a fundação de Lübeck, em 1158-59, e de diversas associações de mercadores, que se
instalavam e proliferavam por diferentes outras cidades marítimas independentes, as
quais se uniram em uma confederação de guildas, denominada de «Liga Hanseática»24.
Esta iria agrupar-se desde o golfo de Zuiderzê até ao golfo da Finlândia, detendo cerca de
200 cidades mercantis, das quais as mais importantes eram as de: Stralsund, Gdansk,
Visby, Riga, Hamburgo e Bremen; sendo os seus pilares as cidades de: Bruges, Londres,
Bergen e Novgorod25.
Entre o fim do século XIII e o princípio do século XIV, os mercadores europeus
aperceberam-se do interesse de criar rotas no eixo Norte e Sul, algo que se fez logo notar
com as viagens genovesas: em 1277 temos a viagem de Nicolozzo Spinola de Génova
para Sluis; e no ano seguinte de Nicolino Zaccaria e Ughetto Embriaco, com destino a
Southampton, Sandwich e Londres. As galés genovesas tinham uma grande presença nos
portos de La Rochelle e na Bretanha, transportando bens da Ásia Menor para a Flandres.
Não obstante, a partir de 1314, encontramos a presença de galés de Veneza nestes mares
também26. Adicionando a isto, o facto de as viagens genoveses serem feitas de galés 27, e

20
Ver anexo 3;
21
JOURDIN, Michel Mollat, op. cit. p.51;
22
Idem. ibidem, p. 76;
23
Idem. ibidem, p. 73;
24
Ver anexo 4;
25
Idem. ibidem, p. 68;
26
Idem. ibidem, pp. 75-76;
27
Navios de pequeno bordo e pouco espaço de armazenamento, com uma volumosa necessidade de fazer
escalas constantes;

6
a viagem de Génova a Londres durar cerca de 3 meses, conseguimo-nos logo aperceber
do papel importante que a Península Ibérica terá como ponto de escala e passagem para
os mercados de cada polo. De facto, a área do Cabo de S. Vicente e o Cabo de Finisterra
era um ponto de passagem obrigatório, pelo que rapidamente se fará notar, a partir do
século XIII, a presença de diversas companhias comerciais e bancárias italianas, presentes
em Portugal e Galiza28. Será neste contexto, que os reinos cristãos ibéricos se farão notar
nas linhas comerciais do Estreito de Gibraltar até Finisterra.

Portugal na encruzilhada atlântica:


A Península Ibérica encontra-se numa posição privilegiada quanto à ligação do
eixo Norte-Sul europeu, pois serve como porta de entrada e, subsequentemente, de saída
para tanto o Mar Mediterrâneo, como do Mar do Norte. Dito isto, Portugal e o seu
território encontra-se totalmente debruçado sobre as rotas da Flandres e da Itália, que
sendo núcleos de desenvolvimento burguês, contribuíram significativamente para o «(…)
despertar de um comportamento nacional coerente com uma linha de pensamento
geoestratégico», o que faz Virgílio de Carvalho acreditar, que Portugal não virou as suas
costas para a Europa a favor do mar, mas sim tentou tirar partido de ambos em
simultâneo29. O mesmo cita Jaime Cortesão30, de modo a aludir para o facto, de que
Portugal desenvolve uma estratégia de litoralização gradual, impulsionada pelas
conquistas de Lisboa, Alcácer do Sal e, claro, do Algarve, consolidando assim, as áreas
portuárias mais importantes da Península Ibérica, para assumir uma posição marcante na
orla atlântica31.
A litoralização sempre foi uma realidade do povo português, contudo, é com D.
Afonso III e o seu filho, D. Dinis, que o reino concentra os seus esforços em concretizar
este plano, ao se tomar grandes iniciativas estratégicas de promoção dos interesses régios
nas áreas costeiras e fluviais32. Ambos os reis tenderam a focar-se mais nos estuários dos
rios mais importantes - Minho, Lima, Douro, Vouga, entre outros - nas zonas pesqueiras
e salineiras entre o Vouga e o Tejo e ainda, na península de Setúbal. Na opinião de Amélia

28
Idem. ibidem, pp. 77-78;
29
CARVALHO, Virgílio, op. cit. pp. 72-73;
30
Idem. ibidem, p. 66 - «(…) ao dealbar do séc. XII, as condições políticas e económicas da Península e
da Europa obrigam a Grei, ainda vacilante em seu destino, a voltar-se para o mar; o povo ocupa toda a
costa e cria o género de vida nacional; a Nação organiza-se em função marítima e, por esse esforço de
massas, Portugal, começa a viver de vida própria»;
31
Idem. ibidem, p. 67;
32
Vide. ANDRADE, Amélia Aguiar, A Estratégia Régia em Relação aos Portos Marítimos no Portugal
Medieval - O Caso da Fachada Atlântica, RUN. Repositório Universidade Nova, Instituto de Estudios
Riojanos, Lisboa, julho 2004. Disponível em: http://hdl.handle.net/10362/6840, p. 72;

7
Andrade, isto revela uma preferência para concretizar uma série de objetivos para
substancializar uma estratégia marítima final: «o controlo das foz dos rios mais
importantes, a promoção da ocupação dos pontos mais importantes da linha costeira, o
fomento, vigilância e usufruto sobre atividades portuárias, pesqueiras e salineiras, o
estabelecimento da rede alfandegária e ainda, (…) constituição de marinha de guerra,
naturalmente associada ao fomento da construção naval (…)»33.
Muitas destas áreas estavam sobre um controlo firme das instituições eclesiásticas,
algo que D. Afonso III não hesitou em entrar em conflito direto com as mesmas para
alterar o contexto. O maior exemplo disto é a retirada dos privilégios do Bispo do Porto
na barra do Rio Douro, uma área caracterizada pelo seu potencial económico, com uma
forte presença humana, que interligava o Porto com o vale do Douro. Para isto, D. Afonso
III concedeu imensos incentivos e apoios para dinamizar o seu burgo de Gaia, acabando
por aumentar a sua população e valor económico. Logo em 1254, proibiu a compra e
venda de sal aos homens do Bispo, resultando num acordo de partilha de rendas entre
ambos os partidos e, em 1282 e 1288, Gaia converte-se num polo régio, tornando-se Vila
Nova de Rei, concretizando o reforço da posição régia nos setores económicos do
Douro34. Esta estratégia foi posta em prática em diversas outras localidades, sempre com
a visão de garantir um maior controlo régio sobre as potencialidades económicas dos
estuários. Tanto D. Afonso III, como D. Dinis, concederam forais incentivadores em
1258, 1265, 1284, 1286 e 1308 às comunidades dos rios Lima, Minho e Ave, o que
resultou no crescimento de Viana, Caminha e Póvoa de Varzim35.
É com estes avanços régios que Portugal, na entrada do século XIV, aprimora a
fusão entre as atividades agrícola-pecuária e a marítima, pois os excedentes das produções
agrícolas eram canalizados para os portos mais próximos, e estes teriam tanto mais
atividade quanto o seu hinterland fosse mais populoso e próspero, por isso, a cidade do
Porto detinha os portos mais ativos do reino até ao séc. XV36. A prioridade de consolidar
a orla marítima, nomeadamente a do Douro, revela que D. Afonso III e D. Dinis tinham
um forte conhecimento das potencialidades e vulnerabilidades do reino, dos seus
antagonismos e das oportunidades de cooperação, mas também das suas apetências de

