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Família Wings

Tradução: Lala
Revisão Inicial: Angel
Revisão Final e Leitura: Seraph
Formatação: Aurora

03/2021
Aviso

A tradução foi efetuada pelo grupo Wings Traduções (WT), de


modo a proporcionar ao leitor o acesso à obra, incentivando à
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adquirir as obras, dando a conhecer os autores que, de outro
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código penal e lei 9.610/1998.
The Pawn Duet Series

King Series
SINOPSE

** Um Spin-Off de King Series **


Nascido no caos.
Batizado na sarjeta.
Fui criado pelas leis das ruas violentas, derramando sangue sem
o impedimento de emoções ou conexões inúteis.
Insensível.
Mal amado.
Sozinho.
Minha vida era perfeita.
Até ela.
Em uma caçada humana por um inimigo misterioso, um inferno
empenhado em tirar tanto meus negócios quanto minha vida, encontro
Mickey. Ela está coberta de lama e claramente fora de si.
Ela também é uma distração que não preciso.
Isso até descobrir uma conexão entre a garota e meu inimigo.
Mickey não é mais uma distração.
Ela é a arma perfeita.
Uma que vou usar para me vingar.
O plano é fácil, mas há algo sobre Mickey que torna cada vez mais
difícil.
Uma familiaridade que não consigo explicar. Uma necessidade
que não posso explicar. Um desejo que tenho que negar. Afinal, ela não
é minha para manter.
Ela é minha para sacrificar.
“Dos desejos mais profundos,
geralmente vem o ódio mais
mortal.”

SOCRATES
PRÓLOGO

PIKE
Amor é uma praga, infectando as massas com a mentira do
FELIZES PARA SEMPRE.
É a religião suprema, seguida pelos que têm fé de que ele salvará
suas almas miseráveis e lhes dará algum tipo de propósito mais
profundo. Esse amor é o que faz a vida valer a pena.
Besteira.
O amor é um culto. Um tumulto de idiotas esperançosos, todos
correndo para pular do mesmo penhasco que já ceifou a vida de milhões
antes deles. Através do nevoeiro, eles são incapazes de enxergar seu
destino, o que o amor realmente tem esperando por eles no fundo.
Nada além de um emaranhado horrível de carnificina. Então, eles
pulam.
E quando tudo é dito e feito, o amor não os leva a encontrar um
propósito, esperança ou significado nesta vida.
Termina juntando-se à porra da pilha.
Outro entalhe esculpido no cabo da arma do amor.
O único fim verdadeiro da praga é a morte ou algo que se parece
muito quando a infecção se espalha para o coração e a alma,
esmagando um homem por dentro.
O amor é confuso, sangrento e ignorante.
O ódio nasce na ausência de falsas promessas de amor. Uma
evolução do homem.
O ódio é fácil. Puro em sua simplicidade. Não decepciona ou
desencaminha.
Não há promessas falsas, nem nevoeiro nublando o que está
esperando no fundo do penhasco.
O ódio é um produto de onde eu vim e uma direção para onde
estou indo.
Logan’s Beach.
É uma cidade composta de partes iguais de areia e sádicos.
Praia e sangue.
Água salgada e pecados.
Canais e caos.
Os campos vazios e cobertos de vegetação abrigam o solo perfeito
no qual as sementes do ódio são plantadas e florescem, produzindo um
exército de homens sem alma. O sangue em suas veias, substituído pelo
verde que flui da ganância. Eles empunham armas em vez de mãos e
pedras em vez de corações. Invada seus caminhos, e você será
derrubado.
A única lei nesta cidade é o poder. E os caminhos que você tem
que trilhar para obter esse poder podem ser surpreendentes e horríveis.
O respeito é conquistado através de atos sangrentos de violência e do
tipo de brutalidade que fora desta cidade só existe em pesadelos.
Meu poder está na minha verdade. Não tenho falsas noções sobre
quem sou ou do que sou capaz. Não tenho medo de retaliação, vingança
ou do próprio ceifador.
Enfrento a vida sem minha arma escondida nas costas, mas nas
mãos e em seu rosto, porque minha semente não foi plantada no
nascimento, mas pelas circunstâncias.
Não sou uma vítima. Sou simplesmente o resultado. Um produto
de Logan’s Beach. Um exilado. Um fora-da-lei. Apaixonado por sangue.
Estou preparado para qualquer coisa e qualquer pessoa. Exceto
ela.
Minha vida depois de Mickey é uma granada viva sendo lançada
no ar como um brinquedo de criança.
Enquanto estou distraído, tentando evitar que tudo pelo que
trabalhei exploda, ela de alguma forma consegue deslizar seus
pequenos dedos femininos além de todas as minhas barreiras, chega à
minha alma negra ...
E puxa a porra do pino.
CAPÍTULO UM

MICKEY

QUATRO ANOS ATRÁS

Mamãe e papai sempre brilham de orgulho quando dizem às


pessoas que tenho memoria fotográfica, apesar de sentir que esse
talento é o menos espetacular entre as minhas três irmãs mais novas.
Mallory, treze anos, já faz parte da equipe olímpica júnior de natação.
Maya, dezesseis, recebeu recentemente sua carta de aceitação
antecipada a Stanford. Mindy, de dezessete anos, pinta paisagens de
aquarela espetaculares e conseguiu sua primeira exposição solo em
Miami no mês que vem.
Então, sou eu. Mickey, dezenove anos, memória fotográfica, alto
QI, socialmente inepta.
Eh, parece pálido em comparação. Talvez, porque as observei
trabalhar tanto para alcançar seus objetivos, enquanto minhas
realizações são apenas produtos de algo com que nasci. Nunca tive que
tentar ser inteligente ou lembrar de coisas.
Apenas sou. Simplesmente posso.
Ouço a voz de papai na minha cabeça no jantar do mês passado
com minha tia e tio. — Bob, eu já te disse que Mickey aqui tem memória
fotográfica? É espantoso. Ela consegue se lembrar de todos os detalhes
de tudo que vê. Nunca vi algo assim. Bob, me dê sua carteira de
motorista. Ela lembrará dos números em dois segundos.
Ri comigo mesma da imagem do rosto atônito de Bob quando fiz
exatamente isso, dando uma rápida olhada na carteira de motorista
dele antes de devolvê-la e recitar não apenas o número da carteira, mas
também o aniversário dele, a data em que a carteira foi renovada, e o
fato de ele ser doador de órgãos. Adicionei a parte sobre ele ter uma
mancha de ketchup na gola na foto por garantia.
Minha memória sempre foi minha superpotência. Ela nunca me
falhou. Meu sorriso cai.
Até hoje.
Hoje, o orgulho do papai é uma mentira.
Porque algo aconteceu hoje, e pela primeira vez na minha vida,
não me lembro o quê.
A memória está lá, mas está dentro do meu cérebro como uma
imagem desfocada, flutuando ao vento. Quando sinto que estou
chegando perto, tudo some. É como notar algo se movendo no canto do
seu olho apenas para se virar e perceber que não há nada lá.
É como se estivesse perseguindo fantasmas.
O som do riso de minhas irmãs me traz de volta ao presente.
Afasto a sensação desconfortável e dou um sorriso brilhante.
O que aconteceu não deve ter sido tão importante. Porque se
fosse, tenho certeza que me lembraria. Porque é quem sou. Eu sou a
filha que se lembra.
O que quer que esteja acontecendo com a minha memória terá
que esperar, porque me recuso a deixar que alguma coisa me incomode,
especialmente não aqui, meu lugar feliz.
A minha família e eu passamos férias aqui em Logan’s Beach
todos os verões. Temos uma pequena casa de veraneio na praia. Todas
as minhas melhores lembranças aconteceram nesta cidade. Perdi meu
primeiro dente aqui. Tive meu primeiro quase beijo no píer, me
afastando no último segundo depois de ver alguma coisa nojenta presa
no aparelho de Hudson Yontz, mas a memória ainda me faz sorrir.
Minha mãe me ensinou a nadar na piscina aqui na casa de veraneio.
Minhas irmãs e eu até vencemos um torneio de pesca aqui. Chamamos
nossa equipe de Snook Sisters e, naquele ano, as Snook Sisters levaram
para casa o primeiro lugar. Você acharia que ganhamos na loteria em
vez de um certificado de presente de 45 dólares para a Master Bait &
Tackle.
O calor do sol começa a esfriar, e o calor implacável desaparece
da parte de trás do meu pescoço, deixando um local fresco em seu
lugar, enquanto a brisa passa pela minha pele molhada.
Olho para o céu e noto o sol caindo no horizonte. Pôr do sol já?
Para onde foi o tempo? Não acabamos de deixar a casa para andar de
caiaque há alguns minutos atrás?
Nós fizemos. Lembro disso. Nós embalamos a van. Amarramos os
caiaques no teto. Paramos para comprar mais protetor solar.
Não foi? Ou foi no ano passado?
Estava chovendo? Acho que me lembro da chuva.
Está tudo muito embaçado.
Quero dizer, o tempo sempre voa durante nossos verões aqui. Não
é tão incomum para mim perder o controle.
Mas não da sua memória.
Está tudo bem. Tudo ficará bem. Recuso-me a entrar nessa linha
de conversa novamente com minha voz interior. Afinal, resta muito
tempo. É o nosso último verão aqui em família, e quero aproveitar cada
minuto dele.
A placa que diz, Bem-vindo à Logan’s Beach, brilha em verde sob
a luz fraca quando me aproximo. Toda semana durante o verão, há um
grande pênis preto pintado a spray por todo lado ou uma mancha de
tinta cobrindo o dito pênis.
Hoje, é uma mancha.
Sorrio para mim mesma enquanto passo lentamente pela placa.
Meus pés doem de caminhar. Sempre rainha do drama, ouço Mallory
reclamar das coisas atrás de mim, e reviro os olhos.
Mamãe garante que estamos quase lá. Respondo com um
sarcástico — Não estamos lá ainda?
Ninguém ri a não ser o papai.
Escuto enquanto papai conta uma piada toc-toc ruim que faz
minhas irmãs e minha mãe simultaneamente gemer. Papai é estranho
como eu. Não apenas compartilhamos o mesmo QI alto, mas também o
mesmo senso de humor brega. Sou a única que ri da piada dele, e sou
recompensada com uma de suas famosas piscadelas.
Mindy me repreende por encorajá-lo e geme ainda mais alto
quando ele começa a contar outra piada.
Atormentar minhas irmãs é ainda mais doce aqui.
Até dividir o banheiro com minhas três irmãs é mais tolerável
aqui do que em casa, e em casa tem duas pias, quando na casa de
veraneio tem apenas uma.
Enquanto caminhamos, deixo um rastro de água como um
caracol na calçada atrás de mim. Minhas roupas firam de molhadas
para úmidas sob o calor do sol. Meu short jeans irrita a parte interna
das minhas coxas, esfregando a pele em carne viva a cada passo.
Minha massa selvagem de cabelo é uma esponja louca e, uma vez
molhada, vaza como uma torneira escorrendo até que eu encontre uma
toalha e um secador de cabelo, porque secar ao ar livre não é uma
opção.
Maya percebe minha trilha molhada e brinca que eu deveria estar
em um daqueles infomerciais de Shamwow1. Não como o vendedor
gritando sobre quão fabuloso é o tecido absorvente de água, mas como
o próprio tecido.
— Como se eu nunca tivesse ouvido isso antes, — murmuro.
Ouvi. Várias centenas de vezes. Tudo de Maya.
Mamãe diz a ela para ser legal, e sorrio e enfio mostro a língua
como uma criança, mesmo sendo uma mulher adulta. Gostaria de
saber quando realmente me sentirei mulher. Meu corpo certamente não
recebeu a mensagem de que a feminilidade já deveria ter atingido seu
auge dentro de mim. Evidencia A as minhas pernas de galinha e a
evidencia B a minha falta de graciosidade... Nadinha.
Papai nos diz para parar de andar e respirar o ar salgado.

1 Uma toalha superabsorvente, feita pelos alemães. Você sabe que os alemães sempre
fazem coisas boas.
Embora sejamos inteligentes e compartilhamos o mesmo ridículo
senso de humor, é aqui que diferimos. Papai é sentimental de uma
maneira quase caprichosa. Ele pode deixar de lado a lógica pelo
sentimento.
Enquanto o vejo fechar os olhos e respirar fundo, percebo que o
invejo. Que ele pode ter o melhor dos dois mundos, enquanto consigo
viver dentro das fronteiras de apenas um.
Normalmente, eu revirava os olhos ou simplesmente fingia
concordar com isso, mas é o meu último verão aqui antes de voltar para
a faculdade e começar meu novo projeto de pesquisa, e quem sabe,
talvez meu último verão aqui, e fiz uma promessa para mim mesma de
que vou saborear cada minuto que me resta deste lugar. Então, faço o
que papai diz e paro, encaro a água e fecho os olhos. O sal é tão espesso
no ar que posso prová-lo na boca antes mesmo de ter a chance de
inalar.
Tento respirar fundo, mas não consigo. Meus pulmões já estão
cheios, mas não de ar. Solto uma daquelas tosses úmida e grossa, onde
você pode sentir coisas se movendo nos pulmões. E o ar pode muito
bem ser como uma lambida de sal, porque o que tusso parece como seu
eu tivesse lambido um o dia todo.
Minha mãe se aproxima e pergunta se estou bem. Assinto, limpo
a boca com as costas da mão e lanço um sorriso para ela, assegurando-
lhe que estou bem. Ela me lembra que eu sempre fico resfriada no final
do verão. Ela está certa. Sempre fico.
É o que dá minha tentativa de ser um espírito livre.
Sorrio para mim mesma. Mallory usará sua máscara cirúrgica
durante toda a viagem para casa, para não pegar meu resfriado. Ela me
dará seu habitual levantar de sobrancelha, olhares laterais toda vez que
eu espirrar como se tivesse uma praga de zumbis. Faço uma anotação
mental para dar alguns espirros e tosses falsos adicionais, por garantia.
Continuamos caminhando. Meus pés doem ao ponto de estar
mancando. Faço o possível para esconder isso, para não preocupar
mamãe. Também não quero reclamar, ela já ouviu muitas reclamações
hoje. Além disso, ela disse que estamos quase lá, então poderei
descansá-los em breve.
O branco e o amarelo dos faróis se aproximando espalhavam-se à
luz do amanhecer como portais de sóis embaçados. Faço uma pausa e
protejo meus olhos por um momento antes de todos continuarmos.
Uma buzina alta soa de um carro passando, fazendo Maya pular e
Mallory amaldiçoar enquanto ele desaparece na estrada.
Depois de mais alguns quilômetros, a estrada torna-se estreita e
rachada, sem marcações separando as pistas. Não há mais luzes, bares
ou pessoas.
Mindy geme para o papai, e ele assegura-lhe novamente que
estamos quase lá, mas estou começando a achar que lá não existe.
Uma caminhonete preta para ao nosso lado. É enorme, com
pneus altos. Eu estico meu pescoço quando a janela desce. Um
homem aparece, embora esteja tão alto que não consigo distinguir seu
rosto.
— Senhorita, você precisa de uma carona? — Ele pergunta,
parecendo preocupado.
Sorrio e meus lábios racham. Um filete de sangue escorre pela
minha mandíbula e limpo com a camisa molhada. Dói com o sal, mas
meu sorriso não vacila. Estou muito feliz por estar com minha família.
Estar aqui. Tenho que estar feliz.
Não posso deixar de sorrir.
Mas por que estou sangrando?
Todas as minhas irmãs estão implorando aos meus pais que nos
deixem entrar na caminhonete desse estranho, mas sei que eles nunca
permitirão. Então, por mais que aprecie a oferta, recuso educadamente.
— Muito obrigada, mas não, obrigada.
Minhas irmãs riem e, embora não possa ver o homem, percebo
que ele deve ter uma aparência decente, porque minhas irmãs estão
rindo como idiotas.
Viro minha cabeça. — Shhh, não sejam rudes, — digo entre os
dentes e volto para o estranho. — Sinto muito por elas.
— ‘Elas’ — diz ele, como se não entendesse por que as meninas
estão rindo em sua presença. Eu também posso estar, mas seu rosto
está ainda mais desfocado agora do que quando ele parou. De fato, tudo
está mais desfocado agora.
Precisamos continuar, para que possamos chegar lá.
Mas onde é lá? Onde estou?
— Mais uma vez obrigada pela oferta, — digo ao homem. — Mas,
como pode ver, mesmo se aceitássemos sua gentil oferta, sua
caminhonete não tem banco traseiro e acho que não pode acomodar nós
seis.
— Todos vocês seis, — ele repete. Não é uma afirmação ou
pergunta. Estou começando a pensar que ele não tem todo o poder
cerebral necessário para calcular uma afirmação tão simples.
Ou contar até seis.
Meus pés doem e estou mudando de um para o outro. Estou
ansiosa para dispensar esse estranho, e acho cada vez mais difícil
permanecer em pé. — Você não acha que eu deixaria minha família
aqui e iria com você, não é? — Viro para o meu pai e dou de ombros.
Ele sorri com orgulho, sem dúvida, ao perceber que suas constantes
conversas sobre perigo deram certo.
— Senhorita, onde está sua família? — Ele pergunta, hesitante.
Franzo a testa. Quero dizer, minha visão está embaçada, mas
esse homem deve ser totalmente cego.
— Bem atrás de mim! — Aceno meus braços para onde minha
família está reunida ao lado da estrada. Todos acenam de volta como se
fossem uma pintura móvel da foto de família perfeita.
Ele abre a porta do motorista e salta para o asfalto. Registro
braços de urso e uma camisa branca. Tatuagens. Seu cabelo é loiro
escuro, lembrando-me do meu gato, Penny. Ele tem uma cicatriz na
mandíbula e olhos brilhantes que se mantem saindo de foco. Não é à
toa que minhas irmãs riram. Ele é muito digno de risos. Meu palpite é
que ele é apenas um pouco mais velho que eu, embora sua voz
profunda pareça muito mais madura.
Ele bate a porta com força.
Não sei se é o movimento repentino ou a longa caminhada que me
faz oscilar.
O jovem olha por cima do meu ombro para o escuro e depois para
mim antes de repetir o processo novamente. Seus traços faciais se
assemelham agora a uma imagem em primeiro plano de uma mosca
que estudei uma vez. Grande e sem sentido. Olhos demais.
Ele coça a cabeça em confusão.
Rosno de frustração e me viro para apontar minha família para
ele, mas o movimento continua mesmo quando meu corpo para. Tudo
gira. Minha família. A caminhonete, o estranho. A lua acima de mim.
Mais e mais rápido como um carrossel fora de controle.
Pego um último vislumbre da minha família quando caio.
As últimas palavras que ouço antes de cair no chão são
profundas e ilegíveis. — Não há ninguém atrás de você.

Pike
A noite começa como quase todas as noites: com duas meninas
na minha cama. Fico entediado com facilidade e acho difícil me
concentrar apenas em uma de cada vez. Meu amigo, Nine, chama isso
de ADD sexual2.
Ele não está errado.
Além disso, sou um homem de 22 anos com um enorme apetite
sexual.
Então, é isso.
Depois que as meninas partem, tomo banho rapidamente e saio
para fazer o que faço de melhor. Vender drogas. Eu entrego uma
quantidade astronômica de ecstasy, e maconha para um bando de

2 Uma descrição da atitude de uma pessoa em relação à atividade sexual que


geralmente envolve passar de parceiro para parceiro em um curto espaço de tempo, ou
traição, e é usada para descrever a atividade quando não há outra explicação.
garotos ricos fazendo uma rave no lado burguês da ponte de Logan’s
Beach.
Depois de voltar para o meu lado da cidade, solto um suspiro de
alívio. Quanto maior a distância que puder colocar entre mim e os
malditos pirralhos ricos, e suas buscas determinadas para decepcionar
os pais, melhor. Os imbecis têm tão poucos problemas na vida que
precisam criá-los enquanto o resto do mundo que vive deste lado da
ponte, a terra de areia e ruína, vagueia por um inferno literal na terra.
Inferno, ou não, eu amo essa cidade. Água salgada e areia correm
pelas minhas veias.
Logan’s Beach é onde quero estar. No momento, moro em Coral
Pines com Nine, mas estou de olho em uma merda de loja de
antiguidades na Main Street, com um apartamento no segundo andar
que espero transformar em minha própria loja de penhores logo que
puder ganhar dinheiro suficiente.
O baixo ainda está pulsando nos meus ouvidos. Me obrigo a
bocejar e puxar meu lóbulo da orelha para desentupi-la. O que
aconteceu com a música real? Johnny Cash. Bush. Sam Hunt. A
música rave que eles ouvem é pior do que a maioria das formas de
tortura, mas acho que é aí que as drogas entram em cena. Você tem
que estar chapado para dançar essa merda. Tenho a mesma idade da
maioria das crianças, mas odeio a música deles e minha falta de
privilégio me faz sentir muito mais velho. Doce alívio vem na forma de
Johnny Cash. Ligo o rádio. — Gosto mais dessa merda, — digo para
mim mesmo, batendo meus dedos contra o volante quando o primeiro
verso de Cocaine Blues afoga o baixo nos meus ouvidos.
Passo pela placa Bem-vindo à Logan’s Beach e vejo uma figura se
movendo nas sombras. Não é incomum ver um urso, javali, veado ou
jacaré atravessando essa hora da noite. O incomum é que uma garota
esteja mancando descalça na beira da estrada, parecendo uma
daquelas garotas de filme de terror, caminhando lentamente pela
estrada, com longos cabelos molhados no rosto.
A curiosidade leva a melhor sobre mim. Desacelerei a
caminhonete e parei ao lado dela, surpreso pra caralho quando ela se
aproxima da caminhonete. Ela vomita um absurdo sobre pessoas
estarem atrás dela quando não há ninguém lá além dos malditos grilos
e outras criaturas. Ela é mais nova que eu alguns anos. Magra, toda
cotovelos e joelhos. Há uma selvageria em seus grandes olhos cinzentos,
me lembrando uma boneca louca. Ela continua olhando para trás,
vendo claramente algo que estou perdendo. Ela oscila em seus pés.
Pulo e a pego quando ela desmaia.
Agora, ela está no meu banco do passageiro, pingando lama e
água no couro. — Ei... garota, — batendo levemente em suas
bochechas na tentativa de trazê-la de volta à consciência. — Ei garota.
Acorde, porra.
Seu cabelo molhado e pegajoso é da cor de uísque escuro, longo
com ondas largas. Ela tem um pequeno espaço entre os dentes da
frente perfeitos e uma pinta na bochecha esquerda acima dos lábios
rachados. Há um corte acima do olho e arranhões nos pés e nas mãos.
Ela pisca algumas vezes antes de finalmente abrir os olhos, olha
em volta para o interior da caminhonete antes que seus olhos caiam
nos meus. — Oh, ei, — diz ela com uma voz áspera, e então sorri
brilhantemente como se não tivesse acabado de dizer bobagens sobre
estar cercada por pessoas antes de desmaiar em meus braços.
— Você esteve em uma briga de gaiola com uma galinha ou algo
assim? Porque parece que esteve. E perdeu.
Ela se senta e balança a cabeça. — Não que eu saiba. — Ela olha
para suas roupas. — O que aconteceu? — Ela toca o corte acima do
olho e assobia.
— Não tenho certeza. Encontrei você assim.
Ela pensa por um momento. — Nadando. Eu devo ter nadado
muito longe. Mamãe sempre me avisa sobre passar pelas pedras, mas
nunca escuto. Acho que estava chovendo. Estávamos andando de
caiaque? — Ela fecha os olhos, mordendo o lábio inferior e lutando para
se lembrar. — É tudo... não me lembro.
Erro típico de turista. Um número incontável deles se afogou
achando que podem nadar além das rochas e do sinal claro que diz,
NÃO NADEM ALÉM DAS ROCHAS. Suspiro. Não é à toa que a garota
achou que estava com sua família. Ela quase se afogou e provavelmente
engoliu muita água. — Hospital ou casa? — Pergunto. Sou um cara de
merda, mas mesmo os caras de merda não deixam jovens inocentes
parecendo ratos afogados no lado da estrada à noite.
— Casa, — ela responde, descansando a cabeça no encosto de
cabeça.
Contorno a caminhonete e entro, pegando a estrada. Olho para
ela. Os olhos dela estão fechados. A pele das pálpebras está roxa e não
sei dizer se é sombra, sujeira ou hematoma. — E onde é, querida?
Ela abre os olhos e senta com uma careta. — Vivemos em Ocala,
mas passamos o verão aqui na praia. Um-doze-quatro-quatro Sycamore
Drive. Esse é o endereço da casa de veraneio.
Pelo menos, ela sabe o seu endereço. Isso já é algo. — Você tem
certeza que não precisa de um hospital?
Ela respira fundo e coloca um sorriso no rosto. — Tenho certeza.
Só preciso me limpar. Meus pais vão ficar tão chateados. Eles
provavelmente estão procurando por mim.
Concordo. — Posso te levar para casa rápido. Sei onde é a
estrada. Não é longe de onde vim. — Enquanto dirijo, sinto o olhar dela
em mim queimando um buraco no meu rosto.
Por fim, ela fala: — Obrigada. Quero dizer, pela carona. — Suas
bochechas pálidas e fundas ganham um pouco de cor quando ela cora.
Ela morde o lábio inferior e assobia, levantando os dedos para o corte
no lábio que tinha esquecido.
Nos meus vinte e dois anos, não fiz muitas coisas que mereciam
agradecimentos e, com certeza, também não fiz nada recentemente para
merecer isso. Parece errado ela estar me agradecendo e ainda mais
errado que eu não tenha ideia de como responder à simples gratidão.
Ficamos em silêncio pelo resto da viagem. Os únicos sons são os
ocasionais carros passando e o eco de sapos coaxando das reservas
vizinhas.
Entro em uma entrada com pavimento quebrado, alinhada a
uma cerca torta manchada de laranja e canteiros de plantas que
abrigam o tipo de palmeiras altas e finas que balançam com uma leve
brisa como se estivessem em um furacão. Engraçado, esses filhos da
puta são os que sobrevivem à maioria dos furacões quando tudo ao seu
redor se transforma em escombros, porque se dobram como elásticos e
sempre voltam para o lugar.
— É isso aí, — diz ela expirando, seu rosto se ilumina.
A casa em si tem uma cor amarela ensolarada, no alto de estacas
com duas vagas de estacionamento embaixo, separadas por uma parede
de blocos de concreto sem pintura. Persianas roxas cobrem as duas
janelas. Pendurado embaixo de cada janela há um grande sol de metal
enferrujado com o número da casa. Há um pequeno anexo ao lado que
combina com o esquema de pintura da casa. É um duplex. Uma das
centenas que revestem a praia. Como os outros, presumo que as
escadas de madeira à esquerda e à direita levam a um deck na casa de
veraneio onde fica a porta da frente, porque é assim que todas essas
coisas são dispostas e há centenas delas alinhadas a praia. Quem sabe,
eu poderia ter estado aqui antes, seja para negócios ou porque as férias
de primavera tendem a trazer garotas selvagens com problemas
paternos que amam nada mais do que fazer isso com os moradores
locais nas férias de primavera.
O tipo de garota que não se importa em não ser a única na minha
cama.
A garota abre a porta e desce, tropeçando na entrada da garagem.
— Merda, — praguejo, pulando e correndo para segurá-la na
posição vertical. — Talvez um hospital tivesse sido uma ideia melhor.
— Não. Estou bem. Sempre fico bem quando estou aqui, — ela
diz, seus olhos brilhando enquanto olha para a pequena casa como se
fosse uma mansão coberta de diamantes. Mais uma vez, não estou
vendo o que ela vê.
— Qual lado? Pergunto.
— As escadas à direita, — ela responde.
Envolvo um braço em volta da cintura dela e coloco seu braço
sobre o meu ombro, guiando-a até as escadas.
— Sabe, passo todo verão aqui desde os oito anos, — ela começa.
Ela vira a cabeça quando percebe a vaga de estacionamento vazia. — A
van. Não está aqui. Talvez eles ainda não tenham voltado.
Provavelmente ainda estão procurando por mim. Com certeza vou
receber uma bronca do papai.
Os olhos dela brilham, voltando para o olhar que ela tinha
quando a encontrei.
Aperto mais a cintura dela quando a sinto oscilar. — Você está
bem?
— Eu... eu não sei. — Olhos arredondados e arregalados me
encaram confusos. — Não sei o que está acontecendo. — Ela tropeça
para trás e a puxo para perto, ancorando-a no meu peito. — A chuva.
Os sons. O vidro. Onde foram todos?
Conheci algumas putas loucas na minha vida, mas essa pode ser
ainda mais louca do que a garota que cortou meus pneus ou a que
tentou incendiar meu apartamento. — Você sabe — digo. — Você me
lembra minha professora de inglês da sexta série. — Descanso meu
queixo em sua cabeça molhada enquanto ela esconde o rosto na minha
camisa, buscando conforto em um estranho. De mim dentre todas as
pessoas. — Porque eu também não entendia nada do que ela dizia.
O que diabos devo fazer com ela? Ela não é o tipo de louca que
fica nua e toma decisões questionáveis para irritar seu pai, mas o tipo
que termina em uma camisa de força e um livro de memórias sobre sua
vida no manicômio. Eu a levo para casa; ou a deixo aqui? Ela não é
problema meu. No entanto, quando ela envolve os braços em volta da
minha cintura como se estivesse segurando uma árvore em uma
tempestade, me sinto obrigado. Essa necessidade de protegê-la de tudo
o que está acontecendo em seu cérebro que a faz tremer contra mim.
— Não sei o que fazer aqui, — digo a ela com uma risada. Não sei
uma única coisa sobre consolar alguém.
— Também não sei, — ela suspira. — Você é uma boa distração.
— Ela se afasta o suficiente para esticar o pescoço, olhando para mim.
— Distrações são legais.
Distração? Agora, isso posso fazer.
Envolvo minha mão em seu pescoço, enrolo seu cabelo nos meus
dedos e pressiono meus lábios nos dela.
Ela faz um barulho na minha boca e, a princípio, acho que é um
gemido, então pressiono mais, enfiando minha língua entre seus lábios.
Ela empurra contra o meu peito. Não. Não foi um gemido. Eu a
solto, dando um passo para trás.
— O que você está fazendo? — Ela grita, o peito arfando. Os
olhos dela parecem mais claros. Furiosos pra caralho, mas mais claro.
— Além de arruinar um momento. — Há algo mais por trás da raiva e
confusão. Calor. Anseio.
Meu pau engrossa no meu jeans. Bom. Fico feliz por não ser o
único que sente isso.
Ela senta no degrau mais baixo. Me inclino contra a grade,
acendo um cigarro e dou de ombros. — Eu não sabia mais o que fazer.
Você estava saindo um pouco dos trilhos. Tive que te puxar de volta
antes que você caísse. Não sou bom em confortar. Nunca fiz isso antes.
Você disse que queria uma distração.
Eu poderia distrai-la ainda mais.
Obviamente, a garota não está em sã consciência, e isso é de
alguma forma contagioso, porque não há como realmente eu querer
beijá-la novamente. Nunca quis beijar uma garota em toda a minha
vida. Foder? Sim. Beijar? Nunca. Não é o meu estilo. As mulheres não
são confiáveis ou beijáveis. Eu apostaria meu dinheiro no banco.
Se acreditasse em bancos. O que não faço.
Ela inclina a cabeça para o lado e estreita os olhos. — Você não
sabia o que fazer, então me beijou? — Como se ela não pudesse
acreditar que de todas as coisas que eu poderia ter feito no momento,
essa foi a que escolhi.
Isso faz dois de nós, garota.
— Não faça alarde disso. Parece que você tem o suficiente no seu
prato. Você é uma garota sexy. Eu sou... bem, eu. Te beijei. Não é
grande coisa, — digo casualmente, dando uma profunda tragada.
Ela toca os lábios com as pontas dos dedos e, desta vez, sei que
não é para testar sua lesão, mas para lembrar como meus lábios se
sentiam nos dela. Ela está fazendo mais do que é.
Volto ao meu eu idiota habitual. — Você não precisa se
preocupar. Não vou te forçar. Louca, emocional e muito magra não é
exatamente o meu tipo. Prefiro louca e disposta a experimentar posições
e homens questionáveis. Como eu.
A maioria das garotas retrucava com algum comentário
igualmente ofensivo, ou pelo menos me chamava de idiota, mas essa
garota me encara como se fosse algum tipo de criatura que ela nunca
viu antes e está tentando classificar. Ela envolve os braços em volta do
peito, como se seus braços magricelas pudessem protegê-la de alguém
como eu. — Qual o seu nome?
Abro a boca para responder, mas minha voz é abafada pelo som
de tiros. A entrada da garagem explode em várias pequenas rajadas,
estilhaços de conchas atingem meu rosto e cobrem os cabelos da garota
de pó branco. — Merda! — Pego a mão dela e a arrasto passando a
casa para o lado da praia, puxando-a para trás do tronco de uma
palmeira grossa, bem quando outra bala perfura o tronco pouco acima
da cabeça da garota, acrescentando casca à poeira de conchas em seus
cabelos.
— O que... o que está acontecendo? — Ela pergunta, soando
mais do que em pânico, sua pequena mão tremendo na minha.
Largo a mão dela e pego minha arma, verificando o clipe. — Isso é
chamado de balas. De quem eu não tenho a porra de certeza. —
Lentamente espio ao redor da árvore. Há vários homens armados
vestidos de preto, sinalizando um para o outro, de ambos os lados da
entrada, enquanto se aproximam lentamente. Outra bala roça a casca.
Afasto-me, agachando-me de costas contra a árvore.
— Por que você tem uma arma? — Ela sussurra, cobrindo a boca
com as mãos enquanto olha a arma nas minhas.
— Sério? — Sussurro de volta. — Agora não é a hora do caralho.
— Estamos aqui pela garota. Mande-a para cá e sumiremos
daqui — uma voz masculina grita nas proximidades.
— Eu? — Ela sussurra, apontando para o peito. — O que eles
querem comigo?
Levanto uma sobrancelha. — Você está me dizendo que tem uma
equipe de homens armados aqui por sua causa, e você não faz a menor
ideia do porquê? — Assobio. Ela é realmente louca.
Ela balança a cabeça e uma lágrima escorre pelo seu rosto. De
repente, seu corpo inteiro fica rígido. Seus olhos se arregalam e, assim,
sei que ela se lembrou de algo, e pelo que parece, é algo nada bom.
Rosno e arrisco outro olhar além da segurança da árvore. Seus
rostos estão sombreados, mas posso ver suas posições. Pela minha
conta, há seis deles. Tenho seis balas. — Já estive em situações piores,
— explico, observando enquanto eles ganham cada vez mais terreno.
Esperarei o homem na escada pisar na areia. É nele que atirarei
primeiro. — Nós vamos sair...
— Estou aqui, — ela anuncia em voz alta.
Me viro para encontrar a garota com as mãos levantadas para o
ar, à vista dos homens. — Irei com vocês! Não atirem!
Ela está se rendendo?
— Que porra você está fazendo? — Digo entre os dentes. A
menina quase morreu uma vez hoje. Ela está tão determinada a morrer
de verdade? Nem a conheço, mas estou chateado como o inferno por ela
estar desistindo tão cedo.
Ela me encara com olhos tristes e dá um passo adiante em
direção aos homens, colocando mais distância entre nós. — Não posso
deixa-lo morrer por mim. Você nem me conhece.
Ouço as botas dos homens levantando a areia enquanto se
aproximam correndo. Uma lágrima escorre por sua bochecha. —
Obrigada pela carona.
Os homens a cercam, a agarram pelos ombros e começam a
arrastá-la pela areia em direção à entrada da garagem. Ela nem tenta
combatê-los. Quem nem tentaria?
— Isso é besteira, — murmuro.
Se a conheço ou não, não importa. Quando alguém atira em você,
você luta. Pode não ser da natureza humana, mas é da minha natureza.
Com minha arma levantada e apontada, saio de trás da árvore. E
dou um único passo seguindo o grupo antes que algo duro atinja minha
cabeça por trás.
Caio embaixo da árvore como um coco inútil na areia.
CAPÍTULO DOIS

PIKE

DIAS ATUAIS

Tortura.
Por definição, tortura é o ato de infligir dor excruciante, como
punição ou vingança, como um meio de obter uma confissão ou
informação, ou por pura crueldade.
Minha vida tem sido uma tortura, dando e recebendo.
É claro que prefiro dar, mas agora estou lidando com um novo
tipo de tortura, que envolve recuperar meu carregamento. Um
carregamento que está atualmente na forma de merda líquida.
Infelizmente, merda líquida não é código para outra coisa.
— Por que vai fazer isso sozinho? Você não tem pessoas para
isso? — Nine pergunta.
Estamos diante de um grande caminhão séptico estacionado
atrás da minha loja de penhores. As luzes da rua e os insetos já estão
zumbindo, e o sol se pôs há alguns minutos. Infelizmente, o cheiro da
grama depois da chuva a tarde não é pungente o suficiente para anular
um caminhão cheio de esgoto humano.
Apago o cigarro e enfio os braços no macacão marrom, fechando-o
por cima da roupa. Nine faz o mesmo.
— Porque consegui um inferno de um negócio. É um
investimento enorme da minha parte, e não vou deixar ninguém mais
lidar com isso. Preciso estar aqui. — Olho para o meu amigo. — Você,
por outro lado, não precisa estar aqui. Na verdade, te falei para não
estar aqui. O que você disse a Poe que está fazendo, afinal?
Nine é meu único amigo íntimo desde que o conheci no
reformatório, uma década e meia atrás. Ele se reconectou recentemente
com sua namorada. É uma longa história, mas ele a procurava há
muito tempo, e mesmo que acredite que o amor seja um conceito idiota,
Poe é um tipo de garota leal até o fim, e o homem está mais feliz que já
o vi. Na verdade, é a primeira vez que o vejo feliz, então não lhe dou
merda sobre isso. Bem, não muita merda.
— A verdade. Que vamos dirigir um caminhão de merda para
encontrar um barco e sugar uma tonelada de ecstasy junto com um
monte de merda real de dentro dele para trazer de volta à Logan’s
Beach, para que Pike possa começar seu reinado como o lixo branco
Pablo Escobar, — ele anuncia, com um aceno dramático de sua mão e
um arco exagerado.
Coloco um boné de beisebol com Logan's Beach Septic impresso
na minha cabeça. Certifico-me de que a aba esteja baixa sobre meus
olhos e meu cabelo preso dentro, para que não seja muito reconhecível
se for pego em qualquer câmera de trânsito ou segurança. O mesmo
logotipo está pintado na lateral do caminhão e bordado na parte de trás
do nosso macacão.
— Não vou mentir, — digo a ele, pensando no nome. — Não
odeio esse nome. Lixo Branco Pablo Escobar. — Rio. — Devia mandar
fazer cartões de visita.
— Idiota, — Nine ri.
Trinta minutos depois, estamos no cais. Passou mais de uma
hora antes do barco que esperamos aparecer lentamente. “Charley's
Charters” li o nome na lateral do barco calmamente para Nine. — É
esse.
O barco de pesca de quinze metros desliza no espaço vazio diante
de nós, e o motor é desligado. As grandes varas de pesca montadas nos
suportes na parte de trás barco chacoalham e balançam com o
movimento do barco. Uma corda é atirada para o lado e depois outra,
aterrissando aos nossos pés. Nine e eu trabalhamos rapidamente para
amarrar o barco na doca.
Um homem com barba longa e preta e um chapéu de capitão
branco desce do volante secundário, empoleirado vários metros acima
do convés principal. Quatro homens usando shorts polo e camisas
estilo havaiano sobem e o encontram na parte de trás do barco, onde
outro homem usando uma camisa com Charley’ Charter abre uma
pequena portinhola e abaixa os degraus. — Senhores, espero que
tenham gostado do seu tempo hoje. Eu falei que vocês eram todos
pescadores e acho que hoje provaram que estou certo.
— Grande momento!
— Vamos fazer isso de novo!
— Foi ótimo conhecê-lo, capitão! — Os três homens dizem quando
saem do barco, um pouco tontos e rindo, dando tapa nas costas com
sorrisos nos rostos de guaxinim queimados pelo sol. Eles sobem os
degraus em direção ao estacionamento atrás do edifício de
armazenamento de barcos, sem nos reconhecerem quando passam.
— Rapazes, façam o que tem que fazer, — diz o capitão, sem a
alegria que acabara de mostrar aos seus clientes. Seu imediato já está
limpando os refrigeradores. — Eu não sei de nada.
Dou de ombros. — Então, não precisará ser pago.
Ele franze os lábios. Seu rosto fica vermelho. — Você sabe o que
quero dizer. Apenas termine isso.
Nine corre para o caminhão séptico que está estacionado de frente
para nós, logo acima da área rebaixada do cais. Ele tira a mangueira e a
traz de volta para a doca, conectando-a ao sistema de coleta de esgoto
do barco. Ele liga o interruptor e o som de vácuo enche o ar. O capitão
chega ao cais e para ao meu lado. Ele se inclina para amarrar o sapato
e seu chapéu cai nas pranchas de madeira. Pego e, antes de devolvê-lo,
puxo o envelope de dinheiro do meu macacão e o coloco dentro.
O capitão finge que não vê, e dobra o chapéu nas mãos, seguindo
pela noite assobiando.
O imediato desce a rampa com dois baldes na mão. Ele está
olhando para as costas do capitão.
— Ei, cara, — o paro. — Está tudo bem? — Preciso ter certeza de
que esta operação ocorra tranquilamente e, se o imediato estiver prestes
a assassinar o capitão no estacionamento, é uma atenção que não
posso pagar.
— Sei o que vocês estão fazendo, — diz ele, ainda olhando para
onde o capitão sumiu há muito tempo.
Olho-o cautelosamente e levo à mão as costas, procurando minha
arma debaixo do meu macacão. — E? O que exatamente isso significa
para você?
Ele encontra meu olhar, percebendo o que acabou de dizer, seu
rosto empalidece. O garoto não tem mais de dezoito anos. Ele está com
medo, mas muito chateado com o capitão para entender o quão fodido
pode estar dependendo de sua próxima escolha de palavras. — Hoje
ganhei oitenta dólares. O contrato era mais de mil e quinhentos, e o
fodido gordo não levantou um dedo. Todos os locais de pesca para onde
fomos, encontrei por conta própria e, quando atracamos nas Bahamas,
fui eu quem carregou sua remessa. Não ele. — Ele olha para a
mangueira e abaixa a voz. — Tudo isso e por oitenta dólares. Ele nem
sequer dividiu a gorjeta comigo quando deveria ter sido toda minha.
— Isso é péssimo, garoto, mas você não respondeu à minha
pergunta, — respondo. Toco meus dedos no metal da minha arma como
um piano, mas música não é o que esse garoto tem reservado para ele,
se isso der errado. — Temos um maldito problema?
Ele revira os olhos. — Não, não temos um maldito problema. Pelo
menos não com você. Meu nome é Joe Watershed. Nascido e criado em
Logan’s Beach. Sei quem vocês são e não vou dizer nada. Não desejo
morrer. Meu problema não é com você. É com ele, — ele rangeu. —
Sabe, um dia, vou comprar meu próprio barco de pesca e ter meus
próprios contratos, e não vou tratar a porra da minha equipe do jeito
que aquele pedaço gordo de merda inútil faz.
— Watershed? Você tem um irmão motociclista dos Lawless? —
Pergunto, o sobrenome parece familiar.
— Sim, Angel. — O garoto responde. Um pouco da raiva
desaparece, suavizando sua expressão assassina anterior.
— Seu irmão ficaria chateado se soubesse que o capitão está
fodendo com você, — digo, acendendo um cigarro.
— Ele ficaria irritado e faria algo a respeito, mas não quero que
faça. Posso lutar minhas próprias batalhas, — ele diz, estufando o peito
côncavo. — Eu não preciso chorar para o meu irmão toda vez que
alguém me fode.
Aprecio o garoto querendo fazer as coisas por conta própria. Me
lembra uma versão mais jovem e horrenda de mim mesmo. — Como
você vai lutar esta batalha? — Pergunto, genuinamente curioso.
Estufando as bochechas, ele solta um suspiro. —Honestamente,
não tenho muita certeza.
Sorrio, apoiando-me em um dos grossos pilares de madeira. —
Acho que posso ajudar.
— Como? — Ele pergunta. Ofereço a ele um cigarro e meu
isqueiro, e ele pega, espalhando a fumaça para longe de seus olhos.
— Escolhemos esse capitão porque ele está com dificuldades
financeiras. Seu barco está sendo retomado. Ele precisa do dinheiro que
acabei de lhe dar para pagar o banco na segunda-feira antes de ia a
leilão terça-feira à tarde, — digo a ele.
Os ombros de Joe caem. — Se o banco tirar o barco dele ficarei
desempregado. Como isso me ajuda?
— Não ajuda. Mas o que vai te ajudar é você levar o barco para
outra doca e estacioná-lo lá hoje à noite. Cubra-o. Então traga de volta
para cá. Deixe exatamente onde está, e vá ao leilão. Que é na segunda-
feira à tarde. Nós te avisaremos.
— Mas eu não tenho... — ele para quando assobio para Nine, que
para a mangueira e me joga um envelope grosso de sua bota.
Enfio o dinheiro nas mãos do garoto. — Você compra o barco. Há
mais dois mil aqui, do que dei ao capitão. Se ele descobrir que é
segunda-feira, em vez de terça-feira, ainda não terá dinheiro para
comprá-lo. — Eu dou um tapa no ombro dele. — Capitão Watershed.
Ele balança a cabeça em descrença, olhando fixamente para o
dinheiro em sua mão antes de olhar de volta para mim. — Não entendo.
Como isso te beneficia?
— Este foi um negócio de uma única vez. O próprio capitão disse
isso. Ele só precisava de dinheiro suficiente para pagar ao banco e
salvar seu barco. No entanto... — Deixei que ele preenchesse os espaços
em branco.
— Se o barco for meu, então posso fazer isso novamente para
você.
Sabia que o garoto era inteligente. Bem, inteligente o suficiente.
Solto fumaça pelo nariz. — Você com certeza pode, e ficará com cada
centavo dos contratos e disso. — Eu dou uma tapinha no envelope em
suas mãos. — Exceto que faria o dobro disso a cada trabalho.
O garoto sorri de orelha a orelha. — Obrigado. Muito obrigado.
Estou dentro. O que você precisar.
— Acha que seu irmão ficará bem com isso? — Pergunto,
lembrando que Angel está no MC, e não estou prestes a colocar o garoto
em algo que irritaria um membro do Lawless. Bear, o presidente, é
amigo de Nine e um dos meus sócios. Não posso deixar meu nome ser
arrastado pela porra do clube.
Joe zomba. — Você está de brincadeira? Ele provavelmente se
oferecerá para ser meu imediato, — ele sorri.
— Agora, cai fora, garoto. — Aponto para ele com meu cigarro e
abaixo a voz. — E se alguém perguntar por que estávamos aqui hoje à
noite...
— Mas vocês não estavam, — diz ele, correndo de volta para o
barco, esquecendo os baldes no cais.
— Vá para North Captiva. Há uma casa no final da ilha. Três
andares. Azul. Está escondida da vista de todos. O cais estará vazio
porque os proprietários voltaram para o norte após a temporada! —
grito. — Ancore lá!
Ele sobe no deck do capitão e liga o motor. Nine desliga o
interruptor da bomba depois de se certificar que a fossa séptica está
vazia e o caminhão cheio. Solto as cordas que prendem o barco no cais.
O garoto sorri e acena enquanto se afasta com o barco, desaparecendo
do outro lado do rio Caloosahatchee.
Ajudo Nine a colocar a mangueira de volta na lateral do
caminhão.
Estamos na estrada há alguns minutos antes de estacionar em
uma parada de caminhões ao lado da rodovia. Encho o tanque de
gasolina, embora ainda esteja meio cheio, enquanto Badger, um
membro do Lawless e um membro de confiança da minha equipe, pula
no caminhão atrás de Nine. O papel de Badger em tudo isso é por
proteção e porque ele conhece o gerente da empresa séptica.
Voltamos à estrada e seguimos para a estação séptica, onde o
gerente nos espera para ajudar a separar a merda do meu produto.
— O que você trouxe aqui, além de merda? — Badger pergunta,
farejando o ar e franzindo o nariz. — Quero dizer, eu sei o quê, mas
quanto?
— Mais do que você pode imaginar, — respondo, totalmente
incapaz de acreditar na quantidade de ecstasy em minha posse
atualmente.
Badger assobia. — Porra, Pike, você será capaz de circular tudo
isso?
— Tenho certeza que sim — respondo orgulhosamente.
— Quem é o comprador? — Nine pergunta.
— Tino de Jacksonville, — respondo. — Seu suprimento da
Colombia secou, e ele me contatou porque sabe que tenho conexões no
Peru, e então... aqui estamos, porra.
Investi minhas economias neste negócio, além de King e Preppy
antecipar o dinheiro para fazer isso acontecer com a promessa de um
retorno rápido com uma tonelada de merda de juros. Trocadilho
intencional. 1.9 milhões de dólares e, em menos de vinte e quatro
horas, espero transformá-lo em 2.8 milhões. Depois das despesas, dar a
Badger e a Nine sua parte, e pagar a King e Preppy, sairei com quase
meio milhão no meu bolso rasgado.
Depois de esperar horas na instalação séptica, sinto-me ainda
mais confiante carregando nossa remessa em uma van preta sem
identificação. Sinto-me absolutamente vitorioso quando partimos com
meia dúzia de barris cheios de ecstasy cuidadosamente embalados e
com cheiro de merda, pronto para ser entregue ao meu comprador.
Aparentemente, não estou destinado à vitória hoje. Porque um
pneu estoura e o volante escapa das minhas mãos. Me seguro
enquanto batemos no canteiro central e de frente em um poste de luz de
cimento no topo da porra da ponte.
Minha cabeça lateja. Sangue escorre pela minha testa no meu
olho. Limpo antes que possa embaçar minha visão, espalhando-o em
volta da minha sobrancelha. — Todo mundo está bem? — Pergunto.
Nine parece em pânico, mas vivo. — Acabei de ver minha vida
passar diante dos meus olhos, — ele geme. — E minha vida foi uma
merda.
Badger geme do banco de trás. Viro-me para vê-lo deitado de lado,
segurando suas costelas. — Sim, só uma pancada, — diz ele, sibilando
enquanto volta a sentar.
— Vamos sair daqui antes que a polícia apareça, falo, — Pegue o
estepe, — ordeno. Empurro a porta e salto da van para verificar o pneu.
Tem um prego enorme nele. — Que merda, — murmuro, inclinando-me
para inspecioná-lo de perto. Não é um prego. É a porra de um espigão.
Um pressentimento me envolve como uma auréola negra. Levanto para
alertar Nine e Badger, mas chego atrasado. Vários homens usando
capuz e badanas pretas de esqueleto na metade inferior do rosto cercam
o caminhão, com espingardas apontadas.
— Jesus, porra Cristo, — murmuro enquanto sou empurrado de
cara contra o caminhão.
— Não se mexa! — Outro homem grita seguido pelo som de um
único tiro e um lamento que pertence a Badger.
— Vou matar cada um de vocês, filhos da puta, — falo, minha
bochecha raspando contra a pintura enferrujada da van.
Minha arma é retirada da cintura da minha calça e jogada sobre a
grade. — Diga a King que existe um novo rei da Ponte agora, e isso
continuará acontecendo, a menos que consigamos o que queremos. —
O homem me empurra para o lado e me joga de joelhos, enquanto os
outros trocam o pneu.
Eles trabalham em uníssono como uma porra de equipe da
corrida de Daytona quinhentos. Rápido e eficiente. Dentro de alguns
minutos, minha remessa, meu investimento e minha reputação estão
sendo levados para a escuridão.
Os três homens restantes recuam lentamente voltando para uma
van branca, disparando alguns tiros de aviso aos nossos pés.
— Vá se foder, — grita Badger, dando-lhes um duplo dedo médio
de despedida. Sua perna esquerda está jorrando sangue. Outro tiro soa
quando a van acelera.
— Foda-se, — Badger geme, pulando em uma perna e
pressionando a mão sobre o sangue jorrando do mais novo buraco de
bala em sua coxa. Ele cai de bunda, levantando os joelhos no peito. —
Consegui dois por um, meninos, — diz ele, cerrando os dentes. — E
não do tipo bom como quando a cerveja está à venda no Stop-N-Go.
— Por que eles não nos mataram? — Nine pergunta, estupefato
enquanto olha para a escuridão atrás da van. — Por que nos manter
vivos se estão passando por todo esse trabalho? Não faz nenhum
sentido, porra.
— Não sei, porra. — Balanço a cabeça e cerro os punhos
enquanto uma raiva que nunca senti antes, troveja através do meu
corpo como um furacão esperando para cair em terra firme. — Mas o
que sei é que, quando pegá-los, os farei desejar terem nos matado.
CAPÍTULO TRÊS

PIKE

Há tempestades normais e então há tempestades de merda.


