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Exemplos de ensaios filosóficos elaborados por alunos


"Que legitimidade ética tem um Estado de geolocalizar os seus cidadãos para controlar urna pandemia?"

Clara Martins.

Introdução
Vivemos um período de pandemia, marcado pelo medo e pela insegurança. Com o aparecimento da COVID-19,
governos de todo o mundo tiveram de implementar medidas que garantissem a proteção e assegurassem a
saúde da toda a população dos seus países. Agora, depois de um período de quarentena, estes questionam-se
sobre as medidas mais eficazes de modo a realizar um desconfinamento seguro.

Para além das medidas de segurança implementadas pela DGS, surgiu urna nova ideia para prevenir e combater
o coronavírus. Como sabemos, este pode provocar infeções semelhantes a uma gripe comum ou apresentar-se
como uma doença mais grave, como pneumonia. O principal problema é que se alastra muito rapidamente e as
pessoas que estão infetadas podem demorar até 14 dias para demonstrarem sintomas, podendo, nesse espaço
de tempo, infetar alguém.

Esta nova ideia, o contact tracing, tem sido discutida por grandes empresas, governos e inclusivamente pela
União Europeia. Consiste na criação de aplicações móveis que ajudem a identificar os cidadãos que podem ou
não estar contaminados e aqueles que, com receio de contraírem o vírus, pretendem ser avisados da hipótese
de terem estado em contacto com o mesmo. Estas aplicações funcionam através do Bluetooth. Os telemóveis
vão registando a proximidade de uns com os outros num intervalo de vários dias, e assim, quando a um doente
é diagnosticada a COV1D-19, ele indica essa informação à aplicação e é "marcado" como infetado. Nesse
instante, os utilizadores que registaram proximidade com o doente são notificados e deverão realizar testes de
despiste e/ou proceder ao isolamento social.

Posto isto, colocam-se inúmeras questões. Afinal, será esta medida eficaz e segura ou as desvantagens
sobrepõem-se às vantagens? Devemos abdicar da nossa privacidade? Da nossa liberdade? E acima de tudo:
"Que legitimidade ética tem um Estado de geolocalizar os seus cidadãos para controlar uma pandemia?"

Neste ensaio vou analisar as vantagens e as desvantagens do uso das aplicações que pretendem combater o
coronavírus através do rastreamento de contactos. Vou também apresentar a minha opinião sobre o problema,
sustentando-a com os devidos argumentos e refutando possíveis objeções à minha tese.

Não podia deixar de chamar a atenção para a importância deste problema. A implementação desta medida
pode ser fulcral no combate ao coronavírus. Para além disto, tal como todos os problemas da filosofia, o
importante é gerar discussões pertinentes sobre os temas em questão, mesmo que, por vezes, não exista
solução para os mesmos. Deste modo, somos obrigados a refletir e a desenvolver o nosso espírito crítico e
capacidade de argumentação.

Desenvolvimento
Em resposta a este problema surgem duas teses concorrentes: o "sim" e o "não". Para certas pessoas, não
devemos adotar a utilização de aplicações que usem o contact tracing, porque estas conduzem ao fim da
privacidade, ou até mesmo da liberdade. Esta é a posição defendida por Kant Este acredita que a utilização
destas seria moralmente impensável, uma vez que, para Kant, há coisas que estão intrinsecamente erradas,
como pôr em causa o direito à privacidade e liberdade da cada um de nós. Para outros, sim, devemos utilizar
estas aplicações e, sim, um Estado tem toda a legitimidade ética para geolocalizar os seus cidadãos, de modo a
controlar uma pandemia. Esta é a tese defendida pelos utilitaristas, como Stuart Mill. Para um utilitarista,
importam apenas as consequências das ações e, deste modo, rastrear os contactos seria o moralmente correto,
uma vez que geraria um bem maior para a população, preservando a saúde pública e, consequentemente,
gerando uma maior felicidade.

Eu defendo a tese apoiada pelos utilitaristas. Para mim, sim, um Estado tem toda a legitimidade ética para
geolocalizar os seus cidadãos, de modo a controlar uma pandemia.

