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GASTRONOMIA E PRODUTOS TRADICIONAIS PORTUGUESES

CABEÇA DE XARA

A “Cabeça de Xara” é uma deliciosa receita de cabeça de porco cozinhada longamente num caldo
aromático até que os ossos se soltem das carnes.
Estas carnes ricas em colagénio são cortadas em pedacinhos e recozinhadas no seu caldo sendo
depois prensadas. Ao “gelar” formam um saboroso aspic que
se come em fatias finas.

Muitos juram que é uma receita tipicamente alentejana, conhecendo-se várias versões da mesma
receita em diferentes zonas da vasta região transtagana. Se pesquisarmos os livros de cozinha
contemporâneos como o “Cozinha Regional do Baixo Alentejo” de Manuel Camacho Lúcio,
“Carne de Porco”, de Joaquim Domingos Borrego, ou mesmo a “Grande Enciclopédia da
Cozinha Portuguesa” de Maria de Lourdes Modesto, somos levados a concluir que a receita terá a
sua origem em França, tal como tantas outras que chegaram até nós quando a cozinha francesa
estava “a la mode” e era praticada em quase toda a Europa - nas Casas Reais e entre as famílias
mais poderosas era de bom tom contratar cozinheiros franceses que então circulavam e se
transferiam pelas principais cidades do velho continente, tal como hoje fazem os futebolistas
profissionais.
Há mesmo muita gente dotada de pretensa erudição gastronómica que, para reforçar a convicção
da origem gaulesa da receita, afirme de forma peremptória que a Cabeça de Xara portuguesa é
filha da famosa “Tête d’Achard” francesa.
Mas há um busílis incontornável: “Tête d’Achard” não é uma receita francesa nem sequer existe
como representativa de coisa nenhuma na língua francesa, nem no “Litré”, nem no “Grand
Robert”, nem sequer no “Larousse Gastronomique”!
Existe efectivamente no receituário da cozinha francesa clássica uma receita muito parecida com
a da Cabeça de Xara: o “Fromage de Tête” que se pode fazer com cabeça de porco ou de vitela.
Mas não é líquido que a receita do hexágono seja a mãe de todos os “queijos de cabeça”, uma vez
que quase todos os países da Europa comem carne de cabeça de porco “enqueijada”. Na
escandinávia chama-se Sylta ou Sylte, sendo que existe até na Islândia uma versão feita com
cabeça de borrego que se chama Sviôasulta. Na Alemanha e Austria é presskopf ou presswurst,
na Rússia e na Ucrânia chama-se saltisón, em Itália formaggio di testa, em Inglaterra brawn e na
Escócia potted heid, podendo ser feita também com cabeça de borrego ou de vitela. Em Espanha
chama-se queso de cerdo ou queso de jaballi quando confeccionado usando o parente selvagem
do marrano.
Mas então por que razão se chamará a este pitéu “Cabeça de Xara”?
Uma pesquisa histórica mais aturada leva-nos a 1680, ano em que a primeira edição da “Arte de
Cozinha” de Domingos Rodrigues foi dada ao prelo. Este é considerado o primeiro livro de
cozinha a ser editado em Portugal e o seu autor era então cozinheiro de nomeada que se tornou
três anos mais tarde mestre cozinheiro da Casa Real. O cânone do bom gosto culinário era então
ditado por D. Maria Francisca de Sabóia, francesa de nascimento e filha do Duque de Nemours.
D. Maria Francisca de Sabóia foi casada sucessivamente com D. Afonso VI e o seu irmão D.
Pedro II. Seria pois normal que a cozinha real tivesse fortes influências francesas e que tal se
reflectisse no receituário daquele que seu aspirava a comamandar os seus reais fogões.
Mas voltando à “Cabeça de Xara”, esta surge no capítulo XIV da “Arte de Cozinha” que versa
sobre o porco. A terceira receita do dito capítulo tem por título “Cabeça de porco em achar”
sendo uma variante da quarta receita que se intitula “Queijo de cabeça de porco”. Eis o enunciado
das duas receitas:
3.
Cabeça de porco em achar
Coza-se huma cabeça de porco muito bem cozida com salva, tomilho, e mangerona, canela,
cravo, pimenta, e gengibre tudo inteiro, depois de cozida, lhe tirarão os ossos em quanto está
quente, e a dobrará em um pano grosso fazendo-a a modo de hum queijo; tenha-se em huma
prensa muito apertada vinte e quatro horas, e corte-se em talhadas ao comprido, as quaes se
deitem em vinagre muito forte com especies inteiras: neste achar estará todo o tempo que
quizerem.