Agora mesmo, Nine e eu estamos em um tsunami de uma tempestade
de merda como nunca tinha visto antes.
E está prestes a ficar muito pior, porque logo nos encontraremos
com King. Há uma razão pela qual ele administra esta cidade. Ele não
aceita nenhuma besteira.
— Você vai contar a ele? — Nine pergunta. Além de estar
machucado e fodido, seu rosto está cheio de preocupação. Ele nunca
vai admitir, mas sei que está nervoso.
Dou de ombros. — Ele já sabe e já está chateado. Não há muito
mais a dizer. Você não precisa estar aqui, irmão. Esta é a minha
bagunça. Eu devo ser o único a suportar o peso da ira de King, não
você.
— Você nunca me deixou. Estou aqui, e se você tentar me
chutar, não dou a mínima. Vou ficar de qualquer maneira.
Aprecio Nine mais do que ele jamais saberá. Ele é a própria
definição de matar ou morrer. — Obrigado, cara.
Estamos esperando por King na moldura da adição inacabada de
sua casa. Serragem cobre o chão e o cheiro de madeira recém cortada
anula o cheiro pungente de água salgada que permeia a baía a apenas
alguns passos de distância, no quintal.
Estou girando minhas pulseiras feitas de algemas nos pulsos
quando King entra como uma besta saindo de sua caverna. Sua
mandíbula está rígida e sua postura ainda mais rígida.
Ele olha para nós dois, observando o corte no meu olho e o
machucado embaixo do de Nine.
Nine está no telefone, mas olha para cima quando ouve King se
aproximar e o coloca de volta no bolso.
Nine vira um balde de construção e senta, pronto para os
negócios.
— Conte-me tudo, — exige King. — O que diabos vocês
descobriram? — Ele acende um cigarro, e acho que é para impedir
suas mãos de derrubar a porra das paredes. Não posso culpá-lo. Não
sou realmente a imagem da calma e serenidade também. Dever
dinheiro a King me deixa mais determinado a encontrar os responsáveis
por tentar me fazer parecer um idiota. Tomamos todas as precauções,
mas ainda não consegui descobrir como eles sabiam que estávamos
chegando ou por que foram estúpidos o suficiente para mexer em algo
ligado a King. Sei que eu não seria tão idiota. Quem quer que tenha
sido, têm coragem pra caralho.
Nine suspira. Ele está com o lábio rachado e uma marca vermelha
na bochecha. — Estamos verificando, mas ainda não tivemos muita
sorte.
King dá um passo em sua direção e posso ver a veia pulsando em
sua testa a cada passo. Os músculos em seu pescoço tencionam. Ele se
inclina e aponta o cigarro para Nine. — Ninguém brinca conosco nesta
cidade. Essa é a regra número um, e quem estiver por trás disso
descobrirá da maneira mais difícil.
Nine não se amedronta com King. Ele parece abraçar isso. Ganha
confiança com isso. Assim como eu.
Os ombros de Nine se endireitam e ele assente.
King se vira para mim com as sobrancelhas franzidas. — Não
pare de procurar até que tenha interrogado todo mundo nesta cidade,
até que revire todos os grãos de areia naquela porra de praia. Não pare
até ter um nome ou, melhor ainda, um corpo.
Nine se ergue. — É para já, Chefe.
— Então, o que sabemos? — Pergunta King.
Empurro a parede e torço as mãos. — Nós sabemos que aqueles
filhos da puta usavam máscaras. Máscaras de esqui com esqueletos de
merdas. Eles não soavam ou pareciam familiares. Se você me
perguntar, eles são contratados ou afiliados. A maneira como nos
roubaram foi imprudente e mal planejada. Eles dispararam contra os
pneus do caminhão por trás do corrimão e batemos no canteiro central.
Eles cercaram o caminhão antes que pudéssemos reagir e nos mandam
sair dele. Quando Badger os mandou se foder, eles atiraram nele.
— Como ele está? — King pergunta, deixando cair a raiva por
um nano segundo. Ele parecia genuinamente preocupado.
Acendo um baseado. — A bala atravessou. Nós o levamos a casa
da enfermeira Jill. Ele ficou com meia garrafa de Jack e alguns blues.
Ele está assobiando Dixie há seis horas. Literalmente. Então, acho que
é certo que ele ficará bem. Bem, depois da enorme ressaca, suspeito que
o filho da puta ficará.
King assente. — Você disse que eles não pareciam familiares.
Então, o que eles disseram?
Hesito porque dizer palavras em voz alta só vai enfurecer King
ainda mais, não está realmente no topo da lista de merdas que eu quero
fazer agora.
— Diga a ele, — Nine pede.
Respiro fundo. — Um deles disse para lhe avisar que há um novo
rei da ponte na cidade, e que vai tirar tudo de você, a menos que...
— A menos que o quê? — King pergunta, seus bíceps parecem
que estão prestes a se rasgar sua pele. — Cuspa!
Encontro seu olhar enfurecido. — A menos que você lhe dê o que
ele quer.
— E que porra é essa?
— Perguntei a mesma coisa. Ele disse que você descobrirá em
breve. — Nine leva a mão a testa e toca o galo vermelho logo abaixo da
linha do cabelo. — Então, ele usou a coronha da arma e me nocauteou.
King pensa por um momento antes de emitir nossas ordens. —
Entre em todas as câmeras de segurança daqui até a porra de Miami.
Descubram para onde foi aquele maldito caminhão. Pike, ligue para
todas suas conexões sanguessugas que você tem, desde traficantes de
rua até o cartel. Quero a porra de um nome. E quando conseguir um
— ele dá uma tragada profunda, soltando a fumaça lentamente pelas
narinas como o dragão zangado que ele é — me ligue primeiro.
— Feito, — Nine responde com um breve aceno de cabeça.
King sai e nós dois respiramos fundo, embora isso não traga
alívio, porque já sabemos que estamos mergulhados na merda. Saímos
da adição e descemos a garagem, prontos para começar a cavar nosso
caminho fora da merda.
Capítulo Quatro

Pike

— O que você conseguiu? — Pergunto, tirando minha jaqueta de


couro e jogando-a no balcão.
Nine se levanta e se move para o lado para que eu possa dar uma
olhada em seu laptop. — É uma transmissão ao vivo do armazém em
Coral Pines. A van está lá. Agora, tudo o que temos que fazer é esperar
que alguém saia, e o pegamos.
— Essa coisa pode se mover? — Pergunto, apontando para o
laptop.
Nine revira os olhos e segura um tablet. — Minha tecnologia pode
ir a qualquer lugar.
— Então, arrume tudo. Vamos chegar o mais perto que pudermos
do armazém sem ser notados. Assim que alguém entrar nessa porra de
van, os pegaremos.
Nine balança a cabeça e fecha o laptop, colocando-o debaixo do
braço. Ele esvazia o resto de sua cerveja e a coloca no balcão com tanta
força que o fundo da garrafa se quebra. — Vamos matar esses filhos da
puta.
— Estou feliz que você esteja tão ansioso quanto eu, irmão, —
digo a Nine enquanto seguimos para minha van. Sento no banco do
motorista e fecho a porta. Ligo o motor e me viro para meu amigo mais
antigo. — Mas não podemos matá-los.
Nine levanta as sobrancelhas. — Isso é algo muito estranho para
você dizer. Você está se sentindo bem?
Estou me sentindo ótimo, o melhor que me senti desde que nossa
merda foi roubada. A estrada para a vingança foi liberada e estou
prestes a descer a toda velocidade. — Quero dizer, não podemos matá-
los imediatamente. Você ouviu King. Temos que descobrir quem é o
responsável por ameaçar sua família e roubar nossa merda.
— Não sei nada sobre isso, — Nine diz, acendendo um
cigarro. Um V profundo se forma no centro de sua testa quando saio do
estacionamento da loja de penhores.
Eles podem chamar Nine de príncipe de Logan’s Beach, mas ele
ainda tem muito a provar aos homens que lhe deram esse título. King,
Preppy e Bear. Os três fodidos que não aceitam merda de ninguém. Eles
fizeram desta cidade o que é e ganharam o direito fazendo isso por meio
de suor de sangue e mais sangue. Nine tem dinheiro agora e muito,
tanto por meio de sua operação legítima de cultivo de maconha com seu
irmão Preppy quanto pelo negócio de investimento que deu errado antes
de ele reverter tudo e conseguir consertar as coisas no final.
Ele até tirou sua garota da situação.
Dito isso, dinheiro não significa nada quando se trata de provar a
si mesmo e ganhar respeito.
Entendo a necessidade de Nine mostrar-lhes que está aqui para
merecer o mesmo direito. Sou o maior fornecedor da cidade. King e eu
temos um acordo e ele me permitiu fazer negócios aqui. Merda, ele até
conseguiu o dinheiro para o carregamento que foi roubado na outra
noite. Nine pode ter muito em jogo aqui e ainda ter algo a provar, mas
não é o único. Tenho que pegar esta remessa de volta ou meus dias de
negócios aqui em Logan’s Beach acabaram.
Estamos estacionados a cerca de 800 metros do armazém, nas
sombras, ao lado do controle de tráfego do estacionamento. Nine e eu
estamos grudados na câmera de vigilância em preto e branco do seu
tablet apoiado no console central. Exatamente três horas e meio maço
de cigarros depois, finalmente há movimento no canto da tela. Três
homens aparecem de um dos compartimentos da garagem enquanto
outro tira um caminhão.
Não um caminhão qualquer.
— Minha fodida merda, — rosno. Uma veia atrás do meu
olho pulsa com meu sangue furioso. Viro uma das algemas quebradas
que uso nos pulsos repetidamente, sem me importar em tirar sangue da
pele por baixo; o metal está ligeiramente enferrujado e não tão liso como
costumava ser. Não dou a mínima para meus pulsos, no entanto. Não
dou a mínima para o meu próprio sangue. O único sangue que me
interessa neste maldito segundo é o sangue dos filhos da puta que me
roubaram. Já posso sentir o gosto da vingança em meus lábios. Não é
doce. É pecaminoso. É decadente. É totalmente erótico.
— Está pronto? — Nine pergunta.
Ligo a van e aceno. — Que comecem as preliminares.
— Espere, — Nine diz, enquanto coloco a van em marcha. Seus
olhos estão na tela mais uma vez. Ele vira para que eu tenha uma visão
melhor e os três homens não estão mais na van ou no caminhão. —
Eles simplesmente entraram. Devemos... — ele para quando outra
pessoa aparece, mas não são os três homens de antes. Esta pessoa é
menor e está usando um moletom, e parece estar com pressa quando
entra na van e sai do estacionamento.
— Eles devem estar trocando de local novamente, — diz
Nine. Eles fizeram isso várias vezes ao longo do dia anterior em um
esforço de nos impedir de localizá-los.
Tarde demais.
— Nossa merda esta lá dentro? — Pergunto, apontando para a
van.
Nine balança a cabeça. — Não tudo. Eles devem estar
transportando em remessas menores.
— Não importa. Precisamos de informações. Você viu mais
alguém entrar na van?
Nine sorri. — Não. Apenas o motorista.
Minha adrenalina dispara enquanto acelero e sigo em direção ao
armazém. Há apenas uma estrada da cidade para chegar e sair do
armazém. Não há como escapar de nós agora.
Dirigimos por menos de um minuto antes de eu notar os faróis da
van branca acelerando em nossa direção na pista errada. — Que tipo de
motorista de merda eles contrataram? — Nine pergunta.
O motorista nos avista e desvia para a próxima pista para nos
ultrapassar. — Oh, não, você não vai, porra, — digo, e assim que nos
aproximamos de um pequeno viaduto, aquele acima do canal que
conecta a baía ao rio, puxo o volante. Giramos bem na frente da
van; cujo motorista gira o volante a toda velocidade. Não ouço barulho
da batida. A pergunta anterior de Nine se repete em minha cabeça. Que
tipo de motorista de merda eles contrataram?
Perseguimos a van por quase uma hora. Ela entra no campo e a
perdemos na plantação de milho.
Bato meus punhos no volante quando a realização bate em meu
cérebro. — Porra!
Nine olha para o computador. — Eles estão movendo nossa
merda. Nossa porra de van acabou de sair.
Estamos longe demais para alcançá-los agora. — Foi uma
manobra de distração. Essa porra de perseguição inteira foi um show
para nos distrair.
Em vez de nos safarmos da porra da tempestade de merda,
conseguimos nos enterrar mais fundo.
Capítulo Cinco

Mickey

Nunca imaginei descobrir o cheiro da minha própria carne


enquanto queima, mas hoje é esse dia.
No início, cheira muito a carvão na grelha. Estranhamente,
quando a pele queima, o chiado da gordura derretida e a formação de
bolhas nos músculos cheiram muito como a cozinha costumava cheirar
depois que minha mãe fritava carne moída na frigideira.
Meu estômago revira com o fedor, mas é o menor dos meus
problemas e, infelizmente, o cheiro não me distrai da sensação. É
excruciante, como lava derretida escorrendo pelas minhas costas.
Meus dentes rangem e todo o meu corpo entra em
convulsão. Deixo cair meu queixo no meu peito, minha cabeça
parecendo muito pesada para o meu pescoço. Meu cabelo cai no meu
rosto. Os músculos das minhas costas estão pulando por todo lugar. É
como se eles não tivessem certeza de como lidar com a inflição de
tal lesão.
Conforme a dor lancinante aumenta, o mesmo acontece com o
revirar no meu estômago. Ele eleva e repuxa. Mordo meu lábio para me
impedir de vomitar, tirando sangue, sentindo o gosto de cobre inundar
minha boca, revestindo meus dentes.
Tento respirar através da dor, mas meu corpo está respondendo
de puro pânico. Só consigo extrair vários suspiros rasos pontuados.
Fechando meus olhos, tento bloquear a imagem dos homens
sorridentes ao meu redor para me concentrar em permanecer
consciente. Infelizmente, não consigo fechar meus ouvidos e abafar o
som das risadas e assobios enquanto testemunham a mutilação do meu
corpo.
— Está feito, — anuncia uma voz masculina que eu poderia
reconhecer em qualquer lugar.
O calor abrasador se afasta da minha carne. O vapor sobe do
balde de água quente ao meu lado, embaçando minha visão. O cheiro
de carne cozida, minha carne, é demais para o meu estômago. Me
inclino para o lado e o vômito jorra da minha boca como um cano
quebrado. A ferida recente em meu lábio arde quando o conteúdo do
meu estômago espirra na grama.
A lava se transformou em cinzas, mas ainda está queimando. A
ferida é apenas nas minhas costas, mas posso senti-la irradiando por
todo o meu corpo.
Antes que possa sentir qualquer alívio, sou violentamente
arrancada da cadeira por vários pares de braços e passada pela
multidão para que os homens possam se revezar me parabenizando
com um golpe forte nas minhas costas recém queimadas. Vejo estrelas
a cada toque, mas de alguma forma consigo ficar de pé. Ainda sinto a
dor lancinante. Não tenho certeza se é a memória da dor ou se é real,
mas ainda sinto no fundo da minha espinha. Meus nervos estão
disparando em todas as direções, fazendo todo o meu corpo se
contorcer. A cada passo torto, estremeço e sacudo como se estivesse
possuída pelo próprio diabo.
E talvez eu esteja.
Porque me ofereci para isso.
Pedi por isso.
A multidão se separa revelando o homem careca parado em frente
à enorme fogueira, seus olhos escuros fixos nos meus.
Levanto meu queixo em reconhecimento. Seus lábios finos se
curvam para cima em um sorriso torto, me lembrando que o que estou
sentindo no meu corpo é uma picada no dedo em comparação com a
dor no meu coração.
É essa dor que me impulsiona para frente, cambaleando até parar
ao lado do careca.
A luz do fogo brilha em seu couro cabeludo enquanto ele puxa
meu pulso, fazendo-me ver estrelas. Ele levanta meu braço com orgulho
no ar. — Bem-vinda à família, Michaela, — ele anuncia com orgulho.
A multidão irrompe mais uma vez.
Olho em volta para os rostos borrados dos homens e imagino
como seria colocar uma bala entre seus olhos.
Consigo dar um pequeno sorriso.
— Você fez bem, criança, — diz o careca, suas palavras
arranhando meus nervos como as garras de um gato.
Ele incha o peito de satisfação quando o buraco de bala
imaginário entre seus olhos redondos toma forma diante de mim. Raiva
reprimida ferve de dentro, queimando ainda mais que a marca nas
minhas costas.
— Você é uma de nós agora, — diz ele, entrelaçando sua mão na
minha e pressionando um beijo em meus dedos que felizmente não
posso sentir por causa do latejar nas minhas costas. — E tenho a
segunda tarefa perfeita em mente para você.
— Obrigada, senhor, — digo com uma respiração instável.
Não importa que me tenham marcado porque não sou um
deles. Nunca serei um deles. Para mim, não somos nem da mesma
espécie, e a única semelhança que temos é que um dia estaremos todos
mortos.
Eles não sabem ainda, mas já estão praticamente mortos.
Possuída pelo diabo ou não, haverá um inferno a pagar.
Capítulo Seis

Pike

Poke’s Pawn era originalmente para ser um disfarce. Uma


empresa para lavar dinheiro e um lugar para descansar a cabeça à
noite no apartamento do segundo andar. Por último, mas não menos
importante, uma razão para me mudar para Logan’s Beach. Mas nos
anos desde que se tornou Pike’s Pawn, geralmente passei a apreciar o
lugar além dos benefícios de ocultar meus empreendimentos ilícitos.
Além disso, me dá uma tonelada de dinheiro.
Com o passar do tempo, descobri uma relação pelo lugar. Um
sentimento de orgulho pela empresa que criei e o primeiro lugar que
realmente pude chamar de lar.
Pena que terei que vendê-lo e tudo dentro dele para pagar
King. Mesmo assim, ainda lhe devo uma tonelada de dinheiro.
Nine olha para mim. — Sei o que você está pensando, e não terá
que vender essa merda. Estou nadando em dinheiro. E meu irmão
continua me dando dinheiro ou escondendo nas paredes da porra da
minha casa. Pagarei King e liquidarei a dívida. É o mínimo que te devo
depois de tudo que você fez por mim.
Zombo. — Obrigado, mas vá se foder também. Não. King também
nada em dinheiro, mas não é assim que essa merda funciona, e você
sabe disso. Peguei o dinheiro dele e eu devolverei. E é mais do que
dinheiro. Não posso construir confiança ou reputação com os homens
que dirigem esta cidade se permitir que você pague minhas dívidas por
mim. Eu pagarei.
De uma forma ou de outra.
— Tanto faz. Faça do seu jeito. — Enquanto esperamos que
a filmagem de segurança daquela noite na ponte carregue no
computador de Nine, fazemos o que dois homens que enfrentam uma
tarefa impossível fazem.
Ficamos bêbados.
— Ei, você se lembra desse punk? — Nine pergunta, apontando
para a pequena TV apoiada em um banquinho no canto.
Com a cerveja na mão, paro meu ritual de fechamento do caixa e
olho atentamente. Instantaneamente, reconheço o homem na tela. Eu
me lembraria dessa arrogância em qualquer lugar. Percy Alban. Ele está
saindo pelos portões da prisão com a mão na virilha, como se estivesse
impedindo seu pau balançando de rasgar o macacão laranja
brilhante. Ele cai nos braços de um homem careca mais velho que
parece uma versão futura de Percy. O punk parece muito mais velho do
que me lembrava com muito mais tatuagens, mas, novamente, a última
vez que o vi, tínhamos quinze anos. — Sim, eu me lembro dele. Esse
skinhead foi meu companheiro de cela por cerca de seis meses no
centro de detenção.
Nine se recosta na cadeira e apoia os pés no balcão. — Não posso
acreditar que o deixaram sair. Esse filho da puta nasceu para viver na
prisão.
— A família dele tem dinheiro, — falo, jogando minha cerveja
vazia na lata de lixo no canto.
— O pai dele não é tipo o Dumbledore dos supremacistas
brancos?
Inclino minha cabeça. — Dumbledore?
Nine balança sua cerveja no ar. — Sim, você sabe, o cara feiticeiro
principal ou o sei lá como chamam o líder de seu império. Como o cara
de Hogwarts, se Hogwarts fosse cheia de pequenos neonazistas em vez
de bruxos.
Empurro os pés de Nine para fora do balcão para pegar outra
cerveja. — Não importa. Ele vai acabar voltando pra lá. Atualmente,
estou mais preocupado em me manter fora do lugar do que me
perguntando por que deixaram um pedaço de merda de lixo branco sair.
— Retiro o dinheiro da caixa registradora e coloco na bolsa do
banco. — Além disso, esse filho da puta foi preso. Ele falou para todos
que quisessem ouvir, e mesmo aqueles que não queriam ouvir, sobre
todas as merdas que fez. Alguém estava fadado a delatar o filho da puta
estúpido.
— Se alguém delatou, então faz sentido ele ter sido julgado como
adulto, — Nine reflete. — Me pergunto quem fez isso? Talvez aquele
garoto magrelo de óculos que se mijava todas as noites?
Fecho o caixa com meu quadril. — Não foi você?
Nine franze a testa. — Ei, eu... tenho contatos.
Empurro seus pés do balcão novamente para poder passar. —
Tudo que sei é que eles enviaram todos em um raio de três celas para
centros de detenção diferentes depois que apresentaram novas
acusações contra ele. Provavelmente para descobrir quem o denunciou.
Nine torce seus lábios. — Então foi por isso que te transferiram?
Assinto. Nine e eu nos conhecemos no reformatório e perdemos
contato depois que me transferiram para um centro em Tallahassee. Ele
me encontrou de novo quando saiu do sistema, e nessa altura estava
em uma porra de uma temporada difícil. O garoto estava prestes a se
foder. O coloquei sob minha proteção, dei-lhe um lugar para ficar e o
ensinei como ganhar dinheiro na rua e transformar nada em algo antes
de encontrar seu irmão.
Nine tem família agora, mas ainda é a coisa mais próxima de uma
família que tenho e a única pessoa em quem confio.
Bem, ele e Thorne.
— O que vocês estão aprontando? — Thorne pergunta, entrando
da sala dos fundos.
— Pensando na porra do diabo, — canto.
Ela pisca para mim. — É bom saber que estavam pensando em
mim.
O que lhe rende um revirar de olhos meu.
Thorne remove um elástico de seu pulso e amarra seu cabelo
laranja brilhante em um nó no topo da cabeça, fazendo-a parecer ainda
mais alta do que seus 1,80m. Sua camiseta preta da Amy Winehouse é
pequena e justa, revelando seu estômago pálido. Seus jeans são largos
nas pernas, cobrindo a maior parte de seus pés de chinelo. Se você
olhar para todos os elementos da aparência de Thorne separadamente,
o anel de septo, as tatuagens, a camisa justa com jeans largos, os
chinelos que você só consegue ver quando ela caminha, o cabelo laranja
brilhante pra caralho, parece um desastre total. Mas juntos, em Thorne,
funciona.
— Oh, você sabe, apenas sentado falando sobre skinheads, —
Nine responde secamente.
Thorne pega a cerveja da minha mão e a esvazia. — Legal, — ela
diz, sem se intrometer mais, porque ela não é desse tipo. Gosto de
pensar que é porque ela sabe que não deve fazer muitas perguntas, mas
na realidade é provavelmente porque não dá a mínima. — Pike, fiz os
cálculos de hoje e postei o novo estoque na loja online. Encontrei um
comprador para o Rolex penhorado que não foi pego e Jordan deixou
outra mensagem. Ele vai pegar a pintura pela manhã. — Ela joga sua
pequena mochila coberta de botões sobre os ombros e se dirige para a
porta.
— Vejo você de manhã, — digo atrás dela.
Thorne responde sem olhar para trás e com uma saudação com
um dedo. Sua versão de boa noite.
Saio de trás do balcão e tranco a porta atrás dela, virando a placa
para fechado.
— Então, você e Thorne... Thorne e você... — Nine começa, mas
ele não precisa terminar para saber aonde quer chegar.
— Porra, não, — cuspo. Não porque Thorne não seja atraente
porque ela é. Ela simplesmente não é atraente para mim. Provavelmente
porque quero mantê-la por perto, e as mulheres com quem fodo não são
do tipo que quero ter por aqui e tomar uma cerveja. Orgasmos e finais
são a minha praia, mas nunca com Thorne.
— O que? Ela é gostosa, — Nine fala.
— Sim, mas acha-la gostosa e ter certeza que ela é gostosa são
duas coisas diferentes pra caralho.
— São? — Nine pergunta, cético.
Suspiro. — São, irmão. Além disso, confio nela, gosto dela e não
fodo com mulheres de quem gosto.
— Está certo. Você prefere foder as mulheres que odeia.
— Há uma grande seleção dessa maneira. Além disso, mantém as
coisas simples, — respondo, porque é a verdade. — Além disso, Thorne
já tem alguém na vida dela. A namorada dela.
— Ah, sim, então é isso.
Rio. — Sim, então é isso.
— Então, o verdadeiro motivo pelo qual você não ficou com ela é
porque ela sente repulsa pelo seu pau, — Nine ri, espirrando cerveja na
porra do meu balcão de vidro.
Jogo nele um rolo de papel toalha. — Cale a boca. E limpe isso.
Nine limpa a boca e esvazia o resto da cerveja. — Você quer ir
para o bar? — Ele pergunta, limpando o balcão e pegando outra
cerveja. — Sabe, tomar uma cerveja?
— Claro, por que não, — respondo, olhando ao redor da loja. As
paredes estão cheias de instrumentos pendurados mal tocados, as
prateleiras estão cheias de lâmpadas e bugigangas vendidas ou
esquecidas e as vitrines estão cheias de joias penhoradas por um
dinheirinho rápido que revenderei por vários dólares rápidos. É um
tesouro de merda de outras pessoas, e amo cada centímetro dele porque
não importa a quem pertenceu antes, porque, pelo menos por
enquanto, é todo meu. — Só tenho que levar toda a merda do caixa para
o cofre primeiro.
Nine muda de canal na TV. — Sem pressa. Não tenho nada para
fazer.
Destranco o caixa um por um e esvazio o conteúdo em um
saco. Estou abrindo o último caixa quando a campainha toca. Nine olha
para mim e levanta as sobrancelhas porque não são os sinos na porta
da frente indicando um cliente, especialmente porque já tranquei a
porta, mas a outra campainha. A que está escondida atrás de um tijolo
na porta dos fundos, usada apenas pelas pessoas com quem faço meus
outros negócios. — Você está esperando alguém? — Ele pergunta.
— Não. — Jogo o saco no balcão. Verifico as câmeras de
segurança na tela atrás da caixa registradora e só consigo ver uma
figura sombria esperando na porta. Um boné de beisebol cobrindo seu
rosto. Não é incomum. Quem entra pela porta dos fundos da minha loja
não é alguém que deseja que seu negócio seja facilmente
reconhecido. — Já volto, — digo a Nine.
— Estarei bem aqui, — Nine diz, apoiando os pés de volta no meu
balcão.
Atravessando pelo meu escritório e pelo depósito, chego à porta e
começo a destrancar a intrincada série de cadeados e correntes. —
Quem é? — Pergunto, esperando pela resposta antes de remover
o último cadeado.
— Jimmy me enviou.
Não existe nenhum Jimmy, claro, mas é um código reservado
apenas para os meus clientes clandestinos. Muda toda semana, e esta
semana é Jimmy. Na semana passada, foi Jamal.
Abro o último cadeado e giro a maçaneta. A porta está aberta
apenas cerca de uma polegada quando é chutada, me acertando no
rosto. Vejo estrelas enquanto a sala se enche de homens encapuzados
familiares com bandanas de esqueleto amarradas na metade inferior de
seus rostos.
As mesmas malditas espingardas apontadas e prontas.
Pego minha arma quando uma espingarda é enfiada na minha
cara.
— Mãos ao alto, filho da puta, — uma voz masculina avisa.
Lentamente levanto minhas mãos quando duas das figuras
encapuzadas voltam da loja, mas eles não estão sozinhos, estão
empurrando Nine na frente deles com o cano de suas armas.
— Parece que temos companhia, — Nine diz secamente. Sorrio
porque Nine e eu passamos por tanta merda em nossas vidas que
pouquíssimas coisas podem nos deixar com mais raiva ou medo do que
quase todos os dias de nossa infância. Quero dizer, esses filhos da puta
vão morrer, mas a maneira como são tão dramáticos sobre toda essa
provação é risível.
Além disso, posso estar um pouco bêbado.
— Parece que você está certo, irmão, — respondo.
Nine olha em volta. — Essas bandanas de esqueleto são bregas
pra caralho. Vocês as lavam? Ou estão só ficando chapados com o
cheiro do seu próprio medo? Porque não consigo imaginar outra razão
pela qual vocês seriam tão estúpidos.
— Cale a boca. Vocês dois. Calem a boca! — Um dos homens
grita.
— Pike, — Nine diz com uma risadinha de colegial. — Acho que
ele quer que a gente cale a boca. — Ele é atingido com o cabo de uma
espingarda na cabeça. Nine cai de bunda no chão, mas permanece
consciente, esfregando a têmpora agora inchada e estremecendo. —
Sério pra caralho, — ele murmura.
— Encontrei, — diz uma voz, vinda do menor homem do
grupo. Ele está segurando o quadro que deveria entregar a Jordan pela
manhã. Mas não é qualquer pintura; o forro na parte de trás está
escondendo... O homem que atingiu Nine rasga o forro, expondo fileiras
de sacos plásticos contendo uma grande quantidade de munição colada
na parte traseira.
Porra!
Agora eles atingiram um nervo e ganharam horas de
tortura. Bater em mim uma vez e tomar minhas merdas os torna
ingênuos, fazer isso duas vezes os torna estúpidos pra caralho, e agora,
é pessoal. Estou fazendo uma lista mental das ferramentas que usarei
em cada um dos filhos da puta. Para fazê-los sofrer. Para fazê-los gritar.
O rapaz abre uma mochila de zíper enquanto outro homem
arranca os sacos colados com fita adesiva na pintura e os joga
dentro. — Foi bom fazer negócios com vocês, filhos da puta. — Eles
saem em fila, um por um, até que apenas o líder e o menor sobrem. —
Até a próxima.
O falador de merda está no meio da porta, aproveito a
oportunidade e a chuto fechando com meu pé, prendendo o grandalhão
do lado de fora e o menor dentro. Uso meu cotovelo para apertar o botão
no chão, fechando as travas automáticas.
Com a atenção do intruso voltada para mim, Nine pega a
espingarda dele, que se vira, tentando pegar sua arma. Percebendo que
sua arma está na posse de Nine, ele se vira. Salto do chão, agarro seus
ombros e impulsiono minha cabeça para trás, dando uma cabeçada tão
forte que vibra em meu crânio muito depois de seus olhos revirarem e
ele tombar no chão.
Felizmente, a combinação de adrenalina e álcool diminui minha
própria dor, mas sei que esse filho da puta sentiu. Ele está caído de
lado, amontoado e inconsciente, mas ainda respirando. Agacho-
me sobre ele. — Parece que vou ter que começar a acreditar em Deus
porque minhas malditas orações podem ter acabado de ser respondidas,
— digo.
Nine corre até os monitores próximos ao computador de
Thorne. — Os filhos da puta se foram. Deixaram um deles como os
maricas que são.
O capuz do ladrão escorregou ligeiramente de sua cabeça na
briga, revelando fios de cabelo escuro e brilhante caindo sobre uma
maçã do rosto alta.
Espere, uma maçã do rosto alta?
— Que porra é essa? — Sussurro para mim mesmo. Não pode
ser. Isso não pode ser.
Uma suspeita me atinge.
Me agacho e puxo o capuz completamente, expondo uma longa e
espessa juba ondulada.
Puta merda.
Minha suspeita estava certa.
— Pelo menos, o carinha caiu fácil, — Nine comenta. Ele tira os
olhos dos monitores e olha para mim por cima do ombro.
Eu levanto um punhado de cabelo para mostrar a ele o que
encontrei. — Provavelmente porque ele... é ela.
Capítulo Sete

Mickey

— As férias acabaram. Temos que sair e agora, — papai diz,


correndo pela sala de estar, pegando sua carteira da mesa e vestindo
uma camisa.
— Mas as férias ainda não acabaram! — Mallory choraminga. —
Ainda temos mais uma semana.
— Acabou agora. Entre na van. Todas vocês. Vamos. — Papa pega
suas chaves e abre a porta da frente.
— Ainda temos que fazer as malas, — argumenta mamãe. — O que
está acontecendo?
Ele responde com um olhar que nunca esquecerei. É um apelo e
uma ordem.
Uma com o qual ela não discute enquanto seus olhos se arregalam
em compreensão. — Meninas, ouçam seu pai. Vamos. Agora. — Ela joga
a bolsa no ombro. — Você não precisa de sapatos! — Ela grita para
Mindy, que deixa cair os sapatos no chão. Ela conduz minhas irmãs pela
porta.
— E quanto a Penny? — Pergunto, procurando embaixo do sofá
pelo gato da família. Ela está sempre se escondendo em algum lugar.
— Michaela, agora! — Meu pai ordena. — Esqueça o gato.
Me levanto e faço meu melhor beicinho. Geralmente funciona para
conseguir o que desejo, mas não hoje. Meu pai corre em minha direção,
me levanta do chão e me carrega por cima do ombro até a van onde
minha mãe e três irmãs já estão dentro. Ele me coloca dentro e bate a
porta.
Minhas irmãs e eu trocamos olhares preocupados, mas nenhuma
de nós ousa falar.
Papai entra e liga o motor, nos chacoalhando enquanto sai da
garagem. — Cintos! — Minha mãe grita. Lutamos para encontrar as
fivelas enfiadas entre os assentos enquanto balançamos de um lado para
o outro.
— O que está acontecendo, papai? Você está nos assustando! —
Mallory, minha irmã mais nova chora. A ajudo com o cinto de segurança
antes de encontrar o meu, encaixando-o no lugar.
Papai não fala até estarmos na estrada principal, saindo da
cidade. — Nós vamos ficar bem, meninas. Nós só precisávamos sair. Vou
explicar tudo mais tarde, — diz ele. Ele olha para suas quatro
adolescentes pelo espelho retrovisor e nos dá um sorriso tranquilizador,
mas vejo a preocupação e o medo por trás. — Vai ficar tudo bem, —
acrescenta ele, tranquilizando-se tanto quanto está nos tranquilizando.
Mama estende a mão e agarra a dele, entrelaçando os dedos no
console central.
Um som alto como o escapamento de um carro explode ao nosso
redor, fazendo minha espinha pular como se estivesse em uma corda.
— O que foi isso? — Maya grita.
Viro-me no assento e vejo a van preta nos seguindo. Lá dentro
estão dois homens usando capuzes com bandanas pretas de esqueleto
cobrindo a metade inferior do rosto. O homem no banco do passageiro
está inclinado para fora da janela... segurando uma arma.
O som. Não era um carro.
Estamos sendo alvejados.
— Meninas, abaixem-se! — Mamãe grita.
Disfarçados ou não, reconheço os homens. Homens que conheci
toda a minha vida. Homens com quem meu pai insistia que todos
interagissem por causa de sua pesquisa.
Percebo que a pesquisa obviamente tomou o rumo que minha mãe
sempre temeu. Esses não são homens razoáveis. Esses são homens com
o coração cheio de ódio e, neste momento, esse ódio se transformou em
armas. E, assim como a arma, está apontado diretamente para nós.
Me viro em meu assento para que minhas irmãs não vejam o que
está atrás de nós. Tento esconder o pânico consumindo meu corpo e meu
cérebro por causa delas.
Encontro os olhos de meu pai pelo espelho retrovisor mais uma vez
e, com um olhar, sei que ele vê o que vejo. Quero perguntar por que estão
atirando em nós, mas já sei.
Papa foi descoberto.
Envolvo meu braço em volta de Mallory e empurro seus ombros
para que sua cabeça fique abaixada, espelhando a posição de Maya e
Mindy. — Shhhh. Vai ficar tudo bem. Apenas uma pequena viagem não
programada, — digo para tentar acalmar seus medos, mas seus ombros
estão tremendo incontrolavelmente.
— Ben, — diz minha mãe, com a voz embargada.
Papa põe o pé no acelerador. — Abaixem-se! — Ele grita quando o
vidro traseiro é quebrada. Chove vidro ao nosso redor.
Tudo acontece muito rápido.
O guincho de pneus no asfalto.
Minhas irmãs gritando.
Minha mãe orando.
O som da grade de proteção de metal enquanto passamos por
ela. O impacto do cinto de segurança puxando dolorosamente contra
minha cintura.
A sensação de queda.
Queda.
Queda.
A esmagadora percepção de que esta será minha última memória.
De sempre.
Os gritos. Oh, Deus, os gritos.
A água gelada correndo para dentro da van.
Apenas um grito permanece.
O meu.
Seguido pelo som mais terrível que já ouvi, e nunca esquecerei.
O silêncio.
As horas nerds.
É assim que minhas irmãs chamam as duas horas que passo
todas as manhãs fazendo pesquisas ou conduzindo experimentos
enquanto o resto da casa está dormindo.
Não é minha culpa ser a primeira pessoa a acordar. A janela do
meu quarto é voltada para o nascer do sol. Todas as manhãs,
os primeiros raios de sol piscam em minha janela até formar um feixe
constante, aquecendo meu rosto e iluminando minhas pálpebras até
que sou forçada a reconhecer o novo dia e finalmente abrir os
olhos. Poderia colocar cortinas mais grossas na janela, mas acho
que perderia o puxão do sol de volta à consciência. Além disso, faço
muito nessas duas horas em que a casa está silenciosa, exceto por mim
e a tagarelice interminável dos meus pensamentos curiosos.
Hoje, a luz está acenando para mim do outro lado das minhas
pálpebras, balançando como se alguém estivesse brincando de pega-
pega com o sol, jogando-o de um lado para o outro. O calor que estou
sentindo não é a lembrança gentil da manhã que estou acostumada,
mas um calor escaldante invadindo meu subconsciente, me arrastando,
chutando e gritando do meu sono.
Abrir meus olhos é uma tarefa impossível. Pisco várias vezes
contra a pulsação intrusiva da luz, mas não consigo manter os olhos
abertos. Tento proteger os olhos, mas não consigo usar as mãos.
As puxo novamente.
O pânico se infiltra em meus poros e corre em minhas veias,
infectando meus sentidos.
Não consigo mover minhas mãos... porque estão amarradas nas
minhas costas.
O colchão é tão fino que posso sentir o chão duro.
Isso é estranho, meu colchão é grosso e macio.
Esta não é minha cama.
Onde diabos...
A música mais alta que já ouvi grita com raiva em meus
ouvidos. O baixo é um aríete contra minhas costelas, batendo cada vez
mais forte, como se estivesse tentando romper o meu coração em
convulsão. Tusso e cuspo. Então, tão rápido quanto veio, a música
sumiu de novo, e a luz também.
Fantasmas de luz dançam em minha visão. Quando eles
desaparecem o suficiente e minha visão fica clara, ainda não consigo
ver nada, porque está escuro como breu.
— Olá? — Pergunto para o abismo. Minha voz ecoa várias
vezes. Ambas desejando que alguém responda e orando a Deus que
ninguém o faça.
Um movimento no canto do meu olho me assusta. Suspiro,
procurando nas sombras a causa do movimento. Consigo distinguir a
silhueta de um homem grande sentado com as pernas bem abertas em
uma cadeira a apenas alguns metros de distância.
A luz do quarto muda e percebo que há uma janela bem acima da
minha cabeça. As paredes são de chapas de metal enferrujado. Deve ser
algum tipo de galpão ou depósito. O novo raio de luar expõe apenas
suas mãos, onde ele usa uma única algema em torno de cada um de
seus punhos tatuados. Há algo brilhando em suas mãos. Uma faca. E
não qualquer faca. Uma com uma lâmina longa e ameaçadora com
dentes e pontas afiadas. Ele brinca com ela, virando a ponta afiada
contra o centro da palma da mão.
O sangue corre por meus ouvidos tão alto que posso ouvir meu
pulso batendo dentro da minha cabeça latejante.
— Quem diabos é você? — Ele pergunta. Sua voz profunda é um
soco raivoso no meu peito.
— Onde... onde estou? — Pergunto, engasgando com a onda de
medo crescendo na minha garganta. — Como cheguei aqui? — Procuro
minha última lembrança e, pela segunda vez na vida, não consigo
encontrar.
Ele levanta um pequeno controle remoto do braço da cadeira, o
polegar pairando sobre um botão vermelho. — Resposta errada. —
Mais uma vez, sou atacada por flashes de luzes queimando meus
olhos e a música alternativa alta que soa e parece mais como uma
bomba explodindo do que letras em uma batida.
Para de repente, e meus ombros caem para frente, meu queixo
encontra meu peito. Acabou. Tento respirar fundo e me acalmar por
tempo suficiente para avaliar a situação, seja ela qual for.
Ouço a voz de papai na minha cabeça. Pense, Mickey. Use esse
seu grande cérebro. Você não pode sair daqui a menos que saiba como
chegou. Um experimento não pode ser conduzido e concluído a menos que
você tenha uma hipótese de trabalho.
— Quem. É. Você? — O homem pergunta novamente, estalando
os nós dos dedos.
— Por favor, não me machuque, — imploro, odiando o quão fraca
pareço. Não sou essa garota, ou pelo menos, não sou mais essa
garota. Sou alguém mais forte, mas quem? Quero gritar e não por causa
de onde estou ou por causa das luzes e da música, mas porque não
consigo organizar meus pensamentos por tempo suficiente para me
concentrar em um único que possa me ajudar agora.
Meu silêncio é recompensado com outro show de luzes e
música. Atinge meus ouvidos como se ele estivesse usando sua
lâmina. As luzes cegam através da pele fina de minhas pálpebras
fechadas. Desta vez, quando felizmente acaba, sinto que minha pele
está tentando se livrar dos meus músculos. Meus ossos
estremecem. Alguém está gritando.
Sou eu. Sou eu que estou gritando.
— Responda a porra da pergunta! Quem diabos é você? — Ele
exige. Sinto o aviso em suas palavras quando ele as lança contra mim
como granadas vivas. — Posso fazer isso a noite toda. Responda a porra
da pergunta.
O homem por trás da voz sai das sombras, para a luz da lua e
para o meu novo pesadelo vivo. Seus pés estão nus, assim como seu
peito, com exceção das tatuagens que decoram seu tórax e abdominais
musculosos. Ele é ainda maior do que sua sombra sugeria. Bem mais
de um metro e oitenta de pura intimidação. Um monstro à espreita no
quarto de uma criança. Seu cabelo é da cor de feno molhado,
indomável, e longo o suficiente para roçar as orelhas. Seu cavanhaque é
da mesma cor de seu cabelo, exceto no centro, onde a ponta é alguns
tons mais claros. Seus jeans são baixos e justos.
É o ódio nublando seus olhos que fazem meu lábio tremer
enquanto ele se aproxima lentamente da cama. Escuros e selvagens,
fervendo de raiva desenfreada.
Uma adaga de puro terror apunhala minha espinha, manchando
meu sangue com um medo venenoso.
O vilão da minha história parece um anjo zangado. Não há como
esse homem ter sido esculpido da mesma argila que o resto da
humanidade. Músculos perfeitamente delgados envoltos em pele
bronzeada e tatuada. O único lembrete de que ele é realmente humano
são as poucas cicatrizes desbotadas e irregulares sob seu olho esquerdo
e a ligeira curvatura em seu nariz.
Um arquivo de memória é aberto em meu cérebro, apresentando-
me detalhes em câmera lenta. É daquela noite. A primeira vez que
minha memória falhou.
É ele.
— Eu te conheço, — sussurro, incapaz de acreditar que é o
mesmo homem. Ele tem os mesmos olhos e cabelo, embora seus
ombros estejam muito mais largos. Sua mandíbula mais definida. A
maior diferença é a que mais importa na minha situação atual. Anos
atrás, ele tinha um traço de bondade em seus olhos.
Agora, não há nenhum.
— Você não me conhece, porra, — ele cospe. Ele me encara por
alguns segundos que se prolongam em silêncio, como se anos
estivessem passando entre nós mais uma vez.
Talvez seja o latejar na minha cabeça pelo que agora me lembro
que foi uma cabeçada, cortesia de... — Pike. Ei... seu nome é Pike.
— Parabéns, você sabe o nome do seu alvo, — ele diz
categoricamente. — Agora, me diga quem diabos você é!
A praia. As balas. O... — Você me encontrou na estrada, —
explico, procurando em seus olhos por reconhecimento. Ele chega mais
perto, pairando acima de mim, a testa franzida, uma carranca nos
lábios.
No momento em que ele percebe que me encontrou antes desta
noite, ele balança a cabeça lentamente de um lado para o outro e fica de
pé mais uma vez. Uma montanha de homem olhando para uma ovelha
em seu campo.
Seu movimento de cabeça continua. — Sempre achei que você
estivesse morta, — ele diz como se quisesse que fosse verdade.
Aquela noite. A van. Minha família.
As razões por trás de cada ação minha. Não sou mais uma versão
fragmentada de mim mesma. A lógica e a memória novamente ocupam
seu lugar de direito no trono em minha mente, usurpando o medo.
Flexionando meus dedos dentro das minhas restrições, me inclino
para frente. — Você achou errado. — Seu polegar paira sobre o
botão. — Não!
— Nome, — ele exige, mal movendo os lábios. — Não descobri da
primeira vez.
— Eu... eu sou Michaela. Mickey.
— Por que diabos você veio aqui? — Ele pergunta. — Quem te
mandou?
Minha cabeça lateja de dor, mas tenho meus motivos para não lhe
contar a verdade. Cinco deles para ser exata. — Não sei por que estou
aqui, — minto.
— Besteira!
Sou agredida de novo, gritando em agonia. Desta vez, quando
para, há um zumbido em meus ouvidos e uma vibração ecoando por
todo o meu corpo.
— Para quem você trabalha? — Ele pressiona, me levantando da
cama. Chuto e grito enquanto ele me força a sentar em uma cadeira de
madeira dura no centro da sala.
Ele paira sobre mim, me intimidando com sua proximidade, mas
não vou quebrar, não por ele. Por ninguém. Há um zumbido no ar, uma
vibração em meio à animosidade que salta entre nossos corpos.
Balanço minha cabeça. — Ninguém. Não trabalho para
ninguém. Ajo sozinha.
Ele ri, mas a maldade em sua voz me diz que acha minha
resposta tudo menos engraçada.
Seu cabelo cai sobre o rosto quando ele olha para baixo, e agora
entendo perfeitamente o significado de se olhares pudessem matar. Ele
passa os dedos pelo meu queixo e tento me afastar, mas ele me segura
com força, pressionando minhas bochechas e me forçando a olhar em
seus olhos como se precisasse que eu visse que sua determinação não é
um jogo e que ele vai ganhar. — Você vai me dizer com quem diabos
está, ou vai se arrepender. Vai ser divertido brincar com essa sua linda
pele. Cortar e fazer sangrar. Você está diferente da última vez que te
vi. Toda crescida. Curvilínea. Linda pra caralho. — Ele faz uma
pausa. — Duvido que fique tão bem quando todas as suas partes
bonitas estiverem em pedaços.
Ele tira uma faca da bota, a lâmina brilhando ao luar. Ele libera
minha mandíbula e coloca a ponta cega da lâmina em minha
garganta. — Com quem você está?
Com quem estou? Repito na minha cabeça e começo a tagarelar
uma resposta para que ele não aperte o botão de novo. Ele quer uma
verdade, então lhe dou uma. — Eu... eu tenho três irmãs, uma mãe e
um pai. Estou na Mensa3 em seu programa de elite para jovens. Eu
tinha uma bolsa de estudos para a Florida Gulf Coast University e estou
matriculada em seu programa de ciências. Dou palestras e ensino
alguns cursos de laboratório.