Na minha opinião, todas as medidas que possam ser adotadas para a prevenção do vírus devem ser
implementadas, independentemente de não serem 100% eficazes. Cientistas, governos e especialistas de todo o
mundo estão numa luta contra o tempo para arranjarem soluções que permitam controlar o vírus, e por isto
não devemos deixar nenhuma possibilidade de fora, mas sim pensar de que modo é que podemos tirar o
melhor proveito destas. Para além disto, estas aplicações, acima de tudo, informam a população, e todos nós
sabemos que conhecimento é poder. Uma vez que as pessoas tomem conhecimento de que estiveram em
contacto com um portador do vírus, estas irão imediatamente proceder a testes de despiste e/ou ao isolamento
social. Desta maneira, o contact tracing promove a saúde individual e pública, evitando também a propagação
do vírus, podendo ser um elemento fulcral no tempo de combate à pandemia. Estas aplicações são uma das
imensas vantagens que a tecnologia nos proporciona, e nós devemos tirar o maior proveito destas.

Apesar de todas estas vantagens, surgem certas objeções relativas à utilização de aplicações que utilizam o
contact tracing, A maior parte ri a pessoas questiona-se sobre a eficácia destas aplicações e receia perder a
privacidade dos seus dados. Para além disto, questiona-se sobre a segurança proporcionada por estas e
especialmente pela possível violação dos seus direitos.

Em primeiro lugar, quanto às questões que se colocam sobre a privacidade e a segurança que estas aplicações
proporcionam, uma vez que muitos utilizadores temem que os seus direitos sejam violados, não me parece que
esta objeção tenha de ser um problema para os utilizadores. Todos nós utilizamos a Internet com a consciência
de que, ainda que a privacidade dos nossos dados possa ser afetada, os benefícios da sua utilização, como a
liberdade que adquirimos para fazer certas atividades a partir desta, transcendem qualquer tipo de problemas.
Temos de pensar que, em troca de alguma privacidade, o que estas aplicações oferecem, na verdade, é mais
liberdade e mais segurança, relativamente à nossa saúde.

Em Portugal, este problema nem se coloca. O primeiro-ministro António Costa já assegurou que o Governo não
irá impor a obrigatoriedade de qualquer mecanismo de contact tracing, defendendo que são aplicações de uso
voluntário, que não devem permitir a georreferenciação e devem respeitar o regulamento europeu de proteção
de dados. Posto isto, sabemos que, através das aplicações que estão a ser desenvolvidas que trabalham pelo
Bluetooth, não são armazenados dados sobre os utilizadores e que estes nunca são identificados, uma vez que
elas trabalham com algoritmos. As aplicações seguem o regulamento europeu de proteção de dados e é dada a
liberdade de escolha à população, quanto à adesão a estas aplicações.

Em segundo lugar, quanto à eficácia destas aplicações, está claro que estas não funcionam a 100%. Porém,
todas as medidas que se possam adotar são uma mais-valia. Assim, tal como a utilização das máscaras foi alvo
de várias críticas e mesmo sabendo que estas também não garantem a proteção absoluta dos utilizadores, a
Direção-Geral da Saúde acabou por definir a sua utilização como indispensável, sem esquecer todas as outras
recomendações. Para além disto, não nos podemos esquecer de que a única medida 100% eficaz será a vacina.

É também argumentado que nem todas as pessoas teriam hipótese de aceder a estas aplicações, como crianças
e a população mais idosa ou com dificuldades económicas, podendo não ter telemóveis ou não saber trabalhar
com estes. Considero que, quanto às crianças, não será um problema, visto que estão sempre acompanhadas
pelos pais, que podem aceder a estas aplicações. Apesar disto, quando estas vão para a escola ou creches, se os
pais das restantes crianças acederem às aplicações, também estas vão estar mais protegidas. Quanto à
população impossibilitada de aceder a estas aplicações, se a maioria, da restante população, as utilizar, não está
apenas a contribuir para a sua saúde, mas também para a saúde pública, protegendo, consequentemente, a
população mais propícia à contração do vírus. Assim sendo, apela-se à adesão destas aplicações e à entreajuda,
especialmente à população mais idosa, que necessita de apoio nas deslocações a serviços e realização de
tarefas.
Conclusão
Para concluir, apesar de não podermos garantir que a privacidade dos utilizadores destas aplicações será
respeitada, até porque se coloca a possibilidade de serem vítimas de um ataque informático, a não adesão a
estas aplicações poderá ter consequências bastante piores. Para além disto, não nos podemos esquecer de que
qualquer medida que beneficie o combate ao coronavírus deve ser, simultaneamente com as restantes
recomendações, adotada. Depois de muita análise e reflexão, considero que é um risco que devemos correr,
uma vez que empresas como a Google e a Apple já têm acesso aos nossos dados, e esta seria uma maneira de os
usar para o bem de todos nós.

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