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COZIDO (À PORTUGUESA) E DE TODAS AS OUTRAS MANEIRAS

O cozido, tal como seria óbvio aduzir é um prato tipicamente português. Esta
assumpção por si só poderia remeternos para uma discussão em torno da
nacionalidade de certas preparações culinárias.
Para a maioria das pessoas, em Portugal e no estrangeiro o bacalhau é o
produto que se associa mais óbviamente à gastronomia portuguesa, no
entanto, numa recente votação a nível nacional para eleger as sete maravilhas
da gastronomia nacional não foi escolhido qualquer prato de bacalhau. O
grande vencedor foi obviamente o cozido à portuguesa, muito provávelmente
por uma questão de associação óbvia e quase subliminar. O facto de se
reivindicar a autoria ou nacionalidade de um qualquer prato não deve ser
razão de controvérsia mas sim de interesse pela história da alimentação. O
homem só começou a cozinhar há menos de 20.000 anos e noventa por cento
de todas as criações culinárias a nível mundial só surgiram nos últimos
quatrocentos anos com a disseminação quase global dos produtos agrícolas do
Novo Mundo.
O cozido é no entanto um prato cuja origem remonta à era pré-colombiana e
não é concerteza um prato português na sua génese. Os especialistas em
etno-gastronomia defendem que o cozido tal como o puchero, o seu
equivalente espanhol foram introduzidos na Península Ibérica pelos mouros
ou/e pelos judeus sefarditas que os acompanharam na expansão para norte.
Há muitos séculos que os judeus cozinham a adafina (coisa quente), o prato
por excelência do shabat, que é cozinhado na véspera, na medida em que no
sábado não se pode entre outras coisas fazer lume nem ferver àgua. No Norte
de Àfrica existe ainda hoje a dafna ( abafado / estufado) que é feita à base de
carne de carneiro, grão, trigo, ovos e a maior variedade de legumes
disponíveis, para além de frutos secos e mel.
É pois de acreditar que a expansão mourisca pelas terras do norte do arco
mediterrânico tenham vulgarizado uma prática culinária que estará na origem
do cozido português, do puchero espanhol, do bollito misto da península
italiana e até do pot-au-feu francês. Um traço comum que valida esta teoria é o
facto de em cada um dos países citados, o respectivo cozido ser
tradicionalmente comido a um determinado dia da semana, tal como a adafina
judía só é consumida ao sábado. Outro aspecto interessante é ainda o de este
prato ter inúmeras variantes, sempre em função dos produtos da terra mais
abundantes em cada uma das regiões dos países citados. Assim é normal que
un cocido gallego se assemelhe mais ao cozido à transmontana, do que a um
cocido estremeño, que é por sua vez mais próximo de um jantarinho
alentejano.
Na minha “busca pelo cozido perfeito” tive a sorte de provar as mais distintas
interpretações do prato em quase todos os lados, com excepção das zonas
insulares - no arquipélago da Macorronésia há três cozidos famosos: o cocido
canario que leva milho, abóbora bugango, batata dôce e sete carnes, o cozido
das furnas, mais tradicional mas cozinhado utilizando a energia geotérmica que
emana das caldeiras da ilha de S. Miguel nos Açores, e o cozido à madeirense
que contém batata dôce e ainda abóbora verde tomilho e cuscuz, das Baleares
vem-nos ainda o bullit de carne outra versão que também tem batata dôce. Os
espanhóis dizem que há tantas versões de cocido (ou puchero) como regiões
espanholas, perto das grutas de Altamira provei um magnifico cocido
montañés que levava feijão, grão, borrego, porco, ossos de vitela, presunto,
morcela, chouriço, batatas e hortaliças, come-se tudo junto como em Portugal;
o cocido vasco tem como elemento diferenciador o feijão vermelho, prepara-se
em três potes diferentes e come-se em três serviços: primeiro uma sopa em
que se misturam os três caldos e as couves e se ensopam fatias de pão, por
fim serve-se o feijão com o grão e restantes verduras, e por fim as carnes
acompanhadas de uma piperrada de tomates e pimentos; ao sul, o cocido de
Andalucia tem a particularidade de levar feijão verde, abóbora, pimentão e
açafrão sendo perfumado com hortelã; o cocido madrileño é o mais conhecido
dos cozidos espanhois argumentando as gentes da capital que é a síntese
refinada de todos os outros: leva jarrete de vaca, galinha, toucinho, ossos com
tutano, morcelas e uma grande variedade de hortaliças, sendo servido emtrês
serviços: primeiro uma sopa de massinhas de cotovelo cozidas nos caldos de
cozedura, o grão e as hortaliças e por fim as carnes porcionadas.
Segundo o receituário clássico, o pot-au-feu francês é feito só com carne de
vaca sendo aconselhável usar pelo menos um corte de carne gorda, um de
carne magra e outro de carne gelatinosa, mas na realidade, também em
França há inúmeras variantes do prato: à l’albigeoise, com ganso confitado, à
la mériodionale com carne de porco e enchidos ou por exemplo à la béarnaise
com galinha, na sua versão do norte cham-se hochepot, tal como na Bélgica.