3 A Mensa International é a maior, mais antiga e mais famosa sociedade de alto QI do


mundo. A organização destina-se à associação entre pessoas com quocientes de
inteligência nos 2% do topo de qualquer teste de inteligência padrão aprovado.
Ele dá um passo para trás e vira de costas para mim, passando a
mão pelo cabelo em frustração. Ele gira novamente com o dedo
pairando sobre o botão.
— Não! — Grito. — Respondi à pergunta. Eu respondi, —
imploro. Meu rosto está queimando. Lágrimas escorrem pelo meu
rosto. Não por mim, mas pelas respostas que não posso lhe dar. Tanto
de frustração quanto de medo. — É a verdade. Eu juro.
— Você sabe que não é isso que estou procurando. Mas vá em
frente. Jogue seus jogos e veja onde isso te leva.
Encontro sua determinação com a minha, levantando meu queixo
do meu peito. Nossos olhos se encontram. — Faça o seu pior. Não vou
te dizer merda nenhuma.
O lado de seu lábio se ergue em um sorriso diabólico. Sua voz
está estranhamente calma. — Resposta. Errada. Porra.
Ele aperta o botão, e desta vez, a música queima em meus
ouvidos como uma tocha. As luzes agridem violentamente meus
sentidos. Rezo para que pare. Lamento, grito, imploro, choro e puxo
minhas restrições, mas não adianta.
— Por favor. Chega, — sussurro, enquanto o mundo terrível que
criei gira em torno de mim.
Para mais uma vez. — Última chance, — ele avisa.
— Eu... eu não posso. — É o mais próximo da verdade que posso
lhe dar.
Ele se inclina sobre mim, envolvendo a mão em volta da
minha garganta e apertando. — Isso não é bom o suficiente. — Seus
olhos estão injetados, seus dentes à mostra como um animal furioso.
Não posso deixar de comparar o Pike de agora com o Pike que
conheci na estrada naquela noite quando comecei a ficar fora do ar.
Tudo é confuso.
Ele me solta de repente, com um rosnado zangado. Caio da
cadeira no chão com um baque doloroso. Minha mandíbula recebe o
impacto disso enquanto suspiro por ar.
Os pés descalços de Pike se movem de um lado para o outro da
sala enquanto ele anda pelo piso de concreto. Sei que vou morrer
porque nunca poderei lhe dizer o que ele quer saber.
Não posso evitar a risada que borbulha de algum lugar lá no
fundo, ecoando na sala como se houvesse uma de mim em cada canto.
— O que é tão engraçado? — Pike ferve, apontando a lâmina para
mim. Ele me empurra de costas e fica sobre mim, um pé de cada lado
dos meus cotovelos.
Sorrio para ele. — Você vai me matar. — Minha voz é equivalente
a uma lixa.
— Ainda louca, vejo, — ele estala.
Balanço minha cabeça. — Não, você não entende. Você vai me
matar. — Outra explosão de risos me escapa. Encontro seus lindos
olhos raivosos. — O único homem que me beijou.
Capítulo Oito

Pike

O único homem que me beijou

A verdade é que se não fosse por essas palavras, ela


provavelmente estaria morta. No segundo em que cruzaram seus lábios,
lembrei-me de sentir necessidade de pressionar meus lábios nos
dela. Como ela estava vulnerável. Fraca. Quis protegê-la naquela noite.
Agora? Não tenho a porra da ideia. Tudo que sei é que a garota
que tentei salvar, a única garota que já me senti compelido a beijar na
vida, agora é minha maldita inimiga, amarrada na porra do meu
armazém como um cachorro de ferro-velho.
E ela não está dizendo merda nenhuma.
O pior de tudo?
Ainda quero beijá-la, porra.
Desnecessário dizer, o segundo dia também não está indo
bem. Mickey está ainda mais determinada a me levar ao limite de
qualquer dilema moral momentâneo que estou tendo. A verdade é que,
mesmo que ela me diga o que quero ouvir, o resultado final será o
mesmo. É assim que esta merda funciona.
Deveria apenas colocar uma bala na porra do cérebro dela e
acabar com isso. Mas, pela primeira vez na minha vida, isso não me cai
bem. Não estou tendo aquela satisfação sanguinária só de pensar em
acabar com a vida dela como faria depois de capturar um
inimigo. Parece mais como tomar um gole da melhor cerveja e descobrir
que engoliu uma vespa. É perturbador. E se ela ainda estiver
viva? Também dói pra caralho.
Mickey. O nome dela é Mickey. Ela parece tão diferente agora,
mas ainda a mesma. Ela está mais cheia. Antes toda cotovelos e
joelhos, ela agora é a imagem de uma atleta. Músculos fortes e magros
como os de uma ginasta, mas com uma quantidade absurda de
curvas. Thorne foi quem a despiu e checou seus bolsos em busca de
qualquer tipo de identificação. Não vi a extensão dessas curvas, mas
isso não significa que não penso sobre elas quando ela endireita os
ombros em desafio e sua camisa sobe até suas coxas.
Ondas escuras de longos cabelos castanhos caem sobre seu
rosto. Ela joga a cabeça para o lado para tirar os cabelos de seus olhos
grandes e expressivos marcados de vermelho. Agora mesmo, esses olhos
estão expressando um grito silencioso, mas alto, de raiva e medo porque
sua boca está ocupada com outra coisa.
Seus lábios são rosa escuro e seus dentes são retos enquanto ela
morde a mordaça. Seu nariz é pequeno e reto. Além do hematoma da
cabeçada e da veia saltando na testa, sua pele é limpa. Bem, exceto por
aquela pequena marca. Ela ainda tem aquela pequena sarda em um
lado do rosto entre o nariz e os lábios.
Claro, que ela tem. Essas coisas não desaparecem exatamente.
Ela não é a coisinha fraca que era naquela época.
Mas ela ainda é louca.
Ela também é mais. Muito mais.
Posso estar me sentindo mal por ter que matá-la e terei que matá-
la eventualmente, mas não posso dizer o mesmo sobre torturá-la.
Torturá-la é um prazer inesperado. Vê-la sofrer apenas para se
estabilizar e se preparar para outra rodada - está me afetando.
Está fazendo muito mais com a porra do meu pau.
No momento, ela está fingindo ser corajosa quando não tem
motivo para fingir. A maioria em sua situação estaria implorando por
suas vidas e se mijando agora.
Há algo intrigante em seu desafio. Algo... adorável. Estúpido pra
caralho por me trair, mas ainda... adorável.
Traço a curva esguia de seu pescoço com minha lâmina. Sua
garganta está me chamando para envolvê-la em minhas mãos
novamente, e não tenho certeza se é para levar prazer ou dor.
Possivelmente ambos.
Vai ser uma pena ter que tirar a sua vida, mas isso é obra dela.
Sem segundas chances.
Sem merda nenhuma.
Outra sessão termina com Mickey desmaiada pela tortura
sensorial e eu exausto e mais excitado do que já estive em toda a minha
vida por uma garota.
Deixo o armazém e expiro. Agachando-me, tento recuperar o
fôlego.
Que porra essa garota está fazendo comigo?
Minhas intenções com ela naquela época eram inocentes. Protegê-
la. Ajudá-la.
Agora?
São tudo menos inocentes.
Há muitas coisas que quero fazer com Mickey. Para Mickey.
Mas agora, a única pessoa de quem ela precisa de proteção sou
eu.
Minha voz interior ri. Ela sabe que uma parte de mim ainda sente
vontade de ajudá-la. Proteger a criança inocente que conheci.
Talvez ela nunca tenha sido tão inocente para começar. Houve
um tiroteio naquela noite. Alguém me atingiu na porra da
cabeça. Sempre achei que eles estavam atrás dela, mas agora vejo que é
mais provável que estivessem vindo por ela. Para protegê-
la. Possivelmente de mim.
Porra. Quando se trata dessa garota, meus instintos estão em
conflito.
Um me diz para punir.
O outro para proteger.
Apenas um pode vencer.
Quatro dias e ainda sem progresso. Achei que ela estava fingindo
ser corajosa, mas se esse fosse o caso, ela já teria cedido. Ela não está
fingindo. Ela é muito corajosa.
Ela ainda insiste que peguei a pessoa errada. Que ela não é quem
estou procurando. Que ela não trabalha para ninguém. Que ela nunca
vai me dizer merda nenhuma. Blah. Blah. Que ela tem família e está de
férias. Blá, blá, blá. Isso foi o que ela me disse anos atrás. Então era
mentira? Conheço besteira quando ouço, mas há algo sobre ela que faz
com que um pouco de dúvida se insinue em meus pensamentos de que
um pouco disso é verdade.
Ela não é o soldado típico que estou acostumado a interrogar, e
me pergunto quais seriam seus motivos para se envolver com quem
quer que esteja decidido a destruir minha vida.
Quase a admiro. A maneira como ela me desafia a fazer o meu
pior com seus malditos olhos escuros faz meu coração disparar e meu
pau pulsar.
Fico animado quando entro na sala, sem saber que coisa corajosa
ela vai dizer a seguir. Sua bravura é tão erótica quanto enlouquecedora.
Mickey pode precisar de um pouco mais de sutileza. Vou ter que
descobrir as motivações por trás de suas ações antes que ela
desmorone.
Mas ela vai desmoronar.
Todos fazem.
Capítulo Nove

Pike

Nine levanta os olhos de seu laptop quando entro em meu


escritório depois de outra tarde decepcionante, mas divertida com
Mickey. Ele está sentado na minha mesa, seus dedos voando pelo
teclado. É útil ter um amigo hacker. — Não acredito que você conhece
essa garota, — diz ele.
— Não a conheço, — argumento. — Eu a encontrei uma vez e a
levei para casa. — Puxo uma camiseta branca e afundo na cadeira em
frente a ele.
— Isso foi há quatro anos, você disse? — Ele coça o queixo. — E
foi só isso que você fez? Só a levou para casa?
Suspiro, sabendo aonde ele quer chegar. — Posso tê-la beijado.
Ele estala os dedos e sorri. — Eu sabia disso, porra.
Reviro meus olhos e coloco meus pés sobre a mesa. — Fiz isso
para calá-la. Ela estava divagando sobre alguma bobagem maluca, e
então parecia assustada e talvez precisasse de uma distração, então a
distraí.
Nine volta para seu laptop. — Talvez, se você fizer isso de novo,
ela fale.
Pensei sobre isso. Muito. — Cale a boca. — Aponto para
seu laptop. — Você vai me dizer o que encontrou ou não?
— Acabei de puxar alguns arquivos dela. — Ele bate algumas
teclas. — Lá vamos nós. Michaela Lovejoy.
— Lovejoy? — Questiono. — Nem parece um nome real. — Ainda
assim, por incrível que pareça, se encaixa nela.
— Se já acabou de zombar do sobrenome da sua prisioneira... —
Ele aperta os olhos para a tela. — Puta merda. Você nunca vai acreditar
nessa merda.
— O que? — Pergunto, sentando-me ereto.
Os olhos de Nine se movem rapidamente da esquerda para a
direita enquanto lê. — Diz aqui que ela se formou no ensino médio
aos quatorze anos. Faculdade aos dezessete com duplo mestrado em
neurociência comportamental. Ela ingressou na Mensa aos dez anos,
com uma pontuação de QI de 160.
— Isso é alto? — Pergunto, não sabendo nada sobre pontuações
de QI.
— Para as crianças, é o máximo que você pode marcar. — Nine
esfrega a mão sobre a boca aberta, e me irrita que ele esteja
impressionado com a garota amarrada à porra da minha cama.
Ele deve confundir minha irritação com confusão, porque
continua: — Pense desta forma: eu tenho 135 que é bem acima da
média, e Albert Einstein tinha 160. Ela alcançou isso aos dez anos.
— Ela disse que é professora. Dá palestras ou alguma merda, —
ofereço.
Nine examina a tela. — Sim. Ela era uma professora. Ela não é
apenas Michaela Lovejoy. Ela é a Dra. Michaela Lovejoy Sc.D. — Ele
diz, com a boca aberta. Seus olhos em mim. — É uma doutora em
ciência.
— Sei disso, — murmuro.
Eu não sabia disso.
Minha escolaridade consistia em nunca ir a nenhuma aula,
chutar em todos os meus testes e, finalmente, abandonar o colégio
antes do final do primeiro ano.
Levanto e contorno a mesa, olhando para a tela sobre o ombro de
Nine e para uma foto de Mickey. Ela está sorrindo e sem machucados,
mas não há dúvida de que a garota com o jaleco é a mesma garota
no meu armazém. — O que você quer dizer com era uma professora?
— Foi porque ela sumiu do radar alguns anos
atrás. Desaparecida. Ela não tem mídia social, nem presença
online. Nem mesmo uma multa de estacionamento, e sua carteira de
motorista expirou há seis meses.
— E a família dela? Ela está sempre divagando sobre eles. Você
pode descobrir alguma coisa sobre eles?
Ele aperta algumas teclas. — A família dela é... foda-se. — Ele
assobia, recostando-se na cadeira e cruzando as mãos atrás da cabeça.
— A família dela é o quê? — Odeio ter que insistir para ele me
dizer as merdas. Eu mesmo leria, porra, se soubesse que não levaria
uma hora para ler a mesma coisa que ele leva alguns segundos.
Seus olhos encontram os meus. — Eles desapareceram. Todos
eles. Ao mesmo tempo que Mickey sumiu de vista, eles também. Diz
aqui — ele rola para um artigo escrito no jornal da universidade. –– eles
desapareceram durante as férias de verão aqui em Logan's Beach e
nunca foram encontrados.
Que porra é essa? Balanço a cabeça. — Isso não pode estar
certo. Ela fala sobre eles no presente, não no passado. Eles estão vivos,
assim como ela, e aposto meu dinheiro que ela sabe onde eles estão. —
Ando até a porta do escritório e volto novamente. — Alguém se
beneficiaria se eles morressem?
— Você acha que eles fingiram suas próprias mortes?
Encolho. — É possível, se estivessem tentando cobrar um seguro
ou algo assim.
Nine leva alguns minutos para acessar alguns registros do
tribunal. — Não que possa localizar. Os pais de Mickey deviam muito
dinheiro a muitas pessoas, mas nunca foram declarados
mortos legalmente, o que precisariam para alguém receber qualquer
coisa. Eles possuíam uma propriedade de veraneio aqui em Logan's
Beach, um condomínio, bem como sua casa principal em Ocala. Ambas
as propriedades foram devolvidas ao banco. — Nine franze a testa e
mastiga a unha do polegar. — O que poderia uma garota com esse tipo
de inteligência estar fazendo misturada com os filhos da puta que tem
algum tipo de vingança contra nós?
— Não tenho ideia, — olho pela janela onde minha prisioneira
está amordaçada e vendada. — Mas vou descobrir caralho.
— Mais tortura? — Nine pergunta. — Porque, honestamente, não
sei como você pode suportar isso sozinho. Essa porra de música, ugh.
EDM já é uma tortura sem estar naquele volume. O que aconteceu com
a tortura à moda antiga, você sabe, com facas e merdas.
— Tampões de ouvido, respondo. — É assim que aguento. Tive a
ideia depois de vender drogas para garotos em uma rave. O recurso de
cancelamento de ruído é ativado quando aperto o botão.
Nine aplaude lentamente. — Estou impressionado, garoto Pikey. É
bom saber que você não é apenas um rosto bonito. Acho que Mickey
não é o único gênio na casa. — Ele cruza os pés na minha mesa. —
Então, você vai usar facas ou não? Você ainda não me respondeu.
Fecho meus olhos e me imagino cortando a pele de Mickey e
sangrando a verdade dela. Meus olhos se abrem. Balanço minha
cabeça. — Não posso desmontá-la se ainda não sei o valor dela.
Nine fecha o laptop e o enfia na bolsa. — Embora realmente goste
de sua comparação entre tortura e roubo de veículos, tenho que voltar
para minha casa e lidar com meus próprios problemas. Deixe-me saber
o que conseguiu com ela. Se você descobrir algo.
— Poe está bebendo de novo? — Pergunto. Poe é a garota de
Nine. Ela tem mais edições do que a maioria das revistas, mas de
alguma forma, até mesmo sua ansiedade nivela com Nine.
Nine suspira. — Não, é pior. Ela parou de beber. Não sei o que
fazer com ela quando não está embalando uma garrafa de vodca como
um bebê em seus braços. — Parando em seu caminho para a porta, ele
enfia a mão na maleta do laptop e tira um documento dobrado. —
Contei a Preppy o que está acontecendo. Com a pequena tripulação, a
menina. Tudo isso.
— Não estou tentando esconder merda nenhuma de seu irmão ou
de qualquer outra pessoa. Quero que ele seja informado e presumo que
você contará com detalhes não tão agradáveis o que minha vida se
tornou, — respondo.
Ele faz uma careta. — Sim, não é isso que estou querendo. — Ele
me entrega o papel, depois tira uma caixa branca de sua bolsa e a
coloca sobre a mesa. — Preppy me fez prometer dar isso a você. Confie
em mim. Não queria, mas então ele disse algo sobre ser minha única
família e me fez jurar sobre uma pilha de merdas de panquecas que
meu pau cairia se eu não te desse.
— Parece sério, — rio.
Seus olhos se arregalam. — Mais sério do que você jamais poderia
imaginar. Havia capas, pás e merdas.
— Não estou surpreso, — respondo. Porque não estou. Preppy
não é apenas maluco, ele é o rei da porra dos malucos.
Nine se dirige para a porta. — Leia e chore. Ou ria. Ou ligue para
uma linha direta de suporte.
Olho a caixa branca e desdobro os papéis. Tenho que admirá-lo, o
título é cativante e muito Preppy.
Mandamentos de um sequestrador: um guia completo para cuidar
de seu prisioneiro.
Capítulo Dez

Mickey

Me retiro para um lugar escuro. Um onde apenas minha alma


quebrada e o som de meu próprio desespero são bem-vindos. Estou me
afogando, prejudicando minha própria capacidade de me libertar da
prisão que criei dentro de mim.
Salve-me, digo a ninguém, porque a única pessoa que pode
realmente me salvar sou eu mesma, e neste momento não tenho certeza
se isso é possível.
O desespero me drena como sangue de minhas veias, levando
tudo o que tenho com ele, incluindo a vontade de viver. Sinto minha
força vital enfraquecendo, e logo, estou no chão ofegando enquanto meu
coração desacelera para um ritmo assustador que parece lutar para
bater dentro da pulsação em meu pescoço.
Tristeza sangra através de mim. Invadindo-me como um parasita,
não consigo me livrar enquanto se infiltra em meus vasos.
Diga a ele, a voz de minha irmã Maya sussurra em meu
ouvido. Diga a ele e tudo isso acabará. Ele pode te ajudar.
— Não posso, — respondo, com lágrimas escorrendo pelo rosto. —
Não posso dizer a ele. Se fizer isso, vou perder você para sempre. Todos
vocês.
Apesar do ditado, o inimigo do meu inimigo não é meu maldito
amigo. Não tenho amigos. Tudo o que tenho é lógica, minha memória e
uma forte necessidade de dar o fora daqui e terminar o que comecei.
Uma solução de cada vez. Você não faz um de seus experimentos e
apresenta tudo de uma vez, certo? Você introduz um de cada vez.
— Variáveis, — a corrijo. Maya nunca gostou de ciências, exceto
quando trabalhava com um garoto bonito como seu parceiro de
laboratório. — São chamados de variáveis.
Seja como for, você me entendeu. Não tente pensar em como você
vai sair daqui de uma vez, como se fosse um problema. Pergunte a si
mesma o que precisa acontecer antes de pensar em escapar.
Isso me atinge. — Preciso ser desamarrada.
Comece com isso, mana.
Posso fazer isso. Eu posso. Se provar que posso ser útil a Pike de
alguma forma, talvez consiga persuadi-lo a me desamarrar.
A resposta me chega no segundo em que a porta se abre,
cegando-me com a luz de fora. — Tenho uma memória fotográfica, —
deixo escapar, precisando colocar todas as minhas cartas na mesa
antes que a tortura comece e eu não consiga pensar direito.
Pike fecha a porta com um estrondo. — Por que devo me importar
se você tem uma memória fotográfica? — Ele pergunta com uma
sobrancelha levantada enquanto se aproxima. Hoje, ele não está com o
peito nu, como de costume. Ele está usando uma camisa branca com
uma jaqueta de couro preta e jeans justos de cintura baixa. Suas botas
pesadas ecoam no concreto conforme ele se aproxima.
— Pode ser útil para você. Podemos negociar. Poderia ajudá-lo
com algo, e você poderia me desamarrar, — ofereço. — Não vou tentar
escapar, — minto. — Só quero ser desamarrada. Posso te ajudar. Eu
juro.
— Não negocio com terroristas, — ele responde.
Endireitando minhas costas, limpo minha garganta seca. — Mas
os terroristas podem negociar entre si.
— Agora, você é uma terrorista? — Ele ri. — Pelo menos, você
admite.
— Você sabe o que quero dizer.
— Eu sei. — Ele balança a cabeça, — Não. Não é assim que isto
funciona. A troca é sua vida por respostas. — Ele tira a jaqueta e a
coloca em algum tipo de tanque de metal enferrujado. Ele cruza os
braços mostrando seus bíceps protuberantes. Ironicamente, a
palavra verdade está tatuada no meio de um deles.
— Não me importo com a minha vida, — respondo, sentindo o
peso das minhas palavras nos ombros. — É a menor das minhas
preocupações.
— E não me importo com sua memória. Não vejo como isso vai me
ajudar, considerando... — ele levanta o queixo. — Não ajudou sua
família.
Um raio de choque me percorre. Viro meus olhos para os dele. —
O que você sabe sobre minha família? — Pergunto.
Ele dá de ombros e puxa uma cadeira na minha frente, montando
nela com suas longas pernas, apoiando os antebraços nas costas. —
Nada. Só que ninguém viu sua mãe, pai ou mesmo a pobre Mallory,
Maya ou... Missy, é isso?
— Mindy, — fervo, odiando seus nomes nos lábios dele.
Ele estala os dedos. — Mindy, é isso. — Ele dá de ombros,
embora haja um brilho de cumplicidade em seus olhos. — Ninguém os
vê há anos. O que aconteceu com eles, eu me pergunto? — Ele
medita. Ele aponta para mim. — Você sabe? Ou talvez, você é aquela
que saiu dos trilhos e matou todos eles. Talvez, quando te encontrei
naquela noite, você tivesse acabado de estrangular cada um deles
enquanto dormiam.
Ele não está certo, mas está chegando muito perto de casa. Meu
estômago revira. Fecho os olhos e encontro o início de uma memória
que não posso reviver. Não enquanto estou com ele. Ele não pode me
ver no meu estado mais fraco. Agora não. Nunca.
— Já chega. Minha família está bem. Eles estão se escondendo
por minha causa. Por algo que fiz. Você nunca os encontrará, e nunca
te direi nada sobre eles. Isso não faz parte da negociação.
Ele tira a faca da bota e aponta para mim. — Você ainda acha que
isso é uma negociação? Que bonitinho. — Ele se levanta novamente,
me circulando lentamente. — Veremos sobre isso. Muitas vezes, as
pessoas que não querem ser encontradas ficam bastante surpresas
quando apareço em sua porta. — Ele está na minha frente agora,
olhando para mim com algo ilegível em seus olhos. Ele bate no lábio
inferior com a língua e passa o olhar pelas minhas pernas. — Me
pergunto se todas as suas irmãs compartilham seus... atrativos.
Meu sangue ferve. Lambo meus lábios secos e estreito meus olhos
para o fodido presunçoso. — Foda-se você. Deixe-os fora disso.
— Você está me ameaçando? — Ele se agacha para que fiquemos
no nível dos olhos. — Você não me deixa fora disso, então por que
deveria deixá-los fora disso? — Ele se inclina tão perto que posso sentir
sua respiração em meus lábios. — Você começou este jogo, Mic. E,
infelizmente para você, é assim que eu jogo, porra.
Ele se afasta e pega sua jaqueta, voltando para a porta.
Começo a entrar em pânico. Ele não pode ir embora. Ainda
não. Tenho que ser desamarrada. — Não posso te dizer o que você
precisa saber, mas posso te dar qualquer outra coisa. O que você
quiser! — Grito.
Ele para e se vira devagar. — O que eu quiser? — Posso ouvir seu
sorriso tanto quanto posso ver. Há uma implicação, uma insinuação em
sua voz que me faz estremecer.
— Não! — Grito, puxando minhas restrições em vão. — Isso
não. Não foi isso o que eu quis dizer! — Meus pulsos queimam contra o
metal enferrujado.
Ele se aproxima, pairando sobre mim como Zeus no alto de sua
montanha. — Uma oferta tentadora. Mas você parece tão bem
amarrada. Continue sangrando seus pulsos assim, e posso
simplesmente mantê-la afinal.
— Pulsos ensanguentados te deixam excitado, seu doente de
merda? — Chego à conhecida bifurcação da estrada onde o medo e a
raiva se encontram novamente. E agora, escolho seguir o caminho da
raiva.
Ele sorri. — Entre outras coisas.
— Como o quê? — Cuspo. — Churrasquinho de bebês?
Ele se agacha para ficarmos ao nível dos olhos. Recuo quando ele
passa o dedo pela lágrima na minha bochecha e esfrega a umidade
entre o polegar e o indicador. Ele lambe o polegar de maneira duvidosa,
e sinto que coro completamente. — Como estas.
Seguro seu olhar. — Você gosta das minhas lágrimas? —
Zombo. — Uau, seus pais devem ter abandonado você no nascimento.
Seus olhos escurecem. Ele se levanta abruptamente.
Aparentemente, atingi um ponto nevrálgico.
— Pouco tempo depois, mas não foi o meu passado que te levou a
ficar presa aqui. Foi o seu. Você não pode culpar ninguém por essa
merda além de si mesma. O que quer que eu faça com você é culpa sua
e somente sua.
Quero discutir, mas não posso. — Você está certo. É minha culpa,
— admito. — É a verdade. Existem outros para culpar por minhas
ações, mas a escolha, todas as escolhas, foram minhas.
— Então, por que você não me diz quem são esses outros, e tudo
isso acabará, — ele oferece, gentilmente. Por um nano segundo ele soa
sincero, suas palavras contendo a mais leve gota de simpatia.
Sinto outra lágrima cair. — Não posso. Já te disse. Simplesmente
não posso.
— Então, isso é obra sua. — Pike tira algo do bolso e empurra
pela minha cabeça. É uma venda. Ele abaixa sobre meus olhos. É
espessa, bloqueando até mesmo o fraco feixe de luz. No entanto, apesar
da minha total falta de visão, me encontro instintivamente virando
minha cabeça da esquerda para a direita, procurando seus passos
firmes se movendo com lenta precisão calculada de um lado para o
outro da sala. Ele está andando.
Não. Não andado
Perseguindo.
— Você está tremendo, garota, — ele murmura de algum lugar da
sala.
Claro que estou tremendo. Estou aterrorizada. O som doentio de
satisfação em sua voz serpenteia em meu cérebro. Cada palavra sua é
um golpe de aríete contra a porta imaginária que coloquei entre mim e
ele até que ela se abra. Espero que o medo opressor me aleije, mas ele
nunca chega. O que encontro em vez de medo é algo totalmente
diferente.
Minha coragem.
— Você está com medo de mim, — diz ele, soando como se
estivesse diretamente na minha frente. — Posso sentir o cheiro. Seu
medo. — O ouço inspirar profundamente.
Com uma renovada sensação de força, endireito os ombros. As
restrições em torno dos meus braços e pulsos me prendendo à cama
apertam, machucando minha pele já em carne viva. Ignoro a dor. —
Não. Eu não tenho medo de você.
— Não? Mas você deveria ter medo. — Ele está perto agora. Tão
perto que sinto sua respiração fria contra minha testa.
Levanto meu queixo em desafio e sorrio, mas é muito mais do que
apenas um sorriso.
É um desafio.
— Não, — repito sem um tremor em minha voz. — É você quem
deve ter medo.
Sorrio de satisfação, mas minha vitória dura pouco.
A música ecoa em meu crânio. A venda é arrancada da minha
cabeça enquanto as luzes me cegam mais uma vez.
Capítulo Onze

Mickey

— Já faz quatro dias, — digo a Mallory. — Quatro dias


inteiros. Não sei quais são seus planos agora, mas ele deve saber neste
momento que não vou lhe dizer merda nenhuma.
Ela aponta para a porta e ri.
— Não está ajudando, — murmuro.
A porta do compartimento se abre. Pike entra como uma nuvem
de tempestade em um dia já chuvoso, apenas para causar estragos e
caos.
Me preparo mentalmente para outra rodada de tortura
sensorial. Sento-me o mais ereta que posso, lembrando a mim mesma
que já passei por muito pior e posso aguentar muito mais. A essa
altura, estou surpresa de ainda ouvir as botas de Pike no chão.
Ou qualquer coisa nesse sentido.
— Olá, Mic, — sua voz é lenta e suave com um tom de diversão
fazendo cócegas em seu leve sotaque sulista. Odeio que ele tenha
começado a me chamar de Mic. É como minhas irmãs me chamam. Ele
não ganhou o direito de usar o apelido. Ele não é especial como elas.
Embora, ele seja único.
Jaqueta de couro suja. O cabelo loiro castanho mais longo do que
dita a moda atual. A primeira vez que o vi, anos atrás, lembro que a cor
me lembrou da nossa gata Penny. Uma mistura de rockstar,
motociclista e anjo caído... com os olhos do diabo.
— Com quem você estava falando? — Ele pergunta, fazendo seu
giro usual da ponta afiada de uma faca na palma da mão.
— Minha irmã, — respondo.
Ele olha ao redor da sala. — Engraçado, porque não vejo ninguém
aqui e a única voz que ouvi foi a sua.
— Só porque ela não está aqui, não significa que não posso falar
com ela, — argumento.
Ele assobia. — Ah, então você ainda é uma maluca. — Ele acena
para si mesmo. — Bom saber.
Prefiro ser agredida pela música do que por seus insultos. Prefiro
ferimento físico do que emocional. — Eu sou maluca? — Pergunto. —
Você é quem está interpretando o vilão neste filme. Pessoas sem
problemas mentais não mantêm as pessoas cativas.
— Tenho meus problemas, mas a insanidade não é um
deles. Você está aqui porque roubou de mim, não porque sou o louco.
Estou tão farta da sua santidade. — Não continue jogando como
se fosse o inocente em tudo isso. Você não é uma vítima, — grito,
ficando com mais raiva e mais frustrada. — Você obviamente não sabe o
que significa amar tão profundamente que faria qualquer coisa
por alguém. Qualquer coisa para proteger o que esse amor
significa. Você pode me chamar de louca porque falo com minhas irmãs,
mas não é loucura. É amor. Amor implacável, irracional às vezes,
eterno.
Pike olha para mim por um ou dois segundos com uma pergunta
não feita em seus olhos. — Não. Não sei o que isso significa. E não
quero, porra. Mas sei o que faria para punir aqueles que cruzam e
fodem com o meu negócio, e garanto que é muito mais do que qualquer
um faria pela mentira que é o amor. — Ele sorri, jogando minhas
palavras de volta na minha cara. — E isso é ódio. Ódio inflexível,
irracional às vezes, eterno.
Reviro meus olhos. — Você vai chegar à parte da tortura do dia ou
é só isso?
— Ah, a garota maluca faz piadas. Não devo estar fazendo um
bom trabalho em torturá-la se você ainda é capaz de ser engraçada. —
Suas palavras se tornam sombrias. — Terei que me lembrar de fazer um
trabalho melhor no futuro. — Ele me olha como se estivesse tentando
me entender. — Mas, por enquanto, vamos mudar um pouco as coisas.
Sinto o sangue fugir do meu rosto enquanto penso em todas as
coisas que suas palavras podem significar.
Ele vê meu pânico e ri. — Não se preocupe. Não haverá jogo de
faca hoje. Na verdade... — Ele bate na ponta do meu nariz com a
lâmina. — Decidi que vou mantê-la viva. — Ele rapidamente
acrescenta: — Por enquanto.
— Por quê? — No segundo que a palavra passa pelos meus
lábios, quero engoli-las porque soa como se estivesse questionando sua
escolha. Pressiono meus lábios para evitar que outras pulem do navio.
— Por quê? — Ele repete. Pike se agacha para que fiquemos no
nível dos olhos. Seus olhos queimando com intensidade. — Porque
vou usá-la.
Minha mente gira. Milhares de maneiras diferentes de como Pike
poderia me usar passam através do meu cérebro e nenhuma delas é
nada menos que aterrorizante. Engulo em seco. — Me usar para quê? —
Atrevo-me a perguntar.
Pike sorri, mas não é de alegria. É do tipo sombrio com nada além
de maldade por trás disso. O tipo que envia milhares de aranhas de
medo pela minha espinha. Um sorriso que veio direto das profundezas
do inferno.
— Isca.
Capítulo Doze

Mickey

— Papai, eu errei, — confesso que a minha cabeça está nadando


quando a imagem dele aparece diante de mim.
Ele sorri e aponta para a porta.
— Não, não posso sair, — respondo, puxando minhas
restrições. — Eu tentei.
Seus olhos caem para as cordas que prendem meus pulsos e
acena para eu sair como se não fizesse diferença estar amarrada a uma
cadeira. Ele aponta para a janela alta.
— Sério? Não há como eu...
Ele acena com a cabeça e sorri. Sim você pode. Eu o ouço
dizer, embora seus lábios não se movam. Você é a pessoa mais
inteligente que já conheci. Não há nada que você não possa fazer.
— Não posso fazer isso. Achei que pudesse. Achei que era
forte. Queria ser forte por você, pela mãe e pelas minhas irmãs, mas é
demais. — Lágrimas escorrem pelo meu rosto. Tenho pescado. Isso
nunca acaba bem para a isca.
Papai se agacha na minha frente. Você não chegou tão longe para
desistir agora, Mickey. Tudo o que precisa fazer é pensar... Ele se
levanta.
— Não saia. Por favor, não vá. Preciso de você, papai, —choro,
fechando meus olhos. Quando os abro novamente, ele se foi.
A porta se abre. Desta vez não há luz do dia ofuscante, apenas
céu escuro.
— Uh, com quem diabos você está falando? — Uma jovem
pergunta. Seu cabelo é de um tom laranja brilhante e não natural. Ela
está segurando uma bandeja de comida e, por baixo, uma sacola de
compras plástica está pendurada em uma das mãos.
Ela não fecha a porta.
Já que sou incapaz de fazer isso fisicamente, uma limpeza mental
das minhas lágrimas terá que ser suficiente. Fungo e respiro fundo. —
Ninguém, apenas divagando comigo mesma.
Ela olha ao redor do armazém como se esperasse que algo
aparecesse. — Você é louca ou algo assim? — Ela pousa a bandeja na
cadeira que Pike costuma ocupar durante nossas “sessões” e coloca a
sacola no chão ao lado dela.
— Isso foi o que me disseram, — respondo. O cheiro da comida
alerta todo o meu corpo para sua presença. Se minha boca pudesse
encher de água, encheria totalmente. Bebi apenas alguns goles de água
aqui e ali, e Pike me deu pedaços de uma barra de proteína. Mas há
quanto tempo foi isso? Um dia? Dois?
— Quem é você? — Pergunto. Instantaneamente, ouço a voz do
meu torturador. Quem é você? Me encolho com minha própria pergunta.
— Eu sou Thorne. Trabalho para Pike.
— Por favor, você tem que me ajudar, — imploro.
Thorne me olha e franze a testa. Há um anel conectando suas
narinas no meio como um touro. Sua blusa preta é curta, mal cobrindo
seus seios generosos enquanto mostra uma manga cheia de tatuagens
coloridas escorrendo pelo braço direito e uma argola na barriga com um
pingente brilhante que diz 666. Seus olhos estão fortemente delineados
de preto, e são verdes brilhantes.
— Desculpe, não é meu departamento, — ela fala sem rodeios.
Resmungo de frustração. — Qual não é o seu
departamento? Libertar alguém que foi sequestrado?
— Bem, aquele que é sequestrado é levado à força. Você é uma
cativa para todos os efeitos e propósitos. Você veio até aqui. Ele não foi
te procurar. Além disso, meu departamento atual é distribuição de
alimentos e produtos de higiene pessoal, embora seja
frequentemente contabilidade, manutenção de registros, vigia, vadia do
almoço, rainha das vendas pela Internet, etc., etc. — Ela acena com a
mão no ar.
Quero discutir mais com ela, defender minha causa, mas minha
boca saliva com o cheiro do que está na tigela coberta com um papel
toalha na bandeja ao meu lado. Embora, poderia ser comida de
cachorro e não importaria. Meu estômago ronca, e percebo que estou
faminta. Não me lembro da última vez que comi.
Apesar da minha fome, faço uma última tentativa. — Por favor,
ele vai me matar.
— Você fez alguma coisa para merecer ser morta? — Ela
pergunta, enfiando uma toalha de papel no topo da minha camisa.
Ótimo, ela segue as mesmas ideologias de Pike. — As ações de
alguém merecem a morte?
— Presumo que você não seja uma fã da pena de morte? Mas
pense nisso, porque todos nós fizemos algo para merecer a ira de
alguém em algum momento de nossas vidas. Tenho certeza que você vai
descobrir algo que a levou a estar aqui.
Ela levanta a toalha de papel da tigela, que percebo ser
uma espécie de canja de galinha. Meu estômago ronca tão alto que até
Thorne ouve, olhando para o meu estômago.
— Sabe, isso seria mais fácil se minhas mãos não estivessem
amarradas, — aponto.
Ela suspira e deixa cair a colher na tigela de cerâmica com um
estalo. Ela coloca a mão livre no joelho. — Seria mais fácil se você não
estivesse aqui. Já tenho merda suficiente para fazer e ser empregada da
cativa de Pike não está na porra da lista. Você quer comida ou
não? Porque seu estômago diz que sim. Posso ouvir essa merda
rosnando do meu escritório ao lado. A merda da música já é ruim o
suficiente.
Aceno e percebo que minha abordagem está totalmente
errada. Ela é obviamente leal a Pike. Só preciso encontrar as palavras
certas para perfurar sua pele tatuada e fazer com que ela me ajude. Me
liberte. Ela leva a colher à minha boca e engulo avidamente, sem
mastigar. Continuamos o processo em um ritmo frenético. Cada bocado
que enche meu estômago também alimenta meu cérebro, limpando um
pouco da névoa.
— Calma, ou você vomitará, — diz Thorne, como se soubesse algo
sobre estar realmente com fome.
— Então, você trabalha para Pike? — Pergunto entre bocados.
— Algo assim, — ela murmura.
— Você não se preocupa que isso te atinja? Que pode ir para a
cadeia por ajudá-lo? — Pergunto, comendo outra colherada do caldo
salgado junto com um pedaço de frango desfiado. — Cúmplice no
crime?
— Você deveria se preocupar em ir para a cadeia porque da
última vez que verifiquei, arrombamento é crime, mas você tinha uma
arma e assalto à mão armada vem com preço de uma porra de um
tempo difícil. — Ela me dá outra colherada. — Sei que você não
conhecia Pike. Porque se conhecesse, então saberia que ele levaria a
culpa por tudo isso antes de me deixar se atingida pela merda que ele
fez. Além disso, ele não seria pego em primeiro lugar. Estou aqui apenas
como suporte do herói ou suporte do vilão, da maneira que você quiser
ver.
Outro pensamento passa pela minha cabeça enquanto ela fala
sobre Pike com afeto em sua voz. — Então, você é namorada dele?
Ela pausa a colher no ar e franze o nariz. — Oh Deus, porra, não.
— Então por que? — Pergunto, realmente curiosa. Se ela não
está romanticamente envolvida, então por que ajudá-lo nisso?
Suas palavras se suavizam. — Devo a ele minha vida e muito
mais. É tudo que você precisa saber. Sou uma pessoa leal, e Pike
é a pessoa mais leal que já conheci. Ele não é um bom homem de forma
alguma, mas para mim, lealdade significa mais do que amor.
— Você tem família? — Pergunto.
— O que há com todas as perguntas? — Thorne está claramente
irritada. Ela coloca a colher na tigela agora vazia.
— Desculpe, simplesmente não consegui falar com ninguém
por um tempo, — digo sem adicionar, você é minha primeira
oportunidade de tentar escapar, e estou me esforçando. — Quero dizer,
qualquer outra pessoa.
Ela leva um copo d'água à minha boca e o engulo em alguns
goles. Ela enxuga a água e comida do canto dos meus lábios com um
guardanapo. Ela procura algo em meus olhos, mas não tenho certeza do
quê. — Pike é o mais próximo que tenho de família. Farei qualquer coisa
que ele pedir e até a merda que ele não me pediria. Sem dúvida. Sem
hesitação.
Agora, isso eu entendo. — Entendi. Você faria qualquer coisa pela
família. Eu também. Tenho três irmãs e dois pais e, embora eles achem
que sabem o que é melhor para mim do que eu, faria qualquer coisa por
eles. — Sorrio, mas não há felicidade por trás disso. — Pelo menos,
estou tentando fazer tudo por eles. — Suspiro. — Não está realmente
funcionando no momento.
Thorne ignora a tristeza em minha voz. — Oh, bem, então você
entende, — diz ela, levantando-se e escovando as mãos na calça
jeans. — Então você pode parar de me perguntar essas merdas.
— Bom ponto, — ofereço.
Ela desembainha uma faca da perna da calça. Recuo, quase
derrubando a cadeira. Ela estende a mão e a pega antes que caia,
colocando as pernas de volta no chão. — Calma, assassina, — ela diz,
cortando minhas amarras.
— Você... você vai me deixar ir? — Pergunto, esperançosamente.
— Não. Há segurança suficiente para mantê-la aqui sem toda a
corda queimando seus pulsos. Bloqueios. Luzes. Sirenes. Detectores de
movimento. Câmeras por todo lugar. — Ela aponta para uma luz
piscando no canto superior da sala. — Estas foram as ordens do
chefe. Alimentá-la, então desamarrá-la. Apenas faço o que me
mandam. Não faço perguntas.
Meus braços estão tão doloridos. Cada osso do meu corpo estala e
range quando os tiro de trás das minhas costas para descansar no meu
colo. Esfrego meus pulsos avermelhados. — Por que você não me
desamarrou primeiro?
— Canja de galinha quente na cara não é agradável, — ela
comenta. — Vamos. Siga-me.
— Onde estamos indo? — Pergunto. Fico de pé, mas minhas
pernas cedem debaixo de mim. Caio de joelhos.
— Aqui, — ela diz, envolvendo um dos meus braços em volta de
seu ombro. — Vamos lá para cima.
Ela pega o saco plástico que trouxe com a outra mão e me ajuda a
levantar e sair pela porta. O ar da noite é espesso e quente e é tão bom
estar do lado de fora, quando muitas vezes pensei que nunca estaria
novamente. — Você vai me dizer para onde estamos indo? — Pergunto
novamente.
— Você quer estar em qualquer lugar além da porra da garagem?
— Ela responde.
— Touché.
Caminhamos lentamente pelo beco, passando por alguns gatos
vadios que miam para nós ao longo do caminho. — Xô, — diz Thorne,
chutando para afastá-los, mas sendo gatos, é claro que eles não
ouvem. Em vez disso, se sentam e nos observam, seus olhos nos
seguindo até que estejamos em algum lugar que reconheço.
A porta dos fundos do Pike’s Pawn.
Thorne pressiona alguns botões no teclado ao lado da porta e
a fechadura se abre. Ela gira a maçaneta e empurra com o pé para abri-
la, virando-nos de lado pela porta. Passamos pelo pequeno escritório,
onde todo esse drama mudou para pior, pelo menos para mim, e
seguimos por um depósito até o pé de uma escada alta e estreita. —
Suba, — diz ela.
Lanço um olhar de que não há nenhuma maneira que eu possa
fazer isso.
Ela revira os olhos e remove meu braço de seu ombro. — Vou
ficar atrás de você o caminho todo e me certificar de que não caia. Um
passo de cada vez, como dizem no NA4. Vamos.
Não pergunto sobre a parte do NA porque estou muito ocupada
tentando erguer meus pés alto o suficiente para dar cada passo quando
os músculos da coxa estão tremendo com o esforço. Quando meu pé
pousa em um degrau, Thorne me empurra para frente. Degrau.
Empurrão. Degrau. Empurrão. Repetimos isso até chegar ao topo da
escada, apenas dez minutos depois.
Thorne me ajuda a passar por uma porta em um apartamento
escuro e depois por outra porta em um quarto pequeno, mas limpo.
— Este é o seu quarto? — Pergunto.
Ela fecha a porta e digita um código em um teclado na parede,
igual ao da porta dos fundos, e uma fechadura se fecha. — Não, este é o
apartamento de Pike. — Ela me guia para outra porta. — Aqui, apoie-se
ai, — ela diz, deixando-me em outra porta. Ela acende uma luz
revelando um banheiro pequeno, mas limpo, que precisa de uma
reforma com azulejos amarelos no chuveiro e uma pia de porcelana
rosa.
Ela coloca a sacola plástica no balcão e tira uma calça de ioga
preta e um suéter cinza claro, colocando-os na parte de trás do
banheiro. Ela pega um monte de produtos de higiene
pessoal. Sabonete. Xampu. Uma escova e pasta de dentes. Ela os
arruma no chuveiro e no balcão.
Ela cheira o ar ao meu redor e aperta o nariz. — Recomendo que
passe shampoo e enxágue pelo menos duas vezes. Você acha que
consegue?
Aceno, empurrando a parede e testando minhas pernas. Elas
estão formigando com a sensação de alfinetes e agulhas, mas estão
resistindo. — Obrigada. — Estico meus braços acima da minha cabeça