33
Idem. ibidem, pp. 72-73;
34
Idem. ibidem, pp. 73-74;
35
Idem. ibidem, pp. 75-76 – Referenciamos também, que existirão outros forais e privilégios garantidos
pelo Litoral alentejano e no Algarve;
36
CARVALHO, Virgílio, op. cit. p. 69;

8
produção nacional para com as carências doutros reinos, de modo a fomentar as suas
exportações marítimas37.
É importante referir, que Portugal não começou a despertar o seu interesse
comercial somente nesta altura, pois as atividades de extração de sal já se encontram
documentadas desde 959, enquanto no tempo de D. Afonso Henriques até D. Afonso III,
a pesca no Minho dedicava-se à baleação, procurando mares cada vez mais distantes para
a sua concretização, de tal modo, que desde 1184, existem evidências de estabelecimentos
de mercadores e pescadores portugueses no Canal da Mancha, nomeadamente na
Flandres38. No entanto, verifica-se com D. Afonso III, esta apetência para a concretização
de uma estratégia marítima, devido à Reconquista ter terminado para Portugal em 1249,
com a conquista de Faro39. O maior impulsionador deste plano estratégico foi a
consolidação da costa portuguesa e da segurança que saldou para as suas povoações
marítimas, pois desde o início da Reconquista, que as costas lusitanas são alvos de ataques
de normandos e corsários muçulmanos40. Esta tendência de ocupação em direção ao Sul,
insere-se numa configuração de dois modelos de fronteira: o de Zona e o de Linha: O
primeiro é de frente militar contra o Islão, virado a Sul, que podemos associar a uma
projeção de poder sobre o Mar das Éguas e o Estreito de Gibraltar; e o segundo, o de
fronteira política com Castela, que fica consolidado com o reconhecimento da soberania
portuguesa sobre o Algarve e a fixação das suas fronteiras, com o Tratado de Alcanizes41.
Todavia, a soberania portuguesa sobre as suas fronteiras terrestres e sua zona de
influência marítima vão ser alvos de uma manutenção constante, devido a serem ténues.
Por isso, é que os reinos cristãos vão instaurar uma série de manobras diplomáticas entre
si, catalisados por casamentos régios, de modo a poderem manter um «status quo», sem
que um se possa sobrepor a outro42. Já no âmbito marítimo, D. Dinis procurou
salvaguardar as suas costas ao fundar o Almirantado português, seguindo os passos de

37
Idem. ibidem, pp. 79-80 – Destacamos os setores da agropecuária, pesca, indústria extrativa do sal e
vinho;
38
Vide. DUARTE, Luís Miguel, «A Marinha de Guerra. A Pólvora. O Norte de África», TEIXEIRA, Nuno
Severiano (ed.), Nova História Militar de Portugal, 1ª edição, Vol. 1, Rio de Mouro, Círculo dos Leitores,
2003, pp. 292-293;
39
Idem, ibidem. p. 298 – Salienta-se que o ataque demonstra já uma organização marítima consistente, com
repartição do comando de navios e uma forte capacidade de organização para tomada de objetivos;
40
Idem, ibidem. pp. 293-294 – De acordo com a crónica «História Compostelana», o Arcebispo de
Santiago, Diogo Gelmires, teve de recrutar marinheiros e construtores de navios de Génova e Pisa, para
retaliar contra as sucessivas incursões piratas chegando mesmo a ordenar expedições para o Golfo da
Biscaia e a Sul de Coimbra, para destruir as bases destes;
41
BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), op. cit. p. 138;
42
Vide. SOUSA, Bernardo Vasconcelos, D. Afonso IV, 1ª edição, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, p. 194;

9
Castela (que recrutou o genovês Benedetto Zaccaria), o monarca português comissionou
a dois cavaleiros seus, residentes em Avinhão, para prospetarem por um almirante em
Génova, acabando assim, por recrutar Manuel Pessanha43.
Com tudo isto exposto, é possível concluir que Portugal criou a sua sociedade com
base em uma cultura aproveitadora das facilidades que o mar lhe oferecia, o que gerou
um estilo de vida baseado no comércio marítimo com base nas atividades económicas das
sua hinterland44. A conquista do litoral ajudou a sustentá-lo, pois favoreceu a fixação de
habitantes, potenciando o comércio, sendo os seus mercadores, dos primeiros a abrirem
operações comerciais na Flandres45.