O melhor local para provar a grande variedade de cozidos franceses é a zona
das Halles de Paris, junto à bolsa, onde existem ainda alguns pequenos
bistrots que se especializam no pot-au-feu da região de origem do respectivo
patrão. O melhor que já comi foi Chez Denize que só se serve à quinta-feira e
tem uma grande variedade de cortes de vaca incluindo aba, bochecha e os
ossos com tutano que se barra em torradas de pão rústico. O L’Ambassade
d’Auvergne perto da estação de Saint Lazare serve excelente cozido com
borrego da região de Lozére.
Em Itália, o cozido mais famoso é o bollito misto piemontese, sete tipos de
carne de vaca, sete adereços de outras carnes e enchidos, sete
acompanhamentos de vegetais e legumes e sete molhos, provei un Gran
Bollito memorável no Tre Galline em Turim.
Voltando ao nosso cozido à portuguesa podem-se elencar várias versões de
Norte a Sul, sendo que algumas regiões têm por si mais do que uma variante
como é o caso do cozido minhoto que é elaborado com galinha, perna de vaca,
salpicão, focinho e orelheira, tem uma versão nas Terras de Bouro que é feito
só com carnes de porco, o cozido transmontano que leva ossos da suã e é
mais rico em enchidos tem uma versão maronesa em que se juntam milhos
para engrossar o respectivo caldo, o cozido à beirão leva pão ensopado sendo
que a partir das zonas raianas da Beira Baixa começa a surgir o grão que é
elemento essencial dos cozidos e jantarinhos alentejanos, no Algarve o cozido
tem a particularidade de levar bata dôce.
No meu périplo gastronómico (feito felizmente em etapas bem espaçadas no
tempo, dada a robustez do prato) provei sobretudo interpretações bastante
rústicas, mas também algumas mais particulares como um cozido só com
carnes de caça, um cozido só de carnes fumadas e um memorável jantarinho
de perdiz em Mourão e algumas versões mais sofisticadas apresentadas em
vários serviços e com empratamentos complexos, mas de todos, o mais
marcante foi concerteza el cocido de Abraham que o carismático Abraham
Garcia serve ao almoço de segunda-feira no seu famoso restaurante de
Madrid, o Viridiana. Este cozido homenageia as culturas que se cruzaram na
península e ajudaram a forjar a identidade gastronómica espanhola utilizando
uma grande variedade de excelentes produtos e de técnicas. Começa-se por
um grande prato de sopa que contém finas fatias ligeiramente tostadas de pão
de centeio, por cima verte-se de um bule fumegante um caldo de onde brotam
aromas que parecem constituir a essência de todos os elementos cozinhados
que se anunciam no prato seguinte, em que se sente uma pungente nota final
de açafrão. A acompanhar, uma taça com raminhos de hortelã, tomilho e
mangericão que se migam para completar o bouquet aromático da lustrosa
sopa. Este cozido é servido em apenas dois serviços o que nos levaria a
pensar que a experiência seria rápida, mas eis senão que surge um enorme
prato de tagine com uma campânula de cerca de meio metro de altura que
contém conduto suficiente para uma pequena família. A longa lista de
ingredientes é descrita num pergaminho enrolado que acompanha o prato e o
embaraço da escolha resulta de saber por que ordem começar de tal forma os
aromas libertados pelo levantar da tampa e as sensações visuais despertadas
nos confundem: Grãos de bico muito pequenos da região Toledana de La
Sagra, saborosíssimos, ao lado cherovias apenas cozidas, quase crocantes,
batatas vermelhas da Galiza, cenourinhas com rama, uma folha de repolho
recheada com o mesmo repolho salteado com alho e uma aboborinha
dulcíssima recheada de morcela de Esla, um grande osso com tutano, toucinho
curado, toucinho “adobado”, uma ponta de presunto ibérico, orelha de porco,
chouriço de Jabugo, côxa de pintada de Bresse, jarrete de vitela de lide da
ganadaria Domecq/Jandilla e a encimar o delicioso sortido de carnes, uma
“pastilla” marroquina de mão de porco com canela e pinhões de sabor
excepcional. Como acompanhamento um molho de tomates crús e cominhos e
malaguetas verdes maceradas em vinagre de Jerez. Para aconchegar este
repasto que durou mais de duas horas, Abraham Garcia escolheu um Petalos
2003, um Mencia da região de Bierzo produzido pelos Descendientes de
J.Palacios, um vinho cheio de frescura de frutos negros, regaliz e ervas de
charneca que evoluiu de forma muito interessante ao longo da refeição
deixando sempre os ingredientes do cozido serem os protagonistas. Este
delírio gastronómico memorável custou mais de cem euros ( e Abraham ainda
ofereceu uma degustação de sobremesas e um Armagnac vintage de 1981 )
mas defendo que todos os amantes de cozido o devem experimentar pelo
menos uma vez na vida.

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