4 Narcóticos Anónimos.
e inclino meu pescoço para os dois lados, estralando as juntas rígidas
novamente. — Sério. Obrigada, Thorne.
Seu sorriso é desconfortável e tenso quando ela sai. Ela fecha a
porta e a fechadura.
Olho para o banheiro onde Thorne colocou todas as coisas que
vou precisar para um banho. Sufoco um gemido ao pensar na água
quente correndo sobre meus músculos doloridos e decido que é
exatamente o que preciso para fazer meu sangue fluir antes de poder
avaliar a situação mais a fundo e planejar minha fuga.
Sorrio para mim mesma. A etapa um foi realizada. Estou
desamarrada. Maya ficará orgulhosa.
Entro no chuveiro de azulejos amarelos e ligo o jato. Tiro minha
camiseta e calcinha, gemendo com a dor em meus ossos. É um
processo lento, mas consigo. Amasso as únicas roupas que usei em
cinco dias e as jogo no chão ao lado do vaso sanitário. As jogaria em um
recipiente de descarte de risco biológico se pudesse, elas cheiram muito
mal, mas infelizmente este não é um laboratório, e não há um acessível.
Apoiada no balcão, olho no espelho. Minhas bochechas estão
fundas e meus olhos têm olheiras. O hematoma da cabeçada de Pike na
minha testa está desaparecendo, embora nunca tenha percebido como
estava ruim para começar. Meu cabelo escuro está oleoso, salpicado de
sujeira e poeira da garagem. Está tudo agrupado em mechas grossas,
projetando-se em todas as direções como uma Medusa suja.
O vapor cobre o espelho e distorce minha imagem
desgrenhada. Solto o balcão e lentamente vou até o chuveiro, entrando
no calor. Sigo o conselho de Thorne e lavo meu cabelo duas vezes,
lavando uma terceira para garantir. Coloco o condicionador no meu
cabelo e não o enxáguo até terminar de esfregar meu corpo com uma
toalha e uma barra de sabão. Tem cheiro de pepino e frutas, mas
qualquer cheiro é melhor do que vários dias sem tomar banho e sobre
sua própria sujeira.
Quando termino, fecho a água e procuro cegamente a toalha no
balcão, apenas para tê-la colocada em minhas mãos. Suspiro e
rapidamente enxugo a água dos meus olhos. Olho para cima
encontrando Pike olhando para mim através do vapor. — Você será uma
isca muito bonita, — diz ele. Sua voz amplificada no pequeno banheiro.
Rapidamente enrolo a toalha em volta dos meus ombros, com
cuidado para cobrir meu ombro esquerdo, embora deixe o restante de
mim nua da parte inferior dos meus seios para baixo. Estou nua diante
dele, aberta para seu escrutínio de olhos escuros. Nunca estive nua na
frente de um homem antes, muito menos esse tipo de homem. Papai
nunca me viu nua, provavelmente nem quando era um bebê.
— O que você quer? — Pergunto, pressionando minhas costas
contra a parede de azulejos para colocar tanto espaço entre nós quanto
possível.
Pike passa o olhar dos meus pés para entre as minhas pernas e
depois para os meus seios. — Com medo de que eu a mate e que a
comida e o banho seja uma situação de cadáver limpo e última refeição?
— Ele pergunta.
— Eu não estava pensando isso até você mencionar, — respondo.
Ele ri. — Não vou te matar. Não hoje, de qualquer maneira. Tenho
um uso melhor para você agora que como um cadáver sexy pra caralho.
Sexy pra caralho? Cadáver?
Suas palavras vibram através de mim de uma maneira que não
consigo identificar com nenhum sentimento ou emoção.
— Isso foi uma ameaça ou um elogio? — Pergunto.
Ele sorri, cruzando os braços sobre o peito. — Talvez ambos. —
Ele inclina a cabeça para o lado e seus olhos caem para o meu peito
mais uma vez. — Talvez nenhum dos dois.
— E ... para quê, exatamente, você vai me usar? — Indago,
pressionando a parede molhada atrás de mim.
Ele entra no chuveiro totalmente vestido, mas já estou contra a
parede. Não há para onde ir. Ele me prende, levantando meu queixo
para encontrar meus olhos. — Isca.
Ele me deixa parada no vapor, meu corpo inteiro tremendo. — A
porta está destrancada. Vista-se e me encontre na cozinha.
— Por quê? — Pergunto, sem fôlego.
Ele se vira e me encara. — Por quê?
— Por que se preocupar com isso? Não vou te dizer nada. Se você
vai me torturar um pouco mais, ainda assim não vou te dizer,
então você pode muito bem me matar agora e acabar com isso, —
minhas palavras são corajosas, mas por dentro, sou uma criança
trêmula vacilando por uma mão levantada.
— Você entendeu mal o ponto da tortura, então.
— Entendo perfeitamente bem, — digo, endireitando meus
ombros. Mordo meu lábio para evitar que ele trema, sibilo quando movo
a crosta em volta dos meus lábios, e ela puxa dolorosamente minha
pele.
Ele volta até mim e me encara, parecendo genuinamente
desapontado. — Desistindo tão cedo?
Preparo meus nervos e tento fingir que sua proximidade não envia
uma onda de medo por todo o meu corpo. — Não, é isso que estou
tentando te dizer. Não estou desistindo. Nunca vou desistir.
Ele volta para dentro do chuveiro e passa a ponta dos dedos pelo
lado do meu rosto. Meu corpo esquenta e não do vapor. Me afasto de
seu toque, com raiva dele, da minha reação e da própria biologia por
causar essa reação.
A expressão de decepção é substituída por um novo brilho em
seus olhos. Sua risada vibra em meu peito. — Bom. Você parece o tipo
que não desiste de uma boa luta. — Ele se inclina e roça seus lábios
contra meu pescoço enquanto fala e a onda de medo se transforma em
um furacão de biologia e hormônios, me atingindo com uma força que
torna difícil ficar de pé. Estou molhada e não tem nada a ver com meu
banho e tudo a ver com ele. — E estaria mentindo se dissesse que não
estou ansioso por isso.
Capítulo Treze

Mickey

Depois de finalmente me acalmar o suficiente para parar de


tremer, enrolo a toalha em volta do meu corpo com força e escovo os
dentes três vezes antes de passar um pente de plástico pelo
cabelo. Demora um pouco para soltar os nós, puxando dolorosamente
meu couro cabeludo até que o pente não tranca mais e os nós estejam
suficientemente lisos.
Coloco a calça de ioga e o suéter que Thorne deixou para mim e
reprimo um gemido ao ver o tecido macio e limpo roçar suavemente
minha pele. O suéter é grande, mas confortável. A calça ficou perfeita,
abraçando meu corpo sem ficar muito apertada. Estar limpa e vestida
novamente me dá uma resolução totalmente nova. A água quente do
chuveiro fez com que o formigamento em meus braços e pernas se
dissipasse, e agora, estão apenas doloridos, mas não é nada que não
possa controlar.
No momento em que volto para o quarto, me sinto mais afiada e
mais parecida comigo do que há dias.
O quarto em si não é o que espero de Pike. Embora, nada além de
uma masmorra com dragões cuspidores de fogo e uma coleção de bolas
de correntes não seria o que esperava para ele. É tijolo em todos os
lados, pintado de branco para dar ao quarto um toque mais aberto e
moderno. A cama é uma queen simples, com um edredom cinza e duas
almofadas brancas simples. Uma das mesinhas de cabeceira nada mais
é do que um caixote de madeira de cabeça para baixo, abrigando uma
variedade de cintos e trocados junto com uma garrafa vazia de
uísque. A outra mesa de cabeceira não é realmente uma mesa de
cabeceira, mas um cofre com fechaduras digitais. Os interruptores
elétricos são do tipo conectados a tubos de metal que alojam a fiação
que sobe pelas paredes e ao redor do teto.
Quando termino de examinar o quarto, fecho meus olhos e respiro
fundo.
Frequentemente, a imagem em minha mente se destaca mais
claramente do que o visual que consigo com meus olhos, e se tiver
alguma chance de escapar, preciso ver tudo.
Em minha mente, vejo a janela e percebo que foi selada com
tinta. As paredes da sala são de tinta verde-menta desbotada sobre
blocos de concreto. Várias rachaduras percorrem os vãos do chão ao
teto. A porta está... espere. As paredes. As rachaduras.
Abro os olhos e corro até a parede, onde um dos blocos tem
rachaduras em todos os lados. É o único na sala assim. Empurro o
bloco e envio uma prece silenciosa em agradecimento a qualquer
divindade que tornou isso possível quando ele se move. Enfio meus
dedos através das rachaduras e puxo o bloco de um lado até que ele
deslize o suficiente para que possa alcançá-lo. Imagino encontrar
apenas poeira até avançar um pouco mais e as pontas dos meus dedos
tocarem algo frio e metálico.
Deslizo para trás e envolvo meus dedos em torno dele, tirando
minha mão até que esteja livre da parede.
Olho para baixo e sorrio para a faca brilhando em minha mão.

A cozinha de Pike é pequena, pequena demais para duas pessoas


trabalharem ao mesmo tempo, mas limpa. As paredes são brancas, mas
um branco esmaecido, como se os anos de cores de tinta abaixo
estivessem tentando abrir caminho para serem vistos.
É uma cozinha estilo galley5 com uma pequena janela no final do
corredor estreito que deixa entrar luz apenas o suficiente para
distinguir as sombras das barras a cobrindo do outro
lado. Emoldurando a janela há um par de cortinas xadrez amarela,
marrom e laranja, amarradas com borlas desbotadas apenas por dentro
voltadas para o sol, me dizendo que as cortinas estão sempre na mesma
posição.
De um lado tem uma mesa em forma de meia-lua
empurrada contra a parede, sua tinta marrom lascada nas bordas. Três
bancos sem encosto com almofadas laranja-escuras desbotadas no meio
pelo uso estão embaixo. O outro lado da cozinha é forrado com balcões
de madeira escura com armários na cor mostarda onde está embutida
uma pequena geladeira, uma pia de aço inoxidável com uma bacia e um
micro-ondas de bancada preto. Pendurado acima do backsplash6 de
ladrilhos cor de lama existem dois armários brancos modernos com
uma porta de vidro deslizante horizontal escuro de um lado.
As paredes da sala são de um laranja forte. Duas plantas
artificiais em vasos estão em uma mesa redonda com uma perna
quebrada ao lado da grande janela. Um futon ocupa a maior parte da
parede ao lado dela, coberto com um edredom cinza simples e
uma pintura tão escura que acho que é apenas um pedaço emoldurado
de tela preta.
Um aparelho de ar condicionado fica dentro da janela, soprando
as cortinas de renda amarelada como um fantasma sujo assombrando o
lugar até que alguém o resgate com um pouco de alvejante.
Na parede oposta há uma TV de tela plana, para a qual presumo
seja um dos cinquenta controles remotos na mesa de centro, e uma
estante de livros cheia de centenas de títulos e duas prateleiras de
discos, cada uma coberta com plástico.
— O que você esperava? Uma espelunca? — Pike pergunta,
tirando-me dos meus pensamentos.

5 Cozinha de navio
6 Backsplash é a parede que fica atrás da pia e do fogão.
Me viro para enfrentar seu sorriso e respiro fundo, tentando não
parecer tão abalada quanto me sinto. — Não esperava estar aqui, com
certeza. — Continuo minha expedição como se não me importasse em
ter sido pega bisbilhotando ou que sua presença arrepiasse meus
braços. Ele me trouxe aqui e de acordo com sua lógica sobre
sequestradores e cativos e quem começou o quê, me leva a acreditar
que o que estou fazendo não é intrusivo.
— Engraçado, parece que você planejava estar aqui. Ou você e os
outros capangas simplesmente decidiram que não me roubaram o
suficiente e foi mais como uma coisa de última hora.
Abro a boca para responder e fecho com a mesma rapidez. Ele me
pegou nessa.
Encolho os ombros, continuando a fingir que não estou afetada
por sua presença.
— O gato comeu sua língua, Mic? — Ele pergunta, encostado no
balcão com os cotovelos.
— Gosto de gatos, — respondo, parecendo entediada. —
Fiel. Autolimpante. Afetuoso. Você tem um monte deles no beco. Eles
parecem famintos. Você deve alimentá-los.
— Preciso de mais do que fome como motivo para alimentar
alguém, — ele responde. Seus lábios se contraem. — Você gosta de
gatos? — Ele pergunta como se não pudesse acreditar que alguém
pudesse gostar de gatos.
— Amo gatos, — respondo, abrindo e fechando um dos armários
da cozinha sem realmente olhar para dentro.
Olho para Pike, que está tentando não sorrir e percebo o que está
fazendo.
— O que? — Pergunto, de pé em frente ao balcão dele. — Sem
comentário sexista sarcástico sobre como você gosta de boceta7?
Seus olhos seguram os meus. — Nah, muito fácil.

7 No original está com pussy que pode ser bichano ou boceta. A autora fez um
trocadilho.
— Ah, então você gosta de um desafio. — Aponto, espelhando
sua posição com meus cotovelos no balcão.
Ele sorri. — Tentando me entender, Mic?
— Não. Já desvendei você. — Aponto para o sofá de couro preto
gasto na pequena sala de estar. — Solteiro. — Aceno com a mão para o
próprio Pike, para sua blusa branca apertada envolvendo seus
músculos abdominais como uma daquelas máquinas de embalar a
vácuo dos infomerciais. É ridículo como ele é lindo por fora. A máscara
perfeita para esconder o que ele realmente é por dentro.
Pike limpa a garganta, sorrindo quando me pega olhando.
Afasto meu olhar, sentindo o rubor subir em minhas
bochechas. — Você cuida de si mesmo. Obviamente treina para ficar...
uh, assim. Você come muito bem. — Aponto para o cigarro apagado
pendurado em seus lábios. — Mas você também não segue as regras e
está disposto a arriscar, sabendo muito bem as consequências.
Pike não está impressionado. — Então, acho que eles estão
distribuindo boas pontuações de QI para qualquer pessoa com olhos na
cabeça?
Considero um desafio cavar mais fundo. Ele obviamente fez uma
pesquisa sobre mim, mas a única pesquisa que tenho disponível
quando se trata dele é este apartamento.
A estante do canto está completamente vazia. — Inteligente e
astuto, mas não é inteligência vinda de livros. Direi que você não
terminou a escola, não porque não é inteligente o suficiente, porque é,
mas porque faltou interesse. — Vejo uma nota no balcão. É para
Thorne sobre o inventário. As letras quase não são legíveis. O inventário
está escrito incorretamente e em letras minúsculas, sem vírgulas ou
pontos. Sorrio com confiança. — Além disso, em relação à escola, acho
que a disgrafia não ajudou.
Pike inclina a cabeça e arranca o cigarro dos lábios. — A porra do
quê?
Explico. — O que a dislexia é para a leitura, a disgrafia é para a
escrita. É uma deficiência visual em que a pessoa tem dificuldade em
usar letras maiúsculas ou pontuação de forma consistente. Adultos que
não foram diagnosticados quando crianças tendem a usar letras
minúsculas, além de evitarem a pontuação ao mesmo tempo. — Deslizo
o bilhete para ele.
— Em primeiro lugar, qualquer um poderia me dizer que sou
solteiro e inteligente. Isso não significa que você me desvendou, — ele
aponta para mim com o cigarro. — E fui diagnosticado como disléxico
desde criança. Nunca ouvi falar da outra coisa, mas parece certo. Isso
foi…
— Impressionante?
— Irritante, — ele rebate.
Um novo tipo de desconforto torna sua presença conhecida. Como
se o universo estivesse totalmente ciente de que ter esse tipo de
conversa fácil com o homem que está me torturando vai contra tudo
que é natural ou certo no mundo. Faço uma nota mental para informar
ao universo que estou plenamente ciente dessa estranheza e pergunto
como resolver.
Lembro-me da faca enfiada na parte de trás da minha calça.
Assim que escapar.
Meus pés descalços raspam no chão áspero. Olho para baixo para
ver que metade do piso da cozinha foi destruído, e há várias caixas
sinalizadas “AZULEJO” contra a parede sob a pequena janela da
cozinha.
— Reformando? — Indago.
Ele assente. — Sim, quando comprei o prédio, havia uma
inquilina nele. Tive que esperar até que ela partisse para me mudar e
começar a reforma.
— Como um senhor de terras. Um assassino, um torturador, um
traficante de drogas e um faça-você-mesmo. Quem teria pensado? —
Pisco meus cílios.
— Espertinha, — ele resmunga. Ele se endireita e, pela primeira
vez, percebo algo diferente de raiva em seus olhos. Ele parece
cansado. O tipo de cansaço que desgasta a alma e não apenas o corpo.
O mesmo tipo de cansaço que sinto.
Limpo minha garganta. — Uh, sua inquilina. Ela se mudou para
um lugar melhor?
Interiormente, faço uma careta com a pergunta estúpida e
irrelevante.
Pike passa a mão pelo cabelo e o sacode. — Acho que você pode
dizer isso se acredita na vida após a morte. Não sei. Você terá que
perguntar ao filho dela. Ele ainda vem na loja de vez em quando.
Não ouço o resto porque estou encolhendo tão forte que estou
preocupada em implodir.
Ele percebe meu desconforto e sorri, apoiando-se no balcão mais
uma vez. — Não me diga que a gênia científica tem medo de fantasmas?
Lentamente, levanto meu queixo para ver a diversão em seus
olhos. Bufo. — Escute, sou uma pessoa lógica, e fantasmas não têm
lugar na lógica. Sei disso. Meu cérebro sabe disso. Mas saber que não é
lógico não impede o medo, porque o próprio medo não está enraizado na
lógica. Portanto, — respiro fundo e estremeço. — Odeio fantasmas,
porra. — Assinalo uma lista em meus dedos. — Junto com filmes de
terror. Qualquer menção a cemitérios. Vida após a morte. Casas mal
assombradas. E romances de Steven King.
Ele ri, e todo o meu corpo congela porque sua risada é profunda e
genuína e, embora odeie admitir, bonita.
— Você venceu, — digo. — Chega de conversa sobre fantasmas.
— Você nem vai me perguntar se ela morreu aqui? — Pike
pergunta, me incitando. Não me surpreende que ele esteja gostando
desse tipo de tortura tanto quanto gosta dos outros tipos.
Levanto minha palma. — Não, não me ocorreu perguntar. Não me
importo.
— Sério? — Ele pergunta, parecendo genuinamente confuso. —
Isso é o que a maioria das pessoas pergunta de cara quando vem aqui.
— Você quer dizer a maioria das garotas que vêm aqui, — corrijo.
Ele não responde, e não precisa. Posso ver com meus próprios
olhos e, como uma mulher heterossexual que atualmente não está
morta, é tudo que preciso para saber que estou certa. E por causa da
minha maldita memória fotográfica, muito depois que esse pesadelo
acabar, se acabar, poderei olhar cada detalhe de sua perfeição bárbara
pelo resto dos meus dias e relembrar cada segundo deste inferno em
vida.
— Não sou a maioria das pessoas ou a maioria das garotas. —
Minhas palavras são um lembrete para mim mesma das provocações a
que fui submetida na escola.
Muito inteligente. Muito nerd. Exibida. Pária.
De repente me sentindo claustrofóbica na pequena cozinha, passo
por Pike, que não faz nenhum esforço para se afastar. Quando me viro
de lado e passo por ele, meus seios roçando levemente suas costas,
estou muito certa que ele pode sentir o calor que estou sentindo a partir
da porra dos meus dedos dos pés.
Quando estou na segurança da sala de estar, me viro e encontro
Pike me olhando como se me visse pela primeira vez. Seus olhos me
percorrem do rosto pelo meu corpo lentamente, me aquecendo e me
constrangendo até alcançar meus dedos dos pés e depois sobe
novamente como se não se importasse em ser pego olhando para
mim. Como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. — Não,
você não é, — ele murmura.
— O que você disse? — Não sei se o ouvi bem.
Pike dá de ombros, — Absolutamente nada. Você ainda está
ouvindo coisas, ou talvez, seja sua irmã de novo. — Ele dá aquele
sorriso irritante que faz uma covinha aparecer em sua bochecha
direita. O homem robusto com cicatrizes nos nós dos dedos de repente
parece um menino, e se não soubesse em primeira mão o que ele é
capaz de fazer, poderia até chamá-lo de sexy.
Porra.
— Ou talvez seja o fantasma? — Ele provoca, balançando as
sobrancelhas. — Porque Edna é conhecida por vagar por aqui em...
Cruzo meus braços sobre meu peito. — Não tenho medo de
fantasmas, — respondo. Tenho medo de você.
Pike se aproxima de mim e coloca as mãos nos meus ombros. —
Preciso que você faça algo por mim. — Seu tom não é uma exigência ou
uma ordem. — Feche seus olhos. — É um pedido suave.
— Não sei que tipo de doente...
— Apenas feche seus olhos. É uma experiência para ver como isso
funciona.
Ansiosa para acabar com tudo isso e ainda mais ansiosa para
saber o que exatamente é isso e voltar a planejar minha fuga, obedeço e
fecho meus olhos, respirando fundo.
O que ele diz não é nem de perto o que esperava. — Como é
minha cozinha?
— O que? — Pergunto, meus olhos se abrindo novamente.
Seu rosto está sério, seus lábios em uma linha reta. — Feche os
olhos, — diz ele, desta vez com um pouco mais de exigência em sua voz.
Fecho de novo e ele repete a pergunta. — Como é a minha
cozinha? Em detalhes.
Torço meu nariz. — Feia.
Seus dedos apertam meus ombros. — Diga-me como você vê isso
agora. Da sua memória.
Este pedido é fácil para mim. Sempre foi. Tão fácil quanto olhar
para uma imagem em suas mãos e recitar o que você vê. Dou-lhe todos
os detalhes completos, com cortinas de borla desbotada sobre a
pequena janela e uma descrição de cada lasca e arranhão no balcão de
madeira as barras tortas do lado de fora da janela. — Pelo menos, são
barras ornamentadas e têm um pouco de charme. O design da flor de
lis em metal do que é basicamente uma gaiola sobre a janela é um
toque agradável no que diz respeito às gaiolas decorativas. Mas as
grades nas janelas realmente precisam ser decorativas? É uma espécie
de oximoro, se você me perguntar. Como floreiras no topo de uma pilha
no depósito de lixo.
Por alguns segundos, há apenas silêncio. Abro os olhos para
encontrar Pike olhando para mim com perplexidade em seus olhos.
— Passei ou falhei? — Pergunto, sem saber qual era a hipótese
desse experimento para começar.
O rosto de Pike voltou a ficar frio e sem emoção. — Ambos.
Suas mãos deslizam dos meus ombros, pelos meus braços, em
seguida, ao redor da minha cintura, me puxando com força contra seu
peito. Ele deixa cair sua mão no topo das minhas coxas, então mais
alto, massageando minha bunda. — O que você está fazendo? —
Sussurro, sentindo meu corpo queimando de vergonha, choque e
porra de biologia.
Seus lábios roçam minha orelha. Um arrepio de corpo inteiro
percorre minha pele.
Pike tira uma de suas mãos da minha bunda e passa os nós dos
dedos pelos arrepios no meu antebraço. A outra mão se move da minha
bunda para a parte inferior das minhas costas, empurrando a parte de
trás da minha camisa. Estou imóvel como uma estátua.
— A questão é, Mic, que porra você pensa que está fazendo? —
Ele tira a mão das minhas costas e a outra agarra meu antebraço com
força. — Você não vai precisar disso. — Ele empurra meu braço com
um olhar de desgosto torcendo seu rosto bonito.
Ele se afasta e meu olhar cai para sua mão.
A mão que agora está segurando minha faca.
A merda das câmeras.
Mandamentos de um sequestrador

O GUIA COMPLETO PARA CUIDAR DO SEU CATIVO


Por Samuel, filho da puta, Clearwater

Você se encontra na posição de ter que torturar e cuidar de um


prisioneiro relutante? Você está planejando conseguir um cativo relutante
em um futuro próximo? Ou talvez você esteja apenas sonhando acordado
com o dia em que terá seu próprio prisioneiro relutante.
Pois bem, essas diretrizes são para você.
Tendo sido sequestrador e prisioneiro, desenvolvi essas diretrizes
infalíveis para garantir uma experiência bem-sucedida para o
sequestrador (você), ao mesmo tempo em que tenho em mente as
necessidades do infeliz ao seu alcance.
Não sou apenas o presidente, pessoal. Eu também sou um membro
filho da puta.

DIRETRIZES
* Não abandone seu prisioneiro. Outra pessoa além do
sequestrador (você) deve estar ciente do paradeiro de seu prisioneiro o
tempo todo, no caso improvável de morte prematura do sequestrador. E
lembre-se, um prisioneiro solitário é um prisioneiro que não coopera. Eles
já estão sendo torturados. Agora, dê a eles o presente do seu tempo.
* Permita ao seu prisioneiro alguma liberdade. Como, você
pergunta? Braceletes de prisão domiciliar com explosivos embutidos são
uma boa maneira de manter seu prisioneiro com medo de se tornar arte
abstrata humana, permitindo-lhe um pouco de exercício. É uma boa
prática fazer o sangue fluir antes de fazer o sangue fluir. Além disso, só a
merda mental que o cativo experimentará enquanto questiona a dita
liberdade restrita não tem preço.
* Não se deve permitir que feridas infeccionem. O kit inicial de
tortura em anexo contém tudo que você precisa para limpar todos os tipos
de feridas, incluindo, mas não se limitando àquelas infligidas por: armas,
facas, picadores de gelo, navalhas, facas, lâminas de barbear, tacos de
beisebol cobertos de arame farpado, cordas, lâmpadas domésticas, CDs
quebrados de Britney Spears e brinquedos infantis. Recomendo que você
reserve um tempo para abrir seu kit e se familiarizar com o conteúdo
antes de iniciar seu próximo sequestro. Lembrem-se, crianças, antes de
infligir novos ferimentos eles não serão eficazes se seu prisioneiro estiver
morrendo de sepse. Um sequestrador feliz é um sequestrador preparado.
* Água deve ser dada ao prisioneiro a cada vinte e quatro
horas. Acredite em mim, isso ainda vai ser uma merda para eles, mas vai
mantê-lo vivo até que seja hora de eles não existirem.
* Após quatro dias, a comida deve ser oferecida ao seu
prisioneiro. Algo saudável e nutritivo. Em anexo, você encontrará as
diretrizes e regulamentações da FDA para uma dieta saudável. Se você
estiver lendo isso em formato de e-mail, incluí links de algumas das
minhas receitas favoritas de trinta minutos ou menos que certamente
agradarão qualquer tipo de prisioneiro contra sua vontade. Experimente
as panquecas. Yum!
* Qualquer prisioneiro mantido por mais de uma semana deve ser
morto quando o relógio bater meia-noite no 5º dia ou recebido pela família
de braços abertos. Todas as informações sobre as datas e horários do
casamento podem ser publicadas no meu site compartilhado
KNOT.COM. Você também descobrirá que disponibilizei modelos de
registro de casamento pré-preenchidos na Amazon, Home Depot,
Kinkyshit-R-Us e Weapons Depot, apenas para você começar.
* Não se esqueça da regra mais importante de todas. Divirta-
se! Faça desse sequestro uma experiência agradável, que você vai querer
lembrar por muitos anos. Então, seja criativo! Expresse-se enquanto
expulsa seus demônios internos às custas de seu prisioneiro. Lembre-se,
só porque seu prisioneiro não está se divertindo, não significa que você
não possa. Eles estão fodidos, mas você não estará se seguir as
orientações acima.
Isso é tudo, pessoal.
Lembre-se de ajudar a controlar a população de animais de
estimação e esterilizá-los ou castrá-los.
Avise sua mãe,
Samuel, filho da puta, Clearwater, também conhecido como —
Preppy.
Capítulo Quatorze

Mickey

— Quem escreveu isso? — Pergunto, olhando para as palavras


que não posso acreditar que realmente existam ou que estavam apenas
esquecidas no banco do passageiro da caminhonete de Pike. —
Mandamentos de um sequestrador?
Pike suspira e gira o volante. Passamos por um buraco e esmago
as páginas na minha mão. — Um amigo meu escreveu. Ele... passou
por alguma merda.
— Claramente, — respondo, sacudindo as páginas amassadas
para ele. Então, seus amigos são como ele. Aparentemente, sequestro é
uma coisa tão comum entre eles que teve a necessidade de escrever
diretrizes.
— Você acha que isso é ruim, você deveria ver a porra do kit, —
comenta Pike, baixando a janela e acendendo um cigarro.
Percebendo que não tenho ideia para onde estamos indo, fico
nervosa. — É agora que você começa a me usar como isca?
— Não, isso vai começar na loja de penhores. Vou deixa-la sentar
na frente da loja com Thorne. As pessoas falam nesta cidade e, se eu
estiver certo, falarão sobre você. Quanto mais as pessoas falam, mais a
notícia se espalha, mais provavelmente seu pessoal saberá que
você está viva e virão atrás de você. — Ele olha para mim. — E estarei
pronto.
— Eles não são meu pessoal, — murmuro.
— O que você disse? — Ele pergunta.
— Absolutamente nada, — resmungo, olhando pela janela
enquanto a estrada em que estamos fica mais estreita e os prédios
menores e mais distantes entre eles, estamos nos afastando de Logan’s
Beach. Logo, estou me sentindo claustrofóbica enquanto vegetações
gigantes se estendem de ambos os lados, como se estivesse congelada
prestes a nos engolir inteiros.
Um dos pneus do caminhonete afunda em um grande buraco.
Agarro a alça 'puta merda' acima de mim para proteger minha cabeça
de colidir com o teto. — Para onde você está me levando? — Pergunto,
sentindo cada vez mais desconforto. Já passamos da civilização há
muito tempo e estamos entrando no que parece ser o país do banjo.
Pike sai da estrada escassamente pavimentada e entra em uma
estrada de terra ainda mais acidentada. Minha bunda levanta e bate de
volta no banco várias vezes. Passamos sob um dossel de árvores
arqueadas na estrada acima de nossas cabeças. Através das folhas, o
sol poente cintila como mil estrelas rosa e laranja, derramando beleza
em um momento que de outra forma seria sinistro.
— Tenho que encontrar alguém, — responde Pike, olhando pelo
para-brisa e parecendo perdido em pensamentos.
— Por que está me levando com você?
— O que há com todas essas perguntas do caralho? — Ele
pergunta.
— Talvez você não seja o único que gosta de torturar pessoas? —
Digo sarcasticamente.
Isso me rende um revirar de olhos e uma contração de seus
lábios, que estou percebendo que ele faz quando está tentando não
sorrir. — Porque depois da besteira da faca, não confio que você não
tente alguma merda, e não posso permitir que tente esfaquear minha
ajudante durante o horário comercial.
Encolho os ombros. Seu raciocínio não está errado. Faria o
mesmo se fosse ele. Embora ele não precise saber que eu não
esfaquearia Thorne. A menos, claro, que ela tente me
esfaquear primeiro. Nesse caso, tudo está em jogo.
Pike estaciona o caminhonete no meio da estrada e desce.
— E se alguém quiser passar por nós? — Digo atrás dele.
Ele não se vira. — Ninguém vem aqui, — ele responde.
Ninguém.
Pike se vira e vê que não estou o seguindo. — Você vem ou vai
ficar ai e ser comida pelas criaturas?
Cruzo meus braços sobre meu peito. — É melhor do que ir com
você e ser alimento para as criaturas, — argumento.
Pike vem até mim e levanta meu queixo com os dedos. O empurro
para longe. — Se eu quisesse te matar...
Levanto minhas sobrancelhas.
— Se quisesse matá-la hoje, tenho mil lugares melhores do que
este para me livrar do seu corpinho e, além disso, você já estaria morta
antes que a arrastasse até aqui.
Se suas palavras são para me confortar, elas falham. — Por que já
estaria morta? — Pergunto, buscando uma resposta lógica para sua
declaração absurda.
Pike responde como se fosse óbvio e ele não pode acreditar que
tem que explicar isso para mim. — Ninguém quer dirigir até aqui para
um lugar como esse com uma gritadora no porta-malas. — Ele se vira
e segue por um caminho estreito.
Hesito, olhando ao redor. O sol está quase se pondo e os insetos
estão cantando e zumbindo ao meu redor. Um sapo coaxa. Uma coruja
pia. Um coiote... merda.
Corro para alcançar Pike, que ri baixinho. Não quero admitir, mas
a situação é engraçada, até porque também é ridícula. Estou
procurando segurança voluntariamente das criaturas com Pike, de
todas as pessoas, quando correr em um campo de
coiotes provavelmente seria a escolha mais segura. Mas mesmo pessoas
lógicas têm momentos ilógicos e, obviamente, este é um dos meus, e um
de muitos quando se trata de Pike.
— O que exatamente, você vai encontrar no meio do nada? —
Pergunto, imaginando que tipo de pessoa viria aqui por vontade
própria.
Bem, além de Pike.
Pike faz uma pausa quando chegamos a uma pequena clareira
com um lago raso semelhante a um pântano no meio, cercado por
grama alta. — É quem. — Ele aponta para um homem parado em um
aerobarco a cerca de seis metros de distância.
Sujeira cobre as bochechas afundadas do homem, juntamente
com o macacão e o que presumo costumava ser uma camiseta branca
por baixo. Ele nos vê e sorri, acentuando as rugas ao redor de seus
olhos e lábios bronzeados. Um punhado de longos bigodes brancos
pende de um queixo pontudo. Ele cobre os lábios com o dedo indicador
avisando que devemos ficar quietos, em seguida, olha para baixo com
determinação para algo na proa do barco. Ele não parece uma pessoa
no meio do pântano, mas sim uma parte dele. Como uma rã ou
árvore. Ele apenas deveria estar aqui.
Estico o pescoço para ver o que é que mantém o homem tão
obcecado, mas não consigo ver nada na frente do barco. — O que ele
está fazendo?
— Apenas observe, — Pike sussurra.
O homem agarra o que parece uma vara de rolo de pintura, mas
sem a parte do rolo no gancho de metal. Depois de alguns minutos
imóveis, ele de repente acerta um pedaço de grama alta. Me assusto
com o movimento repentino. Ele se ajoelha e agarra algo com a mão,
seus músculos tensos com o esforço necessário para fazer o que quer
que esteja fazendo. Largando a vara de pintura, ele leva sua mão agora
livre até um saco de estopa.
Ele se levanta e começa a colocar algo no saco. Uma coisa muito
grande e longa que desliza.
— Aquilo é uma... cobra? — Pergunto, notando o padrão
brilhante bege, marrom e amarelo em sua pele.
— Píton! — O homem anuncia triunfantemente. Acho que não
precisamos mais ficar quietos. Seu sorriso revela a falta de um dente da
frente.
Uma Píton? Procuro em meu cérebro por qualquer arquivo sobre
Píton, e a única informação que consigo é que elas não são nativas
desta área.
— Esse é Gutter, — explica Pike.
Ele continua a colocar o corpo da cobra no saco pelo que parece
uma eternidade. Deve ter pelo menos 3,6 metros de comprimento. É
espessa também. Minhas mãos nem se fechariam se a
agarrasse. Estremeço com a ideia de realmente colocar minhas mãos
sobre ela, e fico aliviada quando a cobra está totalmente no saco. Ele o
amarra e coloca o saco dentro de outro saco, fechando-o na
parte superior, mas ainda não terminou. Ele pega um rolo de fita
isolante na parte de trás, enrolando-o ao redor do saco várias vezes
antes de cortá-lo com os dentes e colocar a cobra dentro de uma área de
contenção quadrada na frente do barco. Gutter então gira a manivela
do motor elétrico do barco e segue em nossa direção, encalhando o
barco na lama a apenas 30 ou 60 centímetros de distância.
Gutter se joga da beirada do barco e nos cumprimenta com um
leve toque na aba de seu boné. Agora que ele está mais perto, posso ler
o que está escrito, Willie Nelson 2020.
Me inclino sobre a borda do barco e olho para o saco contendo a
cobra, fascinada com o porquê de ela estar lá e a experiência com que
Gutter a pegou. Tenho um milhão de perguntas enchendo minha
mente, mas não tenho certeza com qual começar. Tudo que sei é que
preciso mais de informações do que de respirar.
Gutter estala os dedos. — Oh, quase esqueci uma coisa. — Ele
tira uma folha de papel do bolso da frente do macacão e tira algo dela,
colando na fita adesiva do saco. É um adesivo com a foto dele. Ele está
sorrindo com os dois polegares para cima. A legenda abaixo diz
ENSACADO E MARCADO POR GUTTER. RÉPTIL PERIGOSO
DENTRO. — Esse é o meu terceiro hoje, e é incrível também.
— Três delas? — Suspiro, em seguida, olho em volta dos meus
pés. — Quantas estão aqui?
O homem encolhe os ombros. — Aqui no Everglades? — Ele coça
os longos bigodes em seu queixo. — Centenas de milhares, acho.
— Mas as Pítons não são nativas do sudoeste da Flórida... —
pondero.
Gutter sorri e lança um olhar para Pike que diz que ele está
impressionado. — Você está certa. Elas não são nativas e não têm
predadores reais para eliminá-las. As pessoas começaram a jogá-las
aqui quando ficaram grandes demais para serem usadas como animais
de estimação. Até vi uma tentando engolir um gatinho de tamanho
decente um tempo atrás. De qualquer forma, o Tio Sam paga um bom
dinheiro por cada uma que levo.
Isso é bom e tudo, mas meus pensamentos ainda estão presos
em centenas de milhares.
Pike acende um cigarro. — Vendendo-se por um trabalho no
governo afinal, hein, Gutter?
Gutter revira os olhos. — Foda-se, Pike. Todos por aqui sabem
que não sou um funcionário do governo e nunca serei. — Ele cospe no
chão próximo a seus pés para enfatizar seu ponto. — Apenas me
beneficiando dos filhos da puta pela merda que eu faria, mesmo se eles
não estivessem me pagando para fazer isso.
— O que quer que te deixe dormir à noite, amigo. — Pike dá uma
tapinha em seu ombro e Gutter dá um tapa em sua mão. Qualquer que
seja a relação entre os homens, é confortável. Não imagino que Pike não
retaliaria um tapa de alguém com quem não se sente confortável, por
mais brincalhão que seja.
Gutter olha para mim, cruza os braços sobre o peito e depois faz
uma reverência dramática. — E quem é esta linda jovem? — Ele
pergunta, endireitando-se, ele me dá uma piscadela.
— Mickey, este é o Gutter. Gutter, este é a Mickey.
— Mickey, como o rato? — Ele provoca.
Sorrio, não consigo evitar. A personalidade de Gutter ou é
infecciosa, ou preciso urgentemente de um contato humano que não
esteja amarrado em um nó de ameaças. — Mickey de Michaela, mas
sim, também como o rato.
Gutter coça o queixo. — Michaela funciona melhor para
mim. Nunca me importei com aquele camundongo, já que aquele sujeito
da Disney era um maldito nazista, — diz ele, como se fosse de
conhecimento comum.
— Sério? — Pike zomba. — Você precisa arrastar o nome de Walt
Disney para a lama?
— É verdade, — digo em defesa de Gutter.
Pike levanta as sobrancelhas.
Explico. — É um fato conhecido que a Disney participou de
reuniões de uma organização pró-nazista na década de 1930, e há
rumores de que ele e Himmler, o segundo em comando de Hitler, se
encontraram na Disney World quando foi inaugurada, embora isso
nunca tenha sido provado. Portanto, Gutter não está totalmente errado.
— Olho para Gutter. — Sem ofensa, não totalmente certo também.
— Não ofendeu! — Ele diz alegremente. — Gosto dessa garota,
Pike. Sinta-se à vontade para trazê-la aqui com mais frequência. Agora,
diga-me o que você achou daquele sujeito em Hollywood que sei que é
um espião russo secreto.
— Quem? — Pergunto, sem saber de quem ele poderia estar
falando.
Gutter franze os lábios. — Aquele imprestável John Stamos, é
quem.
Rio e olho por cima do ombro de Gutter para Pike, cujo lábio está
fazendo aquela coisa nervosa novamente. — Não ouvi nada sobre ele,
mas avisarei se ouvir.
— Faça isso, garota. — Ele dá um tapa no ombro de Pike. —
Agora, o que traz gente como você aqui, porra, para encontrar um velho
como eu?
Pike acende outro cigarro e entrega um a Gutter, que o pega com
um aceno de agradecimento. — Muito obrigado, meu jovem.
Gutter olha de Pike para mim, depois de volta para Pike
novamente. — Você está aqui para se livrar de um corpo? — Ele aponta
para mim com seu cigarro. — Porque ela ainda parece um pouco viva,
então acho que você está fodendo esta aqui, garoto. E ela é muito bonita
para alimentar os crocodilos. — Ele pisca para mim.
Pike revira os olhos. — Estou aqui para te trazer isso. — Ele
passa um envelope para Gutter, que o enfia no bolso. — Você não
precisa fazer isso o tempo todo, garoto. Já falamos sobre isso.
Pike zomba. — Não preciso fazer nenhuma das merdas que
faço. Mas não me impede de fazê-las.
Gutter ri. — A porra do apocalipse não poderia te parar quando
você coloca sua mente em algo, garoto. Já devia saber melhor à esta
altura.
Gutter me entrega uma cerveja. Sento-me na borda do barco
enquanto Pike e Gutter mexem em seu motor. — Não deixe seus
membros balançarem, — diz Gutter, vindo se sentar ao meu lado. — A
menos que você use botas como essas, — ele bate nas botas de plástico
brancas e gastas que cobrem as pernas do macacão até os joelhos. — É
assim que pegamos jacarés, pendurando a isca sobre a água.
Pike me lança um olhar divertido.
— É bom saber, — murmuro, colocando meus pés no
barco. Cruzo minhas pernas debaixo de mim, prendendo-as com força.
Pike ainda está mexendo no motor, ocasionalmente xingando
baixinho quando Gutter senta ao meu lado.
— Você conhece Pike há muito tempo? — Pergunto, tomando um
gole da minha cerveja gelada. As bolhas fazem cócegas na minha
garganta na descida.
Gutter acena com a cabeça. — Sim. Desde antes de ele ter pelos
nas bolas. Encontrei seu pequeno traseiro magro tremendo nos juncos
uma noite, e embora continuasse dizendo ao nanico para não voltar —
ele aponta para trás de seu ombro com sua garrafa de cerveja. —
Obviamente a criança não escuta merda nenhuma.
Não, ele não. Olho para Pike, que tirou a camisa. Seus músculos
tencionam e flexionam enquanto ele trabalha no motor, sua pele
brilhando de suor, fazendo com que suas tatuagens pareçam animadas
sob a luz da lua. Tremo, e provavelmente é o gotejamento da
condensação na garrafa caindo na minha perna, porque é a única coisa
que poderia ser.
Gutter cutuca meu ombro, me tirando dos meus pensamentos. —
Desculpe, estou apenas tentando imaginar Pike sendo pequeno, magro
ou um nanico.
Ele ri. — Claro, era isso que você estava fazendo.
Tomo outro gole da minha cerveja, tentando cobrir meu rubor
com a garrafa.
— Pike é um bom garoto. Ele pode ser um ser humano terrível,
mas um bom garoto. — Gutter diz, embora não tenha certeza do que
distingue os dois. — Os dois não podem ser separados.
— Não vi muito do lado bom, — admito.
— Você está viva, não está? — Gutter pergunta. — Você está no
lado bom se me perguntar.
— Só porque sou parte de seus planos mais covardes, —
argumento.
— Sim, continue dizendo isso a si mesma. — Gutter tira do bolso
o envelope que Pike deu a ele e o entrega para mim.
Viro em minhas mãos. — O que é isso?
Gutter aponta com os olhos para o envelope. — Esse é o problema
dos envelopes. Você tem que abri-los para descobrir.
Não está selado, a aba apenas dobrada para dentro. Puxo para
fora. Não tenho certeza do que espero encontrar, mas quando retiro o
conteúdo. É dinheiro, e não apenas um pouco. Deve haver pelo menos
alguns milhares de dólares em notas de cem dentro. Coloco a aba de
volta e entrego para Gutter. Ele o abre novamente, retirando algo de
trás das notas antes de colocá-lo novamente em segurança no bolso do
macacão.
— Então, ele te dá dinheiro? — Pergunto, afirmando o óbvio e
não fazendo a pergunta mais importante do por quê.
Gutter toma um gole de sua cerveja e a joga sobre o ombro no
barco atrás dele. Ele pega mais duas do refrigerador e abre a tampa de
ambas, colocando um na minha mão. — Pike tem me dado dinheiro há
anos. Ele diz que é uma dívida que está pagando por eu ter salvado sua
vida ou algo assim, mas não consigo fazê-lo parar. Até ameaçou
queimá-lo uma vez e ameaçou comprar-me uma maldita casa se eu não
o pegasse. — Ele suspira e olha para as mãos onde está segurando o
que agora posso ver é uma foto. — Mas isso aqui não é sobre uma
dívida. — Ele me entrega a foto. É uma mulher e um homem
segurando um bebê nos braços. — É uma questão de gentileza, embora
o senhor saiba que não mereço.
O casal parece ter quase 30 anos. Eles estão sorrindo para o
bebê entre eles com amor brilhando em seus olhos. — Quem são eles?
Ele aponta para a foto. — Essa, aqui, é minha filha, Edie, e o
marido dela, Glen. Essa é minha neta, Julia. — Ele esfrega um dedo
manchado de sujeira em seu rostinho rechonchudo. — Fiz
muita merda ruim na minha vida. Não para eles especificamente, mas
os afetou com certeza. — Gutter suspira, sua voz cheia de pesar. —
Merda que me custou minha garotinha. — Ele acena com a mão
dispensando suas emoções, explicando com um simples: — Não havia
nenhuma ordem de restrição ou algo assim naquela época. Mas não falo
uma palavra com ela desde que ela tinha oito anos.
Minha lógica exige que eu faça a pergunta óbvia. — Por que você
não tenta fazer contato?
Gutter balança a cabeça. — Esse barco afundou há muito tempo,
e é preciso ser um homem para saber quando as pessoas que ama estão
realmente melhores sem ele. Mas essas fotos... — Ele sorri para baixo
mais uma vez. — Elas deixam um velho feliz em saber que estão
bem. Que eles estão felizes. Mesmo que eu não tenha nada a ver com
essa felicidade.
Abro a boca para discutir, sentindo a necessidade de lhe dizer
algo que o faria se sentir melhor, mas Gutter levanta as mãos, me
cortando antes que possa dizer uma palavra. — Não estou dizendo isso
por uma réplica ou por lisonja, garota não sou um maldito
democrata. Estou dizendo por que é verdade.
— Então, Pike traz fotos de sua família ... — Não é bem uma
pergunta.
Gutter olha para Pike, que enxuga o suor da testa com o
antebraço. Ele lança um rápido olhar em nossa direção antes de se
ajoelhar sobre o motor.
— Um dia, disse a ele que gostaria de vê-los novamente, não
pessoalmente porque é melhor não arrastar o passado para fora do
pântano fora da temporada, mas talvez por foto. Não tenho internet
aqui, e não estou prestes a ir a algum lugar e me inscrever nas redes
sociais e ter os malditos russos monitorando cada porra de movimento.
— Ele aponta o dedo médio para o céu.
Levanto uma sobrancelha.
— Satélites russos, — explica ele.
— Então, ele imprime as fotos das redes sociais e as traz para
você?
Gutter ri, — Algo assim. — Ele enfia a foto de volta no bolso e dá
uma tapinha no tecido. — Ele não precisa me trazer nenhum maldito
dinheiro, mas isso... isso é como trazer de volta um pequeno pedaço do
meu coração partido.
Meu coração aperta por Gutter enquanto seus olhos
se vidram com lágrimas não derramadas. Ele toma outro gole de sua
cerveja e balança a cabeça como se para livrar-se de uma vida inteira de
arrependimento. — Agora, — diz ele, batendo na coxa com a mão. —
Vamos conversar sobre você. Conte-me tudo.
Paro com minha cerveja a meio caminho dos meus lábios. —
Tudo?
Ele cutuca meu ombro com o dele. — Sim, tudo o que aconteceu
para trazê-la até Pike e sentar sua linda bunda no meu barco de cobras
no meio do maldito pântano.
No começo, acho que ele está brincando, mas não há riso em seu
rosto enquanto ele me encara com uma intensidade séria. — Vá em
frente garota. Não fiz nada bom o suficiente na minha vida para valer a
honra de julgar outra pessoa, então não se preocupe com isso. — Ele
olha por cima do ombro para Pike. — Além disso, o jeito que aquele
menino está bagunçando meu motor, podemos ficar aqui a noite toda.
Com nada além de tempo em nossas mãos e o grito das rãs e
grilos que nos cercam, conto tudo a ele.
Bem, quase tudo.
Deixo de fora as informações que Pike deseja desesperadamente,
entre outras coisas que podem atrapalhar meus planos.
Afinal, tenho um QI de cento e sessenta.
Não sou idiota.
Capítulo Quinze