A Batalha pelo Estreito


As instituições navais e seus objetivos no Mar das Éguas:
É de salientar, que todas estas políticas e movimentações empregues para a
concretização da litoralização não saldaram grandes benefícios de forma imediata. De
facto, todo este conjunto de medidas era no âmbito de impacto a longo prazo, sendo o
reinado de D. Afonso IV o primeiro a experimentar os benefícios delas, pois ele herdou
um reino influente na política ibérica e em ascendência na esfera internacional. Esta
última foi de tal forma visível, que o rei português tentou casar a sua filha, D. Leonor, a
Eduardo, o Príncipe Negro, no âmbito de formar uma aliança com Inglaterra46.
Esta medida entra no contexto da intensificação dos laços comerciais com
Inglaterra, pois logo em 1338 acertou-se um acordo em que foram concedidos privilégios
aos mercadores portugueses e proteção aos navios de ambos os reinos, contra os seus
corsários; e em 1352 foram cedidos mais privilégios aos mercadores portugueses em
Inglaterra, por Eduardo III47, sendo o mesmo reforçado em 1353, com a redação de um

43
Vide. DUARTE, Luís Miguel, op. cit. p. 300 - «Os Pessagno eram uma poderosa e prestigiada família
genovesa, experimentada nas coisas do mar e do comércio; Leonardo e António, irmãos de Manuel,
encontravam-se em Inglaterra, ao serviço de Eduardo II».
44
CARVALHO, Virgílio, op. cit. pp. 68-69;
45
BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), op. cit. p. 19 – José Mattoso salienta os
privilégios concedidos pelos monarcas ingleses, desde João Sem-terra: 1203, 1226 e 1250, criando as
condições necessárias para um aumento exponencial das atividades portuguesas, que justificariam a criação
de uma Bolsa, em 1293, que associava e protegia os interesses de mercadores portugueses na Flandres,
Inglaterra, Normandia, Bretanha e na Gasconha;
46
SOUSA, Bernardo Vasconcelos, op. cit. p. 220;
47
Vide. MARQUES, João Martins da Silva, Descobrimentos Portugueses – Documentos para a sua História
(1147-1460), Vol. I, Edição Fac-Similada, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988, pp.
94-97 – «Tratado de comércio, por 50 anos, entre Eduardo III, Rei de Inglaterra, e os homens bons,
mercadores, marinheiros e comunidades marítimas das cidades e vilas e de Lisboa e Pôrto, do reino e
senhorio do Rei de Portugal e do Algarve, representados por Afonso Martins Alho, seu procurador»;

10
tratado comercial, que criaria as bases para as alianças políticas entre si, no tempo de D.
Fernando e D. João I48.
Dado esta exposição, será fácil aferir que em Portugal prevalecia uma clara
preferência e tradição sobre os mercados do Norte da Europa, contudo, isto devia-se ao
facto de a comercialização no Estreito de Gibraltar não ser tão segura para os navios
cristãos, como no Norte. Isto somente se começou a alterar, quando todos os reinos
cristãos ibéricos começaram a aperceber-se do interesse em obter uma ligação direta e
segura entre os dois polos comerciais, pelo que lançaram uma campanha, quase em
simultâneo, sobre o Sul da Península: Castela conquistou a cidade de Sevilha em 1248;
Portugal conquistou a cidade de Faro em 1249; e Aragão inicia uma campanha pela
conquista de Valência em 1245, que termina apenas em 1296. Com isto, a presença naval
cristã fez-se sentir em toda a orla marítima desde Cartagena até ao Algarve, permitindo-
os expandir os seus interesses navais nestes mares, mas também vigiar o Estreito de
Gibraltar e, por fim, oferecer escala e refúgio aos navios cristãos que ousassem a
passagem49.
A expansão rápida destes reinos e o seu controlo marítimo garantiu condições para
solidificarem novos interesses e tentar regulamentar e controlar a suas linhas marítimas,
o que significaria conflito armado com portos muçulmanos de África e entre si,
explicando o surgimento dos almirantados, quase em simultâneo50. É nesta conjuntura
que verificamos logo em 1254, a criação do «Almirantazgo» castelhano de Afonso X, o
Sábio, baseado no sistema administrativo deixado pelos mouros, encontrava-se dividido
em dois distritos com mares diferentes: Sevilha, com frotas de galés, próprias para o
combate mediterrânico; e Burgos, com navios mais adaptados aos mares grossos do Norte
como barcas e «keels», muito baseados em tipologias evoluídas das dos vikings51. Este
iria ser regulamentado com base em um documento redigido pelo rei castelhano, as «Siete
Partidas», que garantia a jurisdição do almirante sobre a orla costeira, suas instituições e
arsenais, bem como os residentes das áreas costeiras e os que serviam na Marinha52. O

48
SOUSA, Bernardo Vasconcelos, op. cit. pp. 220-221;
49
JOURDIN, Michel Mollat, op. cit. p. 75;
50
Vide. MOTT, Lawrence V., «Iberian Naval Power, 1000-1650», in HATTENDORF, John B. et UNGER,
Richard W., op. cit. pp. 106-107;
51
Idem. ibidem, p. 106;
52
Vide. CATALÀ, Josep Berni, Apuntamientos Sobre Las Siete Partidas, Valencia, Por los Herederos de
Geronimo Conejos, 1759. Disponível em: https://cutt.ly/xj72S5D - «Segunda Partida – Título XI»: «E èl
há poderio desque moviere la flota, fasta que torne al lugar onde moviò. È há de oir las alsadas que los
omes fiziessen, de los juicios que los Comitres ovieren dado. E otrosi, deve fazer justicia de todos los que
fizieren, porque assi como de los que se desmadassen, ò que fuyessen, ò que furtassen alguna cosa, ò que
peleassen de guisa que oviesse y feridas, ò muerte (…)»;

11
mesmo teria ainda total controlo sobre a gestão e regulamentação do comércio marítimo,
complementado pelo poder mediador do rei, que poderia ainda estabelecer as finanças
diretas da Marinha, a partir de fundos próprios ou taxação específica para tal53. É
conveniente realçar a importância deste documento, pois irá influenciar a construção do
Almirantado português.
Em contraste, é nesta altura que Aragão também inicia a sua fase de maior
expansão marítima, desafiando o Poder Naval mediterrânico dos angevinos, acabando por
conquistar toda a Sicília, absorvendo a sua administração naval, que dispunha de uma
tradição normanda e Hohenstaufen, providenciando uma grande linha de arsenais e de
taxação siciliana, que permitiu o estabelecimento de uma frota permanente, talvez das
mais bem mantidas e organizadas, conseguindo até desafiar o interesses marítimos do
emires e sultões do Norte de África54. No século XIV esta realidade altera-se, porque
apesar de manter as suas posses mediterrânicas, a sua frota é destruída em 1295,
perdendo-se quase toda a sua organização55.
Entre estas, a Marinha portuguesa assume-se como a mais jovem dos reinos
cristãos, pelo menos na sua organização genovesa. O cargo fora concedido à família
Pessanha como um feudo hereditário, garantido em forma de um contrato régio, redigido
por D. Dinis em 131756. Do ponto de vista organizativo, como indicado anteriormente, é
muito semelhante ao de Castela, em que o Almirante detém a jurisdição sobre as costas,
seus habitantes e funcionários da Marinha57.
Este será o instrumento pelo qual a coroa portuguesa tentará projetar as suas
ambições sobre as linhas comerciais a Sul do seu território, colocando-o em rota de
colisão com os interesses de Castela, naquilo que é denominado de «Batalha pelo
Estreito», em que se procurava dominar as ligações entre o Mediterrâneo e o Atlântico ao
conquistar as costas do Estreito de Gibraltar58. Isto porque, voltando ao pensamento de