4.
Queijo de cabeça de porco

Coza-se a cabeça de porco do modo que acima dissemos; depois de cozida, picada muito bem ao
cepo e temperada com espécies pisadas (sem levar açafrão), meta-se em um cincho de pau ou
empreita e aperte-se na prensa: este queijo não se deita em vinagre, mas traz-se na mesma até
que se gaste.
Tambem se pode fazer de cabeça de porco montês.
Com este queijo se guarnecem muitos pratos.

Resulta óbvio que a receita alentejana é mais próxima da enunciada em último lugar. Tendo em
conta que a “Arte de Cozinha” funcionou ao longo das suas quatorze edições como o único
referente culinário disponível em Português durante quase cem anos, parece plausível que alguém
em algum momento possa ter trocado os nomes das receitas.
E o que é um “achar”?
Faz sentido pensar que Domingos Rodrigues se estivesse a referir a um processo de conservar
alimentos oriundo da Índia, ele que já na altura preconizava normas rígidas de segurança
alimentar.
“Achaar” é uma palavra hindi que significa “conserva” e descreve uma técnica de conservar
alimentos numa mistura de especiarias e vinagre que é usada no sub-continente há mais de 4.000
anos. Numa época de profusa disseminação de produtos e conhecimentos através das novas rotas
marítimas recém-descobertas, é plausível pensar que a técnica do “achar” fizesse parte da
panóplia dos “colóquios dos simples, drogas e cousas medicinais da India” de Garcia de Orta
que foram profusamente difundidos na Europa durante o século XVII. Pode também muito
simplesmente ter sido ensinada por alguma freira regressada da servidão missionária na India ou
por um qualquer cozinheiro de bordo de um galeão da frota das Índias.

Aqui fica uma versão actual da receita de “Cabeça de Xara”

1 cabeça de porco (alentejano de preferência)


1 cabeça de alhos pisados
2 cebolas grandes picadas grosseiramente
1 molho de salsa
1 molho de salva
1 molho de manjerona
4 dl de vinho branco
1 dl de vinagre
sal grosso e pimenta preta em grão
Corta-se a cabeça ao meio e depois de bem chamuscada e raspada, retiram-se os miolos, a língua
e os olhos e salga-se com abundância deixando-a um par de dias a tomar gosto. Lava-se do
excesso de sal, parte-se em quartos e mergulha-se em água num tacho grande juntamente com os
outros ingredientes.
Coze-se em lume brando (cerca de 5 horas) até a carne se separar por si dos ossos. Retiram-se as
carnes do tacho e cortam-se em pequenos pedaços. Coa-se o caldo que entretanto continuou a
ferver no tacho, separando o líquido dos ossos e das ervas de cheiro. Leva-se a carne no seu caldo
novamente ao lume, deixando ferver durante alguns minutos para apurar os sabores. Retira-se do
tacho e escorre-se o líquido. Colocam-se as carnes num pano que se ata em trouxa. Coloca-se a
trouxa sobre uma tábua de cozinha e pousa-se uma outra por cima com um peso de pelo menos 2
kgs (2 ou 3 latas grandes de conserva). Deixa-se “gelar” durante pelo menos 12 horas. Serve-se
cortada em fatias finas que se podem acompanhar com talhadinhas de rábano como tira-gosto.

Já foi solicitada a protecção do nome “Cabeça de Xara de Portalegre”

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