Pike

Depois de consertar o motor de Gutter, vamos de barco para


Everglades, onde a casa flutuante de Gutter está ancorada. É uma
pequena cabana de um cômodo em uma balsa com laterais de estanho
e um conjunto de portas de armário jogadas fora que levam para
dentro. Dois feixes de gravetos grossos são amarrados em cada lado da
entrada formando um arco caipira. Acima da varanda está pendurado o
crânio de um crocodilo com o esqueleto de um grande pássaro na boca.
— Não é muito, garota, mas é um lar, — diz Gutter, estendendo a
mão para Mickey.
Ela olha para a pequena cabana e sorri. — É muito... você.
Ele tira o chapéu para ela. — Vou aceitar isso como um elogio.
— Era para ser um, — ela responde.
Gutter sorri com seu sorriso de dente perdido. — Por que você
não entra. Tem água corrente e mais cervejas no refrigerador ao lado da
mesa. Vou ter uma conversinha aqui com o seu homem.
Trocamos olhares, mas nenhum de nós o corrige. Empurro meu
queixo para ela, e ela desaparece lá dentro.
Gutter não perde tempo, virando-se para mim com os polegares
sob os suspensórios do macacão. Ele balança nos calcanhares. — O
que, em nome de Merle Haggard, você se meteu com essa garota?
Suspiro, e sento sobre uma cadeira quebrada no convés.
Gutter puxa uma cadeira dobrável com um grande rasgo nas
costas e se senta ao meu lado. Por um momento, nós dois olhamos para
a água negra. Os olhos amarelo-esverdeados brilhantes de um crocodilo
aparecem a alguns metros de distância antes de desaparecer entre
os juncos. Um animal virando o jantar de outro animal mais acima na
cadeia alimentar, ecoa na grama alta.
— Ela te contou tudo? — Pergunto.
Gutter acena com a cabeça. — Ela me contou algumas coisas,
mas não sei se é tudo, porque não sou ela. — Ele toma um gole de
sua cerveja. — Presumo que você a trouxe aqui para que eu diga se a
garota está mentindo ou não, mas preciso ouvir de você agora.
— Ouvir o que? — Pergunto.
Ele enfia o dedo no meu peito. — Sua versão da história.
Esfrego minha nuca, onde a tensão começou a aumentar nas
últimas semanas, e então continuo contando como conheci Mickey e
tudo o mais que trouxe até este momento. Mesmo enquanto reconto, me
pego passando por vários estágios de raiva. Quando termino, meus
dedos estão firmes nas costas da cadeira e espero que Gutter pense
sobre o que acabei de dizer.
Gutter não fala sem pensar. É uma das coisas que sempre gostei
nele. Quando termino, ele não se lança em nada. Ele simplesmente fica
sentado em silêncio, permitindo que minhas palavras penetrem em seu
cérebro.
A música de um milhão de grilos fica mais alta no silêncio até que
está zumbindo tão alto que posso sentir vibrando contra minha pele.
Finalmente, Gutter fala. — Minha pergunta para você é o que
você espera descobrir ao trazê-la aqui?
Antes de Gutter ser, bem, Gutter, ele era Christopher Andrews,
um ficologista do exército. Ele passou seu tempo estudando como a
mente é afetada pela tortura e decidindo quais técnicas funcionavam
melhor e quais não funcionavam. Ele era muito bom, também. Eles
costumavam chamá-lo de detector de mentiras humano. Não porque ele
pudesse dizer necessariamente se a pessoa estava mentindo ou não,
mas porque sabia exatamente o que fazer para extrair a verdade.
Nem preciso dizer que mentir para Gutter é inútil, então nunca fiz
isso. — Só preciso saber se estou perdendo meu tempo com ela. Se ela
em algum momento me dirá o que preciso saber
— Você disse que ela sofreu um ferimento na cabeça. Como? —
Gutter pergunta.
Lembro-me de um momento antes de descobrir que Mickey era
ela e não ele.
— Por meio de cabeçada, — respondo. — Depois disso, ela
pareceu confusa por um tempo. Quando a conheci, ela era do mesmo
jeito. Achando que havia pessoas ao seu redor que não estavam lá. Não
sei o que aconteceu com ela naquela noite. Ela disse que foi
um acidente de caiaque ou nado ou alguma merda, mas não sei, porra.
— O que você sabe? — Gutter pergunta.
Sinto que não sei mais nada com certeza, exceto por duas
coisas. Preciso das informações que só ela sabe e quero transar com ela
mais do que quero respirar.
Não digo a Gutter nenhuma dessas coisas. Embora pelo olhar
divertido em seu rosto, ele já saiba.
Gutter coça os bigodes. — Bem, se vale alguma coisa, acho que
ela está dizendo a verdade. — Ele pega mais duas cervejas e passa uma
para mim. — O que ela me disse, de qualquer maneira. Mas posso
sentir que suas intenções não estão de acordo com as intenções das
pessoas para quem ela está trabalhando. Essa menina tem seus
próprios planos, então você deve descobrir o que é se tem alguma
esperança de quebrá-la.
Gutter está certo. Se ela tiver motivos próprios por trás de suas
ações, posso usar esses motivos para fazer com que ela me dê as
informações que preciso.
Ele levanta uma sobrancelha para mim. — Você esperava que ela
estivesse mentindo para você?
— Esperava que você me dissesse para enfiar uma faca na carne
dela, ou remover as unhas dos seus dedos, e ela me contaria tudo. —
Pressiono a garrafa gelada na minha testa para aliviar a dor de cabeça
que ameaça estourar no meu crânio.
— Não. Ela é o que eu chamaria de resistente. Sua vontade é forte
demais para qualquer uma das artimanhas usuais. Como disse,
descubra a verdade dela e descobrirá a verdade. — Gutter apoia os
cotovelos nas coxas. — Vou te dizer uma coisa: você não pode manter a
garota trancada. Isso não vai ajudar em nada. Não com uma garota
assim. No mínimo, isso a deixará mais determinada a manter a boca
fechada.
— Por que? — Pressiono.
— Simples. Se ela te odiar, não se abrirá com você. Você tem que
ganhar a confiança dela. Deixar que ela tome a decisão sozinha. Deixe-a
saber que seu mundo não vai implodir se ela desabafar contando-lhe
seus segredos.
Solto um suspiro e estalo meu pescoço. — Não acho que tenho
esse tipo de tempo. Ou se é possível neste momento. — Penso no que a
sujeitei e não vejo como ela confiaria em mim depois disso ou como não
verá através do ato.
Gutter sorri. — Ela é inteligente. Ela não vai cair nas suas táticas,
porque sabe que são táticas. Contei a ela sobre sua bondade e abri a
porta. Você apenas tem que engolir seu orgulho e superar isso. Seja o
mais real possível. Não é difícil ser gentil com ela. Ela é uma boa
alma. Lembra-me da minha Atty. — Gutter olha para o céu com um
sorriso triste.
— Tem certeza de que uma faca em sua carne não vai funcionar?
— Gemo.
— Um coelho de cinco quilos é um coelho grande? — Ele rebate.
Não sei muito sobre coelhos e não tenho ideia se um coelho de
cinco quilos é, de fato, um coelho grande. — Com certeza espero que
sim.
— Você tem sentimentos por essa garota ou algo assim? — Ele
pergunta de repente.
Rio. — Tenho sentimentos por ela, ok. Nenhum deles é bom. —
Me levanto e jogo uma garrafa de cerveja vazia no balde que funciona
como uma lata de lixo. Vou até a porta para pegar Mickey.
— Pike, — Gutter grita.
Olho por cima do ombro. Gutter se levanta e coloca os polegares
sob os suspensórios novamente, balançando-se sobre os saltos das
botas de plástico. — O que acontecerá com a garota depois que você
descobrir a verdade?
— Isso depende de qual é a verdade.
Gutter franze a testa. Sua voz é calma, embora nem um pouco
triste. — Tenha cuidado, Pike. Eles dizem que a verdade dói por um
motivo de merda.
Isso é algo que já sei muito bem.
Empurrando as portas, olho ao redor da casa-barco. O que
encontro faz minha raiva aumentar e um rugido rasga minha garganta.
Porque o que encontro não é nada.
Mickey desapareceu.
Capítulo Dezesseis

Mickey

Dentro da casa flutuante de Gutter há um quarto de solteiro


rodeado por paredes sanfonadas metálico. A cozinha consiste em uma
pia enferrujada, um queimador elétrico portátil colocado em cima de
uma caixa e o refrigerador que ele disse que eu encontraria aqui
dentro. Uma cama dobrável fica no canto, com uma rede de malha
pendurada no teto acima.
De repente, estou muito consciente de que estou sozinha, embora
Gutter e Pike estejam conversando a apenas alguns metros de
distância. Parece errado como sempre, especialmente porque, crescendo
com três irmãs, raramente ficava sozinha. Os últimos cinco dias foram
uma lição sobre ficar sozinha, bem como um teste do quanto posso...
esperar.
Qualquer cativo mantido por mais de um período de uma semana
deve ser morto quando o relógio bater meia-noite no quinto dia ...
É uma das diretrizes do memorando ridículo que encontrei na
caminhonete de Pike. Pelo menos, achei ridículo até que percebi que
hoje é o quinto dia.
Se Pike está planejando seguir essas diretrizes, isso significa que
estou quase sem tempo.
Afasto meu pânico, procurando lógica entre o medo.
Sei o que preciso fazer.
Não, o que tenho que fazer.
Arrisco uma olhada por uma fresta na porta. Pike e Gutter estão
em uma conversa profunda. Bom. Isso me dará tempo.
Movo-me rápida e silenciosamente. Enquanto meu cérebro grita
para que eu comece a correr, vou o mais devagar que posso, avançando
para o fundo da sala. Em um ritmo mais lento do que o de um caracol,
empurro para o lado um dos painéis de metal no fundo da sala. A água
turva abaixo parece um barril de alcatrão.
Não pense nisso. Apenas faça.
Com uma respiração profunda, me agacho sobre as pranchas de
madeira, em seguida, desço lentamente para a água de modo a não
fazer a menor ondulação. Está mais de vinte e sete graus aqui fora, mas
a água pode muito bem ser do Ártico. Está muito fria. Meus dentes
batem quando começo a me mover, caminhando lentamente pela água
até a cintura, devagar demais para o ritmo da minha mente acelerada e
coração batendo. Só quando estou profundamente dentro dos juncos
escondida da vista é que aumento o meu ritmo. Felizmente, a água
negra é mais rasa aqui, atingindo meus joelhos. Mas também é espessa
e cheia de grama e ervas daninhas e não quero saber mais o
quê. Minhas coxas queimam com o esforço necessário para levantar
meus pés da lama que os suga a cada passo. Ando pelo que parecem
horas, mas na realidade não tenho ideia de quanto tempo. Mantenho
meus olhos treinados direto na escuridão para evitar avistar quaisquer
criaturas que possam estar espreitando ao redor.
O que você não sabe não pode machucá-la. Não se aplica
exatamente a essa situação porque tenho certeza que um crocodilo que
não sei se está por aqui pode me machucar, mas vou continuar e fingir
que faz sentido.
Um suspiro de alívio me escapa quando chego a uma área
cercada por ciprestes, onde a água atinge apenas os tornozelos. Meu
jeans está encharcado, molhado e pesado contra minha pele. Bato em
um mosquito na minha bochecha, sacudindo o inseto morto e
sangrento da minha palma. O ar quente da noite parece gelado
enquanto sopra sobre minha pele molhada. Tremo, esfregando as mãos
nos braços.
O toque de uma buzina à distância atrai minha atenção para um
aterro à frente. O mais rápido que posso, caminho em direção ao
som. Quando não ouço de novo, acho que o imaginei.
Mas vejo luzes. Faróis.
Meus sapatos são sugados pela lama, caindo dos meus pés, mas
logo meu pé pousa em solo mais sólido. Meus pés doem e ardem
quando piso em incontáveis galhos e pedras afiadas. Preciso de tudo
que me resta para escalar o dique.
Meu cabelo fica preso em um galho. Desembaraçar levará um
tempo que não tenho, então uso minha mão e o puxo, arrancando-o da
árvore e um pouco da minha cabeça.
Quando meus pés atingem o asfalto, sei que encontrei a estrada.
Minutos se passam sem outro carro e me lembro que estou no
meio do nada em Everglades. As chances de encontrar outro carro aqui
no meio da noite são quase nulas.
Sem nada a fazer a não ser esperar, começo a caminhar em
direção a onde acho que a rodovia pode estar. Um javali atravessa a
estrada alguns metros à minha frente, e cubro minha boca para não
gritar e chamar atenção para mim.
Faróis aparecem atrás de mim. Me viro, feliz em ver que é um
carro e não a caminhonete de Pike. Pulo no meio da estrada, acenando
e pulando freneticamente até que ele pare.
Contorno o carro, um Cadillac preto clássico do estilo mais
antigo. Chego à janela do motorista no momento em que ele a desce.
— Muito obrigada por parar, — digo, sem perceber
como estou sem fôlego até que preciso parar para respirar por um
segundo e poder continuar. — Fui sequestrada. Preciso ir à polícia. Ou
para qualquer lugar onde haja pessoas. Um posto de gasolina se a
delegacia de polícia for muito longe.
Não poderia realmente entrar em uma estação policial, mas pedir
uma carona até onde realmente preciso ir geraria perguntas que não
posso responder. Mais do que tudo, só preciso ir para a cidade.
O homem inclina a cabeça e me olha, revelando um emaranhado
de tatuagens de videira em cada lado de sua cabeça. — Quem te
sequestrou? — Ele dá uma tragada no cigarro, e rapidamente percebo
pelo cheiro que não é tabaco que ele está fumando.
— O nome dele é Pike. Estive trancada em seu apartamento. Ele
me trouxe aqui para encontrar alguém, e escapei pelo pântano.
— Então é esse o cheiro... — diz ele, observando meu estado
coberto de lama. — Ok, ok, entre. Vou te dar uma carona até a
delegacia de polícia de Logan's Beach. Estou indo nessa direção de
qualquer maneira. — Ele se estica para o lado do passageiro e abre a
porta.
Solto um suspiro de alívio e dou a volta no carro. Pulo para
dentro e bato a porta.
— Você está ferrada? — O homem pergunta, colocando o carro em
movimento. Sua camisa está enrolada até os cotovelos, expondo seus
antebraços tatuados enquanto ele brinca com a estação de rádio.
Balaço minha cabeça. — Não. Quer dizer, acho que não. Só um
pouco machucada.
— Então, esse tal de Pike, ele é um sequestrador gentil?
Passamos por um poste de luz e noto a gravata-borboleta amarela
do homem e os suspensórios combinando. Iluminação pública. Estamos
nos aproximando da civilização.
Lembro-me de sua pergunta anterior. — Existem diferentes níveis
de detenção contra a sua vontade?
Ele concorda. — Vários.
Agora, estou curiosa. — Como você sabe?
Ele sorri e balança a cabeça ao som da música da Taylor Swift
tocando no rádio. — Confie em mim, conheço todos os níveis de
sequestro e tortura que há para saber. Estive lá. Fiz isso. Vesti a porra
da camiseta. — Ele vira em uma estrada próxima à rodovia, e quase
choro de alegria quando avistamos uma placa que diz. Bem-vindo à
Logan’s Beach.
— Qual o seu nome? — Ele pergunta.
Esfrego as mãos nos braços, sentindo frio mesmo com o calor,
enquanto a água seca na minha pele. — Michaela, mas me chamam de
Mickey.
Ele tira uma mão do volante e a estende para mim. — Eu sou...
O telefone que pensei em lhe perguntar se posso usar toca. Ele
atende antes que possa tocar uma segunda vez. — Ei, Doc o que houve?
— Há uma pequena pausa. Seus olhos se arregalam. — Ele fez o quê?
De novo? — Ele diz, tentando lutar contra um sorriso. — É a minha
mulher, — ele explica.
Outra pausa. — Oh, é só a Mickey. Ela foi
sequestrada. Encontrei-a na beira da estrada. Estou apenas lhe dando
uma carona. Muito magnânimo da minha parte, eu sei. Mas, de volta ao
Bo.
Sua esposa não parece se importar com o que ele acabou de dizer
ou, pelo menos, não está surpresa porque sua resposta me diz que eles,
de fato, voltaram à conversa anterior.
— Não entendo o problema. Escrevi uma carta ao diretor
explicando tudo. Não é isso que os pais fazem? Escrever cartas
explicando o comportamento homicida limítrofe de seus filhos? — Ele
diz, batendo os dedos no volante.
Ele solta um suspiro. — O que você quer dizer com não existe tal
coisa como uma faca de apoio emocional?
Pausa.
— Não há um cachorro que possamos comprar para ele? Como
um cachorro homicida?
Pausa.
— Não, não sabia que não era isso que um cão de homicídio
fazia. Mas você tem que admitir, seria legal se o fizessem. — Ele ri.
Viramos em outra rua e as luzes da cidade aparecem à distância.
— Tudo bem, vamos conversar sobre isso esta noite depois do
sexo, mas antes da varredura de armas, — ele cede, desligando o
telefone.
— Você tem filhos? — Ele pergunta, acendendo outro baseado.
— Não que eu saiba, — respondo, me sentindo o melhor que
tenho em dias, sabendo que estou livre.
Ele balança a cabeça ao som da música novamente. —
Sequestrada e ainda faz piadas? Uau, temos muito mais coisas em
comum do que imaginava. Apesar de tudo.
— Apesar de tudo? — Eu questiono.
Olho para fora e reconheço a rua. Vejo a Pike’s Pawn mais à
frente e o medo enche meu estômago.
Pare de se preocupar. Você está livre agora. Fica na estrada
principal. Temos que passar para chegar a qualquer lugar nesta cidade.
O carro começa a desacelerar. Ele estaciona na calçada em frente
à loja de penhores.
Meu peito se aperta de pânico. — Por que paramos aqui? —
Pergunto, virando-me de lado em direção a ele no meu assento.
— Nunca abandone seu cativo, — diz ele, e imediatamente
reconheço essas palavras.
Não respondo porque a porta do passageiro está aberta e sou
puxada do meu assento por um forte par de braços. — Nããão! — Grito.
— Olá, novamente, Mic. — Olho para os familiares olhos escuros,
queimando de raiva e algo mais sádico.
Minha pele aquece e arrepia.
Olho de volta para o homem. Um último apelo silencioso por
ajuda. Um olhar me diz que a ajuda não virá. Não conheço o homem,
mas sua traição machuca, me deixando vulnerável e exposta. Por
quê? Pergunto silenciosamente.
Ele sorri como se fosse um motorista do Uber esperando uma
classificação decente. — Porque não traímos os nossos aqui, —
responde ele, como se a resposta fosse tão simples para ele. — Além
disso, assim como meu filho, Bo, Pike não é tão ruim depois que você
passa por toda essa merda assustadora. — Ele pensa por um
minuto. — Se você conseguir superar essa merda assustadora. — Ele
põe o carro em movimento. — A propósito, sou Samuel
Clearwater. Meus amigos me chamam de Preppy.
Preppy sai com um aceno. — Divirtam-se crianças!
Diversão. Okay, certo. Existem tantas possibilidades do que vai
acontecer agora, mas diversão certamente não é uma delas.
Pike embala meu rosto em suas mãos grandes e ásperas, me
forçando a olhar para ele. O metal das algemas é frio e áspero contra
minhas bochechas. — O que fazer com você agora? — Ele pergunta,
procurando meus olhos. Não é seu aviso usual. Tenho a sensação de
que ele não está me perguntando, mas fazendo a pergunta a si mesmo.
Pike me empurra lentamente para trás, as mãos ainda no rosto,
até que estou pressionada contra a base de uma das grandes palmeiras
ao longo da estrada.
Preppy está errado. Não haverá como superar essa merda
assustadora. Não com Pike. Agora não.
Nunca.
Mas já lidei com meu quinhão de homens assustadores e lembro
a mim mesma que não sou a garota assustada que já fui. Sou forte e
capaz.
Antes que possa completar o pensamento, ajo, pousando meu
punho abaixo de suas costelas. Minha mão arde. — Vadia, — ele
respira, a narina dilatando enquanto ele olha para onde meu punho
está fechado.
Ele não esperava meu soco, então acho que o próximo virá como
uma surpresa ainda maior. Balanço meu braço esquerdo para cima,
conectando-o com a parte inferior de seu cotovelo. Sua mão cai do meu
rosto. Jogando minha cabeça para trás e rangendo os dentes, pego uma
página do livro de Pike e vou para a cabeçada. Só que Pike é muito mais
alto do que eu. Só consigo me conectar com seu queixo e fazer minha
visão ficar momentaneamente embaçada.
— Foda-se, — ele diz, esfregando o queixo.
Passo por baixo do seu braço e corro. O asfalto corta meus pés já
feridos. Só consigo dar alguns passos antes de seu corpo enorme colidir
com minhas costas, me jogando no chão.
Ofego para respirar quando o ar é tirado de mim. — Ainda tem
alguma luta em você, Mic. Veremos o que podemos fazer para mudar
isso. — Sua respiração está baixa em meu ouvido enquanto minha
bochecha é pressionada contra o cascalho afiado.
Ele sai de cima de mim e finalmente consigo respirar fundo. Ele
me vira, prendendo meus pulsos acima da cabeça. Seu cabelo cai em
seus olhos enquanto seu olhar me absorve.
O frio no ar esquenta. Os cabelos do meu braço se arrepiam
enquanto olhamos um para o outro sem dizer uma palavra.
Um silêncio denso preenche o espaço entre nós. O único som é
uma respiração pesada e meu próprio batimento cardíaco
acelerado. Conto as batidas para marcar o tempo. Ba-boom. Um. Ba-
boom. Dois.
Os olhos escuros de Pike estão me prendendo ao chão tanto
quanto suas mãos nos meus pulsos.
Ba-boom. Três.
E então seus lábios estão nos meus.
Empurro seu peito apenas para perceber que peguei um punhado
de sua camisa, e não estou empurrando, mas puxando-o contra mim.
Os lábios dele nos meus parecem...
A evidência de sua excitação se estica contra seu jeans, suspiro
quando ele se projeta contra minha coxa.
— Disse que gosto quando você reage, — ele geme contra meus
lábios.
Ele é tão arrogante e seus lábios são o paraíso e o inferno. Mordo
seu lábio, tirando sangue apenas para ser recompensada com uma
mordida dele. Ele se levanta e limpa a mancha vermelha em meu lábio
com o polegar, sugando-o em sua boca.
Ele me levanta do chão me colocando escarranchada em seu colo
no meio-fio. Bato em seu rosto com tanta força que minhas palmas
doem. Seus olhos escurecem e percebo tarde demais que foi a coisa
errada a fazer. Ele envolve a mão em volta da minha garganta,
apertando, mas não forte o suficiente para que eu não seja capaz de
respirar. Seus lábios estão nos meus novamente, e odeio gemer quando
sua língua empurra a costura dos meus lábios e nossas línguas
guerreiam uma com a outra. Ele enfia a outra mão no meu cabelo,
puxando com força. Pego seu cabelo com as duas mãos e faço o
mesmo. Ele sibila e depois sorri. Seguimos assim. Um ciclo interminável
de punição e prazer.
Sua mão aperta minha coxa, antes de desabotoar meu jeans. Ele
enfia a mão dentro, e é errado pra caralho, mas tão certo. Estou
molhada por ele, ansiando que ele me toque lá. Sua mão áspera na
minha pele me faz tremer de ansiedade enquanto seus dedos descem
mais e mais. Seus lábios sugam e mordem meu pescoço. O prazer passa
por mim e gemo alto em seu ouvido. Seu dedo alcança meu clitóris, mal
o acariciando, mas o choque e o prazer me fazem contorcer em seu colo.
— Pike! — O grito de Thorne é um balde de gelo, derramando
realidade fria em cima de nossas cabeças, apagando as chamas
alimentadas pela luxúria.
Chamas que nunca deveriam estar queimando em primeiro lugar.
Capítulo dezessete

Mickey

— Pike! — A voz de Thorne chama novamente.


Pike se levanta, me jogando de seu colo. Ele parece calmo e
tranquilo enquanto acende um cigarro. A única evidência do que
acabamos de fazer é a grande protuberância esticando a frente de sua
calça.
Eu, por outro lado, pareço ter acabado de nadar em um
pântano. O que eu fiz.
Estamos nas sombras e tenho quase certeza de que Thorne não
pode nos ver de onde está, mas tenho ainda mais certeza de que Pike
não quer que ela nos veja porque ele dá um passo na minha frente,
bloqueando-me da vista.
— Encontre-me na garagem. Rápido! — Ela acrescenta,
desaparecendo ao redor do prédio. Pike pega minha mão e me arrasta
em sua direção. Ainda sinto o gosto de seus lábios nos meus e fico tonta
com tudo isso, mas ele parece tão controlado e zangado como sempre.
Agradeço a interrupção. Uma chance de organizar meus
pensamentos. Para me tornar lógica em vez de imprudente.
Pike se vira. Mais uma vez, seu rosto está frio e impassível. — Isso
não muda nada, — ele comenta categoricamente.
Suas palavras doem e entendo o que ele falou, mas então por que
ouço outra coisa? Algo por trás de sua frieza. Como se ele realmente
tivesse dito: Isso muda tudo.
Pike agarra minha mão, me puxando para fora das sombras e
pelo estacionamento.
Thorne me dá uma olhada, balançando sua arma. — O que
diabos aconteceu com você?
— O pântano aconteceu comigo, — respondo.
Ela encolhe os ombros e, como me disse antes, não faz perguntas.
— Que porra você quer me mostrar? Tenho algo que preciso
cuidar, — Pike cospe, me lançando um olhar.
Eu. Ele tem que cuidar de mim. E não tipo no banho de espuma e
massagem nos pés.
Thorne se inclina e abre o compartimento da garagem. Dentro
está um grande caminhão branco sem marcações. O reconheço
instantaneamente como o caminhão que ajudei a roubar de Pike. Não
havia menção de trazê-lo de volta. Não faz sentido que esteja aqui.
Que merda está acontecendo? Seja qual for a parte do plano, eu
não estava lá quando foi discutido porque nem mesmo entendo os
motivos por trás de todos os problemas para roubar algo assim, só para
trazê-lo de volta.
Pike dá um passo à frente como se não pudesse acreditar no que
está vendo.
— Você acredita nisso? — Thorne pergunta, sorrindo de orelha a
orelha.
— Como? — Pike pergunta, pressionando a palma da mão no
para-choque e se saltando para dentro da porta aberto. Existem barris
de resíduos perigosos revestindo ambos os lados do caminhão. Ele abre
alguns para verificar o conteúdo.
Ele olha para mim e repete a pergunta. — Como?
— Para ser sincera, a verdade é que não faço ideia, —
respondo. — Estou tão confusa quanto você.
Thorne dá de ombros. — Também não tenho ideia. Vim guardar
uma Vespa e, quando abri o compartimento, bum, ele estava de volta.
— Ela faz um gesto de surpresa com as mãos.
O som de uma motocicleta entrando no estacionamento vibra
através da garagem, o eco aumentando tanto que cubro meus ouvidos
até que uma moto preta brilhante estaciona e desliga o motor.
O homem é enorme e todo vestido de preto. Há cintos enrolados
em seus antebraços musculosos. Ele olha para o caminhão e depois
para Pike. Seus olhos verdes brilhando de fúria.
— O que está acontecendo? — Sussurro para Thorne. Seus olhos
estão arregalados e ela pressiona um dedo sobre a boca, indicando que
devo fechar a minha.
O homem empurra o queixo para o caminhão. — Importa-se de
explicar por que recebi um telefonema misterioso sugerindo verificar a
porra da sua garagem e que quando o fizesse, te encontraria parado
aqui com o caminhão que você me disse que foi roubado? — Ele volta
os olhos verdes suspeitos para Pike. — Precisamos conversar, porra.

Thorne me leva de volta ao quarto de Pike e se certifica de que


novamente tenho tudo o que preciso para um banho. Quando pergunto
quem é o homem na garagem, ela simplesmente diz: — King.
Reconheço o nome. Já o ouvi antes, mas nunca em um contexto
que me desse informações suficientes para classificá-lo como inimigo,
amigo ou associado.
Enrolo uma toalha em volta do meu corpo e me sento na beira da
cama. Há um laptop aberto na cômoda. Vou até ele e pressiono uma
tecla. A tela ganha vida. Não é protegido por senha. — Idiota, —
murmuro. A tela tem vários quadrados de vídeos em preto e branco. O
canto superior direito é a garagem. Rebobino até ver homens familiares
com máscaras de caveira parando o caminhão antes de correr para uma
van a espera e sair em alta velocidade.
Avanço para agora, quando King e Pike estão em uma conversa
profunda. Gostaria que o vídeo tivesse som para que eu pudesse ouvir o
que estão discutindo. Mas outra coisa chama minha atenção dentro da
porta aberta do caminhão. Amplio a imagem e comparo com a memória
da noite em que o pegamos, procurando por uma diferença que sei que
está lá.
As fechaduras se abrem. Instintivamente, aperto a toalha em
volta do meu corpo. Pike entra e percebe o que estou assistindo. —
Importa-se de explicar? — Ele pergunta.
— Gostaria de poder, — respondo honestamente.
— Você precisa explicar, ou isso não vai acabar bem pra você,
porra, — Pike vocifera. Não é bem um aviso, mas uma explicação, um
apelo pela verdade que nunca poderei lhe dar. — Isto não é um jogo de
merda, Mic, e estou cansado de jogar, porra. Fale agora.
— Você... você me mataria, — respondo. Não é uma pergunta.
— Mic, estou ficando sem paciência, e sim, mataria qualquer um
que atravessasse meu caminho. Eu não discrimino. Não só seus amigos
me roubaram, mas devolveram minha merda para me incriminar e
fazer parecer que estava tentando ficar com todos os lucros para
mim. Quem quer que esteja por trás disso quer destruir minha
vida. Tudo pelo qual trabalhei. Tive que convencer King para sair da
porra de um precipício, e ele ainda não está satisfeito com a minha
resposta de não saber como diabos isso veio parar aqui ou por que
diabos está de volta.
Não sei o que dizer para tirar a dor e a raiva de seu rosto e não
destruir tudo pelo que tenho trabalhado tanto. Eu respiro fundo. — É o
quinto dia. O que você vai fazer?
Ele me olha com desconfiança. — Jesus Cristo! Não estou
seguindo essas regras do caralho. Estou apenas tentando proteger o
que é meu e ferir as pessoas que estão prejudicando meu negócio. Meus
amigos. — Ele me encara; seus olhos são adagas sendo atiradas em
meu coração. — Mas você não saberia sobre como proteger as
pessoas. Você é muito egoísta e presa em algumas besteiras que acha
mais importantes. Você pode ser inteligente, mas também é egoísta.
Suas palavras abriram uma caverna em meu peito. Um lugar
vazio antes apenas preenchido por ódio e tristeza, não uma extensão de
dor. Porque ele não está errado, mas também não está certo. — Você
está certo. Minhas intenções são egoístas. Mas não pense por um
segundo de merda que você detém os direitos de proteger aqueles que
ama, porque você não sabe merda nenhuma sobre o que passei ou por
que estou fazendo isso.
— Porque você não me conta, porra! — Ele grita.
Pike vem até mim e me agarra pelo pescoço. Uma pontada aguda
de medo se expande em meu peito. Olho ao redor em busca de uma
arma, mas só encontro a tela do computador. De repente, o que estava
procurando antes se torna óbvio. — Espere! — Grito, empurrando
contra seu peito. — Os barris. Eles têm uma embalagem branca com
um pedaço de fita preta por cima.
— E? — Ele diz, lentamente liberando seu domínio sobre mim,
piscando para afastar a raiva que o possui.
Eu aponto para a tela. — Veja. No vídeo, eles têm a mesma fita,
mas é mais grossa do que vi no andar de baixo e está embrulhada de
forma diferente. Dá duas voltas pelos pacotes em vez de uma.
— Eles foram adulterados, — diz ele, olhando para a tela.
— É que estou achando. — Mantendo a toalha apertada em volta
do meu corpo. — Você tem caneta e papel?
— Por quê?
— Porque há algumas coisas que precisamos se você quiser
ter certeza.