53
MOTT, Lawrence V., op. cit. p. 108;
54
Idem. ibidem, p. 107 – A Marinha aragonesa desta altura era denominada de «Marinha aragonesa-catalã»,
comandada pelo ilustre Almirante, Rogério de Lauria, que destruiu a frota franco-angevina e garantiu a
expansão aragonesa no mediterrâneo durante a Guerra das Vésperas Sicilianas;
55
Idem. ibidem, p. 108;
56
MARQUES, João Martins da Silva, op. cit. pp. 27-30 - «Contrato entre el-Rei e micer Manuel Peçanha,
de Génova, e de doação régia do lugar da Pedreira, em Lisboa, e de 3.000 libras, anualmente, em moeda
portuguesa»;
57
Idem, ibidem. pp. 32-33 - «Mercê de almirante-mor a micer Manuel (Peçanha) e a seus sucessores, nos
termos de cartas anteriores (Carta de confirmação da). Pelo que el-Rei manda a todos os alcaides das galés,
corsários, arrais, etc., que lhe obedeçam como a seu almirante; e lhe dá poderes e jurisdição sobre os homens
do mar, comos os outros almirantes de direito e de costume sempre houveram»;
58
Vide. AZNAR VALLEJO, Eduardo, La guerra naval en Castilla durante la Baja Edad Media, En la
España medieval, nº 32, Madrid, 2009, pp. 167-192. Disponível em: https://bit.ly/35fGiHo, pp. 171-172;

12
Mahan, para se concretizar uma «estratégia naval» é necessário cumprir três condições:
Situação geográfica, em relação à linha de comércio e comunicação; a sua condição
ofensiva e defensiva militar; e os seus recursos para defender. Geralmente, os locais que
cumprem estas condições são os «choke-points», áreas estreitas, como Gibraltar, que
ocupam uma posição chave no comércio, difícil de defender, que automaticamente obriga
à deslocação dos recursos de uma nação para a sua sobrevivência, sustento da sua defesa
e potenciar a sua condição ofensiva59. Virgílio de Carvalho complementa esta teoria ao
indicar que países marítimos, como Portugal, por dependerem de fontes externas para
abastecimentos de produtos essenciais ao seu desenvolvimento e ao usufruto de liberdade
de ação, vão sempre defender o uso de comunicações marítimas em plena liberdade, ou
seja, adotar uma «atitude positiva», enquanto os países continentais, vão explorar as
vulnerabilidades dos primeiros e negar-lhes o uso do mar, ou seja, uma «atitude
negativa»60. Com isto, o objetivo principal da estratégia naval portuguesa é a conquista
do domínio do mar para se proceder com objetivos subsequentes como: «Atacar a terra a
partir do mar; transportar e abastecer forças militares por mar; e assegurar o exercício de
exploração económica do mar.»61.
Após a conquista do Algarve, os ataques de piratas muçulmanos não terminaram,
existindo numerosas menções dos seus roubos e destruições nas aldeias próximas da costa
e nos barcos dos mercadores, apesar de serem menos frequentes. A partir de 1320, o reino
pôde contar com maiores apoios da frota régia, resultando numa intensificação das
atividades económicas na costa estremenha, em Lisboa, Setúbal e no Algarve62,
contribuindo para um aumento da população urbana, principalmente junto às áreas
marítimas, como é demonstrado nas doações de habitações, expostas nas Chancelarias de
D. Afonso IV63. A data de 1320 é de extrema importância, pois foi quando o Papa João
XXII, concedeu a «Bula Apostolice Sedis», que garantia a dízima das rendas eclesiásticas
do reino, durante três anos, para se fazer a guerra contra os mouros em África, com uma
a armada de galés64. Isto colocou o reino na frente de combate contra o Islão, inserindo
Portugal no Mar das Éguas65 - o golfo hispano-marroquino entre Cádis e o Cabo de São

59
HATTENDORF, John B., op. cit. p. 10;
60
CARVALHO, Virgílio, op. cit. pp. 48-49;
61
Idem, ibidem. p. 49;
62
BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), op. cit. pp. 18-19;
63
Vide. MARQUES, A. H. Oliveira (coord.), Chancelarias Portuguesas D. Afonso IV, vol. I, 1ª edição,
Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, p. 61 «Carta de fforo d ua Tenda dante as tendas
das Alfandegas»; p. 115 «Carta de fforo d uu sobrado que e na tarçena de lixbõa»;
64
MARQUES, João Martins da Silva, op. cit. p. 40 - «Bula de João XXII»;
65
BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), op. cit. pp. 139-140;

13
Vicente, intercalado de Tânger até Safim - onde tentará estabelecer o seu Poder Naval ao
desbloquear o comércio na totalidade da sua costa66, penetrando nestes mares também,
por questões defensivas contra as razias marítimas marroquinas, transformando este
espaço num palco de agressão contra o Islão, iniciando os seus próprios ataques à costa
magrebina67.