Depois de escrever o que vou precisar, Pike sai


intempestivamente. Aproveito para vestir uma das camisetas de Pike
que encontro na cômoda, já que não quero colocar as enlameadas
novamente. Penteio meu cabelo molhado e escovo meus dentes. Verifico
o despertador na mesa de cabeceira. Ele se foi há mais de uma hora e
estou começando a pensar que não vai voltar e descartou minha ideia
como outra tática de manipulação.
Depois de quase duas horas, a porta se abre. Pike entra com um
dos pacotes do caminhão e uma caixa contendo jarros de plástico com
os produtos químicos que solicitei. Não vou perguntar como ele os
conseguiu, pois o único lugar que conheço que os teria em mãos são
laboratórios e fábricas de produtos químicos industriais.
— Na cozinha será mais fácil, — sugiro. — Mais espaço.
Ele faz um gesto para que eu o siga. Ele coloca tudo no balcão e
começo a separar o que vou precisar, certificando-me de identificar cada
líquido individualmente e colocando-os em fila na ordem em que
vou usá-los. — Você tem uma tigela limpa? De preferencia de vidro.
Ele abre os armários e pega um copo de conhaque, colocando-o
no balcão ao lado do meu cotovelo. — Isso vai servir.
Pike senta ao balcão em um dos banquinhos e observa enquanto
trabalho, combinando delicadamente uma frágil mistura de produtos
químicos que, se não for manuseado adequadamente, pode explodir
este lugar em pedacinhos.
Ele balança a cabeça como se não pudesse acreditar que
concordou com isso. — Pelo que sei, você poderia estar construindo
uma porra de uma bomba.
Balanço a cabeça e giro o conteúdo do copo. — Não, mas pode
causar algum dano em mãos destreinadas, — ofereço. — Uma bomba
exigiria uma corrente. Uma bateria de carro ou... — Percebo Pike
olhando para mim. Provavelmente é melhor não lhe explicar como
construir uma bomba, não importa que ele saiba que agora posso
construir uma com utensílios domésticos. Uma poderosa também. —
Uh, não importa.
Olho para o pacote plástico. — Abra, — o instruo.
Pike desembainha sua faca e está prestes a cortar o pacote.
Estendo minha mão para detê-lo.
— O que foi? — Ele ladra.
Sorrio categoricamente. — Lave primeiro.
Ele se levanta e lava a faca na pia com água e sabão. O espaço no
balcão é limitado, seu bíceps roçando meu antebraço enquanto ele seca
a faca agora reluzente. A corrente elétrica que senti do lado de fora
zumbe entre nós mais uma vez. Minha pele fica muito ciente de sua
presença, e fecho bem minhas pernas para parar a pulsação da
necessidade não atendida batendo lá.
Solto um suspiro quando ele contorna o balcão e novamente se
empoleira em seu banquinho, colocando uma distancia muito
necessária entre nós.
Ele abre um buraco no pacote. — Quantos você precisa?
— Apenas um, — respondo. — Jogue no copo.
Ele pega um comprimido do pacote e paira a faca acima do
copo. — Lentamente, — digo, agachando-me para que fique no nível do
copo. Levanto minha palma. — Muito devagar.
Pike abaixa a lâmina dentro do copo sem tocar no líquido. Ele a
vira lentamente, deixando cair a pílula branca no líquido claro e
espesso. — E agora? — Ele pergunta, embainhando a faca na bota.
— Agora, vamos esperar. — Levanto o copo, girando lentamente o
conteúdo. — Deve levar poucos… — O líquido começa a mudar para um
azul claro e, depois de alguns segundos, fica bem mais escuro, a cor do
material usado para desentupir ralos, confirmando minhas suspeitas.
Coloco o copo na mesa com cuidado.
Pike se inclina sobre o balcão, olhando para o copo. — E então?
Aponto para o copo. — Definitivamente foi adulterado. O ecstasy
foi misturado com fentanil e a julgar pela cor... — Bato na borda. —
Esta única pílula contém uma tonelada disso. Se fosse ingerida... —
Faço uma pausa, incapaz de processar como alguém poderia ter como
alvo crianças inocentes procurando se divertir, independentemente
do motivo por trás disso.
— O que? — Pike pergunta, batendo as mãos no balcão.
Pulo. — Seria letal.
Pike pega o copo.
— O que você está fazendo? — Pergunto, curiosamente.
Ele não responde. Em vez disso, Pike pega o copo inteiro na mão e
olha para a cor como se não acreditasse no que está vendo. Então, com
um rugido raivoso, ele joga o copo sobre minha cabeça e ele se espatifa
contra os armários. Agacho-me atrás do armário, uma tentativa
fracassada de me esconder de sua ira.
— Vá dormir, — ele ordena.
— Você ... não vai? — Pergunto, sem saber como terminar minha
frase porque realmente não sei o que estou perguntando. Você não vai
me matar agora? Parecia muito um lembrete para mantê-lo concentrado
na tarefa.
Ele cerra os punhos. Seu peito está pesado. Ele inclina a cabeça
contra a parede e a soca com o punho. — Não essa noite. Hoje à noite,
tenho outra merda que preciso lidar.
Sinto uma forte necessidade de confortá-lo, o que é estranho
dadas as circunstâncias.
— Vá para a cama, — ele ordena novamente. Ele sai da
sala. As fechaduras clicam. O ouço falando ao telefone, sua voz
sumindo enquanto desce as escadas.
Cama? Como posso dormir agora? Depois de tudo o que
aconteceu? Mas o pensamento de como não posso dormir ou apenas
dormir me faz bocejar, e percebo que
estou cansada. Mentalmente. Fisicamente.
Minha mente volta para o beijo.
Emocionalmente.
Vou até a cama e puxo as cobertas, me jogando com zero
graça. Puxo o cobertor sobre o peito. O sono não vem. Fico lá por horas,
executando todos os cenários que posso pensar sobre para onde iremos
a partir daqui. Nenhum deles termina comigo viva, exceto uma invasão
alienígena onde os alienígenas acidentalmente me atingem com seu
feixe a laser me puxando para sua nave e eu caio em uma pilha de feno.
A fechadura se abre e a porta fecha suavemente e volta a abrir no
quarto. Ouço Pike se aproximar da cama e tirar as botas, jogando a
camisa no chão, seguido pelo som inconfundível de seu cinto e, em
seguida, seu jeans batendo no chão.
Sinto o colchão afundar ao meu lado.
— Você vai dormir aqui? — Sussurro, puxando o cobertor mais
apertado sobre o meu peito.
— Você vê outra cama? — Ele pergunta.
— Não, — digo.
— Vá dormir, Mic. Haverá muito tempo para discutir e querer
matar um ao outro amanhã. Esta noite, você fez algo bom. A merda
ruim ainda estará aqui para se preocupar quando o sol nascer.
— O que fiz de bom? — Pergunto, precisando saber ao que ele
está se referindo.
Ele suspira. — Você mostrou que os pacotes foram adulterados e
que havia fentanil suficiente naqueles comprimidos para matar as
crianças estúpidas que os tomam. — Sinto a tensão em seu corpo do
outro lado da cama. — Minha pergunta é por quê? Por
que me contar afinal? Por que simplesmente não deixar acontecer?
— Isso não é algo bom. Só não quero que pessoas inocentes
morram, — digo simplesmente. — Não quero que ninguém morra.
— Mas, por que ir contra seu próprio pessoal? São planos?
Agora é minha vez de suspirar. — Só posso te dizer que cada
decisão que tomo é por ninguém além de mim e minha própria
consciência, e sinceramente lamento que isso esteja te machucando. —
Meu peito aperta.
— Que jogo você está jogando, Mic? — Ele pergunta,
calmamente. Muito calmo.
Eu rio. — Jogar insinua que posso perder. Não estou jogando
nenhum jogo porque perder não é uma opção.
— Você não pertence a esse mundo, — diz ele, parecendo
totalmente sincero. — Ou aquele. Simplesmente não.
— Não, eu não pertenço, — admito, e é a verdade. Não pertenço a
esse mundo.
Mas quando tudo isso acabar, esse mundo me pertencerá.
Capítulo Dezoito

Pike

O encontro com King e Nine foi brutal. Embora, King agora


entenda que não estou tentando enganá-lo fingindo roubar minha
própria remessa que ele financiou. A pior parte é que Nine atestou por
mim. Se King continuasse acreditando que não sou confiável, no final
das contas, Nine pagaria. Não posso permitir que isso aconteça com
meu amigo, certamente não por minha causa.
Mas isso não vai acontecer. Por causa dela.
Fico olhando para Mickey, dormindo profundamente, seu
pequeno ronronar sendo o único som no quarto silencioso.
Quero envolver minhas mãos em torno de sua linda garganta e
sufocar a informação de sua boca perfeita, mas Gutter está certo. A
garota é forte e a violência física faria com que ela não confiasse em
mim e quero que ela confie em mim se pretendo descobrir o que preciso.
Encolhi-me ao ver os olhos dela quando lhe disse depois do beijo
que isso não muda nada. Era mentira. Isso muda tudo. Uma vez que a
provei, não consegui parar de saboreá-la. Coberta de lama ou não, não
posso mentir para mim mesmo e fingir que não estava pronto para
tomá-la ali mesmo na calçada.
Movimento estúpido da minha parte. Ceder ao meu desejo
primitivo de beijá-la, de reclamá-la, em seguida, dispensá-la logo depois
de sermos interrompidos não vai abrir as portas para a honestidade.
Afasto o cabelo de seus olhos e não posso deixar de sorrir quando
ela faz um barulho de protesto e move a cabeça enfiando a cara no
travesseiro.
A maneira como ela usou sua memória fotográfica e seu grande
cérebro impressionante, mesmo depois de tê-la tratado com tanta frieza
para me alertar sobre a adulteração. Apenas para arruinar os planos
que seu próprio pessoal obviamente orquestrou para destruir minha
reputação e minha conexão com King. Ela me ajudou.
Não, lembro. Não posso pensar assim. Ela fez isso para salvar
pessoas, não eu. E, no entanto, isso não me faz sentir menos idiota pela
forma como a tenho tratado. O que acontece é que, olhando para trás
em minha vida, não consigo me lembrar de uma época em que me senti
culpado por ser um idiota. Não há nada em minha vida que possa dizer
que me arrependa de ter dito ou feito, mesmo que essas
ações tenham resultado em ferir outras pessoas, física ou
emocionalmente.
Ela não é a pessoa egoísta de que a acusei. Pessoas egoístas não
salvam a vida de milhares de ravers desavisados determinados a ter um
bom momento. Não ferram seu próprio pessoal em nome de outros.
Mas Mickey sim.
O que me leva a acreditar que Gutter está certo de outra
maneira. Ela tem sua própria agenda. Ela praticamente me disse
isso. Ela pode não ser capaz de me dizer quem está por trás de
tudo isso, mas se o que Gutter disse estiver certo e eu conseguir que ela
me conte o que é, isso poderia me dar o suficiente para me levar direto
à porta do filho da puta.
Meus olhos ardem de exaustão.
Não consigo dormir. Não apenas por causa de toda a merda que
aconteceu nos últimos dias, mas por causa dela.
Meu pau endurece com o pensamento de Mickey na minha
cama. De saber que ela está ao alcance do braço e que está usando
apenas uma das minhas camisetas.
Foda-se isso. Saio da cama, vou ao banheiro e ligo o chuveiro,
girando a torneira para o frio. Entro sob o jato, mas mesmo a explosão
gelada não é o suficiente para apagar a necessidade ardente que lateja
em meu pau.
De frente para o azulejo, pego meu pau na mão. Respirando
fundo, permito que meus pensamentos corram livres. Penso em como
Mickey reagiu ao meu beijo. Sua inocência mostrada na maneira como
não sabia exatamente como me beijar de volta, mas o fez de qualquer
maneira porque queria. Tudo que dei a ela naquele beijo, ela me
devolveu. O tempo todo nós dois estávamos lutando contra essa coisa
estranha nos unindo. A porra do desejo em seus olhos. A maneira como
seu corpo respondeu ao meu. Seus pequenos gemidos e suspiros. Se
Thorne não tivesse nos interrompido, sei que poderia tê-la feito gozar
bem ali na porra da calçada. A maneira como ela me cavalgou,
buscando seu próprio prazer, sabendo que eu poderia dar a ela.
Não demora muito até que minhas bolas fiquem tensas e eu goze
em longas e fortes rajadas, fluindo dias de desejo reprimido por todo o
ladrilho amarelo. Depois de recuperar o fôlego, giro o chuveiro para
enxaguar a parede. Me ensaboo e enxaguo, pego uma toalha pendurada
em um gancho na parede enquanto saio do chuveiro.
Limpo a água do rosto e sinto o cheiro do xampu feminino de
pepino que Thorne deu a Mickey.
Instantaneamente, estou duro de novo.
Xingo mentalmente, me secando o mais rápido possível.
Desligando a luz do banheiro, volto para a cama e levanto os
cobertores, o colchão mergulhando sob o meu peso enquanto coloco
minha cabeça no travesseiro. Viro minha cabeça e olho para a pequena
sombra sob os cobertores ao meu lado.
Agora, mais do que nunca, percebo que quero saber o que motiva
Mickey.
Rolo para longe dela enfrentando a porta. Fecho meus olhos, mas
não o pensamento indesejado que se segue.
Não quero conhecê-la por qualquer admissão da verdade, mas
porque realmente quero saber tudo o que há para saber sobre ela.
Finalmente adormeço apenas para ter um sonho que não tenho
há anos. Mas não é um sonho.
É um soco no estômago da porra de uma memória.
Cinco anos de idade
— Ei, garotão. Venha comigo para que possamos conversar um
minuto, ok? — Mamãe olha para mim, mas seus olhos não parecem
bem. Eles estão injetados e vítreos, com bolsas embaixo. Já a vi chateada
antes, muitas vezes, mas nunca assim. Sua mão está tremendo e suada
quando ela pega a minha, me levando para a pequena sala de estar. Ela
me senta no sofá. Sua mão nunca deixa a minha. — Papai nos
deixou. Para sempre desta vez.
Ela está esperando por uma reação que nunca virá. Nunca via o
homem e, quando o fiz, ele estava batendo na minha mãe. Por que ela
está tão chateada? Pessoas que não são boas em nossas vidas não
deveriam estar em nossas vidas. — O que acontece é que não posso fazer
isso sozinha. Eu não estou ... eu não posso... simplesmente não posso, —
ela soluça. — Sinto muito, baby. Você merece muito melhor.
Não me importo com o que mereço. Eu a quero.
— Não entendo, — digo, segurando sua mão com mais força
enquanto ela tenta se afastar.
Ela olha para mim por alguns segundos antes de sorrir
tristemente. Ela bagunça meu cabelo. — Deixa pra lá. A mamãe te
ama. Vou sempre te amar. É tudo que você precisa saber. Tudo vai ficar
bem. Prometo.
Ela funga e enxuga as lágrimas. Ela se levanta. — Você quer
assistir um filme?
Aceno, convencido de que tudo vai ficar bem como ela disse, porque
tenho cinco anos e ela é minha mãe.
Ela desaparece na cozinha e alguns minutos depois volta com uma
tigela grande de pipoca, uma garrafa de água e todos os meus doces
favoritos. Ela clica no controle remoto e pressiona o play no meu filme de
super-herói favorito.
— Mamãe tem que cuidar de alguma coisa. Já volto, — diz
ela. Ou, pelo menos, é o que acho que ela diz. Estou muito absorto na
batalha da cena de abertura diante de mim para realmente ouvir. Nem
percebo a porta abrindo ou fechando ou qualquer outra coisa porque
adormeço.
Quando eu acordo de um coma induzido por junk-food, há três
homens uniformizados olhando para mim. Policiais. — Você está sozinho,
garoto? — Eles perguntaram.
Olho em volta. — Minha mamãe está aqui. Estávamos assistindo a
um filme. Adormeci.
Os policiais trocam um olhar de cumplicidade. — Não tem ninguém
aqui, garoto. Foi sua mãe quem nos ligou. Vamos. Você tem que vir
conosco. Vai ficar tudo bem.
Não acredito nele, não como acredito na minha mãe. Ela vai
voltar. Ela disse que voltaria.
— Ela vai voltar! — Grito enquanto eles me pegam. Chuto e choro
fora de seu alcance. — Ela vai voltar!
Um suspira alto e parece mais triste do que minha mãe parecia. —
Não, garoto. Ela não vai voltar.
Eles me levam até a viatura, e um fica no banco de trás comigo,
enquanto os outros dois vão para frente.
A última coisa que me lembro de ver enquanto partíamos é minha
mãe escondida atrás das latas de lixo no beco ao lado da nossa
casa. Ela está pressionando o dedo médio nos lábios para me silenciar
enquanto as lágrimas escorrem pelo seu rosto.
Eu estava triste, mas também com raiva. Virei-me e olhei para
as costas do assento.
Ela disse que me amava, mas me deixou.
Se o amor é assim, não quero fazer parte disso.
Capítulo Dezenove

Mickey

Na manhã seguinte, Pike me arrasta escada abaixo até a loja de


penhores antes que eu esteja totalmente acordada. A loja cheira a limpa
prata e cigarro rançoso. É a primeira vez que fico nela tempo suficiente
para olhar em volta e assimilar, mas não consigo porque Pike me
coloca em uma cadeira ao lado do balcão.
Dirijo meus olhos de um lado para o outro da sala, esperando o
monstro pré-verbal pular em cima de mim. — O que está acontecendo?
Pike se agacha na minha frente. — Matei você ontem?
Inclino minha cabeça e respiro profundamente. Ainda viva. —
Não.
Pike sorri. — Da maneira que vejo, você e eu precisamos chegar a
um entendimento. Você não vai tentar fugir de novo e não vou te
machucar enquanto estiver tentando descobrir essa merda. Não há
necessidade de ficarmos na garganta um do outro o tempo todo. Tenho
merda suficiente com que me preocupar.
Estou hesitante em aceitar sua oferta de trégua, mas meu
pensamento é interrompido quando uma linda garota loira não muito
mais velha que eu entra pela porta. Ela está usando uma camiseta rosa
que diz: “Ok, Karen”. Sem cumprimentar Pike, ela começa a remover as
ferramentas de uma sacola azul que colocou aos meus pés.
Thorne entra na sala. — Pike, preciso de você, — ela diz.
Pike se levanta. — Volto logo.
Ele me deixa sozinha com a garota loira que está cantarolando
para si mesma enquanto trabalha.
— Quem é você? — Pergunto.
Ela remove uma pequena caixa preta de sua bolsa e pressiona
uma chave de fenda em um dos orifícios até que uma faixa preta a
conectando seja liberada de um lado. — Sou Rage. Serei sua amigável
instaladora de pulseira de prisão domiciliar hoje. — Ela tira um par de
luvas de látex do bolso de trás e as veste. — Diga-me, você espirrou,
tossiu ou teve febre nas últimas quarenta e oito horas?
Instaladora de pulseira de prisão domiciliar? Ele disse que não
seguiria as diretrizes! — Oh não.
— Bom. Você comeu alguma coisa do bar ao lado ou tocou em
qualquer coisa do referido bar, incluindo, mas não se limitando a:
maçanetas, bancos do bar, puxadores do box do banheiro, etc.? — Ela
se ajoelha aos meus pés e coloca a faixa em volta do meu
tornozelo. Novamente, ela usa a chave de fenda, mas desta vez para
encaixar a pulseira no lugar.
Aponto para o dispositivo. — Não, mas o que isso tem a ver com o
que quer que você esteja fazendo?
Rage balança a cabeça, chicoteando seu rabo de cavalo loiro de
um lado para o outro de seu rosto. — Nada. Só não quero pegar a peste
enquanto instalo esta bela obra de arte, e o bar ao lado parece uma
porra de uma fossa. — Ela se encolhe.
— O que exatamente essa coisa faz? — Pergunto, nunca tendo
usado uma pulseira de prisão domiciliar. Rage gira a chave de controle
mais uma vez e levanta para admirar seu trabalho.
— É uma bomba, — diz ela, casualmente, confirmando minhas
suspeitas. — Pronto. Tudo feito.
— Me desculpe, é o quê? — Pergunto, branca e apertando a
cadeira.
Rage olha para mim e inclina a cabeça. — Você sabe... uma
bomba? Bombas fazem boom? — Ela faz um movimento explosivo com
as mãos. — Por que as pessoas parecem nunca entender o que é uma
bomba? O que estão ensinando na escola atualmente?
— Não como instalar bombas em pessoas! — Tive todo o meu
conhecimento sobre bombas muito depois de terminar a escola.
Ela encolhe os ombros. — Vergonha.
Tento organizar meus pensamentos. — Sei o que é uma
bomba. Eu só quero saber por que uma está presa ao meu tornozelo.
Ela revira os olhos. — Porque ficaria feia em seu pulso.
— Ela está te dando problemas? — Pike pergunta. Ele se
move atrás de mim parando ao lado de Rage.
— Não, mas ela não sabe o que é uma bomba, — murmura
Rage. — Você com certeza sabe como escolhê-las, Pike.
Ele não discute com ela. Não diz a ela que não me escolheu e que
estou sendo mantida contra a minha vontade, mas não acho que Rage
ficaria surpresa... ou se importaria, já que ela simplesmente prendeu
um explosivo no meu corpo.
Olho para Pike. — Está tudo bem aqui, Pike. Apenas nós,
meninas, tendo uma sessão de manicure e pedicure com instalação de
bomba.
— Ugh, até parece, — Rage diz, seu nariz enruga em desgosto. —
Você sabe que tipo de bactéria pode ser encontrada nas ferramentas
dos salões de manicure? — Ela enfia a chave de fenda em uma bolsa
azul com um megafone ao lado. — Ok, isso é tudo para mim. Pike, vou
enviar-lhe a minha conta. Se você não pagar, vou te mandar em
pedaços para seus amigos pelo correio.
— Como está Nolan atualmente? — Pike pergunta.
Ela suspira sonhadora. — Um modelo de civil perfeito não
assassino como sempre, — ela responde. Ela pega sua bolsa e me lança
um último olhar, então olha para Pike, apontando o queixo em minha
direção. — Ensine a menina o que é uma bomba, ok?
A campainha acima da porta toca, anunciando sua saída.
— Eu sei o que é uma bomba, — murmuro. Através do vidro, vejo
Rage montando em uma Vespa azul bebê. Ela sai do estacionamento,
levantado cascalho em seu rastro.
— Você disse que não estava seguindo essas diretrizes estúpidas,
— acuso.
— Se as estivesse seguindo, você já estaria morta, — ressalta. Ele
não está errado. É o sexto dia, pelas minhas contas.
Pike fica na minha frente e se inclina pela cintura, colocando as
mãos ao meu lado nos braços da cadeira. — Nós dois sabemos que você
sabe o que é uma bomba, então estamos na mesma página. O que
preciso explicar é que, se você for além do estacionamento ou do beco,
ouvirá um bipe de aviso. Depois disso, tem dez segundos para voltar
onde precisa estar antes de disparar. A mesma coisa acontece com a
adulteração, exceto que você não receberá nenhum aviso.
Pike vai para a sala dos fundos.
Com minha liberdade recém-descoberta, eu deveria sair e respirar
um pouco de ar fresco, mas, em vez disso, acabo seguindo
Pike. Quando o encontro, ele está curvado sobre algum tipo de livro e,
para minha surpresa, há um par de óculos de leitura pretos
empoleirados em seu nariz. — Por que você me levou para ver Gutter no
outro dia?
— Já te disse. Eu precisava falar com ele.
— Quer dizer que você precisava dar dinheiro a ele?
Isso chama sua atenção. Ele olha para mim. — Ele te disse isso?
— Entre outras coisas, mas o que ele não me disse é por que você
me levou lá. Você poderia ter me deixado amarrada a alguma
coisa. Você realmente não precisava me levar.
Pike fecha o livro e se dirige para o estacionamento. — Lembre-se,
se soar, você foi avisada.
Bato meu pé no chão. — Idiota arrogante, — murmuro baixinho.
— Porque ele queria saber a verdade, — Thorne diz, fazendo sua
presença conhecida. Ela está curvada no canto, tirando fotos de um
conjunto de porcelana. — Para postar na loja online, — ela explica
quando me vê olhando.
— O que quer dizer, porque ele queria saber a verdade, —
pergunto, empoleirando-me em um banquinho.
— Gutter é um enigma. Um daqueles sábios ou como quiser
chamá-lo. — Ela arruma uma das delicadas xícaras de chá azuis para
esconder uma lasca no canto e tira algumas fotos, verificando a tela de
sua câmera após cada uma. — Ele pode ver entre as rachaduras
quando outras pessoas não podem. É por isso que Pike a levou lá.
— Ele é um gênio? — Quase caio do banquinho. — Não teria
imaginado isso.
— Ninguém imaginaria.
— Gostei de Gutter, — admito. — Agora, sinto que o julguei muito
rapidamente e não quero ser essa pessoa. Aquela que coloca alguém em
uma caixa à qual não pertence.
Thorne remove o jogo de chá do pano de fundo, embrulhando
cuidadosamente cada um em jornal antes de colocá-lo delicadamente de
volta em uma caixa com divisórias para cada peça. — Você pode pegar
aquele violino?
Escorrego do banquinho e vejo uma caixa de violino em uma
mesa próxima. Clico para destravá-la e cuidadosamente o puxo do forro
de veludo azul. Ela coloca a caixa com o jogo de chá na prateleira acima
de sua mesa e estende a mão para o violino. O entrego e ela novamente
começa a organizá-lo meticulosamente sobre o fundo verde brilhante. —
Não seja tão dura consigo mesma por julgá-lo. Gutter pertence à essa
caixa. Na verdade, ele se colocou nessa caixa. — Ela levanta os olhos
da câmera. — Não, risque isso. Ele construiu a porra da caixa.
Thorne ri e tira outra foto. Ela olha para a tela da câmera e se vira
para mim. — Ele não é tecnicamente um gênio pela extensão da
fantasia, mas tem uma habilidade sobre-humana. Ele inclusive tinha
um contrato com os militares como especialista em tortura por causa
disso.
Especialista em tortura?
Agora estou me perguntando se a tortura sensorial não foi
inteiramente ideia de Pike.
Observo Thorne trabalhar, fascinada por como ela é cuidadosa
com cada peça, como se fosse algo transmitido a ela por um parente
próximo e querido ao seu coração.
— Qual é exatamente essa habilidade que o torna um bom
candidato a especialista em tortura? — Pergunto, intrigada.
Thorne se afasta, contorcendo o corpo em várias posições
diferentes até que finalmente está satisfeita com a foto. — Gutter era
conhecido em sua época como o detector de mentiras humano.
— Contei tudo a ele, — digo. — Bem, quase tudo.
— Eu sei. Ele disse a Pike que você estava dizendo a verdade
como a vê, o que não é a mesma coisa que a verdade. Mas também que
você está escondendo algo. Um segredo que pode não ser seu para
contar.
— Ele não está errado, — digo, envolvendo meus braços sobre
minha barriga.
Thorne aponta para o novo acessório no meu tornozelo. — Por
agora? Para você? — Ela sorri. — Isso significa que você subiu de nível.
Inclino minha cabeça. — Thorne, é uma bomba. — Levanto meu
pé e bato meu calcanhar na mesa. — Em. Meu. Corpo. — Eu abaixo o
pé. — O que, significa, exatamente, subi de nível?
Ela levanta dois dedos. — Cativa. Nível dois.

Pike

Mickey olha ao redor da loja de penhores como se estivesse


fazendo um inventário mental. — Tentando descobrir o que mais você
pode roubar? — Pergunto. É para ser uma provocação, mas sai mais
duro do que queria. Até agora, essa coisa de ganhar
a confiança dela está indo muito bem.
Suas costas pulam. Sorrio, tendo grande prazer em ser capaz de
assustá-la tão facilmente.
Ela corre as mãos pela lombada de um violoncelo apoiado em um
suporte no final de um dos corredores. — Não, ainda estou tentando
descobrir outra coisa.
— E o que, exatamente, seria isso? — Desço o corredor e a
encontro no final.
— Quem você realmente é. Claro, percebi algumas coisas no seu
apartamento, mas você está certo, essas eram as coisas óbvias. Coisas
que você não tenta esconder. — Ela dedilha uma das cordas do
violoncelo. — Percebi que não quero julgar alguém rapidamente porque
as pessoas são muito mais complicadas do que parecem. Até você.
— Uh, obrigado? — Por um momento, sinto que vou sufocar. —
Você não tem que tentar me analisar. Vou te dizer agora quem
sou. Alguém com quem você não fode. Isso é tudo que precisa saber. —
Respiro calmamente e tento novamente. Desta vez com menos raiva
em minha voz. — Você já sabe o suficiente, — falo, sinceramente.
Ela cruza os braços sobre o peito. O movimento empurra seus
seios para cima e os faz balançar, chamando minha atenção para os
montes perfeitamente redondos que aparecem no decote de sua
camisa. Estou começando a reconhecer quando o lado tímido dela
muda para o lado confiante. Gosto disso quase tanto quanto assustá-la.
A coisa dos peitos também não é tão ruim.
— Besteira, — ela responde.
Passo por ela, roçando seu ombro. — Chame do que você
quiser. Você sabe o suficiente. — Faço um grande alvoroço ao
endireitar o violoncelo já reto, como se ela o tivesse derrubado no
chão. Olho para ela por cima do ombro. — Você pode tentar o quanto
quiser, Mic. — Fico de pé novamente, pairando sobre ela. Ela não cede
ou recuar. Passo meu olhar sobre seus seios de dar água na boca e de
volta para seus grandes olhos cinzentos. Ela cora e lambo meus lábios,
gostando de como posso transformar seu rosto de branco claro para
rosa com um olhar simples. — Não sou um experimento ou uma
variável que possa ser respondida ou resolvida. Não procure por merda
que não está aí, ou merda que não quer encontrar.
Minhas palavras são para ser honestas, mas Mickey leva isso
como um desafio, endireitando-se ainda mais e projetando seu queixo.
Chupo meu lábio inferior para me impedir de fazer algo
estúpido. Que porra há com essa garota que me faz querer beijá-
la? Senti naquela noite, e estou sentindo agora. E não estou falando
apenas sobre a baixa vibração que saí cantarolando de meus lábios,
obrigando-me a pressioná-los contra os dela. Também estou falando
sobre a pulsação do meu pau se esforçando para se libertar do meu
jeans com o mero pensamento de beijá-la. Ergo a mão e seguro seu
rosto, esfregando meu polegar sobre sua mandíbula. Seus lábios se
separaram. Suas pupilas dilatam. Sei que ela sente isso
também. Estamos tão perto que posso praticamente prová-la. Deslizo
minha mão em torno de seu pescoço.
Mickey se inclina e passa sob meu braço, virando-se para me
encarar no corredor central. Ela limpa a garganta. — Entendo por que
você tem a loja de penhores agora.
Bufo de aborrecimento, mas comigo mesmo do que com
ela. Deveria estar grato por ela se afastar quando o fez, mas não
estou. Tentar transar com ela não é ganhar sua confiança.
Ligue para as gêmeas Baker esta noite. Você precisa foder essa
garota de seus pensamentos. Me lembro. — Você sabe por que tenho a
loja de penhores? — Pergunto. — Porque comprei de uma senhora
idosa. Era uma loja de antiguidades. Forneço drogas pela porta dos
fundos. Mas você já sabia disso antes de invadi-la para roubar minhas
coisas. — Faço uma careta. — Quero dizer, antes de você entrar aqui
pela primeira vez. Isso não é você me entendendo, Mic. Isso é você
fazendo sua lição de casa.
— Não é minha intenção... ofender seu negócio paralelo. Não era
isso que estava tentando dizer, — ela se corrige, deixando cair os
braços. Suas bochechas ruborizam. Ela está envergonhada.
— Sinto uma alegria doentia em ver seu rosto ficar vermelho, —
digo a ela, sem pensar.
Mickey olha de uma parede para a outra e faz gestos para elas
com as mãos. — Tudo isso me diz algo mais. É a sua história não
falada. Aquela que não conheço.
— Isso deve ser bom. Vou morder. Ilumine-me, Mic. Quem diabos
sou agora? Você sabe, além de uma criança com distúrbio de
aprendizagem e um cara solteiro com uma cozinha feia.
Ela caminha por um corredor passando as pontas dos
dedos sobre várias lâmpadas e tigelas de cristal. Ela pega uma caixa de
música prateada e a abre. Uma bailarina aparece e a caixa de música
toca uma canção de ninar simples.
— Você viveu toda a sua vida sem ter muita coisa.
Reviro meus olhos. — Dizer a um traficante que ele cresceu sem
merda nenhuma é como dizer a uma stripper que elas têm problemas
com os pais. Vamos, Mic. Impressione-me com esse seu grande cérebro,
— a encorajo. Desafiando-a.
— Todas essas coisas aqui são pedaços de vidas que
outras pessoas viveram. — Ela acena com a mão para a caixa de joias e
depois para a parede de trás. — Alianças de
casamento. Instrumentos. Armas. Cadeiras de balanço. Pinturas e
retratos de família. — Ela levanta a caixa de música. — Isso
provavelmente tocou no quarto de uma criança em algum momento.
Talvez, um presente de seus pais ou avós? Talvez, um lembrete de uma
música que um ente querido cantou para ela à noite. — Ela olha da
caixa para mim. — Você não teve nada enquanto crescia. Ninguém. —
Ela bate a tampa. — E agora você tem tudo. Não apenas coisas, mas
pedaços de uma vida que nunca teve a chance de viver.
Bem, foda-me.
Aponto para ela. — Vamos deixar uma coisa bem clara. Você não
me conhece, porra, e nunca conhecerá. — Corro minha mão pelo meu
cabelo. — Que porra é essa sobre você que me faz querer te foder e
brigar com você, mas não me deixa ser um idiota de merda com você.
— Eu não sei, — ela responde, suavemente. Ela coloca a bailarina
de volta na prateleira. — Não estou fingindo que te conheço, Pike. Estou
apenas apontando o que você está dizendo silenciosamente para o
resto do mundo, pessoas que não são inteligentes o suficiente para
notar ou, mais provavelmente, simplesmente não têm tempo para
perceber. — Mickey fica na ponta dos pés. — Diga que estou errada.
Não sei o que está me irritando mais. O cheiro do shampoo
feminino de pepino flutuando do seu cabelo ou o calor subindo de seus
peitinhos perfeitos enquanto seus mamilos roçam meu peito. Meu pau
salta em atenção, e se a parede não estivesse cheia de instrumentos
caros, eu faria um buraco nela.
Abaixo meus lábios em seu ouvido e sussurro, — Foda-se.

Mickey

— Que porra você está olhando, senhora? — Um menino


pergunta, projetando o queixo e o peito como se não fosse a criatura
mais magra e de aparência mais frágil que já vi. Um gatinho que ladra.
Abro a boca para responder, mas não tenho chance porque Pike
entra. — Jo Jo! O que foi, garoto?
Jo Jo abandona a postura e estende a mão para Pike, e eles dão
aquele meio abraço de ombro que só vi homens fazerem.
Estou surpresa que o homem que me amarrou no escuro com
toda a intenção de me matar dê ao menino uma batida indiferente em
seu boné, baixando a aba sobre seus olhos.
Jo Jo ajusta o boné e sorri para Pike como se estivesse tendo um
encontro casual com uma celebridade. A admiração dançando em seus
olhos muito tristes.
— O que te traz aqui, garoto?
Jo Jo encolhe os ombros. — Betty está recebendo pessoas esta
noite e me disse para desaparecer.
Pike não diz nada sobre a má educação de Betty, mas aponta
para a porta dos fundos. — Você sempre pode ficar por aqui até a
fumaça assentar. Tem merda de sanduíche na geladeira lá em cima, se
estiver com fome. Você sabe o código.
Jo Jo dá uma tapinha em seu estômago. — Estou sempre com
fome. — Ele começa a correr para a porta dos fundos que leva às
escadas quando para, mais uma vez notando minha presença. Ele faz
uma pausa e aponta o polegar na minha direção. — Pike, quem é a
garota com cara de vadia irritada?
Pike olha para mim como se também estivesse percebendo que
estou aqui. — No momento, ela é minha prisioneira.
— E depois? — O menino pergunta.
Pike me encara e solta um suspiro, afastando o cabelo da testa. —
Quem sabe, garoto.
Cerro meus punhos. — Você não precisa falar de mim como se eu
fosse um cachorro dormindo no canto. Estou aqui e posso falar por
mim.
Jo Jo me ignora e torce o nariz. — Ela ficará com a gente esta
noite?
Pike sorri e se inclina contra o balcão de vidro, cruzando os pés
na altura dos tornozelos. — Vamos apenas dizer que ela não vai a lugar
nenhum.
Jo Jo encolhe os ombros como se aceitasse minha presença
menos que desejada e novamente vai para a sala dos fundos quando
seus movimentos o fazem perder o boné. Ele o pega e, quando se
levanta, revela o que nunca pensei estar escondido embaixo
dele. Cabelo louro, comprido e ondulado.
Ele coloca o boné ao contrário e continua subindo as
escadas. Olho para Pike, que viu a mesma coisa que eu, mas não
parece nem um pouco surpreso. Quando ouço a porta fechar, viro
minha cabeça na direção de Pike. — Essa coisinha rude é uma menina?
— Pergunto, percebendo como soa.
— O que? Você acha que apenas meninos podem ser rudes? Isso
é sexista. Isso é tão ultrapassado. As pessoas não pensam mais assim.
— Você acabou de fazer uma piada? — Pergunto, inclinando
minha cabeça para ter uma visão melhor do homem abstrato diante de
mim, mas nada se torna mais claro, exceto que ele pode ter um
transtorno de personalidade múltipla não diagnosticada.
— Isso te ofende também ou apenas garotas que se vestem
como garotos? — Ele pergunta, caminhando até o banquinho.
Rosno em frustração. — Não, seu idiota ignorante. Não estou
ofendida, mas estou surpresa que esconda aquele cabelo lindo sob
aquele boné surrado. Ou devo chamá-la de ele? Como ela se identifica?
Pike franze a testa. — Quem se identifica como o quê? Que porra
você está falando?
— Tanto para saber as coisas atuais, — murmuro, em seguida,
esclareço. — Estou perguntando se a criança prefere ser tratada como
ele, ela ou ambos.
Pike acena em compreensão. — Ela, mas isso muda de vez em
quando.
Agora, sou a única confusa. — Merda, talvez não esteja tão
atualizada, não sabia que podia mudar assim.
Pike ri, e fico irritada com o prazer que ele está recebendo com
minha confusão. E ainda mais irritada por querer que ele me beijasse
de novo mais cedo no violoncelo. Não dormi muito e não podia nem me
virar, porque toda vez que dormia, uma parte de mim entrava em
contato com os músculos quentes dele e começava toda a agitação no
sono de novo.
— Não, Jo Jo é Josephine. Ela é uma garota. Ela se identifica
como uma garota. Ela gosta de meninos, mas também gosta de bater
neles. Mas ela se veste de menino ou menina, dependendo do lar
adotivo em que está e do gênero que manterá os patifes à distância e lhe
causará menos problemas. Um dos meninos mais velhos gosta de
implicar com os meninos menores? Então, ela é uma menina. Se o pai
adotivo olhar para as outras meninas por mais tempo que um pai
deveria? Ela é um menino. Ela percebe a situação em poucos
minutos. Ela é talentosa assim, e isso a mantém longe de um monte de
problemas.
— Inteligente, — reconheço. Embora, me sinta triste que ela ainda
tenha que fazer algo tão drástico como esconder seu gênero para
mantê-la segura.
— É, — ele concorda. — Ela é uma sobrevivente. Assim como
eu. E se quando tem problemas que não consegue controlar, ela vem
para cá. — Ele pega o telefone e a veia em seu pescoço começa a
latejar. — O que me lembra. — Ele pressiona alguns botões. — Ei,
Badger. Faça uma visita a Betty hoje à noite. — Pausa. — Não, não
diga que está indo. Faça uma surpresa. Ela está recebendo pessoas, e
sei o quanto você adora invadir uma festa. — Pausa. — Não, apenas
um pequeno lembrete de suas responsabilidades vai funcionar. — Ele
desliga.
— Um pequeno lembrete de quê? — Pergunto.
— Que não posso ser fodido. — Seu humor está mais sombrio
agora. Ele se inclina sobre mim e inclina meu queixo para encontrar
seu olhar. Seu toque aquece minha pele. — Algo que sempre tento te
ensinar.
— Acho que não aprendo tão rápido quanto pensava, — respondo.
— Não, — ele balança a cabeça lentamente, esfregando o polegar
sobre meu lábio. Há algo que soa muito como orgulho em sua voz,
misturado com confusão e... luxúria. — Não, você não aprendeu.
Ele retira a mão e segue Jo Jo. — Vamos, Mic, — ele grita,
desaparecendo subindo as escadas. — Talvez, Jo Jo e eu possamos lhe
ensinar uma ou duas coisas sobre Banco Imobiliário.
Deslizo para fora do banquinho e o sigo. Amo Banco Imobiliário e
sou muito boa nisso. Sou campeã da minha família desde os seis
anos. Não há nada que ele possa me ensinar sobre o jogo de tabuleiro
que ainda não saiba.
Mas há uma coisa que aprendi hoje: o dispositivo no meu
tornozelo não é uma bomba. Embora isso seja outra coisa que não direi
a Pike.
Capítulo Vinte

Pike

Aprendi algumas coisas sobre Mickey nos últimos dias.


Ela é uma perfeccionista. Meu apartamento inteiro foi organizado
e limpo. Ela até conseguiu fazer o velho piso de linóleo brilhar quando
achei que não seria possível. Ela também é empática como
poucas. Onde não sinto nada, ela chora a cada comercial e chora a cada
visão de um gato de rua. Estranho para uma ladra e soldado de um
exército desconhecido, por isso fico mais intrigado com o enigma que é
Mickey a cada dia que passa.
Ela também é competitiva pra caralho, levando Jo Jo e eu a
falência no Banco Imobiliário e esfregando em nossas caras uma dança
da vitória que novamente fez meus olhos se fixar no que sua camisa
estava cobrindo.
Depois de um longo dia de reuniões que me deixou cansado e
irritado, encontro Mickey no beco atrás da loja. Ela está agachada perto
de uma parede, colocando pratos de papel com comida e Tupperware
com leite.
Meus olhos pousam onde o material de sua calça rosa se estende
em sua bunda em forma de coração perfeita. Quem está torturando
quem aqui? — Que diabos você pensa que está fazendo? — Minhas
palavras saem novamente mais duras do que pretendia. Não tem nada a
ver com os gatos, mas velhos hábitos são difíceis de morrer, e atacar é
tudo que consigo fazer hoje em dia. Gutter disse para ser bom com
ela. Para ganhar sua confiança.
Estou falhando em ambos. Fodendo-a com os olhos? Agora, estou
me superando.
— Alimentando os gatos, — ela responde sem olhar para cima.
Adicione empatia à lista de coisas que aprendi sobre Mickey.
Olho ao redor do beco vazio. — Que gatos? — Assim que as
palavras saem dos meus lábios, meia dúzia de pequenos filhos da puta
sujos caminham até as tigelas. Cada um parando para se esfregar nas
pernas de Mickey antes de roubar a comida um do outro.
Ela passa a mão nas costas de um gato que acho que pode ser
branco sob toda a sujeira cinza e fuligem. — Esses gatos, — diz ela com
um sorriso de lábios apertados, como se estivesse tentando não rir.
Levanto uma sobrancelha e me inclino contra a parede. — E
daí? Você é a senhora dos gatos da vizinhança agora?
Ela pega o menor do grupo, embalando-o nos braços e coçando
atrás das orelhas. É bege com orelhas e pés pretos. — Como você se
sentiria se estivesse com fome e ninguém te alimentasse?
Ela provavelmente está se referindo a si mesma durante seus
primeiros dias aqui, mas uma imagem mental de um dos meus muitos
lares adotivos vem à mente. — Eles vão superar isso e aprender a se
defender sozinhos. Isso foi o que fiz.
A boca de Mickey se abre e seus olhos se enchem de simpatia que
eu não estava procurando. — Você já sentiu fome antes?
A empatia dela, aparentemente, não se aplica apenas aos gatos,
também se estende a mim. O homem a mantendo contra sua
vontade. Sou a última pessoa de quem ela deveria sentir pena, mas
ainda assim posso sentir a tristeza irradiando de sua pele como o calor
de uma luz fluorescente zumbindo.
Encolho os ombros e acendo um cigarro. — Não é grande
coisa. Não fui o primeiro filho e não serei o último.
Ela larga o gato com cuidado, afastando alguns dos maiores para
lhe dar acesso às tigelas. — É por isso que você cuida de Jo Jo? Para
que ela não tenha que passar pelo que você passou?
Depois do dia que tive, não estou com humor para sua análise,
principalmente porque não preciso ouvir meu passado repetido para
mim. Durante anos, fingi que ele não existia, mas Mickey tem a incrível
capacidade de trazer a merda à tona que tenho empurrado para baixo
quando ela está comigo.
— Esqueça que falei essa merda.
Ela se encolhe. — Isso não é realmente possível. Não comigo. Boa
memória e tal.
Certo. — Tudo bem, então finja que eu não disse nada.
Ela torce os lábios em pensamento e depois me dá um
sorriso. Um sorriso tão inesperado e imerecido que sinto tanto no pau
quanto no peito. — Posso trabalhar com isso.
Dou outra tragada enquanto os gatos terminam de
comer. Quando terminam, se aproximam de Mickey, que está agachada
no chão, aceitando seus gratos presentes afetuosos com pura alegria no
rosto.
Ela é uma senhora dos gatos louca e viva.
Ela também está fingindo que eu não disse nada, e estou fingindo
que toda essa cena não é adorável pra caralho e que sua bunda não me
faz querer rasgar seu jeans e enfiar minha língua nela… Afasto o
pensamento para fazer meu pau se acalmar. A última coisa que preciso
é que Mickey pense que um bando de gatos me deixa duro.
Nos últimos dias, me encontrei com líderes de várias organizações
com ligações em Logan's Beach. Gutter foi junto e, após cada reunião,
balançou a cabeça e disse. — Não é ele, garoto.
Para piorar, há uma porra de furacão chegando.
Depois de alguns dias, estou surpreso que ninguém tenha vindo
atrás de Mickey. Não a deixei sozinha, mas fiz o que disse que faria e a
usei como uma isca, dando-lhe liberdade suficiente para ser vista, mas
não para conversar, com dezenas de clientes e fornecedores, até mesmo
alguns dos que vêm pela porta dos fundos. Ninguém a reconheceu e
ninguém invadiu minha loja com armas em punhos prontos para levá-
la de volta.
Talvez eu não seja o único a usá-la como isca. Talvez ela devesse
ser deixada para trás.
Por quê? Não sei, porra, mas conspirações são tudo que tenho
agora e a única explicação para alguém deixar um soldado para trás.
Música e risos flutuam pelo beco do Hanson's, o bar ao lado. O
que me dá uma ideia. — Vamos, — digo, agarrando a mão de Mickey e
arrastando-a para longe dos gatos.
— Onde estamos indo? — Ela pergunta, relutantemente
colocando o nanico no chão. Ele mia enquanto nos dirigimos para a
porta dos fundos do bar. Quase me sinto mal pelo filho da puta.
— O bar? — Ela pergunta, franzindo o nariz. — Rage disse que é
sujo.
— Rage acha que tudo é sujo. A tempestade está chegando, e
vamos ficar escondidos por alguns dias. Não sei sobre você, mas
poderia tomar uma bebida antes que isso aconteça.
Ela me olha com desconfiança. — Você quer dizer que não há
pessoas suficientes me vendo por aqui, e quer ter certeza de que os
crocodilos estão circulando sua isca?
Abro a porta e aceno minha mão. — Espertinha, — murmuro
enquanto ela ri e entra.
O bar está cheio e cheira a tudo cerveja derramada e suor, mas
enquanto nos dirigimos para uma mesa, o riso estridente morre quando
a cabeça de cada motociclista e degenerado no local se vira na direção
de Mickey. Ela não parece notar enquanto senta em um banquinho e
apoia os cotovelos na mesa alta pegajosa, mas sei que percebe. Ela é
muito intuitiva para não notar os sussurros e olhares apreciativos.
Outra coisa que percebo enquanto olho para cada maldito
motoqueiro no lugar é que sou protetor da minha pequena prisioneira, e
que o próximo homem que foder Mic com os olhos vai ter a cara cheia
da porra do meu punho.
Duas mulheres que reconheço e possivelmente tive na minha
cama ao mesmo tempo acenam para mim do bar.
— Amigas suas? — Mickey pergunta, revirando os olhos.
Me inclino para perto. — Talvez. Por quê? Com ciúmes?
Ela não hesita. — Sim.
Pisco para afastar minha surpresa. Mickey está com ciúmes. Se
esse ciúme significa que ela me quer tanto quanto a quero, estou mais
fodido do que pensei inicialmente. Passo minha mão pelo meu rosto. —
De todas as coisas que você poderia ter escolhido em ser honesta é isso
que diz, porra, — murmuro, irritado com o latejar em meu jeans. Uma
garçonete põe duas cervejas na mesa e sai. Bato no copo com minha
unha. — Acho que é a primeira vez que você me diz a porra da verdade.
Ela escreve seu nome na condensação do lado de fora de sua
cerveja. Seu rosto permanece inexpressivo, mas contemplativo. — Pela
minha experiência, não são as mentiras que te matam. É a verdade.
Ela está certa. Irritantemente certa.
Olho fixamente enquanto ela passa o dedo pela garrafa,
desenhando círculos ao redor de seu nome. Ajusto minha posição no
banquinho e desvio meu olhar para limpar minha imaginação dela
fazendo a mesma coisa com meu pau.
Limpo minha garganta e Mickey ergue os olhos. Ela não parece
notar meu desconforto. Ela está olhando para outro lugar. Sigo
sua atenção até a janela da frente onde, do lado de fora, um casal
obviamente turista com seus chapéus e câmeras anda pela calçada, de
mãos dadas com três meninas de alturas variadas.
Eu vejo sua expressão mudar de desejo para algo muito
profundo e mais triste enquanto seus olhos vidram.
— Esta. Não foi uma boa ideia. — Ela diz de repente,
empurrando o banco para trás. Ele cai no chão. Ela pula por cima e sai
correndo pela porta dos fundos.
— Mic, — grito, mas ela não para. A sigo apenas para ser
interrompido por Gregory, um dos maiores e mais irritantes
motociclistas que conheço. — Você tem jeito com as mulheres, hein,
Pike? — Ele dá um tapa no meu ombro e todo o meu corpo fica
tenso. Flexiono meus dedos, coçando para quebrar a porra do seu
nariz. — Ela é bonita. Diga-lhe que farei o que é certo por ela se
terminar com você, e juro que ela não fugirá...
Não vejo nada além de vermelho quando meu punho acerta o
rosto de Gregory, jogando-o contra a mesa. As pernas se quebram e as
pessoas sentadas ao redor se espalham quando ele cai com a mesa no
chão.
Contornando a bagunça, vou para a porta dos fundos.
— Custo normal da mesa, Pike, — Sally grita de trás do bar.
— Vou mandar Thorne depois, — respondo. No beco, a porta da
loja de penhores bate e, desta vez, quando sou parado, não é por
Gregory, mas por um mar de gatos sujos miando que tenho que passar
como uma pista de obstáculos peluda. — Ela está aqui há um minuto, e
vocês, rapazes, já estão do lado dela, — murmuro.
Um preto gordo sibila para mim do topo de uma caixa virada.
— Foda-se você também, idiota, — respondo, dando-lhe um dedo
médio.
Ele se vira e levanta a cauda, fazendo um grande show ao me
mostrar que é um idiota real. Traidores. Esta é a porra do meu
beco. Não dela.
— Pike! — Thorne grita, saindo para o beco.
— Chame um exterminador, — digo a ela, apontando para os
gatos que agora estão todos sentados e nos observando em silêncio
como se estivéssemos fazendo algum tipo de peça para um exército de
gatos assustadores, todos sendo manipulados pelo mesmo mestre. —
Por que alguém gosta desses filhos da puta?
— Um exterminador? — Ela torce o nariz. — Para os gatos?
— Ou a sociedade protetora dos animais ou aquele restaurante
modesto perto do posto de gasolina. Qualquer pessoa interessada em se
livrar dos filhos da puta.
— Pesado, — ela responde, fechando a porta enquanto passo por
ela e me dirijo para as escadas. — Preciso falar com você. E não sobre o
seu problema estranho, se não castrador, com gatos de rua inocentes.
— Agora não, Thorne. — Passo por ela e sigo para as escadas
para encontrar Mickey. — Tenho que cuidar de uma merda. Sally tem
uma conta para você. Tome conta disso. Quatro cadeiras e uma mesa.
— Outra? — Ela bufa. — Vou cuidar disso, mas você tem que me
ouvir agora.
A ignoro, quase até o topo da escada.
— Mickey está bem. Ela está no apartamento. Vou ver como ela
está em um minuto, mas preciso falar com você. Qualquer que seja o
motivo de homem das cavernas para segui-la, pode esperar. Isso é mais
importante. — Há um mal-estar em sua voz, um nervosismo que não
estou acostumado a ouvir, pelo menos não dela. Ela bate o pé no
chão. — Pike! Pare e me escute, seu filho da puta teimoso!
Paro no patamar. Thorne não levanta a voz para mim. Nunca. A
irritação junto com a preocupação em sua explosão repentina me faz
virar. Rosno e desço, o som dos meus passos pesados ecoando
na escada estreita.
Ela não espera que eu chegue ao fim antes de lançar a razão por
trás de sua explosão, além de eu sendo um idiota como sempre. — É o
furacão, — ela começa. Ela mastiga o lado da unha do polegar, o outro
antebraço enrolado em volta da cintura, agarrando o tecido de sua
camisa. — Está chegando à Logan’s Beach. Eles estão falando sobre um
impacto direto no noticiário.
Encolho os ombros. — Já passamos por furacões antes. Nós
cuidaremos disso.
Ela balança a cabeça. — Não como este. É maior e mais rápido do
que eles pensavam. Estará aqui...
As luzes piscam como um chute sinistro nas bolas. — Logo, — ela
termina, enquanto as luzes voltam à vida.
Parece que a tempestade de merda da minha vida agora inclui
uma tempestade de verdade.
Capítulo Vinte e Um

Pike

Depois de terminar os preparativos para o furacão - instalando as


venezianas e certificando-me de que temos água, lanternas e baterias
suficientes para nos ajudar a atravessar a tempestade - finalmente vou
em busca de Mickey. Precisando saber por que ela fugiu no bar.
E querendo explorar a coisa do ciúme.
A porta do meu apartamento está aberta. Thorne está parada na
porta, com os braços cruzados em diversão, observando enquanto
Mickey dança pela sala cantando uma música pop no rádio, soluçando
entre cada linha.
— Isso é coisa sua? — Pergunto, apontando para a garrafa de
vodca na mão de Mickey.
Thorne levanta as mãos em autodefesa e balança a cabeça. —
Nããão. Ela estava assim quando a encontrei. Embora seja muito
divertida. Deveria tê-la embebedado antes. Ela é muito mais tolerável
quando está bêbada.
Olho para Thorne, que revira os olhos e sai com uma saudação do
dedo médio sobre a cabeça.
Fecho a porta e me inclino contra ela, observando a cena diante
de mim. Mickey está dançando de olhos fechados, batendo nos móveis
que a enviam para trás dançando para o outro lado da sala. Quando ela
bate contra a parede, começa tudo de novo como um jogo de pingue-
pongue humano.
Pingue-pongue humano bêbado.
Seus olhos se abrem e seu sorriso some, assim como a letra em
seus lábios. — Você fez essas tatuagens na prisão? — Ela pergunta,
apontando para o meu pescoço com a mão ainda segurando a garrafa.
— Algumas delas. As outras no reformatório. Algumas delas King
fez.
— Eu as odeio.
Bom saber.
Ela balança a cabeça, seu cabelo caindo em seus olhos. Ela os
afasta e, quando isso não funciona, ela explode. — As odeio porque você
ainda é lindo, e nunca achei alguém tão bonito antes, mas acho que
você é. Quero dizer. Bem perfeito, para o seu tipo. Se você gosta desse
tipo de coisa e tudo mais. Certamente não. Não. Você não é sexy. Não
quero fazer sexo com você. De modo nenhum. Sim, eu quero.
Ela está cambaleando, e não posso deixar de sorrir para a
pequena ladra bêbada.
— Você me acha sexy? — Pergunto, envolvendo minha mão em
torno da dela, a que está segurando o gargalo da garrafa.
Ela torce o nariz. — Acho que acabei de lhe dizer que certamente
não. Sim.
Movo minha mão por seu braço e ela não tenta esconder sua
reação. Graças à bebida. Seus lábios se abrem e sua pele se rompe em
milhares de pequenos arrepios. Sussurro em seu ouvido. — Você quer
que eu te foda, Mic?
Seu rosto vermelho, combinando com seu nariz já vermelho. Seus
olhos se abrem. Ela coloca a palma da mão no meu peito. Em seguida,
começa a movê-la com cautela no início e, em seguida, uma exploração
completa das cristas dos músculos que descem pelo meu estômago. Ela
acalma a mão e a puxa para trás. — Achei que estava quebrada, — diz
ela. — Quero dizer. Eu estou quebrada. Nunca antes. Nunca ninguém
além de você. Mas agora, eu sei que estou quebrada porque acho que
você é sexy quando nunca encontrei ninguém sexy antes. Quero dizer,
— ela ri e tropeça. Estendo a mão para pegá-la. — Por que você? Por
que você e todos os seus irritantes músculos duros, a linha da
mandíbula esculpida irritante, os belos olhos irritantes e os lábios
irritantes beijáveis? Porque quero você?
Fico olhando para ela por alguns segundos, pois não consigo
encontrar as palavras para responder a sua admissão, porque tenho a
mesma maldita pergunta. — Posso te perguntar a mesma coisa, —
finalmente consigo dizer. Ajuda o fato de ela estar bêbada e
provavelmente não se lembrará, então aproveito a oportunidade para
ser honesto e acrescentar: — Porque quero você mais do que jamais
quis alguém em toda a porra da minha vida.
Ela me olha como se esperasse que eu dissesse mais, mas não há
mais nada a dizer. Estou confuso e muito excitado pela forma como sua
camisa sobe, expondo sua barriga lisa e tonificada e o arredondamento
de seus seios sem sutiã. Não vou tirar vantagem de uma garota
bêbada. Sou um maldito degenerado com certeza, mas não sou um
maldito monstro.
— Não sei por que você, — ela diz e não tenho certeza se é mesmo
uma pergunta. Seus olhos estão selvagens com pensamentos bêbados e
tenho certeza que ela nem sabe se é uma pergunta.
Ela encolhe os ombros casualmente e toma outro gole, como se
estivesse ignorando qualquer pensamento urgente passando por sua
mente. — E sei muito, sabe. Eu sei de tudo. Não sei isso. Não sei por
que te quero.
— Acho que eu deveria te levar para a cama.
Seu rubor se aprofunda. Ela balança o dedo indicador para
mim. — Não, uh. Não, não. Só porque você é bonito, e gosto da maneira
como seus músculos do abdômen fazem essa coisa. Isso não significa
que irei para a cama com você. E você não pode me forçar porque é
evoluído e a vista é perfeita e tudo mais.
Ela cambaleia de volta para mim e agarro seu dedo, e ela
engasga. Entendo sua reação ao simples toque porque também
sinto. Como um raio de corrente atingindo meu peito e muito mais
abaixo. Meu pau pulsa sob minha calça jeans e todo o meu corpo
aquece de uma maneira que nunca senti e não entendo.
Talvez esteja bêbado por tabela.
Pego a garrafa de suas mãos e tomo um gole. Ela reclama como se
eu tivesse roubado seu cachorrinho. — Isso é meu.
Mantenho seu olhar. — Se está no meu apartamento, é meu.
Seus olhos se arregalam de medo e desejo, e me encontro
traçando o contorno de sua mandíbula com o polegar. — Achado não é
roubado se aplica aqui, — ela murmura. Ela fecha os olhos e se inclina
ao meu toque. — Isso é bom. Isso me faz sentir um formigamento. —
Seus olhos se abrem. — Por toda parte.
— Acho que você precisa se deitar, — digo, limpando a garganta.
Ela acena com a cabeça e tropeça até o sofá, onde cai de cara nas
almofadas.
Rio. — Isso foi gracioso. Você aprendeu esse movimento
enquanto fazia seu doutorado?
A única resposta que recebo é um ronco suave, porque Mickey
desmaiou.
Capítulo Vinte e Dois

Mickey

Estou tendo o sonho de novo.


Aquele em que estou me afogando em água escura e turva.
Só que desta vez, parece mais real. Posso sentir o gosto da água
salgada, sentir a textura áspera da lama espessa na minha língua. Ela
desce pela minha garganta enquanto desejo que meus pulmões em
chamas não a respirem. Meus olhos continuam abertos, mas não
adianta, não consigo ver nada além de escuridão diante de mim. Como
se estivesse flutuando no vasto vazio do espaço.
Estou com medo. Mais assustada do que nunca. Minha pulsação
acelera e o terror percorre meu corpo como uma invasão de vespas me
picando. Estou nadando, forçando meus braços e pernas a se moverem,
embora não tenha certeza de qual o caminho, porque tenho que fazer
algo, e esse algo agora é lutar pela minha vida, mesmo que pareça que o
resultado já foi escrito e o destino está rindo de mim por me incomodar
em tentar sobreviver.
Quando minha mão toca a lama macia e as algas no fundo do rio,
percebo que a esperança está perdida. Não consigo voltar na outra
direção. Meus pulmões em chamas forçam minha boca a abrir e inalo a
espessa água salgada. Estou em pânico quando de repente sou
arrancada do rio. Não por alguém vindo em meu socorro, mas por um
som. Um grande estrondo.
Acordo assustada, segurando minha garganta e ofegando por ar
como se eu finalmente tivesse quebrado a superfície. Ainda está escuro
e não consigo ver nada na frente do meu rosto, mas a realidade me
acalma quando percebo que não estou na água. Foi apenas um
sonho. Estou na cama.
Depois de alguns segundos, consigo acalmar minha
respiração. Corro minhas mãos sobre o colchão ao meu redor, e o medo
decrescente ruge de volta à vida.
Estou em uma cama, mas não é a minha.
Um grande corpo masculino se agita ao meu lado, limpando o
torpor do sono e me lembrando de onde estou e com quem estou.
Pike.
Um grande estrondo contra a janela me faz pular. Minha cabeça
lateja com a lembrança do quanto bebi ontem à noite. Ou esta
manhã. Não sei que horas são porque não há luz brilhando através das
janelas, agora cobertas com o que parecem ser venezianas de metal
corrugado.
As venezianas batem contra a janela enquanto o som do
apocalipse explode lá fora. Começo a tremer. Nunca tive medo de
tempestades antes. Logicamente, não há razão para ter medo do vento e
da chuva se você estiver abrigado, mas este é um furacão enorme e,
embora Thorne tenha explicado que estamos seguros e preparados, não
posso deixar de sentir o contrário.
Levanto os joelhos até o peito e tento acalmar minha respiração.
— Já era hora de você acordar, — diz uma voz. — O furacão está
quase acabando. Você dormiu a maior parte do tempo. Nós ficaremos
bem. Mandei reforçar as treliças quando me mudei. A estrutura é sólida
e não estamos numa zona de inundação.
Suas palavras deveriam ser reconfortantes, mas tempestade ou
não, não estou segura.
Especialmente de Pike. Meu medo só aumenta quando ele se vira
para mim, o cobertor caindo de seu peito musculoso e nu. Seus
músculos abdominais flexionam a cada movimento. Tremo de novo,
mas desta vez por um motivo totalmente diferente.
Pike levanta o cobertor sobre meu corpo, confundindo meu
tremor com calafrios, mas não posso mais tolerar a confusão. Seu
conforto. Prefiro que ele me dê um soco ou me apunhale porque ser
gentil comigo de alguma forma dói mais do que qualquer coisa que
ele possa fazer comigo fisicamente.
Há piedade nos olhos sonolentos de Pike, e não aguento. Chuto os
cobertores. — Posso ser inteligente e ter uma boa memória e gostar de
livros e números, e já passei por algumas merdas terríveis, mas nunca
me confunda com uma idiota ou alguém esperando para ser resgatada.
Você não precisa ter pena de mim ou sentir pena de mim. Me meti
nessa merda e, de alguma forma, vou me livrar.
Pike levanta as sobrancelhas. — Confie em mim. De todos os
pensamentos que tive sobre você, nunca tive pena ou senti pena de
você. Nem uma vez.
— Então, por que você está me olhando assim? — Grito.
— Estava me perguntando por que você saiu correndo quando viu
aquela família no bar, — diz ele. Seu comportamento calmo enquanto se
apoia no cotovelo só me irrita mais.
Encolho os ombros. — Sinto falta da minha família.
— Por que você os deixou em primeiro lugar? — Ele pergunta,
como se fosse simples assim. — Por que eles se esconderam e você não?
Rio e respondo honestamente. — É complicado, mas não tive
escolha.
Ele me encara em silêncio como se entendesse quando não tem a
mínima ideia do que passei ou por quê. — Sei como é isso, — ele
oferece, e o brilho em seus olhos me diz que é sincero.
Descanso meu queixo nos joelhos novamente. — Não posso
imaginar o que você pensa de mim, — rio, mas não há humor nisso. —
A garota maluca que fala com a família dela mesmo que eles não
estejam aqui. Aquela que não vai te dar as respostas que você precisa
tão desesperadamente. — Olho para o teto e suspiro. — O engraçado é
que te entendo. Se eu fosse você, também me odiaria. Portanto, não me
olhe com pena, porque não mereço a sua pena.
Pike se senta, apoiando os cotovelos nos joelhos. O cobertor cai
ainda mais, revelando o vinco entre os globos de sua bunda e o V
profundo em sua cintura. Desvio meus olhos de volta para o teto, então
ele não me pega olhando.
— Você acha que tenho pena de você? Não tenho pena de você,
mas entendo. Fiz as merdas que tive que fazer, embora fosse a coisa
errada. Mesmo que as pessoas tenham se machucado. — Ele balança a
cabeça como se não pudesse acreditar que tem que explicar isso para
mim. Seu olhar percorre meu corpo. — Pensei muito em você, Mic. Sim,
sobre a merda que você está me fazendo passar, mas sobre outras
coisas, também. — Seu olhar aquece e meu corpo também. — Sobre
como seus lábios se sentiram contra os meus quando te beijei. Sobre
como se sentiriam em outras partes do meu corpo. Sobre qual seria seu
gosto, em outros lugares. Sobre como poderia te fazer gritar a porra do
meu nome e esquecer todo o resto. Mesmo que só por pouco
tempo. Mas não tenha dúvidas, Mic. De todos os pensamentos que tive
sobre você, nunca achei que você fosse a porra de uma idiota.
Depois de uma vida inteira sendo confundida com recatada e
tímida porque minhas paixões estavam em outro lugar que não
na companhia de outras pessoas, esta é a coisa mais erótica e
sexualmente carregada que alguém já me disse. Tanto que tremo até
onde uma dor começa a crescer entre minhas pernas.
A atração é o sentimento menos lógico porque não é um
sentimento. É uma compulsão, mas seja o que for, sou compelida a
querer estar com Pike. Para tocá-lo e fazer com que ele me toque. Para
explorar um ao outro além de seus lábios nos meus. Para senti-lo, sua
pele contra a minha.
Engulo em seco quando meu coração começa a bater mais rápido
enquanto minha fantasia assume a minha realidade.
A verdade é que acredito em Pike e, de certa forma, ele pode não
saber tudo, mas me entende mais do que qualquer um antes. Essa
compreensão que compartilhamos é provavelmente o que me manteve
viva, bem como a causa da consciência pinicando em meu corpo como
mil agulhas minúsculas trazendo cada terminação nervosa à vida.
Puxo os joelhos até o peito, mas isso só desperta uma dor entre
minhas pernas. Estou com calor. Muito quente. Minha pele está
tensa. Estou lutando para manter minha merda sob controle, e toda vez
que penso que me acalmei, meus pensamentos se voltam para Pike, e a
sensação começa novamente, dez vezes mais forte do que antes.
Os olhos de Pike escurecem, suas pálpebras se fechando como se
soubesse exatamente o que estou sentindo. Preciso fazer algo porque
meu corpo está pegando fogo e minha mente está uma bagunça. Não
consigo pensar com clareza e se há algo que odeio é isso.
— O que você está fazendo comigo? — Pike pergunta,
aproximando-se até ficar bem ao meu lado, seu peito roçando meu
ombro. Ruborizo com a sensação do calor de seu peito duro contra
minha pele e solto um suspiro audível.
— Não posso, — começo, sentindo todo o meu corpo ficar
vermelho. — Nós... não podemos.
Ele segura meu joelho, puxando minhas pernas, olhando para
baixo entre elas como se fosse um banquete e ele tivesse passado fome
a vida inteira. Suspiro.
— Posso te ajudar, — ele oferece. — Deixe-me ajudá-la.
Começo a protestar, mas ele arrasta a ponta dos dedos ao longo
da minha coxa, e percebo que não quero protestar. Quero isso. Quero
ele. É doentio e não faz sentido, mas é a verdade.
Estou usando apenas uma calcinha de algodão e uma das
camisetas brancas grandes demais de Pike e, ao que parece, ele não
está usando nada. — Você quer muito gozar, não é? — Ele diz,
massageando minha coxa. A dor agora é uma invasão total dos meus
sentidos. Um rugido baixo de antecipação está crescendo dentro de
mim. Me consumindo.
— Sim, — respiro enquanto seus dedos pastam onde mais quero
que ele me toque.
Então, seu toque desaparece. Meus olhos encontram os dele.
— Diga, — ele insiste, sua voz grossa e áspera de sua própria
necessidade. — Diga-me, Mic. Você quer que eu te faça gozar?
Sim, sim, isso é tudo que eu quero. Foda-se todo o resto.
Eu assinto.
— Diga-me. Diga-me que você quer que eu te faça gozar, — ele
brinca, mas o desejo em seus olhos não é uma piada. É cru e feroz, e
envia um choque de necessidade pelo meu corpo, fazendo com que
meus mamilos endureçam contra o tecido macio da camiseta. — Quero
ouvi-la dizer isso.
— Eu... eu quero que você me faça gozar, — consigo dizer, me
sentindo envergonhada e aliviada.
O sorriso de Pike é tão perverso que quase lamento minha
admissão. — Oh, Mic, no que você se meteu? — E com essas palavras
mal saindo de sua boca, seus lábios estão nos meus. Ele nos rola para
ficar por cima, acomodado entre minhas pernas, seus dedos
emaranhados no meu cabelo e sua boca saqueando a minha como se
ele fosse um ladrão, roubando cada segundo do beijo como se eu não
estivesse lhe dando de boa vontade.
Uma mão segura minha bunda e a levanta da cama. Seu pau
duro esfrega contra meu clitóris brutalmente inchado através da minha
calcinha, e gemo com a sensação e ele grunhe, o som me fazendo abrir
os olhos e olhar para este homem que geralmente é muito controlado,
mas agora, com o cabelo despenteado e esse brilho em seus olhos
ardentes, ele parece selvagem, como um animal enjaulado que acaba de
ser libertado.
Ele me acaricia novamente. Um ataque aos meus
sentidos. Repetidamente, seu eixo rígido empurra contra mim até que
estou levantando meus quadris por vontade própria, tentando tomar o
que preciso, o que não consigo encontrar sozinha. — Oh, não, ainda
não, — brinca Pike, pausando seus movimentos.
— Este é um tipo diferente de tortura, — gemo.
— Você não sabe merda nenhuma sobre tortura... ainda, — diz
ele, descendo sobre meu corpo até que seu rosto esteja no nível das
minhas partes mais íntimas, abertas para uma visão completa. Ele
inala profundamente, e não tenho tempo para ficar envergonhada com o
que ele acabou de fazer porque sua boca está em mim, levemente no
início, apenas um beijo como se ele estivesse beijando meus lábios. Sua
língua circula meu clitóris, e ele suga levemente a carne sensível. Ele
encontra um padrão que me faz suspirar e gemer. Circulando, sugando
e liberando até que estou ofegando como um animal.
— Você sabe o que eu mais odeio em você? — Ele pergunta de
repente, olhando para mim por entre as minhas pernas.
Balanço a cabeça enquanto tento recuperar o fôlego, incapaz de
raciocinar sobre o que está acontecendo, sem me importar com sua
pergunta. Meu corpo inteiro está vibrando de necessidade, querendo
mais.
Ele fica de joelhos, cobrindo meu corpo mais uma vez com o
dele. Ele traça os dedos da minha clavícula entre os meus seios,
circulando meu umbigo.
Sua voz ainda está rouca, mas de alguma forma mais suave nas
bordas. — O que mais odeio em você... — seus olhos encontram os
meus. — É que não te odeio de jeito nenhum. — Pike tira um fio de
cabelo do meu rosto. — Você me pertence, — diz ele, como se fosse um
fato que eu devesse saber. Seu olhar é aquecido e determinado. Seu
peito nu subindo e descendo com cada respiração raivosa. — Desde
aquela primeira noite.
A ideia de pertencer a alguém aquece meu sangue. Passei muito
tempo fingindo ser parte de pessoas que odeio. — Não sou um de seus
pertences da loja de penhores. Você não me comprou e não sou algo
que ficou para trás.
Ele levanta uma sobrancelha. — Não é?
Percebo a ironia do que acabei de dizer. Fui deixada para trás.
— Você sabe que não é a mesma coisa, — digo, estalando meus
dentes em seus lábios enquanto ele tenta se aproximar para outro beijo.
Ele segura meus braços e seu rosto está a centímetros do meu. —
Você não é um objeto para mim. Você não é uma posse, mas a possuo
de uma forma que nunca quis possuir algo antes. Não te quero em
exposição ou em minhas prateleiras para outros verem. Tocarem. E com
certeza não quero vende-la para outra pessoa.
— Então, o que você quer de mim? — Pergunto, odiando as
lágrimas que ameaçam cair dos meus olhos.
Ele agarra meu queixo, me forçando a olhar para ele. — Porra,
Mic, eu quero você.
Ele está me deixando nua, e não me refiro apenas às minhas
roupas. Mas à medida que uma camada sai e depois outra, minhas
inibições também saem, e quando ele me puxa contra seu peito e
estamos pele quente contra pele quente, percebo que nunca me senti
mais livre do que agora, totalmente exposta a Pike, nua em seus braços.
— Porra, você é perfeita, — ele geme.
É a adrenalina, digo a mim mesma, que faz com que o ar se mova
ao nosso redor. Não tenho tempo para perguntar quem ou o que está
acontecendo, porque no segundo que meus lábios se abrem para falar,
Pike desce sobre mim, cobrindo meus lábios com os dele.
Não sei se estamos brigando ou nos beijando, mas é agressivo e
apaixonado. Nossas línguas guerreando uma com a outra. Gemo em
sua boca.
— O que estamos fazendo? — Pergunto, sem fôlego.
— Não sei, porra, — Pike responde, pressionando seus lábios nos
meus mais uma vez. Ele mói seu eixo onde mais preciso, e vejo
estrelas. Levanto meus quadris, buscando mais conexão. Levantando-
me para ficar escarranchada sobre ele, seu pau enorme se sobressaindo
entre nós. Me esfrego contra ele enquanto seus lábios sugam e beijam
meu pescoço e mandíbula. — O que quer que seja. É bom pra
caralho. Você é gostosa pra caralho, Mic.
Nossos olhos se encontram.
Não tenho dúvidas de que, se nossa luxúria fosse inflamável, a
menor faísca nos queimaria vivos.
Ele me vira, pressionando meu peito no colchão. Ele aperta minha
bunda com os dedos, esfregando seu pau entre minhas nádegas.
Gemo e arqueio minha bunda em sua direção, mas ele se
foi. Apenas o ar frio lambe minha pele. Seus dedos cavam em meu
ombro, e o ar muda ao nosso redor de luxúria para algo muito mais
sinistro. Eu suspiro, sabendo exatamente o que ele encontrou.
Merda. Merda. Merda.
— Que porra é essa? — Ele resmunga me virando para encará-
lo. Ele paira sobre mim com as duas mãos no colchão ao lado da minha
cabeça.
— Não é nada. É ... — Mas sei que é tarde demais. Sei que fui
descoberta. Meu cérebro confuso de luxúria parou por um segundo e
mostrou-lhe tudo que estive trabalhando tão duro para
esconder. Acabou agora. Não há como voltar atrás. O que quer que Pike
e eu tenhamos começado, nunca terminará.
— É uma marca do caralho, — diz ele com os dentes cerrados. Ele
se empurra para fora da cama e fica na beirada, sua ereção é grossa e
dura, apesar da raiva em sua voz e da tensão em seus ombros.
Pego a camiseta e puxo de volta sobre minha cabeça.
— Foda-se isso. Foda-se você. Eu não posso... — Pike não termina
seu pensamento. Ele balança a cabeça e puxa a calça jeans. Quero
explicar. Quero lhe contar tudo, mas as palavras não saem. Sinto a
distância entre nós aumentar, a conexão que compartilhamos
rompendo quando ele se vira e caminha para a porta. Ele para com a
mão na maçaneta. — Ahhhhhhhhhhh! — Recuando, ele bate com o
punho na parede com um rugido raivoso saindo de sua garganta, que
posso sentir como se fosse eu quem gritasse.
Minha espinha salta quando a porta se fecha, deixando-me
sozinha enquanto a tempestade continua furiosa lá fora e um novo tipo
de dor torturante tece seu caminho pelo que resta do meu coração.
Capítulo Vinte e Três

Pike

— Você está acordado, dorminhoco? — Nine pergunta, olhando


para mim.
Ótimo, pela porra da segunda vez, tive a porra do sonho. Que
maneira de começar a porra do dia. Ah, isso e lembrar da porra da
marca que descobri no ombro do Mickey.
Mudo para uma posição sentada e esfrego meus olhos, minhas
costas doem de dormir na cama em meu escritório. Há uma poça de
suor na cama, e mais suor escorre pelas minhas costas, mas é
esperado, já que o ar condicionado não funciona sem energia.
Já se passaram anos desde que tive esse sonho. Uma lembrança
da primeira vez em minha vida que me senti traído. Depois
daquele momento, toda a minha vida foi governada por uma regra do
caralho.
Não baixe a guarda.
Foi a tentativa de ganhar a confiança de Mickey que me matou
ou, se fosse mais primitivo, meu corpo respondendo ao desejo
irresistível que vinha crescendo por Mickey nas últimas semanas, mas
em algum lugar baixei a guarda e eu a deixei entrar o suficiente para
que quando visse a marca em seu ombro, sentisse mais do que raiva.
Eu estava... magoado.
O que é ridículo, já que não há motivo para me sentir
magoado. Eventualmente chegaria a este momento vendo a marca ou
não, mas ainda assim, não estava preparado para a pedra cair no meu
peito com a visão do Quatro marcado em sua pele como a porra de um
animal de fazenda.
Nine se apoia na minha mesa. — O furacão acabou. Suas telhas
estão um pouco fodidas e uma árvore caiu em um dos painéis do
armazém, mas fora isso, você o atravessou melhor do que a maioria dos
filhos da puta nesta cidade. Quase não consegui sobreviver com toda a
inundação. As estradas também estão fodidas. Árvores e fios de energia
caíram em todos os lugares. Preppy me disse que a casa de King está
um show de merda, então considere-se com sorte.
Quando não respondo, Nine me olha, torcendo os lábios. — Sem
ofensa, cara, mas você parece uma merda. O que diabos
está acontecendo aqui? Onde está Mickey? — Ele olha ao redor do meu
escritório vazio e através do corredor para a loja de penhores
igualmente vazia.
— Tudo aconteceu aqui, porra, — resmungo, empurrando meu
cabelo para trás. — Mickey está lá em cima, provavelmente costurando
meus lençóis em capuzes.
— Uh, pode ser mais específico? Ou ela realmente gosta de
artesanato agora?
Solto um longo suspiro, acendo um cigarro e conto tudo a ele.
Quando termino, Nine apenas fica parado parecendo ter sido
eletrocutado. — Mickey? Mickey é uma maldita racista? — Ele senta na
beirada da minha mesa e acende um baseado, dando uma tragada
profunda.
— Parece que sim. — Dou uma tragada no baseado que ele me
passa e devolvo. — De todos os malditos degenerados desta cidade, ela
tem que fazer parte da porra do Fourth Reich. O pior de todos. Seu ódio
não vem de negócios que deram errado ou de proteção, mas da
ignorância. O pior tipo de criminoso é o ignorante.
— Sim, sim, irmão. Concordo totalmente.
Thorne entra e bate uma bandeja de isopor na minha mesa. O
café salta de dentro das quatro xícaras, espirrando no meu colo. Limpo
minha calça jeans com a mão.
Thorne não faz nenhum esforço para me ajudar a limpar ou se
desculpar. Em vez disso, ela para com os ombros para trás e coloca as
mãos nos quadris. Seu charmoso piercing na barriga balança com o
movimento. É roxo e brilhante e diz foda-se. — Ela não é uma porra de
racista, seus idiotas.
— Olá para você também, — murmuro, removendo o café menos
bagunçado da bandeja. — Como você se saiu com a
tempestade? Estamos bem, obrigado por perguntar, porra.
Ela encolhe os ombros. — Estou viva. Meu apartamento fica no
terceiro andar, então estamos todos bem. Mas quis vir e verifica-lo, e
descobri que você parece pior do que a porra das estradas. — Ela toma
um gole de seu próprio café em uma caneca reutilizável que diz EU TE
ODEIO. Aparentemente, Thorne tem um tema hoje. — Então, onde eu
estava? — Ela coloca um dedo no canto dos lábios. — Oh sim, agora me
lembro, — ela bate as palmas das mãos na minha mesa, sacudindo o
café mais uma vez. — Mickey não é racista.
— A marca no ombro dela diz o contrário, — ofereço, desejando
que a maconha funcione mais rápido para que possa enterrar minha
confusão no meu barato, em vez de tentar encontrar respostas para
perguntas que não fazem a porra do sentido. — Além disso, como você
saberia?
Thorne projeta o queixo. — Meu avô era um Grande Dragão da
Klan.
Nine espalha seu café no chão. — Com licença? O que diabos ele
era?
Thorne revira os olhos. — Tão dramático, — diz ela, abaixando-se
na cadeira. Ela pega o telefone e seus polegares voam sobre a tela. —
Felizmente, a torre de celular ainda está funcionando. Ah, lá vamos nós.
— Ela vira a tela para mim, apontando para a foto de um
homem vestindo uma túnica Klan e um chapéu branco de bruxa. O
uniforme padrão da ignorância. — Este era ele. Meu avô. Nos amava e
odiava quase todo mundo.
— Então, seu avô era um pedaço de merda, e isso de alguma
forma não torna Mickey um pedaço de merda? — Nine pergunta.
Ela revira os olhos. — Cresci com a linguagem do ódio. As
palavras. A propagação. Os sentimentos que eles tentam instigar em
você. O ódio é algo que é ensinado. Não é algo que temos
instintivamente em relação aos outros. Não houve uma palavra de
Mickey ou ação que ela tomou para me fazer acreditar que ela é
racista. Capto essas coisas e confie em mim, ela não exibiu nenhuma
delas. Fui criada e ensinada a odiar, mas nunca assimilei. Amava meu
avô, mas nunca acreditei no que ele acreditava. Nem por
um segundo. Acho que com Mickey é a mesma coisa. Ela pode usar a
marca, mas é exatamente o que é. Apenas uma marca. Algo na
superfície que só vai até a pele. Como uma tatuagem em letras chinesas
que você acha que diz amor e luz, mas na verdade diz sanduíche de
presunto.
Nine ri. — Então, o que você está dizendo é que só porque ela tem
um sanduíche de presunto tatuado no corpo, não significa que ela
adore sanduíches de presunto. — Ele coça a cabeça. — Mas todo
mundo adora sanduíches de presunto. É um fato comprovado. Ciência e
merda. Mickey saberia. Vou perguntar a ela.
— Talvez ela seja uma boa atriz? — Respondo, querendo sentir
raiva mais do que mágoa, procurando razões para tirar essa raiva de
debaixo da dor e usá-la para colocar meu escudo de volta na porra do
lugar onde ele pertence.
Thorne balança a cabeça. — Ela tem sido gentil com Jo Jo mesmo
quando Jo Jo não é gentil com ela. — Ela puxa o colar de sua camisa e
levanta o pingente. É a estrela de David. — Quando ela viu isso, ela não
piscou.
— Por que você usa uma estrela de Davi se o seu avô era da Klan?
— É da minha namorada. Ela me deu. A questão é que o ódio é
uma agenda. Esses filhos da puta são enfadonhos. Qualquer motivo que
ela tenha para fazer parte do Fourth Reich não tem nada a ver com o
ódio aos outros.
Algo me ocorre. — Não do tipo racista, pelo menos.
— O que você está pensando? — Nine pergunta. Somos
interrompidos quando seu telefone toca. Ele o pega, andando pela
sala. — Espere aí, vou te colocar no viva-voz, — ele diz, clicando em um
botão e colocando o telefone no balcão. — Vá em frente, King.
— Quem quer que esteja atrás de mim mandou a louca da mãe
biológica da minha filha atrás dela durante a tempestade. Quase matou
minha esposa e minhas duas filhas, — King vocifera. — Nós
derrubamos vários de seus pistoleiros, mas nenhum deles falou antes
de morrer, exceto para dizer a porra do seu nome Pike. Essa merda
acabou e acabou agora. Descubra quem está por trás disso e por que
querem te derrubar e todos os outros ao seu redor, então me dê a porra
de um nome. Ninguém envolvido nisso ficará respirando, entendeu?
Thorne range os dentes e desliza para a sala dos fundos, e
gostaria de poder ir com ela.
Nine e eu trocamos olhares. Ele levanta as sobrancelhas
perguntando silenciosamente: Você vai contar a ele sobre ela?
— Entendi, — digo, meu pescoço e ombros se contraem de tensão
e raiva. Olho para as ruas. — Tenho uma pista. Vou deixa-lo saber o
que acontece.
A linha fica muda.
— Direi a ele, — digo a Nine, esfregando os olhos, — quando
houver algo concreto para contar.
Agora que sei quem é realmente Mickey, percebo o tempo todo
que ela está fazendo um jogo comigo, independentemente de seus
motivos. Uma parte de mim gostaria de nunca ter visto aquela marca,
mas vi e não há como voltar atrás. Mas há dois jogadores em seu jogo.
E nunca perco.
Ela quer jogar?
Vou jogar. E vou ganhar, porra.
— Ligue para Darius Alban, — digo a Nine. — Organize uma
troca. A garota por uma trégua.
Ele enfia o telefone no bolso. — Você realmente quer uma trégua e
não um assassinato em massa?
— A troca é apenas o cenário, — estalo os nós dos dedos. — Para
o assassinato em massa.
Capítulo Vinte e Quatro

Pike

Nine me segue escada acima, e estou pronto para a batalha ou


pior quando abro a porta, mas Mickey está caída no chão,
soluçando. Ela olha para mim com os olhos cheios de lágrimas. Meu
peito aperta ao vê-la tão triste, fraca, vulnerável como nunca tinha
visto antes. O que aconteceu com a garota corajosa que estava pronta
para assumir tudo o que eu estava preparado para dar?
Vim aqui pronto para a guerra e ela já é um dano colateral.
Me lembro que ela não é mais minha Mic. Ela nunca foi
realmente. Ela é um soldado do maldito Fourth Reich.
Nine olha para mim, mas não consigo falar, então ele fala por
mim. Ele conta a Mickey tudo o que King acabou de dizer sobre sua
esposa e filhas estarem em perigo e sobre a mulher que o Fourth Reich
enviou atrás deles.
Ela fica de joelhos e afasta o cabelo dos olhos. Não há
necessidade de ameaçá-la, porque vejo na maneira como seus ombros
caíram, que ela já desistiu. Seus olhos encontram os meus. — Vou te
contar tudo. Está na hora. Estou machucando as pessoas por não dizer
a verdade. Não apenas você. Crianças. Eu não posso... não posso mais
fazer isso.
Nine se senta na cômoda e coloca a arma ao lado dele, mantendo-
a ao alcance.
Levanto Mickey do chão e a coloco na cama, mas ela
imediatamente se levanta, se livrando do meu corpo. Ela caminha até a
janela e me empoleiro na ponta da cama, pronto para ouvir o que ela
tem a dizer.
Depois de alguns segundos, ela respira fundo e fala conosco
enquanto ainda olha pela janela. — Meu pai não era um homem
afetuoso, mas nunca duvidamos de que ele nos amava. Ele deu tudo o
que pôde para minhas irmãs, minha mãe e eu. Ele nunca foi cruel. Mas
ele também não era um livro aberto. Ele era reservado. Seus elogios e
cumprimentos limitavam-se às nossas realizações e nunca eram dados
ao nosso caráter. Todas as minhas irmãs tiveram sucesso em diferentes
áreas. Acho que até certo ponto foi para agradá-lo, porque viram toda a
atenção que ele me deu quando ganhava um prêmio ou fui a mais
jovem a receber o doutorado em ciências na minha
universidade. Embora tenham recebido elogios, nunca era do tipo que
ele me dava. Talvez fosse porque erámos da mesma área. Mas,
independentemente, com qualquer uma de nós, nunca foi o tipo de
atenção ou orgulho que terminava com um Eu te amo. A ponto de
minhas irmãs e eu nos agarrarmos às poucas palavras de carinho que
ele oferecia como se fossem os abraços que ansiávamos tão
desesperadamente. Mas nós o amávamos de qualquer modo, e
possivelmente apesar disso.
— Vamos avançar um pouco. Por que o Fourth Reich? Quer dizer,
tenho muitos motivos para odiar muitas pessoas, mas raça não é um
deles, — Nine comenta, saltando à frente na história. — Basicamente,
minha pergunta é: quando você se tornou uma vadia odiosa e por quê?
— Ele aponta para ela. — E vá daí.
— Não sou racista, — ela insiste. — Tenho o mesmo ódio em meu
coração que eles, mas o único grupo de pessoas que odeio como um
todo são eles.
Nine levanta a mão. — Uh, professora, estou um pouco perdido
aqui. Você pode explicar, por favor? Exemplificar? Qualquer coisa?
— Abaixe a porra da mão, — murmuro.
Mickey anda pelo quarto, torcendo as mãos. — Há quatro anos
venho treinando como soldado do exército do Fourth Reich. Mal sabem
eles para o que me treinaram.
— Como exatamente isso funciona? — Nine pergunta.
Ela se vira e fico presa em seu olhar. — Justiça. Eles me
treinaram, e eu usaria esse treinamento neles e conseguiria a justiça
muito merecida e necessária.
— Você quer dizer vingança, — argumento.
Ela concorda. — Nesse caso, eles são a mesma coisa. Embora
justiça faça parecer mais heroico e menos...
— Como assassinato premeditado? — Nine acaba.
— Acho que você pode dizer isso, — ela responde, rindo,
sacudindo as mãos nervosamente. — Porque é verdade. Não importa
quais palavras você use.
Me inclino para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. —
Vingança pelo quê? — Pergunto, porque preciso saber, porra.
— É uma história muito longa, — ela responde, seus olhos
vidrados com lágrimas não derramadas.
— Não vamos a lugar nenhum. Diga-nos, — falo, precisando
entender sua afiliação com os bastardos racistas. Olho para Nine. —
Sem interromper. Deixe-a falar, porra.
Ela pensa por alguns segundos. — Meu pai estava no mesmo
campo de estudos que estou. Que eu estava. Ele se infiltrou antes de eu
nascer no Fourth Reich. Ele nos levava, a família toda, para suas
reuniões. Todos repetíamos os cânticos doentios. Aplaudíamos a
crença. À noite, quando estávamos em casa, ele nos falava do sucesso
de sua pesquisa e que contribuíamos muito para esse sucesso. Tudo o
que precisávamos fazer era continuar fazendo nossa parte e seríamos
recompensados quando sua pesquisa lhe rendesse uma vaga na CNN e
seu livro se transformasse em filme. Seus delírios de grandeza eram
imensos que o tornaram ganancioso. Isso o fez ficar muito tempo depois
que deveria ter saído.
Resisto colocar minha mão em sua coxa porque, por mais que
queira confortá-la, ela não merece meu conforto, e não posso arriscar,
tocá-la novamente pode afetar minha visão de tudo isso. — O que
aconteceu? O que deu errado? — Pergunto.
Ela olha para o teto como se a resposta estivesse colada nele. —
Não sei os detalhes, mas eles devem ter descoberto quem meu pai
realmente era e o que estava fazendo lá. Vinte anos é muito tempo, e
acho que não gostaram da ideia de que passaram por tolos por tanto
tempo. Lembro-me de quando meu pai voltou para a casa de veraneio
um dia parecendo exausto. Assustado. Tivemos que sair muito
rápido. Nem mesmo fizemos as malas. Nós apenas entramos na van e
partimos. — Ela tira os olhos do teto e olha para mim.
— Eles nos alcançaram. Houve tiros. Minhas irmãs gritaram. O
rosto de minha mãe estava o mais pálido que já vi. Ela estava
apavorada. Houve um barulho como um pop rápido e, em seguida, o
rosto de minha mãe ficou todo vermelho. Meu pai... ele levou um tiro na
cabeça. Ele estava morto. Minha mãe tentou segurar o volante, mas o
pé dele estava pressionando o acelerador. Não havia nada que ela
pudesse fazer. Nós arrebentamos a grade de proteção. Houve muitos
gritos. A água estava muito rápida. Muito funda. Gritei por minha mãe,
mas ela não respondeu. Minhas irmãs... elas estavam todas
contorcidas, e não sei se ainda estavam vivas, mas não estavam
conscientes. Não houve mais gritos. Tentei sentir o pulso em minha
irmã Mindy, mas a água estava no meu pescoço e sobre a cabeça dela, e
não consegui sentir nada.
Ela sorri para mim em meio às lágrimas, e quero matar, porra,
cada pessoa que a fez chorar. — Você me encontrou naquela noite e me
levou para casa. Eu estava delirando. Não percebi - o que aconteceu -
até que eles começaram a atirar em nós na praia. Rendi-me porque não
queria que você morresse pelos pecados do meu pai.
— O que aconteceu depois que eles te levaram? —
Pergunto, percebendo agora que não foi um resgate, afinal.
— Psicologia aconteceu. Quando Darius me viu, eu sabia que ele
estava prestes a me matar. Mas a única razão que ele teria para me
querer morta seria se eu acreditasse que ele era o vilão, o homem que
matou minha família. — Ela respira fundo para se acalmar. — Então,
quando o vi pela primeira vez, passei meus braços em volta dele e
chorei ao tio Darius que sofremos um acidente de carro porque alguém
nos tirou da estrada e atirou em nós e que estava muito feliz em ver que
ele estava bem porque temia que quem matou minha família pudesse
estar atrás dele também. E lhe agradeci por me resgatar.
— E ele acreditou em você? — Nine pergunta.
— Eu não lhe dei uma razão para não acreditar em mim. O deixei
acreditar que era o salvador da minha história e ele, por sua
vez, desempenhou o papel.
Cerro meus punhos, compreensão e simpatia inundando
qualquer maldita reserva que vinha tentando construir entre nós. —
Jesus fodido Cristo. Você se colocou em um cercado com os malditos
lobos.
Ela senta na cama e eu não consigo evitar. Desta vez, coloco
minha mão em sua coxa e aperto. Ela não vacila, embora seus olhos se
arregalem de surpresa. Você e eu, digo a ela em silêncio, sentindo seus
músculos relaxarem sob meu toque.
— Não, não me coloquei no cercado com eles, — explica ela. — Me
tornei um lobo. Pelo menos, no que diz respeito a eles.
— Então, seu plano era matá-los? — Eu pergunto.
Ela concorda. — Cada um deles, começando pela base e
subindo. Não é uma morte rápida. É mais como uma arma
biológica. Queria matá-los por dentro, lenta e dolorosamente. Toda a
organização como um todo. Eu não queria tirar suas vidas, queria tirar
sua lealdade ao Fourth Reich, suas crenças, tudo que os
mantinha unidos, mas primeiro, precisava ganhar sua
confiança. Seguir suas ordens. Darius chegou a me alimentar com uma
mentira sobre quem realmente foi o responsável pela morte dos meus
pais.
— Quem? — Eu pergunto, apertando sua coxa novamente.
Ela olha para mim. — Você.
Levanto como se tivesse levado um tiro. — Aquele filho da puta!
— Não é como se eu acreditasse nele, — ela me garante. — Eu
sabia que era Darius o tempo todo, e sei que ele tem um plano que tem
a ver com te destruir, mas não tem nada a ver com como ele destruiu
minha família. Ele estava só me contando uma mentira para cumprir
esse plano, então o deixei pensar que acreditei nele.
— Percy, — murmuro. — O filho da puta acha que fui eu que o
delatei anos atrás.
— Isso realmente faz sentido pra caralho, — Nine responde. —
Não é como se tivéssemos feito negócios com eles. Eles não teriam outro
motivo para nos odiar. Quer dizer, não sei se você notou, mas somos
brancos pra caralho. Constrangedoramente assim.
— Foi o que pensei, — diz Mickey com uma fungada. — Mas sei
que não foi você quem o delatou.
— Como? — Pergunto, parando meu andar furioso pelo quarto.
— Porque... fui eu.

Mickey

— Porque... fui eu, — digo com orgulho e arrependimento


enchendo minha voz. — Meu pai e Darius sempre empurravam, Percy e
eu um para o outro na esperança de sermos os novos rostos do
Reich. Claro, meu pai me disse que tudo fazia parte de sua pesquisa, e
concordei com tudo o que ele propôs, em nome do conhecimento. Sua
pesquisa era importante. Ele estava sempre tão perto do fim. Para
descobrir o que fazia o cérebro humano odiar.
— Ele deixou você se aproximar de um monstro de merda, — Pike
rosna, seu pescoço latejando de raiva. Uma veia em seu antebraço
pulsa sob uma tatuagem do nome Greyson.
Assinto. — Ele me pediu para visitá-lo uma vez no centro de
detenção e, enquanto estava lá, fui abordada pelo FBI. Eu era jovem
e assustada, e eles ameaçaram prender meu pai, mas o verdadeiro
motivo de usar aquela escuta era porque parecia a coisa certa a
fazer. Agora, olhando para trás... — Não posso mais evitar as lágrimas
que escorrem pelo meu rosto. — Provavelmente foi o que levou meu pai
a ser descoberto e minha família inteira ser morta.
Pike cai de joelhos diante de mim. — Não foi sua porra de culpa,
— ele diz, agarrando minhas mãos nas suas. — Nada disso foi sua
porra de culpa, — ele diz as palavras com tanta paixão e determinação
que quase acredito nele, mas sendo a pessoa lógica que sou, fatos são
fatos. Minhas ações podem ter levado à morte de meu pai.
Nine está digitando furiosamente em seu laptop. Ele finalmente
olha para cima e sua expressão é de confusão. — Você disse que seu
pai estava disfarçado? Foi isso que ele disse a você? — Nine pergunta.
— Sim, por quê? — Pergunto, hesitante.
Pike se levanta, mas mantém minha mão presa na sua.
Nine traz seu laptop e o coloca na cama. — Porque isso diz o
contrário. — É um artigo. Ou melhor, um boletim
informativo. Reconheço-o como propaganda do Fourth Reich. Há uma
foto de um Darius muito mais jovem com outro homem cujos olhos são
do mesmo tom de cinza que os meus.
Suspiro e sinto meu rosto empalidecer. Não, isso não pode ser
verdade. Não pode ser. Puxo minha mão de Pike e caminho até a janela.
— O que? — Pike rosna para Nine.
Posso sentir os olhos de Pike em mim enquanto Nine responde. —
Isso é de mais de trinta anos atrás, não de vinte. O pai de Mickey não
estava disfarçado no Quarto Reich. — Nine toca na tela. — Ele foi um
membro fundador.
Capítulo Vinte e Cinco

Mickey

Encontro Thorne no escritório.