A Batalha do Salado e o domínio cristão:


As conquistas cristãs na Península Ibérica, na segunda metade do século XIII,
marcam a queda do Al-Andaluz, iniciando assim uma mudança drástica do carácter da
guerra da Reconquista, passando de um modelo de operações de cerco e fossado para um
mais enquadrado com o domínio do mar e operações anfíbias.
A quebra do poder muçulmano era de tal forma visível, que em 1291, Jaime II de
Aragão e Sancho IV de Castela, selaram o Tratado de Monteagudo, em que se previa a
partilha do Norte de África entre os reinos cristãos: A oriente do rio Mulucha, seria para
Aragão, enquanto o ocidente, até Ceuta, pertenceria a Castela. Já para Portugal, considera-
se que a Berberia ficaria destinada à sua empresa bélica68. Contudo, apesar da presença
muçulmana na Península Ibérica se demonstrar cada vez mais ténue, do outro lado do
mar, Marrocos encontrava-se dominado pelos sultões Merínidas desde o século XIII.
Uma dinastia com um carácter aguerrido e conquistador, que não ignorara os progressos
comerciais no Estreito e olhava para os portos de Málaga, Algeciras, Gibraltar e Tarifa
com grande cobiça, gerando intuitos expansionistas e de Jihad. Todavia, a guerra entre os
dois lados não se dera logo devido a diversos impasses, que arrastaram a tensão até à
década de 30’ do século XIV69.
A guerra que irá surgir entre os reinos cristãos ibéricos, Granada e o Merínidas
vai ser uma com prevalência sobre uma área específica: o Estreito de Gibraltar. Iniciada
em 1333, a mesma tomará uma índole de cruzada, gerando uma forte resposta de diversos
agentes do Cristianismo, os quais irão tentar prestar auxílio ao rei castelhano, em homens
e fundos. Após a vitória cristã, uma série de celebrações religiosas tomarão lugar, gerando
uma miríade de textos litúrgicos a enaltecer o acontecimento e suas personagens
intervenientes. Um destes é o manuscrito alcobacense: «In sancta et admirabili Victoria

66
Ver anexo 5;
67
Idem. ibidem, p. 140;
68
BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), op. cit. p. 118;
69
SOUSA, Bernardo Vasconcelos, op. cit. p. 210 - «(…) visavam controlar o estreito de Gibraltar, por onde
passavam linhas cada vez mais importantes de comércio marítimo entre o Mediterrâneo e o Atlântico»;

14
Christianorum», de um autor anónimo, certamente ligado à Igreja, o qual é também
desconhecido se participou nos acontecimentos relatados, pois não refere corretamente
os nomes dos intervenientes muçulmanos. Ele demonstra também um carácter ligado ao
espírito da cruzada ao efetuar diversas vezes o «(…) apelo à fé cristã, antipatia pelo
muçulmano e regozijo pela sua destruição, sobretudo por razões religiosas (…)»70.
Manuel Ramos crê, que face à exaltação da figura de D. Afonso IV, e pelas suas várias
citações em discurso direto das suas falas, talvez fosse um homem muito próximo do rei,
possivelmente um clérigo da Corte, ligado às capelas de D. Afonso IV e de D. Beatriz na
Sé de Lisboa71. Para facilidade, iremos referir o sujeito como «Autor».
Seguindo a história contada pelo Autor, o título I visa a providenciar um certo
contexto do surgimento dos Merínidas72. Ele começa logo com a seguinte frase: «(…)
existiu um certo rei bárbaro de Benimerim, chamado Alebohacen, que ocupou os seus
muitos próprios reinos e ainda terras de além-mar, nas partes de África, depois de muitos
reis e magnates terem sido aprisionados por ele e por ele mortos»73. Isto serve como um
rápido resumo do contexto das guerras que o Sultão Abu-I-Hassan travava com o emirado
de Tremecém, que se prolongaram, ainda antes da invasão, constrangendo os seus
interesses imediatos sobre a Península Ibérica. Porém, isto altera-se com a chegada do rei
granadino, Maomé IV, à sua corte em Fez, no ano de 1332, após este ter perdido diversos
territórios para Afonso XI, de Castela74, que com auxílio português, tomou a praça-forte
de Teba e impôs a condição de vassalagem sobre o reino Nasrida 75. Impossibilitado de
prestar auxílio imediato pessoalmente, o Sultão envia o seu filho, Abu Malik, com cerca
de 5.000 homens, para Algeciras, que aproveitou a desorganização das forças castelhanas,
devido à rebelião de D. Juan Manuel, para tomar a praça-forte de Gibraltar em 133376.
Terminada esta surtida, o rei castelhano consegue acertar tréguas de quatro anos com os
muçulmanos, sendo nesta altura assassinado o rei Nasrida, no regresso a Granada, pelos

70
Vide. RAMOS, Manuel Francisco, Memória De Victoria Christianorvm (Salado – 1340). Edição Crítica,
tradução e estudo do manuscrito Alcobacense CDXLVII/114 [FL. 354 (346)R – 363 (355)R], Porto,
Faculdade de Letras. Universidade do Porto, 2019, p. 12;
71
Idem. ibidem, pp. 12-13 – Todavia, Manuel Ramos expõe que isto não passa de especulação e conjetura,
pois não existe qualquer referência a quem pudesse ser o autor, nem ao seu papel, se algum, nestes
acontecimentos;
72
Idem. ibidem, p. 76 – Ele denomina-os de «Benimerim»;
73
Idem. ibidem, pp. 76-77;
74
O'CALLAGHAN, Joseph F., The Gibraltar Crusade - Castile and the Battle for the Strait, 1ª edição,
Philadelphia, University of Pennsylvania Press. 2011, p. 162;
75
SOUSA, Bernardo Vasconcelos, op. cit. pp. 210-211;
76
O'CALLAGHAN, Joseph F., op. cit. pp. 162-163 – O autor relata que p alcaide-mor de Gibraltar não
preparou as defesas da mesma, pois gastou todos os fundos em seu proveito próprio.;

15
filhos de Uthman-ibn-Abi-i-Ula - príncipe merínida exilado - pois julgavam-se
abandonados pelo seu anfitrião, que acabara de fazer uma aliança com o Sultão, cujo
consideravam um usurpador. Com isto, o irmão do rei falecido, Yusuf I, toma o poder e
exila os príncipes merínidas, mantendo as tréguas com Castela77. Já do lado merínida, o
tratado selado concede ao Sultão acesso ao comércio livre com a Península Ibérica e
ainda, a possibilidade de efetuar a rotatividade das suas guarnições ibéricas, mas mais
importante, este período de paz permitiu-lhe conquistar o emirado de Tremecém em 1337,
consolidando o seu território e recursos militares para fazer nova guerra a Castela78.
Por seu lado, Afonso XI não dispôs de um período tão pacífico como desejara,
pois, teve de lidar com a rebelião de D. Juan Manuel e uma guerra com Portugal entre
1336-1339. A mesma sucedeu por razões ainda difíceis de determinar, mas fora por uma
junção de acusações, por iniciativa de D. Afonso IV, de falta de honra, falhas no seu
matrimónio e de auxílio contra o Islão, que levou ao rei português cercar Badajoz, e lançar
ataques marítimos pelo Golfo de Cádis e a Andaluzia79. A guerra não teve qualquer
conclusão definitiva, sendo mais de atrição e pressão política, em que ambas as hostes
régias atacavam longe uma da outra, nunca se batendo e lançavam ataques em diversas
partes para devastar e saquear, anulando-se uma à outra em pequenas batalhas
periféricas80. O único episódio relevante é a Batalha de Cabo Vicente, em que o Almirante
português sofrera uma pesada derrota contra o almirante castelhano, Jofre Tenório,
acabando por ser capturado, juntamente com o seu filho, Carlos Pessanha81.
Durante este tempo, o Sultão aproveita para lançar cada vez mais soldados para
Gibraltar, segundo o Autor «(…) teve a audácia de orgulhosa e loucamente, passar para
cá do mar, na direção das partes amenas do continente europeu, contra a pátria dos
cristãos, trazendo consigo, sem dúvida, muitos infantes filhos de reis e infinitos barões e
cavaleiros, com um poder excessivo tanto de tropas (…)»82. O Autor prossegue ao indicar:
«Por seu lado, o ilustre rei de Castela colocou uma armada contra os mesmos bárbaros
sobre o mar, no local onde o mar Mediterrâneo se separa do Oceano, a que se dá o nome
de Estreito de Ceuta. Mas a poderosa e astuta maldade dos inimigos de Nosso Senhor

77
Idem. ibidem, p. 165;
78
Idem. ibidem, pp. 166-168;
79
SOUSA, Bernardo Vasconcelos, op. cit. pp. 197-198;
80
Idem. ibidem, p. 198;
81
Idem. ibidem, p. 200;
82
RAMOS, Manuel Francisco, op. cit. pp. 77-78;

16
Jesus Cristo, com a sua poderosa armada de galés83, iludiu os cristãos, de tal maneira que
o rei de Castela, com inábil estratégia, fez avançar a sua armada em direcção a terra, junto
a Algeciras, cidade dos agarenos. Aí as galés e naus dos cristãos castelhanos foram quase
todos terrivelmente destruídos e capturados (…)»84. Isto refere-se às diferentes operações
navais que ocorreram no Estreito, entre a frota coligada muçulmana e as dos três reinos
cristãos, estas que estavam sob o comando do Almirante castelhano, Jofre Tenório. A
este, Afonso XI pediu que vigiasse o Estreito e impedisse novos desembarques
muçulmanos85.
Entretanto, em 1339, é acertada uma nova aliança entre Castela e Aragão,
juntando uma frota de 20 galés castelhanas e 10 aragonesas, durante o verão; enquanto
no inverno o número seria reduzido para 10 castelhanas e 4 aragonesas. Durante o verão,
ambos os lados intensificaram as suas investidas por terra, enquanto no mar os cristãos
mantinham uma forte vigilância sobre o estreito, contudo, Pedro IV de Aragão ordenou a
retirada da sua força após o seu Almirante, Jofre Cruillas, ter sido morto numa incursão
junto de Algeciras86. Isto forçou a que o rei castelhano reunisse Cortes em 1339, na qual
se preparou uma campanha contra os merínidas. Apesar disto, as forças castelhanas foram
forçadas a recuar até ao rio Barbate, devido a um contra-ataque enérgico de Abu Malik,
porém, é de salientar que durante esta ofensiva, o mesmo morre num ataque surpresa
sobre o seu acampamento, mas isto não detém os ânimos do Sultão Abu-I-Hassan, que
leva a cabo sortidas no Inverno de 1339-4087. Já Jofre Tenório encontrava-se numa
situação cada vez mais precária, pois as suas tripulações encontravam-se desgastadas
devido a doenças e uma tempestade, que tinha destruído, segundo o Autor: «(…) eis que
de súbito sobreveio do mar uma violenta tempestade, de tal modo que oito galés de
Castela e três naus e duas galés de Portugal (…) pereceram num naufrágio (…)». Afonso
XI tentou remediar ao construir mais galés, mas não conseguiu a tempo88.

83
Idem. ibidem, p. 78 – Junção de forças dos emires de Tunes e de Bugia. Seriam, por isso, 140 barcos -
segundo António Conde; 100 navios - segundo Ibn Khaldoun; 260 velas - segundo a Gran Crónica, contra
32 galés e seis navios dos cristãos;
84
Idem. ibidem, pp. 78-79;
85
Vide. CALDERÓN ORTEGA, José Manuel et DÍAZ GONZÁLEZ, Francisco Javier, Los Almirantes del
"Siglo de Oro" de la Marina Castellana Medieval, En la España medieval, nº 24, Madrid, 2001, pp. 311-
364. Disponível em: https://bit.ly/2LOO97e, pp. 321-322;
86
Idem. ibidem, pp. 322-333;
87
Vide. MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota – A Guerra na Idade Média, 1ª edição,
Lisboa, A Esfera dos Livros, 2011, p. 242;
88
O'CALLAGHAN, Joseph F., op. cit. p. 171;

17
Por último, o desastre atinge as hostes cristãs, pois o Sultão reuniu uma frota de
entre 60-250 navios89 e, com a intensificação subsequente das operações marítimas
muçulmanas, o almirante castelhano morre, após ter avançado contra uma secção da frota
muçulmana de 33 navios, com apenas 6 galés, acabando por morrer a 4 de abril de 134090,
com seu corpo lançado ao mar e cabeça oferecida ao Sultão, deixando assim o Estreito
completamente à mercê do poder muçulmano91.
Com este sucesso marítimo o Autor explica: «Quando o rei de Benimerim passou
a dominar na parte de cá do referido Oceano, tentou com o seu furioso e bárbaro poderio
cercar a fortaleza do reino de Castela chamada Tarifa (…)»92, pois a captura desta praça-
forte, erradicaria a presença cristã do Estreito. Assim, Afonso XI decidiu recorrer ao rei
português para auxiliar na empresa de uma batalha campal. A guerra entre ambos tinha
terminado em 1339, por mediação do Papa Bento XII e o rei francês Filipe VI, de modo
a poderem focar os seus esforços contra o poder merínida93. No entanto, tal como é
salientado por Miguel Gomes Martins, existia ainda uma certa relutância em os dois reis
iniciarem conversações para estabelecer uma aliança, pelo que Afonso XI envia a sua
esposa, D. Maria, filha de D. Afonso IV, para encetar conversações. O encontro em Évora,
nos finais de setembro, surtiu numa resposta positiva do rei de Portugal, concordando em
se encontrar em Juromenha, para concluir as negociações94, algo também salientado pelo
Autor95. Esta aliança torna-se possível face a nova mediação Papal, pois o mesmo concede
a Afonso XI a «Bula de Cruzada», conseguindo obter um Pendão de Cruzada e
financiado, a partir de fundos eclesiásticos, os exércitos e frotas de Castela, Portugal e
Aragão, que irão convergir as suas forças sobre o Rio Salado e Tarifa96.
A partir daqui o Autor descreve as preparações para a batalha e seus
desdobramentos, dando um enfase ao papel da hoste portuguesa, contudo, a análise da