Pike e Nine estão no andar de cima amontoados para dar sentido
a essa bagunça que fiz, e eu não aguentei mais. Estava sufocando com
minha própria tristeza e culpa.
Sei que eles contaram tudo a Thorne porque os ouvi lá
embaixo. O olhar que Thorne me lança quando entro não é de ódio ou
pena, mas de simpatia.
— Estou curiosa, — diz ela. — Como funciona essa sua memória
fotográfica?
Agradeço a pergunta, qualquer dúvida sobre qualquer coisa que
não seja sobre minha situação atual. Respondo imediatamente. —
Pense desta forma: se você ler uma página de um livro, verá letras
pretas em uma página branca. Posso saber que são letras pretas em
uma página branca, mas as interpreto como letras brancas em torno
delas em preto. É como meu cérebro é capaz de processar mais de uma
coisa ao mesmo tempo.
Ela encolhe os ombros. — Acho que você nunca teve que estudar
muito.
Franzo meus lábios e penso. — Sim e não. Posso dar uma rápida
olhada no livro texto e memorizar as respostas, mas para realmente
aprender algo e saber sem ter que reverter para aquela memória em
particular, tenho que ler algumas vezes, assim como todo mundo, e
dessa forma, sim, ainda tenho que estudar. Há uma grande diferença
entre saber algo e realmente compreender o significado por trás disso.
— Existe uma desvantagem? — Ela pergunta.
Apenas lembrar de tudo que você nunca quis lembrar em detalhes
vívidos. — Várias. Às vezes, tenho dificuldade em acompanhar uma
conversa. As coisas ficam confusas no meu cérebro. Digamos que meus
pais começam a falar sobre voltar a um restaurante que fomos no verão
passado em nossas férias. Bem, meu cérebro abre automaticamente o
álbum sob o arquivo daquele restaurante, e perco o resto que eles estão
dizendo porque estou muito ocupada lembrando como o garçom deixou
uma mecha de cabelo sob sua orelha perto de seu queixo que perdeu
enquanto fazia a barba, ou como o toldo tem um rasgo no lado esquerdo
sob a letra A do nome do restaurante, ou como o box do banheiro tinha
um anúncio na porta de um estabelecimento totalmente diferente
vendendo o mesmo tipo de comida, e então estou recitando o número de
telefone do concorrente em voz alta e, quando termino, volto a mim e
meus pais e irmãs estão todos olhando para mim, esperando que eu
regresse a Terra do meu próprio cérebro.
— Como você lida com isso? — Ela pergunta, parecendo
genuinamente interessada.
— Como é que alguém lida com qualquer coisa? — Respondo,
olhando para as luzes fluorescentes no teto quando zumbem para a
vida.
— O gerador deve ter entrado em ação, — diz Thorne. —
Continue.
— Eu não lido, realmente. Apenas vivo. Acredito que é um dom na
maior parte e isso me faz, bem ... eu.
Por um momento, perambulo pelo escritório enquanto Thorne
trabalha. Esta pode ser a última vez que a vejo, e algo sobre ela está
marinando em meu cérebro.
— Quando você vai contar a Pike? — Pergunto, colocando
minhas mãos nos bolsos de trás.
— Contar a ele o quê? — Ela olha para mim.
— Que você é irmã dele.
Seu queixo cai. — Como... como você sabe? — Ela esfrega a
marca de nascença atrás da orelha.
Sorrio. — Você quer dizer além do fato de que vocês dois têm a
mesma expressão quando estão preocupados com algo, mas tentam
parecer que não estão preocupados? — Pergunto. — Ou a marca de
nascença em forma de lua que vocês dois têm atrás da orelha esquerda?
Ela percebe o que está fazendo e para.
— Por que você não contou a ele? — Pressiono.
Thorne suspira, girando sem pensar na cadeira. — Você sabe
como ele é. Ele não gosta de família. Quando descobri sobre ele, vim
para lhe contar, e quando comecei a falar sobre família preparando o
terreno, ele me disse que família não significava nada para ele. Que é
besteira fingir laços entre as pessoas para inventar desculpas por suas
vidas. Ele realmente não deixou muita abertura e meio que nunca mais
surgiu.
— E você quer significar algo para ele, — percebo em voz alta.
Ela sorri. — Eu queria. E significo.
— Você não se preocupou que ele se sentisse atraído por
você? Tentasse algo com você? — Pergunto, curiosa. Ela é uma garota
linda e Pike ... bem, ele é Pike. Meu estômago se contorce de
arrependimento e dor pelo que fiz e pelo que ainda vou fazer.
Seus olhos se arregalam. — Hum. Ai credo. Não, — ela diz, mas
então suspira quando não aceito sua resposta simples. — Não há
atração entre nós, e sei que ele sente isso também, mas apenas no caso,
tinha um plano de contingência.
— Que é?
Ela sorri brilhantemente. — Disse a ele que era lésbica. E embora
tenha uma colega de quarto, ela é minha melhor amiga, mas
desempenha bem o papel quando ele está por perto.
Rio. — Ah, boa ideia.
Ela me examina. — Sabe, não somos muito diferentes. Nós duas
queremos fazer parte da vida dele, mas dizer a ele o quanto realmente
significa para nós pode destruir tudo.
— Mas eu...
Meu protesto é interrompido pelos sinos acima da porta.
— Salva pelos sinos, — diz Thorne, passando por mim e entrando
na loja de penhores. — Te vejo mais tarde. Tenho que cuidar dessa
merda elétrica. Ver se volta a funcionar. — Ela olha para mim. — Só ara
constar, nunca achei que você fosse racista, e foi por isso que não
contei a Pike sobre a marca na primeira noite em que a vi.
Ela entra na outra sala, deixando-me em estado de choque.
Ela sabia. Todo esse tempo, Thorne sabia.
Subo as escadas novamente, dando mais uma olhada para
Thorne, que está conversando com um eletricista de capacete,
carregando uma prancheta. Ela é a primeira pessoa em anos que
consideraria uma amiga. Vou sentir mais falta dela do que quero
admitir para mim mesma.
Adeus Thorne.
Caminhando de volta para as escadas, fico surpresa ao ouvir o
barulho de uma sala que presumi ser um depósito. A porta está
entreaberta, então escuto. — O negocio vai acontecer dois dias a partir
de hoje no armazém em Coral Pines, — ouço Pike dizer.
— A garota por uma trégua? — Reconheço a voz de King.
— Foi o que Darius concordou, — Pike responde, enquanto o meu
coração se despedaça no meu peito. É só parcialmente porque ele está
muito disposto a me negociar porque meu lado lógico deveria ter
previsto isso, mas é porque ele acha que Darius Alban concordaria com
uma trégua quando sei em meu coração que será uma emboscada.
— Vou ligar para os meninos. Estaremos todos esperando por
eles. Eles verão o que espera por eles, e o Fourth Reich será uma
memória distante em Logan’s Beach na porra do sábado de manhã, —
King diz.
Aparentemente, eles estão planejando sua própria emboscada.
Não posso deixar isso acontecer. Não posso deixar mais pessoas
morrerem. Tenho que voltar ao Fourth Reich e avançar rapidamente
com meus planos.
Vou até o apartamento e entro no quarto de Pike sem nem mesmo
deixar a porta ranger. Corro até o cofre que funciona como uma mesa
de cabeceira e começo a trabalhar para abri-lo.
Capítulo Vinte e Seis

Mickey

— Sei que você nos ouviu, e não é o que pensa! — Pike grita com
raiva do outro lado da porta trancada.
É exatamente o que penso. Eles estão prestes a se matar, embora
ele ache que me tranquei em seu quarto porque o ouvi falando sobre me
trocar quando, na verdade, estou apenas ganhando algum tempo.
Finalmente, na milésima tentativa, o cofre se abre, e o que eu
preciso está ali na primeira prateleira ao lado de uma pilha de
dinheiro. Deixo o dinheiro, mas pego a arma. Verifico para ter certeza de
que está carregada.
Sim.
Me empurro para o canto mais distante do quarto.
— Sei que você está com a porra da minha arma. Você pode ser
inteligente, mas não sou idiota. Câmeras, lembra? Se você acha que vai
sair daqui com isso ou mesmo sem, está errada. — Ele bate contra
porta novamente. — Abra a maldita porta, Mic! — Ele grita. A raiva e a
mágoa em sua voz perfuram meu peito, e sinto como se fosse minha.
Por alguns segundos, acho que ele saiu porque não ouço nada
além do som da minha própria respiração acelerada. Até a porta bater,
empurrando a cômoda que coloquei na frente dela apenas o suficiente
para criar um pequeno vão.
O corpo maciço de Pike está parado sombreando a porta, sua
raiva irradiando dele como produtos químicos tóxicos subindo no ar.
Prendo minha respiração e enrijeço meus nervos. Pike entra, com
o peito nu e brilhando de suor. Seu jeans está aberto e baixo na
cintura, expondo a faixa de sua cueca boxer preta.
Levanto a arma com as duas mãos, mirando em seu peito. —
Tenho que ir. Você não pode me impedir, — digo, com toda a
determinação que me resta. — Você vai me trocar e emboscá-los, mas
não acha que eles têm o mesmo plano para você? Tenho que ir, e assim,
menos gente morrerá. VOCÊ não vai morrer. Então, deixe-me
sair. Tenho um plano. Vai funcionar. Vou derrubá-los por nós dois.
— Não. — Pike olha de mim para a arma. — E como já disse
antes, você não vai a lugar nenhum. — Suas palavras são sombrias e
ameaçadoras. Um sorriso divertido aparece nos cantos de seus lábios.
É irritante. Ele é irritante.
Endireito meus ombros. — O que é tão engraçado? — Pergunto,
engolindo o medo crescente na minha garganta. Lembro-me de um fato
importante para não engasgar com esse medo.
Sou eu quem está segurando a arma.
Em vez de congelar ou recuar como alguém faria nessa situação,
Pike dá um passo ousado para frente, me pegando
desprevenida. Cambaleio para trás, mas não sou rápida o
suficiente. Ele estende a mão e, a princípio, acho que está indo para a
arma, mas não. Ele me confunde enquanto envolve suas mãos nas
minhas, aumentando meu aperto em torno da arma. Ele levanta
minhas mãos e se inclina ligeiramente na cintura, pressionando com
força o cano contra sua testa. — Você quer atirar em mim, Mic? Então,
atire em mim, porra, — ele ousa, com olhos injetados de sangue.
Minha boca se abre, mas as palavras não saem. Esperava que
Pike se defendesse. Que me atacasse. Recuasse e me deixasse ir
embora, embora fosse o menos provável de todos os resultados. Eu não
planejei isso.
Eu posso fazer isso. Tenho que fazer isso
— Não era o que você esperava? — Seu tom é zombeteiro e cheio
de raiva. — Sei o que esse seu cérebro bonito está pensando. Você quer
que eu te ataque e torne puxar o gatilho mais fácil para sua
consciência. — Ele solta uma risada. — Não vai acontecer. Se você
quiser fazer isso, não vou te impedir, mas você também não vai embora.
Então, vamos lá. Atire em mim. Vá em frente. Faça o que planejou fazer.
— Seus olhos se estreitam com determinação. Minhas mãos tremem
nas dele. — Puxe a porra do gatilho!
O ar ao nosso redor é denso e carregado. Minha pele começa a
brilhar de suor. Minha adrenalina aumenta e me sinto muito
alerta. Muito ciente do que está acontecendo entre nós.
Aperto a arma com mais força e olho em seus olhos escuros, suas
pupilas estão dilatadas e cobrem todos os sinais de cor dentro
deles. Por trás da raiva e da determinação, há algo mais que eu não
esperava. Algo com o qual estou muito familiarizada. Dor. Dor que
reflete a minha. Desespero que me chama como um pedaço da minha
alma presa dentro de Pike.
— Atire em mim! — Ele grita, seu rosto vermelho de raiva, os
dentes à mostra como um animal selvagem. — Porra, atire em mim!
Com essas palavras, minha resolução ígnea se dissolve em cinzas.
Dou um passo para trás, precisando colocar alguma distância
entre nós, mas Pike não tem o mesmo pensamento. Ele me segue,
mantendo seu aperto em minhas mãos e a arma entre elas.
— Eu ... eu não posso fazer isso, — sussurro, liberando meu
controle sobre a arma.
Pike me solta, pegando a arma antes que ela caia no chão.
Merda.
Olho para a janela, mas é muito alta, e Pike está bem na frente da
única porta. Não há escapatória. Tanto para ser corajosa. Em vez disso,
assinei minha própria sentença de morte. Meu coração dispara
erraticamente com a percepção de que é isso. Acabou.
Estou acabada.
— Este foi um movimento realmente estúpido para alguém que
afirma ser tão inteligente, — zomba Pike. Ele levanta a arma.
Aperto meus olhos, esperando sentir a bala de sua ira perfurar
minha pele. Ouço um baque e meus olhos se abrem e pousam no tapete
onde Pike jogou a arma no chão.
Meus olhos encontram os dele em uma pergunta silenciosa. Por
quê?
Ele responde cobrando, a explosão de um homem que não posso
evitar quando ele se choca contra mim. Seu peito bate contra o meu, e
minha cabeça se conecta com a parede com um baque que sacode meus
ossos. Estou tonta enquanto o medo atinge minhas entranhas como
uma bola de fogo. Minha pulsação acelera enquanto sua proximidade
me consome. O cheiro de colônia e cigarros permanece entre nós - um
traço de uísque em seu hálito.
— Você vai se arrepender de não ter puxado o gatilho, — ele
zomba. A escuridão nos olhos de Pike me diz que, com ou sem arma,
não vou sair impune.
Ou possivelmente viva.
Engulo em seco.
Ele me prende com as mãos contra a parede ao meu lado, me
envolvendo no calor e na raiva que irradia de seu corpo rígido. Sinto seu
coração batendo rápido sob seu peito agora pressionado contra o
meu. — O que fazer com você agora? — Pike medita, sua respiração
irregular. Sua voz cheia de promessas e advertências. Ele roça os lábios
na minha têmpora. Tremo com o contato. — Você vai pagar por essa
pequena façanha, Mic.
Ele está perto. Muito perto. Estou totalmente rígida, congelada no
lugar. Isso não deveria acontecer. Como deixei isso acontecer? Estou
mais apavorada que já estive, mas há outra coisa que não consigo
entender. Outra coisa entre nós que está carregando o ar, me fazendo
tremer, e não apenas de medo. Ódio misturado com necessidade. O
desejo que neguei por ele não está mais adormecido. É tão real quanto a
dor crescendo em meu estômago, a umidade entre minhas coxas. Se
pensei que o quarto parecia carregado antes, ele está quase pegando
fogo agora. As chamas do desejo e do ódio lambem as paredes ao nosso
redor, deixando tudo em chamas, fazendo o pequeno quarto parecer
menor, fechando ao nosso redor.
Meus mamilos endurecem quando roçam em seu peito. Sugo uma
respiração.
Ele não perde minha reação. Ele olha para onde meus mamilos
estão pressionados contra minha camisa com olhos aquecidos.
O único som no quarto é da respiração pesada mútua enquanto
ele lentamente tira o olhar do meu peito. Seus olhos se fixam nos
meus. Por alguns segundos, nós apenas olhamos um para o outro -
testas cheias de confusão e raiva.
Um desafio silencioso.
Minha mente, por outro lado, está tudo menos silenciosa.
— Devo te matar ou te foder? — Ele medita. E, honestamente, não
tenho certeza do que me assusta mais. Sua raiva ou seu desejo. Ele
esfrega os nós dos dedos contra meu queixo. — Talvez ambos.
— O que você... — Não tenho tempo de terminar minha pergunta
porque seus lábios estão nos meus. Ele me levanta no ar e minhas
pernas envolvem sua cintura por instinto.
É uma união raivosa de dentes batendo e lábios mordendo. Uma
guerra que ainda estamos lutando um com o outro e nós mesmos. Ele
rosna para mim quando mordo seu lábio, tirando sangue. Ele lambe o
sangue com a língua e me beija de novo, desta vez com mais força. Um
beijo punitivo que me faz rosnar para ele em troca. Seu sangue
acobreado na minha língua tem gosto de vitória. Ele lambe seu caminho
entre meus lábios, empurrando sua língua em minha boca, provando e
devorando com golpes ásperos e determinados. Com um movimento de
seus quadris, ele pressiona a ereção maciça sob sua calça jeans entre
as minhas pernas, o prazer que me atravessa me faz ver estrelas
momentaneamente. Moo contra ele em troca.
Ele sibila em resposta, mostrando seus dentes contra meus
lábios. — Você vai pagar por isso, Mic, — ele avisa, tomando minha
boca em outro beijo que nos faz grunhir e rosnar um para o outro como
animais famintos lutando pelo último pedaço de comida. Mas nenhum
de nós está prestes a desistir. Ele me empurra de costas na cama,
caindo sobre meu corpo, minhas pernas abertas em ambos os lados de
seus quadris enquanto ele pressiona seu pau novamente entre minhas
pernas. Arqueio minhas costas, precisando sentir mais. Precisando que
não haja nada entre nós além do desejo. Um pelo outro e o de
vencer. Mas, este não é mais um jogo que estamos jogando. É uma
batalha. Uma guerra que nenhum de nós pode vencer.
Mas, uma em que ambos iremos lutar.
Ele fica de joelhos, expondo as linhas profundas de músculos
recortados por gotas de suor. Uso minha língua para provar sua pele
salgada. Ele fecha os olhos com um gemido, em seguida, enfia a mão
atrás de mim, puxando-me para uma posição sentada tempo suficiente
para arrancar a camiseta pela minha cabeça e jogá-la no chão com a
dele. Ele pressiona entre meus seios, me mandando de volta para o
colchão, em seguida, tira meu short e calcinha com um puxão. Sinto o
ar em minha pele nua por um breve momento e um flash de terror
percorre meu peito.
Pike me cobre novamente com seu corpo, seu peito nu contra o
meu é uma sensação como nunca senti. Duro contra macio. Meus
mamilos doem sob sua pele quente. Seu pau está duro e quente sob sua
calça jeans enquanto ele pressiona meu clitóris me causando uma onda
de prazer. Estremeço quando minha boceta aperta com o vazio, e
gemo enquanto a dor exige ser saciada, enquanto meu corpo exige ser
preenchido.
Passo minhas unhas nas costas de Pike, punindo-o por não estar
dentro de mim. Punindo-o por me fazer desejá-lo, por me fazer sentir
medo de desejá-lo, mas o silvo entre seus dentes não é de dor. É de
excitação, uma necessidade pura que reflete a minha própria.
Pike puxa meu cabelo com uma mão, empurrando as calças até
os pés com a outra, chutando-as.
E aí está ele. Nu diante de mim. A visão me faz engasgar. O corpo
de Pike é uma obra de arte, todo musculoso e magro. Suas tatuagens
envolvem seus quadris em um desenho intrincado que quero traçar com
meus dedos e minha língua. Seus abdominais são delineados em
sombras tão profundas que parecem ter sido desenhados. Ele é a
perfeição absoluta. É ao mesmo tempo furioso e excitante que este
homem, dentre todos os homens, aquele que age como o próprio diabo,
seja esculpido à imagem de um Deus. Um anjo com um halo de ódio e
dor que penetra em minha alma.
E seu pau é tão enorme e intimidante quanto o resto
dele. Projetando-se diante dele, roçando seu umbigo, me deixando com
medo, mas de uma forma muito diferente.
Ele se acaricia. Uma vez, lentamente, e fico hipnotizada pelo
movimento, lutando contra a vontade de estender a mão e agarrá-lo
para descobrir como seria na minha própria mão.
Pike me olha lentamente e meu corpo aquece sob seu
olhar. Estou quase nua com minhas pernas abertas diante dele. De
repente, nunca me senti tão exposta. Fecho minhas pernas, e ele
imediatamente libera meu cabelo para afastá-las. Seus olhos ficam
ainda mais escuros enquanto ele se fixa na umidade acumulada
ali. Não pensei que fosse possível, mas ele parece ainda mais faminto do
que antes.
Suas narinas dilatam e, de novo, fico com medo do que ele é
capaz, mas por uma razão totalmente diferente.
Pike me cobre novamente com seu corpo, puxando meus seios do
meu sutiã. Ele lambe um dos meus mamilos, em seguida, morde. Gemo
com a picada de prazer e arqueio minhas costas, silenciosamente
implorando por mais. Quando seu eixo agora nu se conecta com o meu
clitóris e lateja contra mim, grito. Grito quando minhas entranhas se
retorcem de necessidade e prazer insatisfeito.
Ele lambe e chupa meu mamilo, e pego um punhado de seu
cabelo, segurando-o contra mim, levantando meus quadris em um
pedido silencioso por mais.
Ele levanta a cabeça e libera meu mamilo com um pop, o ar frio
encontra a umidade e os endurece ainda mais. Ele enfia a mão entre
nós e empunha a base de seu eixo. Sua mão é grande, mas seu pau
ainda parece enorme em seu aperto. Ele desliza uma mão atrás da
minha cabeça, uma vez mais a emaranhando no meu cabelo. A outra
desce para a parte inferior das minhas costas, levantando meus quadris
da cama. Ele me beija novamente, forte, furiosamente. Há uma
cutucada na minha entrada. Aço aquecido contra seda. Ele geme em
minha boca enquanto empurra, me empalando com seu pau enorme
que me estica até eu achar que estou prestes a quebrar. Meus olhos
marejam, lágrimas escorrem dos cantos. Isso queima e dói, e nunca
quero que pare.
Ele move seus lábios pelos meus olhos e lambe as lágrimas que
eu não sabia que tinham caído. Isso dói, muito, não apenas no meu
corpo, mas no meu coração.
— Você é tão apertada, — ele diz com um gemido estrangulado. —
Porra, você é tão boa. Muito melhor do que qualquer coisa... — ele se
esforça para dizer, parando. — Pensei sobre isso. Sobre
você. Muito. Porra, Mic.
A maneira como seu rosto se contorce em agonia e prazer me
encoraja ainda mais. Levanto meus quadris, levando-o mais fundo, e
ainda assim, não é o suficiente. A dor diminui com o movimento, então
faço de novo.
Ele sibila, levantando os olhos para o teto e depois os fechando.
Faço novamente.
Seus olhos se abrem e encontram os meus. Dou a ele um olhar
ousado que diz faça o seu pior. Ele sorri em resposta, empurrando ainda
mais forte, me tocando ainda mais fundo.
E a batalha recomeça.
O encontro impulso por impulso enquanto mantemos o olhar um
do outro.
Ele para, então se afasta e empurra para frente com tanta força
que minha cabeça bate na cabeceira da cama, mas não me importo. A
sensação de tê-lo dentro de mim, me esticando, me enchendo, é tão boa
que estou prestes a explodir.
Ele ainda me segura em seus braços, puxando-me contra ele
enquanto dá golpes rápidos e fortes para que eu sinta tudo dele, tudo o
que ele tem para dar. É opressor, mas é perfeito da mesma forma que é
imperfeito.
Como Pike.
— Te odeio pra caralho, — gemo contra seus lábios, enquanto ele
me beija mais uma vez, mas não quero dizer isso.
— Também te odeio, porra, — ele zomba, e sei que ele não quis
dizer isso também.
Deveríamos, mas não fazemos. Não podemos.
Como posso odiar alguém que faz parte de mim?
Não somos inimigos. Somos vítimas das circunstâncias, presos no
que achamos que deveríamos fazer, enquanto nos consumimos pelo que
queremos fazer um ao outro.
Levanto meus quadris novamente, e suas estocadas tornam-se
selvagens e erráticas até que a tensão no meu estômago explode em um
emaranhado de sentimentos, me quebrando em pedaços como uma
marreta em uma janela.
— Pike! — Grito quando as sensações me oprimem em onda após
onda de prazer que me faz ver nada além de branco.
O pau de Pike endurece ainda mais dentro de mim. — Mic, —
ele rosna, e com um gemido que me faz gozar ainda mais forte quando o
sinto gozar em longos jorros quentes, enchendo meu corpo... enquanto
quebra meu maldito coração. — Oh, porra, Mic. O que fizemos?
— Não sei, — respondo, outra lágrima deslizando do meu olho.
Ele lambe a lágrima da minha bochecha. — Isso muda tudo.
Suas palavras contrastam com o que ele disse depois do nosso
beijo na calçada.
Coloco minha mão em seu rosto. Ele vira a cabeça e beija minha
palma.
Pike e eu não estamos em guerra. Nós nunca estivemos.
Somos o que sobrou depois que a batalha já foi perdida por
ambos os lados.
Não somos soldados.
Somos uma carnificina.
Capítulo Vinte e Sete

Pike

Sei o que quero, e o que quero é a Mickey. Ela não vai lutar esta
batalha sozinha. Vou lutar com ela. Passei a manhã toda fazendo
planos para mantê-la segura enquanto acabo com a porra do Four
Reich, começando pelo próprio Darius.
Estou parado na caixa registradora. O sino acima da porta toca
depois que um cliente sai. Há um som na sala dos fundos. Risos vindos
de Mickey e Thorne enquanto elas arrumam castiçais antigos para tirar
fotos para o site.
Nunca entendi a importância do som até hoje.
O som é uma coisa incrível. O som da risada de Mickey. O som
das unhas de Thorne batendo nas teclas. A câmera clicando a
distância. Até mesmo o toque do sino acima da porta da loja. O som de
Mic gemendo meu nome enquanto a faço gozar. Este é o meu favorito.
É o som do normal. Talvez não seja normal para os outros, mas
normal para nós.
E vou proteger esse novo normal, custe o que custar.
Outro som que nada tem a ver com nosso novo normal vem do
estacionamento lá fora, pneus guinchando no asfalto.
Correndo para fora, percebo que Mickey está atrás de mim. —
Fique para trás, — digo a ela enquanto uma caminhonete derrapa e
para na frente da loja.
Observo enquanto homens vestidos de esqueleto familiares saem
da caminhonete. Eles estão carregando alguém com um capuz de
estopa cobrindo sua cabeça. Reconheço o saco de estopa e o homem
embaixo dele imediatamente.
Vou para minha arma.
— Toque na arma e ele morre, — avisa um deles enquanto
colocam Gutter de joelhos.
Um dos homens armados arranca o capuz da cabeça de G. Ele
pisca para afastar o borrão. Então, seus olhos pousam em mim. Ele
sorri. — Não é sua culpa, Pike. Eu mereço isso a muito tempo, então
não se culpe. Não é sua culpa. Eu não te culpo. Você é a melhor coisa
que já aconteceu na minha vida. Considero você como um filho. Não se
mate por alguém como eu. Entendeu?
Um homem anda até ele com um pé de cabra na mão. — Não! —
Grito, novamente pegando minha arma. Outro homem atira nos meus
pés em advertência, criando uma colcha de retalhos de buracos no
asfalto.
— Eu te amo, garoto, — diz Gutter com um movimento do queixo.
É apenas um segundo, mas parecem horas enquanto o homem
recua e bate na parte de trás do crânio de Gutter.
Balas ou não, corro até Gutter, disparando minha própria arma
contra a caminhonete que agora está acelerando.
Largo a arma e puxo Gutter em meus braços, mas não há como
ele estar vivo. Há muito sangue. Eu levanto sua cabeça, e pedaços dela
caem no estacionamento. E não crânio suficiente. Freneticamente tento
pressionar os fragmentos de osso contra o sangue e massa gotejando de
seu cérebro como se pudesse trazê-lo de volta à vida se conseguisse
montar sua cabeça novamente. — Gutter. Foda-se, Gutter. Não morra,
— grito para ele. — Não morri por você, então você não pode morrer por
mim, — digo em um soluço estrangulado. Largando o pedaço de seu
crânio no asfalto, puxo seu corpo magro e sem vida contra o meu. —
Você não pode morrer porra! — Grito, mas sei que ele não pode me
ouvir.
Ele nunca mais vai me ouvir.

Mickey
— O som dos pneus no asfalto. Isso sempre vai me lembrar
daquele momento. Dele, — Pike diz, parecendo distante, como se não
estivesse na mesma sala que eu. Ele ainda está coberto pelo sangue de
Gutter.
Faço um movimento para tocá-lo, e ele se afasta.
— Memória ecoica. Outro nome para memória de som. Ela
registra momentos específicos e os conecta a informações auditivas, —
digo, percebendo que uma lição sobre como a memória sonora funciona
não é realmente o que Pike está querendo agora. Faço uma careta, —
Desculpe.
Ele sorri, mas só o faz parecer mais triste. — Nunca se desculpe
por ser inteligente, Mic. É o seu negócio. Domine essa merda.
Seu olhar vagueia pelo quarto como se estivesse percebendo pela
primeira vez. Ele vagueia, passando pelas mãos nas paredes, parecendo
realmente perdido.
Ele se acalma quando vê uma foto na mesa de cabeceira dele e
Gutter segurando peixes e sorrindo como idiotas. Ele pega e passa as
mãos sobre a imagem.
Meu coração se parte por ele quando seus olhos vidram. Seus
ombros caem em derrota. Lentamente, ele abaixa a
imagem. Endireitando-a várias vezes. — Como você sobreviveu à morte
de toda a sua família? — Ele pergunta em um sussurro que não
reconheceria como sua voz se não tivesse visto as palavras passarem
por seus lábios com meus próprios olhos.
Pike cai no chão e me junto a ele, de costas para a
cama. Reconheço a dor em seus olhos. As questões. A culpa. Sinto isso
como se fosse comigo, porque de certa forma possuo esse tipo de
dor. Não penso antes de agir. Estendendo a mão, envolvo meu braço em
volta de sua cabeça e o puxo para o meu colo.
— De certa forma, não o fiz, — confesso, alisando seu cabelo para
trás, acariciando-o como se ele fosse um gato perdido que precisa de
carinho. — Uma grande parte de mim morreu quando eles morreram, e
o que sobrou de mim não é mais alguém que reconheço.
Pike se inclina para o meu toque. Limpo minha garganta,
sufocando as lágrimas que ele não precisa me ver derramar agora. —
Sabe, — ofereço, — uma coisa que ajuda é conversar com eles.
— Já ouvi você falando com eles antes, — responde Pike. — Você
estava falando com eles quando te encontrei naquela noite. Pensei que
você era louca.
— Você não estava errado. Eu estava delirando naquela noite,
mas mesmo agora, não é algo que tento esconder. Não me importo se as
pessoas acham que sou louca. Ajuda-me imaginar que eles estão ao
meu redor, aqui sempre que preciso deles ou quando tudo se torna
muito e acho que não posso... — Fungo. — Sabe, mesmo em minha
imaginação, minha irmã Mallory ainda me incomoda.
— Acho que eu teria gostado de Mallory, — diz ele suavemente.
Sorrio. — Acho que ela teria gostado de você. — Rio, imaginando
como os olhos de menina louca de Mallory ficariam na primeira vez que
ela visse Pike. — Demais.
— Isso para de doer? — Ele pergunta, olhando para o teto.
— Não, — respondo honestamente. — Mas a dor muda com o
tempo. Ela se transforma de algo que parece mãos em volta do seu
pescoço te sufocando para algo que é como alguém constantemente
beliscando sua pele. Ainda dói, mas é uma dor com a qual você
aprende a conviver.
— Sua vingança. Você acha que se conseguir vai doer ainda
menos? — Ele pergunta.
— Pode não doer menos, mas acho que tornará viver com isso
mais suportável. No final das contas, não se trata da minha dor, mas de
fazê-los sofrer pelo que fizeram. Fazendo-os sentir o que sentiram, o que
eu sinto.
Pike está quieto enquanto acaricio sua cabeça. — Você sabe que
não posso ficar, — digo com um suspiro. Lágrimas se formam em meus
olhos. — Não porque não queira, mas porque tenho que ir. Tenho que
terminar o que comecei.
Ele não responde.
Olho para baixo para encontrar seus olhos fechados.
Por enquanto, o sono o faz parecer em paz. Isto é, até que suas
mãos se contraiam. Mesmo durante o sono, as mãos de Pike estão
fechadas em punhos, os nós dos dedos brancos e prontos para a luta.
Mas essa luta é minha. Eles começaram. Serei a única a acabar
com isso.
E se tudo correr como deve, Pike não será pego no fogo cruzado.
Capítulo Vinte e Oito

Pike

Acordo com o que parece ser mil gatos passeando pelo telhado. O
quarto cheira a terra fresca. Está chovendo, eu percebo enquanto pisco
para afastar a névoa do sono.
Gutter está morto e falta um pedaço de mim. Não apenas no meu
coração, mas na minha cama. Está vazia e fria.
Viro a cabeça e descubro que Mickey não está mais dormindo ao
meu lado. Uma rápida varredura no quarto e a encontro de pé na
janela. Ela está de pernas nuas, usando um grande suéter branco que
cai em um ombro e é longo o suficiente para cobrir sua bunda,
revelando a inclinação suave de suas coxas esguias e atléticas. As
mangas compridas cobrem as mãos, o excesso de material se acumula
em suas palmas como luvas improvisadas.
Ela é linda de um jeito que me faz perceber que nunca entendi a
beleza antes. Meu estômago se contorce com a mesma necessidade que
senti ontem à noite enquanto a observava dormir. A necessidade de
mantê-la segura, de mantê-la feliz.
De mantê-la.
É mais forte do que qualquer outra compulsão que já senti antes,
e é porque não é uma compulsão de forma alguma. É só ela.
Por um momento, a observo em silêncio enquanto ela inclina um
ombro contra o vidro da janela. Seus olhos estão focados no céu,
observando a tempestade passando. Ela levanta a mão e puxa a manga
até o pulso, pressionando a ponta dos dedos no vidro enquanto tenta
diminuir a distância entre ela e a chuva.
Percebo que ela está ciente que estou acordado quando fala,
embora mantenha os olhos fixos na janela. — Uma vez perguntei ao
meu pai se ele podia ver o que eu via nas gotas da chuva. A forma como
a luz ilumina de maneira diferente cada uma. As formas variadas, as
diferentes cores refletidas. — Sua voz está estranhamente calma e
suave. — Ele me disse que não. Ele disse que é necessário um dom
especial como o meu para ser capaz de encontrar algo único sobre cada
gota onde a maioria das pessoas apenas vê água caindo do céu.
Deslizando meus pés para fora da cama, fico de pé e me aproximo
de Mickey, encostando-me na parede ao lado da janela para que possa
encará-la, olhando momentaneamente para a chuva que a tem tão
concentrada.
Ela achata a palma da mão no vidro. — É... acho uma pena que
as pessoas não consigam ver o que vejo, mas às vezes gostaria de poder
ver como elas veem.
Estou surpreso com o pensamento de que ela quer ser como todo
mundo, porque Mickey não é como ninguém. Nem mesmo perto. Ela é
uma espécie diferente de ser humano, um tipo que odeio admitir, que
na verdade gosto, respeito até. — É um dom. É o seu dom. Não deseje
que isso desapareça. É o que te faz... — Aceno minha mão para ela,
desejando ser tão bom com as palavras quanto ela. — Você.
Ela encosta o lado da cabeça na janela, virando-se para me
encarar. Encontro olhos injetados de sangue e bochechas manchadas
de lágrimas. Mickey está chorando. Percebendo onde minha atenção
está focada, ela enxuga o rosto com a manga do suéter.
— É uma maldição da mesma forma que é um dom. — Seus
olhos vidram enquanto se enchem de lágrimas. Sua voz calma fica
trêmula, presa na garganta. — Existem bilhões de pessoas na terra,
mas nenhuma delas é como você, Pike. Você não é apenas água caindo
do céu. Você é tão original e especial, e ninguém nunca vai te ver do
jeito que vejo. E por causa dessa maldição e dessa memória, não posso
nunca deixar de vê-lo. — Ela funga, mas sou eu quem sente meu peito
apertar e minha garganta fechar. Ela pisca e uma lágrima escorre por
sua bochecha, percorrendo o mesmo caminho das manchas de lágrimas
que vieram antes dessa. — Mesmo se quisesse. Mesmo se tentasse
muito. Você estará aqui. — Ela pressiona minha mão em sua
têmpora. — Refletindo um tipo de luz diferente do que qualquer outra
pessoa.
— Você não precisa deixar de me ver, — digo a ela. — Estarei bem
aqui. Contigo.
Agarro seu pulso e pressiono sua palma contra meu peito para
que ela possa sentir as batidas do meu coração. Seus cílios molhados
vibram contra suas bochechas enquanto ela olha para mim com
incerteza em seus olhos. Não tenho palavras de conforto para oferecer a
ela. Sem palavras de encorajamento ou significativas. Nada que a faça
se sentir melhor, porque não tenho ideia do que o futuro reserva para
nenhum de nós. Puxo-a em meu peito e envolvo meus braços em torno
dela, descansando meu queixo no topo de sua cabeça. Ela se encaixa
tão perfeitamente contra mim, neste quarto e na minha vida.
A levanto e a carrego de volta para a cama, onde me deito com ela
em cima de mim, mantendo seu corpo macio pressionado contra o meu
enquanto ela soluça contra minha pele. Suas lágrimas escorrendo pelo
lado do meu peito em um fluxo quente de veneno contagioso que pica
em meus olhos, lágrimas ameaçadoras que nunca soube que era capaz
de produzir.
Ela agarra meu peito, as unhas cravando em minha pele. Cerro os
dentes e aceito porque é o mínimo que posso fazer depois que ela me
confortou na noite passada. Depois de alguns momentos, ela para. O
choro para e o ritmo de sua respiração se equilibra e diminui. Ela está
dormindo.
Meu peito se contrai, e não pelo peso de Mickey. Ela não é pesada
o suficiente para machucar, muito menos esmagar meu peito.
Com meus lábios pressionados no cabelo de Mickey, inalo o
cheiro de seu shampoo feminino enquanto sua pequena exalação
aquece a pele na curva do meu pescoço. Vejo sua cabeça pela janela
enquanto a chuva cai cada vez mais forte. Aperto os olhos e tento
discernir uma gota de chuva da próxima enquanto caem em lençóis,
borrando o céu. Claro, que não posso fazer o que ela pode. Tudo parece
água para mim.
Você não é apenas água caindo do céu. Você é tão único e especial
e ninguém nunca vai te ver do jeito que eu vejo.
Ninguém nunca me disse algo assim e mais, eu nunca teria me
importado se alguém tivesse me dito isso antes. Mas me importo agora e
só por causa dela.
Posso não conseguir distinguir uma gota de chuva da outra, mas
não preciso diferenciar a chuva para sentir algo diferente acontecendo
em meu coração. Ser capaz de ver algo especial e único em algo que os
outros poderiam ver como uma das massas.
Ela me vê e eu a vejo.
E agora, minha própria gota de chuva está dormindo
profundamente no meu peito. Não posso lhe oferecer nada além de um
corpo quente. Um peito para chorar. É tudo o que tenho, e é dela para
tomar.
As lágrimas que ameaçaram derramar tornaram sua presença
conhecida e fluíram de meus lábios para o cabelo de Mickey. Por ela e
sua família e o que eles passaram. Por Gutter.
Tudo o que tenho para dar a ela sou eu.
E sei que não é o suficiente.
Depois de um tempo, a coloco ao meu lado e me visto para
terminar meus planos que foram interrompidos quando Gutter foi
assassinado na porra da minha porta. Verifico Mickey algumas vezes ao
longo do dia e, a cada vez, ela está dormindo com novas manchas de
lágrimas cobrindo suas bochechas e posso senti-las, como se a tristeza
dela e a minha fossem a mesma.
Quando o dia acaba e os planos estão feitos, volto para o meu
apartamento, pronto para dizer a Mickey que não vou arriscar a vida
dela e que vou ajudá-la na sua vingança, como se fosse minha, mas
desta vez, ela não está chorando ou dormindo.
Mickey se foi.
E minha arma também.
Capítulo Vinte e Nove

Mickey

— Achei que tinha me deixado lá para morrer, — digo com raiva.


— Achei que você estava morta, — responde Darius enfurecido.
O que acontece com Darius Alban é que, quando ele diz algo ou
faz uma pergunta, está sempre questionando algo totalmente
diferente. O truque é ler o verdadeiro significado por trás de suas
palavras. É algo que aperfeiçoei ao longo dos anos.
Ele sorri com curiosidade. — Estávamos esperando que Pike
viesse a procura de vingança.
O que você disse a ele? É o que ele está realmente perguntando.
— Ele não sabe que foi você quem roubou a remessa dele, —
minto. — Ou que foi você quem a devolveu. Ele não sabe que estou com
você. Eu não disse nada. Fingi uma lesão cerebral.
— Como você conseguiu fazer isso? — Ele levanta uma
sobrancelha desconfiada e cruza uma perna sobre a outra.
Estou tentando descobrir se você está mentindo.
Estico a verdade. — Pike me nocauteou quando os outros
fugiram. — Estreito meus olhos para os homens que estavam comigo
naquela noite. — Quando acordei, disse que não me lembrava por que
estava lá ou com quem estava. O convenci de que havia perdido a
memória.
— E ele acreditou em você?
Isso é muito inteligente. Se for verdade.
Assinto. — Ele me fez passar por um detector de mentiras. Eu
passei.
— Ele não viu a marca? — Ele pergunta, desconfiado.
Ele te viu nua?
— Não. Outra mulher era responsável por meus cuidados e ela
não viu nada. Se viu, não sabia o significado e não disse nada.
— Ele te machucou, minha querida? — Darius pergunta,
brincando com as pontas do bigode.
Ele te fodeu?
— Nada que eu não pudesse controlar, — respondo, com o queixo
erguido e as mãos atrás das costas como um bom soldado. — Isso não
aconteceu até eu escapar. — Aponto para minha perna.
— Ele não te estuprou? — Ele pergunta como se não
acreditasse porque, aparentemente, sou capaz de ser super violada.
Isto ele realmente quis dizer.
Balanço minha cabeça. — Não. Seu interesse era descobrir para
quem eu trabalhava. Ele passou seu tempo comigo tentando ativar
minha memória.
Darius parece satisfeito com minhas respostas à sua
inquisição. Ele dá um tapa nos braços da cadeira e se levanta. Seu
rosto estampa um sorriso vitorioso. — Bem-vinda ao lar, Michaela. —
Ele abre os braços e me envolve em um abraço. Seu coração bate
contra minha bochecha, e me ressinto de cada batida. — Nossos planos
continuarão conforme planejado. Você é uma menina inteligente. Sabia
que não nos decepcionaria. — Ele estala os dedos. — Alguém traga
Banjo aqui e peça para ele cuidar do ferimento dela.
O ferimento a que ele está se referindo é o tiro auto infligido na
minha coxa. Está jorrando sangue pelo pedaço da camiseta de Pike que
eu envolvi nele.
Se você precisa voltar para o inferno e encontrar o próprio diabo,
vá preparado ou não vá.
Darius coloca seus braços em volta do meu ombro e estala os
dedos no ar. Um de seus homens abre a porta atrás de sua cadeira. —
Mas agora, temos muito que comemorar porque sua noiva finalmente
está em casa.
Lentamente, uma figura surge das sombras até que fique em
frente à luz do fogo. Ele é alto e musculoso. Seu torso pálido sem
camisa coberto com odiosas tatuagens racistas que se estendem da
parte de trás de sua cabeça calva até o centro do couro cabeludo.
Darius tira o braço do meu ombro. — Vá lá. Cumprimente seu
noivo.
Ando até Percy e dou meu melhor sorriso. Finjo espanto com
meus olhos como se estivesse feliz que a porra do skinhead foi solto da
prisão onde merecia apodrecer e muito pior. — Percy. Bem-vindo a
casa.
Percy agarra meu pulso e leva minha mão aos seus lábios finos
nojentos. — Então, finalmente nos vemos de novo, — diz ele, me
despindo com os olhos. Tento não engasgar enquanto ele passa os
lábios nos nós dos meus dedos mais uma vez, imaginando como ficará
seu cadáver empilhado em cima do de seu pai.
Com esse pensamento, respiro fundo e, mesmo com um ferimento
de bala jorrando e a dor latejante na minha coxa, finalmente consigo
um sorriso verdadeiro.
Capítulo Trinta

Mickey

Ouço um choro fraco. Afasto-o como o vento, mas ouço


novamente. Não é o vento. É humano. Mulher. E... familiar.
Saio da sala e sigo o som até chegar ao armazém nos fundos da
propriedade. Abro as portas. Está escuro como breu, mas o choro
ecoante me diz que estou no lugar certo.
Sigo os soluços até parar no que parece ser uma gaiola de cão.
Lá dentro, enrolada como uma bola, está uma menina magra.
— O que diabos eles têm feito desde que parti? — Murmuro.
A garota se arrasta para o outro lado da gaiola, tornando-se
menor possível.
— Está tudo bem. Não vou te machucar, — digo a ela. — Vou tirá-
la daqui eu prometo.
Seu corpo se transforma em pedra. Nem mesmo vejo suas costas
subindo com sua respiração. Então, muito lentamente, ela levanta a
cabeça, revelando olhos cinzentos fundos da mesma cor dos meus.
Estou vendo coisas. Sei que estou. É uma das minhas conversas
imaginárias. Tem que ser, mas por que a imaginaria nessa situação?
— Mickey?
Dou um passo para trás. Nunca em minha imaginação alguém
falou antes. Não Mallory ou Maya ou Mindy ou minha mãe ou mesmo
meu pai.
Mas, isso é porque não é minha imaginação. Isso é
real. Ela é real.
Caio no chão e agarro as barras com ambas as mãos para me
equilibrar. Como uma pessoa lógica, isso não é apenas ilógico e, ainda
assim, não é impossível.
Simplesmente não pode ser.
Não pode ser ela.
A garota rasteja até mim e espelha minha posição de
joelhos. Tenho certeza de que este momento é real quando minha irmã
coloca a mão sobre a minha. Engasgo com um soluço.
— Mindy?

Continua...

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