89
Vide. PINA, Rui de, Chronica de elRey Dom Afonso o Quarto, edição de 1653, Lisboa, Edições
“Bíblion”, 1936, p. 139 - «(…) soube loguo elRey de Castella, que duzenta, & sincoenta vellas dos mouros,
das quais herão setenta gales herão já passadas em Espanha com muitas gentes, cavallos, armas, &
mantimentos, & que dellas aportarão a Aliazira, & outras as Gilbaltar (…)»;
90
CALDERÓN ORTEGA, José Manuel et DÍAZ GONZÁLEZ, Francisco Javier, op. cit. pp. 323-324;
91
O'CALLAGHAN, Joseph F., op. cit. p. 172;
92
RAMOS, Manuel Francisco, op. cit. pp. 79-80;
93
SOUSA, Bernardo Vasconcelos, op. cit. p. 202;
94
MARTINS, Miguel Gomes, op. cit. p. 245;
95
RAMOS, Manuel Francisco, op. cit. pp. 83-84 - «Então, depois disto, o rei de Castela movido por um
sábio conselho, enviou ao dito rei, seu sogro, a rainha de Castela (…) suplicando-lhe, humilde e
atentamente, que acorresse em auxílio do rei e reino referidos, contra os pérfidos, terríveis e inumeráveis
agarenos, verdadeiramente inimigos da cruz de Cristo. Acolhida esta mensagem no seu íntimo e ardoroso
coração, e iluminado pela graça do Espírito Santo, o mesmo rei de Portugal prometeu-lhe ir (...)»
96
MARTINS, Miguel Gomes, p. 244;

18
mesma não é importante para o teor deste trabalho97, sendo as únicas partes de menção
relevantes: que a batalha foi uma vitória decisiva para as forças cristãs, paralisando os
planos expansionistas muçulmanos na Península Ibérica; e também é de referir, que o
autor salienta que os filhos do Sultão e de Yusuf I, Ali-i-Umar e Abu-Umar-Tasufin, são
capturados pela hoste régia portuguesa98 e, que durante o ataque ao acampamento
muçulmano, morreram as mulheres e filhos de muitos nobres, incluindo a do Sultão
merínida99.

Consequências:
Na viagem de regresso, os reis cristãos, quando chegaram a Sevilha, foram
recebidos em procissão pelo Arcebispo da cidade, com os estandartes inimigos. Aqui, o
espólio fora dividido entre as forças. Dos cativos, existiam muitos membros da casa real
merínida e o filho do Sultão. Este e muitos outros foram levados para Lisboa, para
renderem resgates. Em anos seguintes, muitas celebrações religiosas foram instauradas
para celebrar a vitória do Salado. Em Portugal, foi instituída a festa de «Victoria
Christianorum», sendo celebrada até ao século XX100.
Como sinal de gratidão pelo apoio eclesiástico, Afonso XI enviou uma comitiva,
liderada por Juan Martínez de Leyva, com uma caravana repleta de oferendas e tributos
ao Papa Benedito XII. Para além de agradecer ao Papa pelos apoios, o rei castelhano
aproveitou para solicitar a continuação do financiamento da sua guerra contra o Islão a
partir das rendas eclesiásticas, conseguindo tomar Algeciras em 1345101. O mesmo
sucedeu com Afonso IV, que conseguiu obter uma série de bulas para continuar a
financiar a sua empresa marítima no Mar das Éguas, sendo a primeira destas a «Bula
Gaudemeus et exultamus», concedida pelo Papa a 30 de abril de 1341, garantindo a rendas
eclesiásticas durante 2 anos102. Outras foram concedidas em 1345, 1355, 1375 e 1377,
exortando sempre à luta contra o inimigo muçulmano, no âmbito de se conquistar as terras
dos mesmos103. É também possível, que parte destes dinheiros tenham sido canalizados

97
Ver anexo 6 para referência dos desdobramentos;
98
RAMOS, Manuel Francisco, op. cit. pp. 79-80 - «De facto, na batalha, foram aprisionados dois filhos de
reis: o de Benimerim, chamado Almofacem (…) e o filho do rei Sujurameca, chamado Hatá»;
99
Idem. ibidem, p. 114 - «Os católicos cristãos mataram-nas como cães, abatendo totalmente filhos e filhas,
pequenos e grandes, jovens e velhos, para não restar nenhuma descendência da seita do maligno e
incorrigível Maomé, eles que abandonaram Deus, seu criador, afastando-se do seu salvador Senhor Jesus
Cristo.»;
100
O'CALLAGHAN, Joseph F., op. cit. pp. 184-185;
101
Idem. ibidem. pp. 185-186;
102
MARQUES, João Martins da Silva, op. cit. pp. 70-74 – «Gaudemos et exultamus»;
103
BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), op. cit. pp. 118-119;

19
para as explorações comerciais na costa africana e no Atlântico, pois em 1336 e 1341 são
enviadas de Lisboa, expedições para o Atlântico, sob comando de italianos, em que se
descobrem as Ilhas das Canárias, iniciando um novo palco de competição com Castela104.
Também é verificada uma forte presença de colonatos e companhias estrangeiras,
nomeadamente de italianos, como a companhia florentina Bardi, fixada em 1341, que
antes, em 1338, sofriam ataques constantes dos corsários portugueses105. Também se
atesta, no reinado de D. Pedro I, uma presença forte de genoveses, milaneses, prazentins
e corsins, devido a uma renovação de privilégios sobre os seus estabelecimentos em
Portugal, obtidos por D. Afonso IV106.

Conclusão
A batalha do Salado insere-se no contexto de um desejo de diversas fações
controlarem um ponto geográfico importante e tudo o que advém do mesmo. O despertar
comercial catalisou a projeção de interesses de diversos reinos, que outrora eram vistos
como periféricos no mundo político europeu. Portugal, com a Reconquista terrestre
concluída, via-se agora sob controlo de uma vasta linha comercial, que interligava os
polos comerciais mais importantes do continente, pelo que se viu obrigado a melhorar a
sua navegação e construção naval, sendo que para atingir tal efeito, necessitaria de
movimentar grande parte dos seus recursos para potenciar a sua orla marítima.
A Batalha do Salado acaba com o desafio africano, pelo menos do ponto vista
marítimo, pois resultou numa debilitação não só de «manpower», como também do Poder
Naval muçulmano, tornando-se na sua última tentativa de invasão da Península Ibérica,
o que permitiu aos reinos cristãos focarem-se no desenvolvimento da sua capacidade
naval, para continuar a guerra contra o Islão e a exploração do atlântico;
Por fim, no Salado morreu a família do Sultão, bem como diversos vizires e
oficiais, o que enfraqueceu o reino Merínida, resultando no seu declínio e guerra civil
subsequente contra a dinastia Oatácida, facilitando a conquista de Ceuta em 1415,
garantindo o futuro de Portugal no Mar.

104
Idem. ibidem, p. 19;
105
Idem. ibidem, p. 142;
106
Vide. MARQUES, A. H. Oliveira (coord.), Chancelaria de D. Pedro I (1357-1367), 1ª edição, Lisboa,
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984, p.13 - «Priujllegios dos Janoeses, mjllaneses,
prazentijns e scrocijs»;

20
Bibliografia
Fontes:
CATALÀ, Josep Berni, Apuntamientos Sobre Las Siete Partidas, Valencia, Por los
Herederos de Geronimo Conejos, 1759. Disponível em: https://cutt.ly/xj72S5D;

MARQUES, A. H. Oliveira (coord.), Chancelaria de D. Pedro I (1357-1367), 1ª edição,


Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984.

MARQUES, João Martins da Silva, Descobrimentos Portugueses – Documentos para a


sua História (1147-1460), Vol. I, Edição Fac-Similada, Lisboa, Instituto Nacional de
Investigação Científica, 1988;

PINA, Rui, Chronica de elRey Dom Afonso o Quarto, edição Fac-similada de 1653,
Lisboa, Edições “Bíblion”, 1936;

RAMOS, Manuel Francisco, Memória De Victoria Christianorvm (Salado – 1340).


Edição Crítica, tradução e estudo do manuscrito Alcobacense CDXLVII/114 [FL. 354
(346)R – 363 (355)R], Porto, Faculdade de Letras. Universidade do Porto, 2019.
Disponível em DOI: https://doi.org/10.21747/9789898969378/tit;

Bibliografia consultada:
ANDRADE, Amélia Aguiar, A Estratégia Régia em Relação aos Portos Marítimos no
Portugal Medieval - O Caso da Fachada Atlântica, RUN. Repositório Universidade
Nova, Instituto de Estudios Riojanos, Lisboa, julho 2004. Disponível em:
http://hdl.handle.net/10362/6840;

AZNAR VALLEJO, Eduardo, La guerra naval en Castilla durante la Baja Edad Media,
En la España medieval, nº 32, Madrid, 2009, pp. 167-192. Disponível em:
https://bit.ly/35fGiHo;

21
BARATA, Manuel Themudo TEIXEIRA, Nuno Severiano, MATTOSO, José (ed.), Nova
História Militar de Portugal, 1ª edição, Vol. 1, Rio de Mouro, Círculo dos Leitores, 2003;

BETHENCOURT, Francisco et CHAUDHURI, Kirti (ed.), História da Expansão


Portuguesa – A Formação do Império (1415-1570), 1ª edição, Vol. I, Navarra, Círculo de
Leitores, 1998;

CARVALHO, Virgílio, A Importância do Mar para Portugal, 1ª edição, Lisboa, Bertrand


Editora, 1995;

HATTENDORF, John B. et UNGER, Richard W. (ed.), War at Sea in the Middle Ages
and the Renaissance, 1ª edição, Woodbridge, The Boydell Press, 2003;

JOURDIN, Michel Mollat, A Europa e o Mar, 1ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1995;

MARQUES, A.H. de Oliveira, Nova História de Portugal – Portugal na Crise dos Séculos
XIV e XV, Vol. IV, 1ª edição, Editorial Presença, Lisboa, 1987;

MARTINS, Miguel Gomes, De Ourique a Aljubarrota – A Guerra na Idade Média, 1ª


edição, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2011;

O'CALLAGHAN, Joseph F., The Gibraltar Crusade - Castile and the Battle for the Strait,
1ª edição, Philadelphia, University of Pennsylvania Press. 2011;

SOUSA, Bernardo Vasconcelos, D. Afonso IV, 1ª edição, Lisboa, Círculo de Leitores,


2005;

22
Anexos

Anexo 1- DÖRRBECKER, Maximilian [«O Stado da Màr»], 2016. Disponível em:


https://bit.ly/2G7T68y (Consultado a 20/04/2021).

Anexo 2 – [s.n.], [A «Carta Pisana»] c. séc. XIII-XIV. Disponível em: https://bit.ly/2GdV2g0


(Consultado a 28/04/2021).

23
Anexo 3 - Isidoro de Sevilha, [Mapa T-O da primeira versão da «Etimologia» de Isidoro, com cada
continente povoado com os descendentes de Sem, Jafé e Cam], c. 623. Disponível em:
https://bit.ly/2GcgJgo (Consultado a 10/05/2021).

24
Anexo 4 – ANDRÉE, R., [A extensão de Liga Hanseática em 1400], 1886. Disponível em;
https://bit.ly/2RuGfzb (Consultado a 29/04/2021).

Anexo 5 - [s.n.], [As rotas comerciais do final da Idade Média], 2008. Disponível em:
https://bit.ly/2OBHw7u (Consultado a 29/04/2021).

25
Anexo 6 - MARTINS, Miguel Gomes, [A Batalha do Salado, 1340], De Ourique a Aljubarrota, p. 240,
2011.

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